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Resumo
As narrativas em quadrinhos, que passaram a configurar uma versão mais pop da
literatura a partir do século XX, vêm chamando a atenção de estudiosos da área já há
algum tempo. Inicialmente monopolizada pela indústria norte-americana, essa vertente
da literatura pop ganhou um novo e significativo expoente nas narrativas dos mangás, a
versão nipônica das HQs ocidentais, quando da passagem do século XX para o século
XXI. Dentre as muitas publicações orientais, cuja receptividade para além das fronteiras
do Japão se configurou como um grande sucesso de público, está Naruto. A obra de
Masashi Kishimoto, publicada em mangá de 1999 a 2014 e em exibição na televisão
desde 2002, chama a atenção, dentre outras coisas, pela grande aproximação com a
abordagem psicanalítica, ao tratar de questões como: o Inconsciente; o Complexo de
Édipo e a castração; o papel da cultura na formação do sujeito; a confrontação e
elaboração de situações traumáticas. O presente estudo busca realizar uma articulação
entre alguns momentos-chave da trama de Kishimoto e os apontamentos de Freud e
Lacan acerca da dinâmica do Inconsciente, metaforizado na narrativa através das Bestas
de Cauda e seus portadores, sendo o personagem-título o mais importante destes
hospedeiros.
Abstract
The narratives in Comics shape, that came to be seen as a pop version of literature
towards the 20th Century, are usually faced as a curious phenomenon to some scholars
interested on this field of literature. Initially dominated by the USA companies, this part
of the pop literature made ways to the Japanese version of the Western Comics - the
mangá -, as long as the dawning of the 21st Century took place. Among the huge number
1
Mestrando em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e bacharel
em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca (Unifavip DeVry). CEP: 55660-000.
Bezerros, PE. E-mail: alanpsi1002@gmail.com.
of Eastern publications which turned into best-sellers and/or blockbusters in our
hemisphere, Naruto is certainly one of the most well-known. Masashi Kishimoto’s
masterpiece was run in mangá from 1999 to 2014 and is still being presented as an
animated series, since 2002. It is possible to find some psychoanalytic interfaces along
the story, just like: the Unconscious; Oedipus complex and castration; the role of
culture at the development of the subject; confrontation and elaboration of traumatic
situations. This study looks for a dialog between some key moments at Kishimoto’s story
and the appointments of Freud and Lacan about the Unconscious’ dynamics, which
have their metaphor in the Tailed Beasts and their carriers, being Naruto the main host
among the nine ones in the tale.
1. Introdução
2
Literalmente, sorrateiro, em japonês. É um dos principais sinônimos para ninja e um dos termos mais
usados ao longo da série para se referir aos mesmos.
das aldeias, uma vez que garante o funcionamento das mesmas sem que haja uma
dependência sistemática destas para com os senhores feudais. Apesar de integrarem uma
estrutura administrativa maior, as vilas Shinobi compõem Estados paralelos onde a
cultura, a economia e a organização social giram em torno da formação de guerreiros e
estrategistas, à semelhança do que ocorria com Esparta, na Grécia Antiga.
O personagem principal e que dá nome ao mangá, é um garoto órfão de doze
anos, nascido na Folha numa data fatídica para todos os habitantes da Aldeia: o ataque
da Raposa de Nove Caudas. Essa besta mística, uma das nove que compunham a Besta
Primordial de Dez Caudas, foi selada pelo então líder da vila no pequeno Naruto logo
após o seu nascimento. Posteriormente, descobre-se que Naruto é na verdade o filho de
Minato Namikaze, o Quarto Hokage3, que se sacrificou juntamente com a esposa,
Kushina Uzumaki, para garantir que a vila não fosse destruída. Kushina era inicialmente
a Jinchuuriki4 da Raposa. A mesma foi extraída de si por ocasião do parto, quando o
selo que mantinha a besta sob controle foi quebrado e um antigo discípulo de Minato
decidiu lançar a criatura contra a Folha, como prelúdio para o que ele chamava de “novo
mundo”. Com muito custo, o então Hokage consegue deter o misterioso inimigo
mascarado, mas nem ele e nem Kushina poderão estar perto de Naruto para vê-lo
crescer e fazer dele um grande Shinobi. Ambos se sacrificam para garantir que o filho
sobreviva e possa deter as ambições malignas do inimigo que surgiu naquela noite,
confiando-lhe para isto o imenso poder da Raposa de Nove Caudas, da qual ele passa a
ser o novo portador.
Naruto cresce sem tomar conhecimento do segredo que abriga e ignorando
igualmente que é filho do maior herói da vila. Hiruzen Sarutobi, o Terceiro Hokage que
havia deixado o posto em favor de Minato, reassume o comando da Folha e acompanha
de perto o garoto, provendo-o em suas necessidades escolares e financeiras. O menino,
porém, é o pior aluno da academia ninja. Esmera-se em praticar todo tipo de travessura
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Ho (fogo), Kage (sombra). Literalmente, a sombra do fogo, em japonês. Os líderes das grandes nações
Shinobi utilizam o termo Kage sufixando o termo relativo ao país a que pertencem. O Hokage é o líder da
Folha, assim como o Kazekage (Kaze = Vento) o é da Areia; o Mizukage (Mizu = Água), da Névoa; O
Raikage (Rai = Raio), da Nuvem e o Tsuchikage (Tsuchi = Terra) o é da Pedra. Vale salientar que tanto
homens quanto mulheres podem ocupar tais cargos de liderança.
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Termo usado no anime/mangá para designar os hospedeiros das Bijuus, as Bestas de Caudas.
Originalmente, Jinchuuriki ou Hitobashira eram as pessoas destinadas a servir de sacrifício para os
deuses no Japão em épocas mais remotas. Geralmente, as vítimas eram enterradas vivas nas fundações de
uma construção para garantir que a mesma durasse para sempre. Em Naruto, o papel do Jinchuuriki é
bem semelhante, uma vez que os hospedeiros das bestas são peças-chave para a segurança nacional,
sendo simbolicamente sacrificados em prol do bem-estar da coletividade.
e é tratado com desprezo pela maioria das pessoas da vila. A antipatia generalizada pela
figura de Naruto deve-se ao fato de ele trazer encerrada em si a calamidade que quase
aniquilou a Folha. Não obstante, a fim de evitar que ele passasse por mais sofrimento, o
Hokage proibiu terminantemente todos os aldeões de mencionar o selamento da Raposa,
de maneira que Naruto só vem tomar conhecimento da razão pela qual os seus
compatriotas o desprezam ao final do primeiro episódio do anime e a revelação se dá de
forma excepcionalmente dramática. O garoto é envolvido numa trama suja para roubar
um pergaminho secreto, sem saber que está sendo usado por um dos professores da
academia para tanto. No exato momento em que se encontrava prestes a ser assassinado
pelo traidor, Naruto é salvo por Iruka, seu professor, com quem estabelece um vínculo
suficientemente forte para superar o preconceito com que sempre fora visto na Folha. É
o início da trajetória do herói mais improvável do mundo Shinobi, numa jornada
análoga à própria experiência humana: repleta de altos e baixos, descobertas e
decepções, perdas e conquistas, onde ele inclusive se tornará alvo de uma organização
criminosa formada por ninjas de elite – a Akatsuki5 – que pretende concentrar o poder
de todas as Bestas de Cauda para deflagrar o Apocalipse no mundo ninja.
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Há duas interpretações possíveis para o nome da referida organização e ambas se justificam ao longo da
série. Akatsuki tanto pode significar “amanhecer”, “alvorada”, quanto pode ser traduzido por “lua
vermelha” (Aka = Vermelho; Tsuki = Lua). A primeira versão tem a ver com a fundação da organização,
inicialmente uma associação Shinobi nascida na Aldeia da Chuva que pregava o pacifismo e que escolheu
esse nome justamente por representar o ideal de uma era de tolerância e de paz. Posteriormente, quando a
ação de Madara Uchiha – o principal antagonista da trama – subverteu completamente os princípios nos
quais a organização havia sido fundada, a segunda versão passou a referir-se à Grande Lua Escarlate cuja
luz aprisionaria o mundo ninja numa ilusão perpétua, onde cada indivíduo estaria engolfado na realização
do próprio sonho, enquanto estivesse imerso num sono letárgico. Os ideais de Madara prevaleceram e a
Akastuki passou a trabalhar na captura das Bestas de Cauda, a fim de com isso reviver a Besta Primordial
de Dez Caudas e poder consumar o Mugen Tsukuyomi (Ilusão Perpétua do Deus da Lua).
propriamente dita, para ganhar um aspecto mais antropológico ao dialogar com culturas
relativamente distantes do Ocidente judaico-cristão.
Abstração feita da ruptura com Freud, boa parte das ideias de Jung ainda
preservaram o arcabouço psicanalítico no que se refere às dinâmicas do Inconsciente e
os complexos que lhe são comuns. E é justamente sob o prisma de tal arcabouço que as
considerações acerca de Naruto serão feitas. A teoria do Complexo de Édipo, que serve
de base para o edifício teórico da Psicanálise, mostra-se presente com grande pujança ao
longo da narrativa de Kishimoto, assim como as implicações que daí derivam.
Os conceitos de um “eu oculto” que estaria para além da razão propriamente
dita, veiculados no Ocidente pela abordagem freudiana e pela abordagem junguiana,
encontram eco nas filosofias hinduísta e budista, milenarmente mais antigas que a
escola vienense do Inconsciente iniciada por Freud. A tradição budista, que surge
inicialmente como uma dissidência do hinduísmo, estabelece que o ego é uma ilusão,
havendo uma instância psíquica para além do mesmo e que só poderia ser acessada pela
via da meditação e do autoconhecimento por ela ensejado. O acesso a tal instância do
psiquismo é que favoreceria a iluminação, o Nirvana. A Psicologia Junguiana utiliza-se
do conceito de Self como sendo uma instância de consciência mais consistente do que o
ego, numa analogia sutil ao ideal nirvânico do budismo. A Psicanálise, por sua vez, não
concebe a existência de tal dimensão de plenitude psíquica, deixando em aberto a
condição de humanidade como sendo um processo de construção constante, mediante a
percepção mais acurada da dinâmica do Inconsciente.
Ambas as escolas, a freudiana e a junguiana, lidam com o Inconsciente e
fundamentam na sua ação a prática terapêutica que lhes é comum. Em Naruto, o
Inconsciente enquanto sinônimo de pulsão6 em desalinho é metaforizado pelas Bestas
de Cauda. A franca maioria dos hospedeiros passa uma parte significativa da vida em
conflito com as entidades que foram seladas em seus corpos, numa luta constante para
não sucumbir ao poder da Bijuu que, por ser uma besta mística, dispõe de poderes
psíquicos além da compreensão humana, tal como ocorre na relação com o Inconsciente
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Termo comumente usado no meio psicanalítico para designar as forças libidinais que seriam
intermediárias à razão e ao instinto, sendo basicamente divididas em dois grandes grupos: Pulsão de Vida
e Pulsão de Morte. O termo é usado a princípio por Freud, sendo posteriormente adotado por Lacan e
outros de seus continuadores. A escolha do termo pulsão ao invés de instinto deve-se ao fato de que a
espécie humana experimenta o primado do instinto apenas no que se refere à necessidade de
sobrevivência. A pulsão, em contrapartida, está para além da sobrevivência. Ela diz respeito, sobretudo, à
ânsia humana de satisfazer desejos inconscientes relativos a algum tipo de frustração imposta pela cultura.
É, numa palavra, uma espécie de meio termo entre a razão e o instinto propriamente dito.
e a razão propriamente dita. Via de regra, o Jinchuuriki libera o poder de sua respectiva
Bijuu quando está sob pressão emocional extrema, tal como sói ocorrer nos movimentos
de surto em que o indivíduo rompe temporariamente com a realidade e pode praticar
atos que normalmente não levaria a efeito quando em pleno gozo da razão.
A forma como a dinâmica psíquica é retratada na obra de Kishimoto não deixa
de lembrar as considerações tecidas por Ricoeur acerca da função da metáfora:
O mito de Édipo, extraído por Freud da célebre trilogia trágica de Sófocles e que
se tornou um dos pilares principais da teoria psicanalítica, trata basicamente de um
príncipe tebano fadado a assassinar o pai e desposar a própria mãe que, tentando fugir a
tão hórrido destino, acaba por consumá-lo sem se dar conta. A analogia freudiana
remete justamente à dinâmica do Inconsciente, onde o sujeito, absorto no afã de evitar o
sofrimento, acaba por materializá-lo quando supunha não fazê-lo.
Na verdade, quando Freud cunhou o termo “Complexo de Édipo”, referia-se
inicialmente à estrutura familiar burguesa, presente na sociedade vienense de sua época
e pautada por valores característicos da era vitoriana ainda vigente. A ideia inicial era
trazer, por meio desta analogia, a primeira experiência de castração vivenciada pelo
sujeito e que consistia na impossibilidade de ter para si em caráter definitivo o primeiro
grande amor, ou seja, a figura materna. A presença do pai ou, na ausência concreta de
tal figura, a presença do “nome do pai” a que se refere Lacan (1999), seria o interdito à
consecução do desejo incestuoso. Não obstante, há que se considerar o fato de que a
teoria freudiana serve aqui tão somente na qualidade de lastro teórico, uma vez que
tanto o ambiente cultural em que surge a narrativa de Kishimoto, quanto o mundo
criado pelo quadrinista nipônico, se inscrevem em uma dimensão assaz diversa do
Ocidente.
Em se tratando de Naruto, a consecução do desejo incestuoso consistiria no
desaparecimento do sujeito hospedeiro, tragado pela voracidade de Besta de Cauda. A
mãe nessa cena seria muito mais o discurso cultural do mundo Shinobi, do que a
genitora propriamente dita. Aliás, é pertinente assinalar que dois dos principais
Jinchuurikis na narrativa, Naruto e Gaara, perderam as mães quando do nascimento.
Simbolicamente, as mães enquanto genitoras saem de cena, para que subsista tão
somente a Grande Mãe que cada aldeia representa.
O treinamento iniciado por Killer Bee consiste basicamente na confrontação de
tudo aquilo que o Jinchuuriki evitou enxergar ao longo de sua vida. Admitir o ódio, o
medo e a frustração – emoções comuns aos hospedeiros das Bestas – decorrentes de
uma existência repleta de privações, é o primeiro passo para o contato direto com a
Bijuu. Após cumprir as etapas necessárias a isso, Naruto inicia o trabalho de integração
com Kurama (esse o nome da Raposa de Nove Caudas), num procedimento análogo ao
que ocorre no processo psicanalítico, já que ele teve de se haver com a instância paterna
e a instância materna inscritas no seu Inconsciente.
É oportuno salientar duas circunstâncias em que ocorreu uma liberação profusa
de conteúdos recalcados no Inconsciente. Em ambas, Naruto teve acesso à sua história
pregressa. Mais precisamente, descobriu quem eram os seus pais e qual a razão de não
ter convivido com os mesmos. A primeira ocasião se deu quando da batalha contra um
dos principais líderes da Akatsuki, onde o jovem Uzumaki liberou o poder da Raposa
numa proporção descomunal. Quando estava prestes a romper completamente o selo e
abdicar da consciência em definitvo, Naruto se deparou com a figura do Quarto Hokage,
que o deteve e revelou ser na verdade o seu pai. A intervenção de Minato obstando-o de
liberar em completude as pulsões desgovernadas, remete às considerações de Lacan
sobre o “nome do pai”, quando considera a questão dos três tempos do Édipo:
A identificação com o desejo materno é simbolizado tanto pela Raposa que foi
repassada ao protagonista logo após o seu nascimento, quanto pela sua identificação
com a figura do Quarto Hokage, sempre venerado pela mãe sob cuja égide o garoto
cresceu: a própria Vila da Folha. Naruto herdara a Bijuu de Kushina (a mãe biológica) e
fora sempre exposto às vicissitudes da sua condição de Jinchuuriki pelo discurso
cultural da Folha (a mãe simbólica). A metáfora paterna foi inscrita no Inconsciente do
personagem pela via do discurso cultural. Minato foi o herói que salvou a vila da
destruição e surge na psique de Naruto, justamente quando este se encontra prestes a
liberar a calamidade por ele contida dezesseis anos atrás. Em outras palavras, o Quarto
Hokage inscreveu-se como um pai grandioso, o ideal de Shinobi que a Folha, na
qualidade simbólica de mãe, desejava e buscava em seus cidadãos. Não sendo Naruto,
de forma alguma, exceção a este primado do desejo materno, com o qual veio a
identificar-se especularmente.
O encontro entre pai e filho tem lugar nos episódios 167 e 168 da fase
Shippuden7 (volume 47 do mangá, capítulos 439 e 440)8. É um dos momentos mais
emocionantes da série, contando inclusive com um violento desabafo de Naruto
questionando que tipo de pai selaria uma Bijuu no próprio filho. A resposta de Minato é
desconcertante e traduz muito bem a inscrição do sujeito na condição faltosa. Ele afirma
de forma categórica que o filho seria capaz de usar o poder da Raposa para evitar que
uma imensa calamidade destruísse o mundo ninja. A reação de Naruto é de total
incredulidade. Ele diz que todos nutrem expectativas demais a seu respeito, mas que não
dispõe de meios pra fazer o que esperam dele. O Quarto Hokage, longe de se dar por
vencido, sentencia peremptório: “ser um pai é ter grande confiança em seus filhos.”
Logo em seguida, Minato reconstrói o selo (localizado justamente no umbigo, não por
acaso), frisando que o fará pela última vez. É o corte capaz de separar o sujeito da
demanda materna que, no caso de Naruto, seriam as exageradas expectativas e
cobranças da vila a que ele, inconscientemente, se submetia.
A ação de Minato impedindo a liberação de Kurama remete ao segundo tempo
do Édipo (LACAN, 1999), onde o pai se inscreve como a lei, a instância capaz de
impedir que a demanda materna faça o indivíduo afundar na ilusão de ser o objeto de
gozo da mãe. No terceiro momento, o pai deixa de ser apenas uma instância de discurso
para se converter em alguém real, concreto. Até o contato com Minato no momento em
que iria liberar a Raposa, Naruto conhecia tão somente o herói lendário que evitou a
destruição da Folha. Ao final desse encontro, Naruto conhece o pai, o seu pai. O homem
7
Em uma tradução livre, Shippuden pode ser lido como as crônicas do furacão, uma alusão ao
sobrenome materno de Naruto (Uzumaki = vórtice, redemoinho). A divisão entre saga clássica e saga
Shippuden existe apenas no anime. O mangá não muda de título quando se inicia essa etapa da narrativa.
8
Disponível em: <http://www.naruto.com.br/midia/mangas.html>;
<http://konohaonline.info/capitulos/439#12> e < http://konohaonline.info/capitulos/440#1>. Acesso em
14 agosto 2015, às 13h26min.
que, apesar de todo o poder e renome com que foi ornado pela cultura (o discurso da
mãe simbólica), não conseguiu impedir os planos de um misterioso mascarado que
lançou a Bijuu contra a vila. Minato incumbe Naruto de deter o inimigo, revelando-se
desta forma não como o pai onipotente da tradição veiculada na Folha, mas sim como o
pai potente, o sujeito faltoso que não pode fazer tudo e, ao assumir tal condição,
demonstra para o filho que ele também terá de se haver com a própria condição faltosa.
A segunda ocasião se deu durante o treinamento com Killer Bee, quando Naruto
entrou em contato com a sua instância materna. A cena em que ele consegue encontrar-
se com Kushina é de uma riqueza simbólica magnífica. O protagonista libera Kurama da
prisão e a enfrenta de igual para igual, extraindo da Bijuu uma quantidade considerável
de chakra9. É a metáfora da extração do gozo a que se referem os psicanalistas, quando
do corte capaz de separar o indivíduo da imago materna a que se mantém preso. A este
respeito, é oportuno mais uma vez trazer Lacan (1999, p. 198), quando se refere ao
segundo tempo do Édipo:
O terceiro tempo é este: o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode
dar porque o possui. Aqui intervém, portanto, a existência da potência
no sentido genital da palavra – digamos que o pai é um pai potente.
Por causa disso, a relação com o pai torna a passar para o plano real.
(LACAN, 1999, p. 200)
9
Do sânscrito: roda. Em Naruto, o chakra é a energia vital utilizada pelos ninjas para criar técnicas de
combate e até mesmo para salvar vidas. Ninjas médicos como Sakura, Tsunade e Kabuto, são capazes de
realizar cirurgias com chakra e mesmo de infundir chakra nos companheiros, quando estes se encontram
debilitados.
O jovem Uzumaki é, desta forma, “entregue” à mãe depois de ter se avistado
com a lei representada pelo pai. O simples fato de Naruto levar o nome da mãe
(Uzumaki) ao invés do sobrenome paterno, numa cultura altamente centrada no modelo
patriarcal como o é a cultura nipônica, já é algo bastante significativo. A nível de
personalidade, Naruto inclusive é bem mais parecido com Kushina do que com Minato,
posto que a mãe era extremamente geniosa e temperamental, enquanto o pai era firme e
conciliador.
Após o contato com as suas raízes, Naruto torna-se capaz de utilizar o poder de
Kurama sem estar exposto às intempéries emocionais que antes o acometiam e o
deixavam a mercê da Bijuu. Estabelece-se um equilíbrio entre as duas partes, hospedeiro
e Besta de Cauda, para além do campo de batalha. Naruto torna-se capaz de reconhecer
a importância de trazer em si a Raposa de Nove Caudas, ao mesmo tempo em que
Kurama põe de lado o ódio extremo que nutria pelos humanos em virtude dos muitos
abusos sofridos no passado. É quando tem lugar o que se denomina em Psicanálise de
retificação subjetiva.
5. Considerações Finais
Referências bibliográficas
MOLINÉ, A. O grande livro dos mangás. São Paulo: Editora JBC, 2004.