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O CAMPO DA CARIDADE E AS PRÁTICAS DE ASSISTÊNCIA NO RIO

GRANDE DO SUL C. 1848 – C. 1928

1 - A assistência como objeto de estudo

Já há algum tempo venho pensando nas possibilidades de utilização da


categoria assistência para pensar um universo de práticas de ajuda à pessoas em situação
de risco antes da atuação mais destacada do Estado. Este artigo defende a utilização
desta categoria para pensar um universo de práticas específico que venho estudando nos
últimos anos, a saber: as ações de assistência a partir das irmandades da Santa Casa de
Misericórdia. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o termo assistência
provém do latim assistentìa e significa ‘ajuda’. De acordo com o mesmo dicionário, o
termo assistência social significa:

Conjunto das medidas através das quais o Estado (ou entidades não
governamentais) procura atender às pessoas que não dispõem de meios para
fazer frente a certas necessidades, como alimentação, creches, serviços de
saúde, atendimento à maternidade, à infância, a menores, velhos etc.; serviço
social.1

A assistência social pode ser vista hoje como um conjunto de práticas que
podem ser observadas em diferentes campos de atuação como a máquina estatal
(incluindo financiamento, postos de trabalho, distribuição de serviços e legislação), as
profissões de assistência como serviço social, trabalho jurídico (já existem advogados
especializados em assistência social judiciária), instituições filantrópicas, movimentos
sociais, associações da sociedade civil, etc.
Hoje este conjunto de práticas está centralizado no Estado e os estudos sobre o
tema (em sua maioria das chamadas ciências sociais) constroem modelos de
compreensão situados nas práticas das sociedades de produção modernas (os estudos
centram-se nos modelos de organização social predominantes no século XX e pautados
basicamente pela centralização dos estados nacionais com modelos produtivistas como
Europa, Estados Unidos, Rússia, etc., Estados onde a sociedade salarial pressionou para
uma estabilização da condição de assalariado.)

1
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, versão eletrônica.

1
Partindo de uma concepção mais generalizante podemos pensar em assistência
como ajuda em situação de risco compreendida como “evento que compromete a
capacidade dos indivíduos de assegurar por si mesmos sua independência”. 2 Assim, a
assistência pode ser compreendida como ajuda para permanecer vivo, para sobreviver (o
ideal seria viver) no mundo. Pensando desta forma a assistência pode ser estudada em
qualquer sociedade humana no tempo e no espaço.
Robert Castel toma emprestado de Alain Caillé a noção de sociabilidade
primária e secundária para pensar a assistência. A sociabilidade primária diz respeito à
sociedades que dão conta de auxiliar as pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade
por si mesmas, sem necessitar de instituições específicas. A sociabilidade secundária
ocorre em sociedades onde os laços sociais estão mais desgastados e há pessoas sem
vínculos que lhes garantam ajuda em momentos de doença, infância, velhice.

Sociabilidade primária e secundária.


Em uma acepção ainda mais ampla do termo podemos compreender a
assistência como dádiva. Assistir, ajudar, práticas que implicam em, pelo menos, doação
de tempo, mas também de recursos para sobrevivência, que nas cidades grandes estão
bastante dependentes da moeda em forma de dinheiro. Esta reflexão parte da descrição
feita por Maurice Godelier do indivíduo em uma cidade grande. Se chega a um nível de
baixa sociabilidade, nenhuma propriedade e poucos outros capitais (aqui compreenda-se
capital cf. Pierre Bourdieu), uma pessoa pode se tornar aquilo que Robert Castel
chamou de desfiliado, indivíduo de uma sociedade moderna destituído de recursos para
sobrevivência. Esta visão parece aterradora, ainda mais quando se mora em uma rua na
cidade de Porto Alegre (em um protegido apartamento no sétimo andar) em que
procuram se abrigar algumas pessoas em situação de rua.
Em entrevista concedida em 2007 Robert Castel fala sobre as possibilidades de
autonomia em uma “sociedade de indivíduos”: “[...] O trabalhador que não tem mais
condições de trabalhar e não possui este amparo [direitos sociais] passa por uma
situação terrível, pois não sabe quem vai mantê-lo. Ele está condenado, muitas vezes, a

2
CASTEL, Robert. A insegurança social. O que é ser protegido? Petrópolis:
Vozes, 2005, p. 27.

2
pedir esmola, a quase morrer, a ficar num abrigo de indigentes, entre outras situações
devastadoras”.3
Para Robert Castel, cada vez mais, a ação do Estado faz-se necessária para
minimizar situações como essa:

Quanto mais uma sociedade se torna individualista, mais ela precisa


de algo como o Estado, de uma regulação coletiva, pois no fundo, ao
contrário de certas ilusões do liberalismo, o indivíduo não consegue se
manter sozinho, precisa de apoio. 4

Num momento em que grande parte dos intelectuais (inclusive Pierre


Bourdieu) reconhece a importância do papel do Estado como agente importante para
diminuição dos males do capitalismo, julgo de relevância os estudos históricos sobre
assistência. Estes estudos podem envolver um universo de práticas amplo demais para
ser circunscrito, mas a partir da bibliografia é possível chegar a alguns problemas de
pesquisa relevantes neste momento da produção brasileira sobre o tema.

2 –Pensar em como os seres humanos assistem em diferentes sociedades


pode nos ajudar a compreender as especificidades da sociedade contemporânea.

E isso pode ser feito amplamente no tempo e no espaço. Em todas as


sociedades humanas as pessoas têm de lidar com a morte, a doença, a impossibilidade
para o trabalho; tem de cuidar das crianças (filhotes de seres humanos não podem se
sustentar sós por um tempo maior do que os da maioria dos animais); acham formas de
lidar com aqueles que fogem aos padrões de convívio. Perguntar sobre como uma
sociedade assiste (ou, em certos casos, controla) pode ajudar a compreender como ela se
organiza. Durante o século XIX era comum a afirmação de que a prática da caridade e
da beneficência era uma boa medida para determinar a “civilização” dos povos. Mesmo
no Brasil, onde a permanência da instituição do trabalho escravo marcava uma posição
não muito “civilizada” entre as nações modernas, o discurso da caridade/filantropia
como civilização esteve presente.

3
CASTEL, Robert. “O capitalismo globalizado está destruindo a capacidade de os indivíduos se
tornarem independentes”. Entrevista especial com Robert Castel em 24/05/2007. Disponível na Internet
em: http://ihu.unisinos.br/index.php?option=com_notícias&itemid=18&task=detalhe&id=7358, consulta
realizada em 12/03/2010, 01h16min.
4
Resposta dada pelo sociólogo Robert Castel ao economista Gilson Schwartz no programa Roda
Viva, exibido pela TV Cultura em 02/03/2010, ao ser questionado sobre a situação de pessoas que
trabalham com redes de computador e, na maioria das vezes, não possuem um vínculo formal de trabalho.

3
Campo da assistência, Campo da caridade, campo associativo.

Mas acho difícil afirmar a existência desse campo para o Rio Grande do Sul
no século XIX e princípio do século XX. As principais instituições de assistência em
Pelotas e Porto Alegre eram as irmandades da Santa Casa de Misericórdia (as que
tinham mais recursos, que recebiam mais do Estado, que prestavam mais serviços, que
administravam mais aparelhos assistenciais, inclusive do Estado). E com relação à sua
atuação, não julgo ser possível encontrar as características definidas por Bourdieu para a
existência de um campo.

Bernard Lahire procurou listar as propriedades dos campos observáveis em


diferentes livros e artigos de Bourdieu, que procuro resumir em seguida: 1) o campo é
um microcosmo dentro do macrocosmo social; 2) Regras do jogo e apostas específicas
que não funcionam em outros campos; 3-4-5-6) É um espaço estruturado de posições
pelas quais se luta pela posse e/ou redefinição de um capital específico que é distribuído
de modo desigual entre os agentes; 7) Esta formas de distribuição do capital é que
estruturam o campo; 8-9) as estratégias dos agentes se relacionam com sua posição no
campo, e podem ser divididas entre as de conservação e subversão, tal qual o confronto
entre “antigos” e “modernos”, “ortodoxos” e “heterodoxos” ; 10) Apesar das lutas os
agentes mantém uma “cumplicidade objetiva” pela manutenção dos campos; 11) cada
campo tem um habitus, e só aqueles que o possuem são capazes de crer no jogo; 12)
“cada agente social está caracterizado por su trayectoria social, su habitus y su posición
en el campo”. E, finalmente: 13) “Un campo posee una autonomia relativa: las luchas
que ahí se desarrollan tienen una lógica interna, pero el resultado de luchas
(econômicas, sociales, políticas...) externas al campo tiene un peso muy fuerte sobre el
resultado de las relaciones de fuerzas internas”.
Como já dito, em outros momentos cheguei a pensar na possibilidade de
trabalhar a partir de da idéia de um campo da assistência, tendo em vistas as grandes
semelhanças encontradas entre as formas organizativas de algumas irmandades,
sociedades de socorros mútuos, e associações de caridade.
Cláudia Viscardi afirma que no século XIX e principio do século XX os
agentes não viam a caridade/filantropia como diferentes das práticas de ajuda existentes

4
nas sociedades de socorros mútuos. De fato, acredito que não havia uma separação clara
no pensamento e ação de homens e mulheres no passado. Hoje somos capazes de
afirmar essa diferença especialmente pelo fato de poder perceber melhor as
estratificações sociais. Não que as pessoas não soubessem das diferenças hierárquicas
entre as associações, mas de fato, havia muitas semelhanças entre formas de conduta em
irmandades, associações filantrópicas e sociedades de socorros mútuos5. Penso ser
possível apontar, a partir da bibliografia existente semelhanças suficientes para pensar
nestas associações em um mesmo campo de atuação, se constituindo em um
determinado universo de práticas de assistência. Neste caso, a assistência não é o campo
em si, mas o objeto da mobilização, e a fundação de associações para assistência pode
ser pensada em um universo comum. É possível considerar que os agentes que
participavam daquelas associações podiam “estar investidos de la illusio propia de un
universo social, sin que este universo combine el conjunto de las propiedades que
permitirían definirlo como un campo” (LAHIRE, 2002: 11).
O estudo das associações, do Estado, do mercado de venda de serviços e das
práticas individuais de ajuda permite estabelecer um determinado regime de distribuição
da assistência.
Sobre formas de ajuda se buscam definições do que é certo/errado,
eficiente/ineficiente, profano/sagrado, seguro/inseguro. Estas concepções também
mudam ao longo do tempo, e uma boa percepção sobre estas transformações, a partir
daquilo que o autor chamou de preferências, está presente na tese de doutorado de
Adhemar Lourenço da Silva Jr. sobre as sociedades de socorros mútuos no Rio Grande
5
Estas semelhanças podem ser
observadas a partir da leitura da historiografia regional sobre o tema. CHAVES, Larissa Patrón.
“Honremos a pátria senhores!” As Sociedades Portuguesas de Beneficência: caridade, poder e formação
de elites na província de São Pedro do Rio Grande 1854-1910. São Leopoldo: Unisinos, 2008. (Tese de
Doutorado em História). NASCIMENTO, M. R. Irmandades leigas em Porto Alegre: práticas funerárias
e experiências urbanas – séculos XVIII e XIX. Porto Alegre: UFRGS, 2006. (Tese de Doutorado em
História). SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e
públicas. (estudo centrado no Rio Grande do Sul – Brasil, 1854-1940). Porto Alegre: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004. (tese de doutorado). TAVARES, Mauro Dillmann. O
tempo dos compromissos. Uma abordagem sobre as irmandades dos leigos católicos no Rio Grande do
Sul (1861-1869). Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2004 (monografia). TOMASCHEWSKI,
Cláudia. Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia de Pelotas – RS (1847-1922). Porto Alegre: PUCRS, 2007. (dissertação de mestrado em
história).

5
do Sul entre 1854 e 1940. E aqui, para dialogar com o autor, posso dizer que chamo
assistência, aquilo que ele, mais preocupado com o universo das mutuais, chamou de
socorros. Aliás, se fosse levar em conta a atuação mais direta do Estado Imperial teria
que levar em conta o termo socorros públicos (instâncias governativas maiores como
governo das províncias e Ministério do Império), se o momento de nominação fosse o
Estado Republicano talvez fosse melhor chamar assistência pública (até 1930, política
dos municípios). Ou seja, há uma série de agentes em variadas posições, lutando por
definições, mudanças e permanências nas concepções de assistência, mas os resultados
de suas ações e o peso delas na estruturação das práticas de assistência, dificilmente
poderá ser observado de modo semelhante ao que se poderia fazer para períodos de
tempo menos recuados, pois não se pode fazer entrevistas e observar as práticas,
restando apenas a massa documental preservada.
Compreendendo meu objeto de estudo dessa forma, não cabe buscar a
aplicação da teoria dos campos (que pode funcionar muito bem para o estudo da
formação de um campo caritativo/filantrópico no século XX). Lahire bem mostra que a
teoria dos campos de Pierre Bourdieu presta-se mais à formação de campos
profissionais e de atuação engajada no século XX. Ele critica as possibilidades de
utilização dessa teoria para compreender sociedades humanas, muitas vezes distantes no
tempo e no espaço da França de meados do século XX. Para Lahire: “Aunque, para
Pierre Bourdieu, todo contexto es necesariamente un campo y es por esta razón que
puede proponer la siguiente ecuación sociológica: ‘[(habitus) (capital)] + campo =
prática’, mas, como mostra o autor, a complexidade práticas nas sociedades humanas
não pode ser esgotada no interior do conceito de campo. É difícil descrever a ação
daqueles que se envolviam nas principais associações de caridade de Pelotas e Porto
Alegre como limitadas ao campo da caridade, pois elas também podiam servir como
associações de ajuda mútua (isso mostrei na minha dissertação e pode ser observado na
Misericórdia de Porto Alegre se observamos a lógica de distribuição de cargos no
interior da instituição). Essa asserção aparece na fala de um agente que ao referir-se, em
1834, à Hermand de San José y Caridad, extinta em 1844, pelo governo colorado em
Montevidéo, quando diz que ela exercia uma “influência peligrosa [...] en todos los
asuntos políticos y de la administracción interna”, que havia “mezclado con los objectos
piadosos de su finalidad ostensible, otra clase de interesses muy extraños a la religión,
entre los quales la política ocupa el rango [categoria] principal”, que seus membros
possuíam “un pacto de ayuda y protección mutuas” e, além disso, “han invadido toda la

6
administracción pública y es casi imposible conseguir que se haga justicia a alguna
reclamación si se está en oposición com los intereses de esta Cofradía”. 6 O cônsul
francês que descreve a irmandade ainda a pensa como um “estado dentro del Estado”,
concepção semelhante do articulista do periódico O Rebate em 1916 ao tratar da Santa
Casa de Misericórdia de Pelotas que estaria recusando o atendimento de enfermos que
procuravam o hospital. Afirmava o redator em artigo intitulado “A Santa Casa”:

Não recebe mais doentes – agora só recebe dinheiro.


Para que serve a Santa Casa? Para acolher a miséria sofredora, para
minorar a pena dos que sendo pobres ainda tem a desgraça de estarem
doentes.
Só este fim justificaria a existência de uma instituição que viveu
sempre do óbolo piedoso, da esmola generosa de todos aqueles que
um dia se sentiram contristados dentro dos sofrimentos alheios.
Mas a Santa Casa de Pelotas é coisa muito diferente. Instituição
riquíssima que dispõe de inúmeras fontes de riqueza, ela se tornou
uma espécie de entidade soberana, independente, como que um Estado
dentro do Estado. Os seus diretores, os seus empregados de certas
categorias, são tiranetes, como potentados.7

Por estes motivos é difícil dizer que os envolvidos com as misericórdias atuam
no campo da caridade, haviam outras práticas, que norteavam a ação dos associados e
trabalhadores destas instituições. Talvez seja possível pensar em outras associações (ou
talvez no grupo dirigente das misericórdias) como componentes de um “campo” da
caridade em cidades como Pelotas e Porto Alegre.
E mesmo que aceitássemos que as associações de assistência formavam um
campo de atuação, não poderíamos esquecer das pessoas que necessitaram de
assistência e ficaram registradas apenas nos documentos de instituições de caridade ou
do Estado, ou ainda das pessoas que ajudaram e/ou receberam ajuda, mas não deixaram
registro. E aqui cabe o mesmo argumento de Bernard Lahire para quem “Una gran parte
de los indivíduos de nuestras sociedades (las clases populares, que son excluídas de
entrada de los campos de poder) se revelan fuera del campo” LAHIRE, 2002, p. 11.
Então se pensamos a assistência como limitada ao universo das associações, das pessoas
que entravam no jogo de pagar uma mensalidade, investir tempo, etc. perdemos de vista
as pessoas que não se associavam. Algumas delas passavam pelas instituições que

6
Carta do cônsul Raymonde Baradère a Paris em 1834, citada por: BARRÁN, Jose Pedro. La
espiritualización de la riqueza. Catolicismo y economía en Uruguay: 1730-1900. Montevideo: Ediciones
de La Banda Oriental, 1998, p. 256.
7
O Rebate, Pelotas, 24 de outubro de 1916, n. 66, p. 2.

7
prestavam ajuda a terceiros, como as Santas Casas de Misericórdia, mas sobre a ajuda
entre as pessoas, é mais saber, a não ser por fragmentos que já vem sendo demonstrados
por historiadores como Nikelen da Costa Witter. Lembrar também caridade individual
Débora Clasen de Paula.

5 – Observando a partir de uma instituição central: sobre a importância de se


estudar as irmandades da Santa Casa de Misericórdia

Dentre este universo de práticas (que apenas poderia se esgotar porque


passaram muitas décadas e apenas há um número limitado, porém dificilmente
esgotável por poucos pesquisadores, de registros destas práticas), escolhi estudar as
irmandades da Santa Casa de Misericórdia. E poderia ficar horas falando sobre os
motivos subjetivos e objetivos que me levaram ao tema e a esta instituição em especial,
mas acho que isso não caberia aqui. De qualquer forma, como vários historiadores pelo
mundo já puderam perceber, as misericórdias foram instituições centrais no prestação de
assistência nos lugares de colonização portuguesa.
As irmandades da Santa Casa de Misericórdia foram instituições centrais
naquilo que podemos chamar de universo assistencial no século XIX e primeiras
décadas do século XX em Pelotas e Porto Alegre. A observação histórica a partir deste
tipo de associação torna possível vislumbrar um espaço mais amplo, onde pessoas,
associações, Estado, e Igreja buscavam e ofertavam serviços de assistência para os que
não podiam prover por si sua subsistência.
Como todos aqui já devem saber as irmandades da Santa Casa de Misericórdia
foram fundadas em todo o Império Português a partir do modelo da irmandade de
Lisboa em 1498. Após a independência política do Brasil irmandades deste tipo
continuaram a ser fundadas. Diferente de outras irmandades que buscavam a devoção
ou o auxílio mútuo, as misericórdias eram organizadas pelas elites locais, com incentivo
do Estado, para a prestação de assistência aos pobres. Seus arquivos guardam uma rica
documentação para a história social, que vem sendo explorado pelos historiadores no
Rio Grande do Sul nas últimas décadas.

8
As irmandades da Santa Casa de Misericórdia eram instituições centrais
em Pelotas e Porto Alegre, assim como um centenas de cidades formadas por
colonização portuguesa porque: 1) Recebiam mais dinheiro do governo; 2) Tinham
ligações diretas com políticos ou eram mesmo seus dirigentes que ocupavam cargos
políticos e burocráticos no Estado; 3) Possuíam os maiores hospitais (e demais
aparelhos assistenciais) locais e certo monopólio sobre os enterramentos; 4) eram
incumbidas pelo Estado de cuidados à grupos sociais que eram de sua responsabilidade
como expostos e militares; 5) Tinham acesso direto ao governo central.

Estas instituições centralizavam e monopolizavam vários tipos de serviços de


assistência, sendo um lócus privilegiado de observação das relações entre elites
caritativas locais, Estado, profissionais da assistência, e outras associações como
irmandades e sociedades de socorros mútuos. A partir da atuação das misericórdias é
possível observar duas esferas centrais para a assistência no século XX, a saber: Estado
e Mercado. Observa-se a partir de uma instituição específica as concepções de direito
(ainda que não legislado) à assistência e dever do Estado e das elites locais e também a
formação de um mercado de serviços assistenciais (muitas vezes consumido por outras
associações como irmandades e sociedades de socorros mútuos, e, em algumas vezes
também em regime de monopólio como no caso da empresa fúnebre até a década de
1870). De outro lado, é possível também observar a instituição como um manancial de
recursos possíveis a ser manejado pelas elites locais. Dentro desta última proposição de
estudo pode ter sentido a discussão sobre um campo da caridade. Mas ainda assim, não
penso ser possível defini-lo na acepção de Pierre Bourdieu.

A assistência como dádiva

Ainda que associações como as misericórdias e as irmandades e/ou sociedades


de socorros mútuos fossem formadas com objetivos diferentes e fossem formadas por
pessoas de diferentes posições na estratificação social, todas disputavam por recursos
escassos do Estado e para ter o controle dos aparelhos de assistência. Ainda que pese o
discurso caritativo das mutuais apontado por Silva Jr. Em texto recente, penso que isso é
antes uma estratégia retórica para obter recursos. É em torno das práticas de assistência
que irão se formar alguns campos profissionais destaque no século XX e um dos
mercados mais lucrativos da atualidade. É aí também que se forma um assunto que se

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não era essencialmente um assunto político no século XIX, hoje está na agenda da
totalidade dos partidos: assistência social, saúde, educação, enfim, políticas de bem
estar social.
Estas disputas em torno dos recursos para assistência pode ser observada em
alguns casos empíricos. Pelotas processos judiciais contra irmandade, disputa com a
cmara, Assim é o caso da Sociedade Portuguesa de Beneficência, mencionado pelo
historiador Adhemar Lourenço da Silva Jr., onde esta associação propõe-se a trocar
serviços por privilégios com a prefeitura de Pelotas..... também é o caso nas disputas
ocorridas entre as irmandades da misericórdia e as outras irmandades locais de Pelotas e
Porto Alegre para possuírem terrenos e meios de transporte fúnebre, e ainda no caso da
primeira cidade entre a irmandade da Santa Casa e a Câmara local para determinar o
terreno e controlar o acesso aos enterramentos....
A grande diferença entre essas outras associações e as misericórdias é que estas
últimas podem ser definidas grosso modo de acordo com aquilo que Russel-Wood
chamou de instituição semi-burocrática, no sentido de semi-governamental. Ora isso
resulta da forma de montagem do Estado português que manteve essas irmandades sob
uma espécie de tutela. O sentido dessa relação também é razoavelmente daquilo que
temos hoje na relação entre Estado e instituições filantrópicas. O século XIX brasileiro
herdou dos tempos coloniais a indistinção entre o público e o privado tal como já
mostrou José de Souza Martins. Assim como o Estado apropriava-se de bens
particulares para fazer guerra (ex: Conde de Piratini que financiou guerras de fronteira
no RS) e manter as despesas públicas (Maria Silvia de Carvalho Franco em “homens
livres na sociedade escravocrata mostrou que a câmara em XXX funcionava em uma
casa particular, em Pelotas as elites locais orgulhavam-se de afirmar que mantinham por
seu empenho privado os serviços públicos). Nesses termos também pode ser entendida a
relação entre as Santas Casas de Misericórdia e o Estado no Brasil, este tema ainda foi
pouco trabalhado, talvez porque a maioria dos autores tenha uma visão anacrônica do
assunto. Como já disse Russel-Wood chamou atenção para este estado de coisas e para
o RS a Tese de Nikelen da Costa Witter e a minha dissertação de mestrado pincelam a
discussão.
Se nos séculos anteriores muitas vezes o Estado e particulares é que recorria
aos fundos das misericórdias (é bom lembrar que muitas funcionavam de forma
semelhante à instituições bancárias, mas sem a impessoalidade do mercado), no século
XIX elas parecem ter sido instituições com poucos recursos e dependentes dos

10
incentivos e financiamento do Estado. Isso pode ser observado para o caso do RS. Para
os outros Estados isso também é possível, mas ainda não foi constatado dado o Estado
inicial das pesquisas (em recente evento no Rio de Janeiro Márcia Regina Barros da
Silva (2009) em comunicação intitulada “O processo de urbanização paulista: a
medicina e o crescimento da cidade moderna”, chamou atenção para o financiamento do
governo provincial para a Misericórdia de São Paulo).
Esta separação entre público e privado é algo que vai se construindo nos
séculos XIX e XX, e se hoje uma decisão judicial pode definir que a Santa Casa de
Porto Alegre como uma instituição de direito privado não é obrigada a receber um
paciente pelo SUS, isso não era tão claro para os agentes do começo do século XX que
brigavam para internar doentes na Santa Casa. Um exemplo dessas brigas pode ser
observado na relação entre a polícia da Parahyba e a misericórdia local. A confusão é
ainda maior se observamos que o chefe de polícia era membro da Santa Casa. O que se
observa aí é justamente a consolidação do papel do Estado e das Santas Casas de
Misericórdia como instituições privadas que irão se voltar também para o mercado de
bens assistenciais...
Acesso aos serviços é um ponto importante. As concepções de público e
privado eram diferentes. Talvez naquele tempo a instituição de caridade representasse
algo mais público que nos dias atuais. Silva Jr. já havia chamado atenção para o fato de
que os analistas no Brasil, preferem identificar a coisa pública com o que é do Estado.
Um exemplo de como mudaram as formas de compreensão daquilo que é dever das
instituições pode ser observado se compararmos uma forma contemporânea de acesso à
hospitalização e as formas de acesso no começo do século XX. Neste último momento,
mesmo não existindo um campo/esfera/arena legislativo a reger o direito à internação
hospitalar as pessoas exigiam das instituições de caridade (dever social). E. P.
Thompson mostrou que as pessoas na Inglaterra vitoriana??? Reclamavam bastante
sobre direitos tidos como naturais?.

(falar também da atual discussão sobre a judicialização da saúde).

A assistência como produto de mercado

– Mercado fúnebre e hospitalar. (SILVA Jr. (2004) fala, mas não explica
muito bem, em “mercado previdenciário”). Para pensar na formação de um mercado

11
médico-hospitalar temos que ir para o final do século XIX. Anteriormente a este período
havia uma clientela cativa (e literalmente cativa) para ser atendida no hospital da Santa
Casa, a partir da abolição da escravidão da mudança de regime político houve também
uma mudança na mesa administrativa da misericórdia em pelotas, houve maior
participação de médicos e a tentativa de expulsão de velhos e inválidos para o trabalho
que ocupavam leitos no hospital. A partir deste momento passava-se a afirmar que a
Santa Casa não era um “asilo de inválidos, mas sim um hospital para o curativo de
enfermos”... também as reclamações da imprensa que julgavam que a SC deveria
receber a todos passaram a ser ferrenhas, a organização de novas instituições, inclusive
pela Igreja (que teve um papel irrelevante nestas cidades no século XIX), ganhou
terreno. Não penso que o único motivo da transformação do hospital em um local de
cura e para os pudentes seja a abolição do trabalho escravo, mas por certo a mudança no
regime de trabalho e na estrutura da sociedade deu espaço a transformações que já
estavam ocorrendo em outros lugares.... também a partir do século XX os médicos
passaram a depender mais dos hospitais,,,, tanto é que o Peru defendia-se a cobrança de
ingresso em hospitais públicos, isso também ocorria na Argentina onde o partido
socialista havia abolido o atestado de pobreza para ingresso por considera-lo ultrajante.
Mas um certo raciocínio de mercado não é exclusivo ao século XX. Durante o
século XIX os enterramentos ocuparam este lugar. Tanto é que em muitos casos a
construção e a manutenção de cemitérios pelas misericórdias são pensadas em termos de
ganhos materiais. Na primeira metade do século XIX o presidente da província na Bahia
estava com medo que o cemitério se transformasse em uma empresa fúnebre..... Em
Pelotas a Misericórdia local brigou na justiça para não ceder o direito de construção de
cemitério a outra irmandade. Mas lembre-se que este não é um mercado livre, ele é
diretamente regulado pelo Estado que determina o monopólio ou não das misericórdias.
O mercado fúnebre apenas passará a ser livre após a constituição de 1891 que extingue
o monopólio dos enterramentos. E para se chegar nos dias atuais onde é necessário
evitar a briga de agentes funerários dentro dos hospitais a procura de clientes, ainda
seriam necessárias algumas décadas de concorrência. Também hoje o internamento
hospitalar é um dos principais bens do mercado da saúde. Isso pode ser visto quando as
pessoas entram na justiça para garantir internação hospitalar.

Visões normativas. Lisa Gordon contrato x caridade.

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Por fim, Se não pensar na assistência como um campo, nem por isso é
necessário deixar de pensá-la como um objeto cuja definição está em constante disputa
(inclusive pelos pesquisadores).

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