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* Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e à
Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC-SE) e integrante do Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura
(GeFeLit-UFS). E-mail: rodrigo.literatura@gmail.com
“Dupla melancolia para quem compreendia deroso remédio da morte” (MISHIMA, 1987,
que a civilização capaz de forjar tais homens p. 31). Com isso, na obra de Mishima há um
[os samurais] também tinha morrido”. intenso embate entre tradição e moderni-
Embora grande conhecedor do Oci- dade e o resultado é uma mescla de vida e
dente, como nos mostra seu biógrafo, o jor- morte sem hostilidades, um estar diante da
nalista britânico Henry Scott Stokes (1986), morte e encará-la que tão bem os samurais
e levando para sua literatura uma tonalida- e o velho Japão souberam lidar. É neste mo-
de ocidental – por exemplo, citações e pen- vimento que a escritura de Mishima carrega
samentos de filósofos ocidentais, justifican- a morte em suas páginas.
do a grande fama que teve Yukio Mishima Expliquemos: que o olhar que lança-
fora do Japão –, o projeto de vida do autor foi mos para o Oriente e para a literatura de
defender até o fim o espírito feudal do país: Yukio Mishima não intente cair em uma
“Mishima parece partilhar da ilusão ociden- etnografia do “outro exótico”, campo de tra-
tal de que o Japão ainda é um país de samu- balho da antropologia. Nosso caminho críti-
rais; claro que o espírito deles persiste, mas co percorre alguns filósofos, não no intuito
a parafernália não” (STOKES, 1986, p. 21). O de que, na análise, estes se sobreponham à
que Stokes nos coloca, e o acompanhamos obra literária, mas que haja uma “aproxima-
na colocação, é que a cultura é dinâmicae, ção compreensiva”, como diz o crítico literá-
em se tratando daquele país por muito en- rio paraense Benedito Nunes, em No tempo
clausurado, uma figura feudal tenderia a fi- do niilismo e outros ensaios (1993, p. 82) – uma
car no imaginário. Mas é salutar preservar o transa entre campos disciplinares, matéria
imaginário não como uma “ilusão”, erro de a que Benedito Nunes se dedicou em toda
percepção, algo negativo, mas algo próximo sua crítica. É neste ponto de encontro entre
daquilo que tratou Gilbert Durand (1982), Ocidente e Oriente que estabelecemos uma
um imaginário que transforma o real. dialogação, no sentido heideggeriano, para
Deste modo, a partir de dois roman- fundamentar nossa análise crítica.
ces de destaque do autor, Confissões de uma
Máscara (1984) e O Templo do Pavilhão Doura- 2. Festim da morte
do (1988), investigamos como se configura 2.1 Confissões
essa atmosfera em suas obras e como não
só Mishima, mas também seus personagens
Guevaras, Mishimas: mortos, somos
defendem uma ética guerreira do samurai, invencíveis.
como ambos (e por isso suas obras tem
um tom autobiográfico, ou autoficcional) (LEMINSKI)1
partem em defesa do código Hagakure que,
como diz o próprio Mishima em um mani-
festo, “é uma tentativa de curar o caráter
pacífico da sociedade moderna com o po-
1
LEMINSKI, 2011, p.239.
Jovens gladiadores postos a oferecer frenesis, tudo em doses altas, em que viver é
a vida, gritos agonizantes capazes de um dever, desagradável dever.
provocar até o mais pífio sentimento de Seu percurso de inquietação e constru-
tristeza, banhos de sangue, adagas, mais ção da máscara dá-se por três momentos: (i)
ainda: uma longa mesa sob uma toalha de memórias da infância, “preâmbulo de mi-
um branco sublime, candelabros elegantes, nha vida” (MISHIMA, 1984, p. 20), quando
pratos postos. Banquete fúnebre. Um dos se dá sua inclinação “para a morte, a noite
cozinheiros se aproxima da mesa e anuncia e o sangue” (Idem, p. 20) e quando “a relu-
que logo o jantar será servido. Mais gritos tante máscara começara a nascer” (Idem, p.
e gemidos, outro cozinheiro com um rapaz 24); (ii) descoberta do prazer, uma urgência
morto, corpo nu estendido ao chão. De de começar a viver, e quando começa, a par-
rosto para cima ou para baixo, pergunta tir dos doze anos, a arquitetar seu teatro da
o cozinheiro? Outro cozinheiro com uma morte; (iii) transição da adolescência para a
enorme travessa, ansiedade, corpo despido fase adulta marcada pela guerra, momento
sobre a travessa. Começa o banquete, um de descoberta da morte como real objetivo
garfo sobre o coração, jatos de sangue de vida.
por todo lado, gozo e excitação em cada Nascido numa manhã de janeiro de
movimento. 1925, Koo-chan passou a infância sendo
Assim é descrita a cena do teatro de criado pela avó, entre os odores da doença
morte em Confissões de uma máscara(1984), e da velhice. A ausência do belo escorre já
em que o protagonista do romance, Koo- pelas primeiras linhas – ausência que pode
-chan, fantasia seu desejo de morte. Escrito ser evidenciada também nas outras obras –
em forma de diário pelo narrador autodie- quando depara com um jovem sujo e abate-
gético, o romance é um córrego de sangue, -lhe o desejo de se transformar naquele
sofrimento e orgasmos, um palco de cruel- moribundo, de ser ele. Logo cedo percebera
dade aonde a morte chega até a ser posta que a vida não era contos de fadas. Mergu-
como personagem na narrativa. Koo-chan a lha em fantasias e lutas, além de despertar,
deseja como se esta assumisse um corpo de- ao mesmo tempo, o desejo carnal, embora
sejante, como a morte em corpo de uma mu- sem compreender – primeiro, a atração pe-
lher vestida de branco e de seios à mostra no las calças apertadas de um sujo transeunte,
filme de Ingmar Bergman, Na presença de um depois a atração pela figura heroica de um
palhaço (1997). Confissões pode ser chamado “homem” montado num cavalo como quem
de romance autobiográfico por conter mui- enfrentasse a morte, que depois iria desco-
tos passos do autor e de suas inquietações brir ser Joana d’Arc. Das memórias da in-
no protagonista2. Aflições, medos, delírios, fância, podemos aproximar o protagonista,
submerso às deficiências do mundo, àquilo
2
Sobre obras autobiográficas ou “escritas de si”, pode-se que chamou o filósofo romeno Emil Cioran
conferir o estudo de Philippe Lejeune, O pacto autobiográ-
fico (2008), e um salutar estudo de Georges Gusdorf, Les
de origens do mal, ou princípios satânicos do
écritures du moi, lignes de vie (1991).
sofrimento: “Comment combattre le malheur? criando seu fetiche por axilas – o mesmo
Em nous combattrant nous-mêmes: en compre- ideal de axilas de São Sebastião.
nant que la source du malheur se trouve em nous” Mas é diante do espelho que Koo-chan
(CIORAN, 1990, p. 119)3. Carrega, pois, em depara com “o desgracioso reflexo do meu
seu interior todos os sofrimentos do mun- corpo nu” (Idem, p. 61), um confronto entre
do, um combate com ele mesmo e além: a beleza do Outro e a beleza de si mesmo.
combate com os sentidos da vida. Duro reflexo que nos remonta à antológica
O adeus à infância é expresso por cena do filme O sangue de um poeta (1930), de
dois caminhos: primeiro, pela sensação Jean Cocteau, que diz: “os espelhos deveriam
carnal e imersão na libido; segundo, que pensar mais antes de refletir as imagens”.
podemos dizer ser derivado do primeiro, Koo-chan conclui seu desgosto de si ao di-
pela denúncia do belo, direcionando-o a zer: “Nunca você vai ser parecido com Omi”
um esquartejamento – um écart èlement (MISHIMA, 1984, p. 61). A impossibilidade
existencial cioraniano (CIORAN, 2004). O de ser parecido, ou ser ele, remonta-nos à
que chamamos de descoberta do prazer, sua ideia de desprezo de si de Cioran quando
primeira ejaculação, dá-se frente à imagem constata, em sua obra Suslescimesdudésespoir
de São Sebastião, de Guido Reni, amarrado (1990, p. 99), que “Seul l’homme est capable de
a uma árvore e com as mãos levantadas. A tant de mépris de soi”4. O desprezo de si é um
imagem daquele corpo nu, apenas coberto passo que põe frente a frente o homem com
com um leve pano branco na região do a miséria da humanidade, sendo a máxima
órgão genital, além de flechas cravadas no do pensamento do filósofo pessimista (1990,
corpo, foi para Koo-chan não só o marco p. 100): “éternelle est la misère de l’humanité”5.
de seu primeiro gozo, como foi também Nostálgico, saturado de si, constata-se aqui-
o preâmbulo da agonia de morte pelo lo que disse Cioran: tudo é poeira. E mais:
martírio do corpo, dor magnífica e trágica. tudo é nostalgia. Se a máxima do filósofo
É como, digamos, se São Sebastião abrisse
é que “Je suis mécontent de tout”(Idem, p. 81)6,
as portas para o gozo da dor, crueldade e
será Koo-chan a concluir:
prazer, no personagem (posteriormente,
Mishima posaria nu na mesma posição Estava saturado de mim mesmo
de São Sebastião para uma fotografia de e, apesar da minha castidade,
Kishin Shinoyama em 1970, pouco antes de destruindo o meu corpo. Pensara que
sua morte). A outra imagem do prazer foi com “seriedade” (que pensamento
tocante!) eu também poderia escapar
a de um colega de colégio, Omi, “primeiro
à minha condição infantil. Era como
amor que enfrentei na vida” (MISHIMA,
se eu ainda não tivesse percebido
1984, p. 54), por quem teve vários momentos
de ereção, que chamava de mau-hábito,
4
“Somente o ser humano é capaz de tanto desprezo de si
mesmo”. Grifo do autor.
3
“Como lutar contra a desgraça? Lutando contra nós
mesmos: compreendendo que a origem da desgraça se
5
“Eterna é a miséria da humanidade”.
encontra em nosso interior”. Tradução literal nossa. 6
“Tudo me deixa insatisfeito”.
que aquilo com que estava enojando Nessa época aprendi a beber e a fu-
agora era meu verdadeiro eu, era mar. Isso quer dizer que aprendi a
claramente uma parte de minha vida. fazer de conta que fumava e bebia. A
(MISHIMA, 1984, p. 73). guerra produzira uma maturidade es-
tranhamente sentimental em nós. Fez
Desta transição, entre a fase da infân- que pensássemos na vida como algo
cia e a fase adulta, podemos chamar de mo- que terminaria abruptamente pelos
vimento de êxtase: de morte e de erotismo. Do vinte anos; jamais considerávamos
sexo à morte, do sangue à carnificina, neste sequer a possibilidade de haver algu-
movimento Koo-chan é puro impulso. E o ma coisa além daqueles poucos anos
êxtase atinge os cumes quando os mundos remanescentes. A vida nos surpreen-
deu como sendo uma coisa estranha-
exterior e interior se mesclam neste mo-
mente volátil. (MISHIMA, 1984, p. 86).
vimento – o que aproxima a saturação do
protagonista da insatisfação cioraniana. E A rápida permanência nos bancos da
só mesmo nos cumes deste movimento que universidade dá-se por conta dos frequentes
podemos extrair a máxima apontada por ataques aéreos, adiantando o exame físico
Darci Kusano (2006, p. 424): “êxtase da mor- no serviço militar e, com a classificação
te com a consumação do êxtase erótico”. de apto para o serviço, o chamado para
Da adolescência para a fase adulta, isto o trabalho na fábrica de aviões. Éa partir
é, dos dezessete aos vinte e um anos, dois deste momento que aflora o sentimento e a
momentos marcam a exegese: a entrada na experiência da morte, ou, de acordo com o
universidade para o curso de direito, um personagem, finalidade da morte. Koo-chan
ano antes do final da guerra, em 1944, e a espera por ela, “ansiava impacientemente
convocação para o serviço militar em uma pela morte com uma doce expectativa”
fábrica de aviões já no último ano da guerra. (Idem, p. 93), deseja-a assim como Cioran
Neste período, com a guerra, aviões e bom- a admirava num movimento de êxtase.
bas como pano de fundo, é que se manifes- Podemos dizer que o protagonista concorda
ta o maior sentimento trágico na narrativa, com o pensamento de Cioran de que“l’une
alcançando a morte seu ponto alto. O Japão dês plus grandes illusions consiste à oublier
ameaçado começara a provocar mudanças que lavie est captive de lamort” (1990, p. 28)7.
na sociedade, se o amanhã era mesmo in- Esperar as bombas caírem e incendiarem
certo, a luz direcionava para o palco do pre- tudo, para que reste nada mais que ruínas,
sente, presente absoluto. Uma casa fechada, fogo purificador, pois só pela destruição do
sob ameaça de ter as portas forjadas, um ovo mundo poderia destruir-se, negar-se rumo
prestes a quebrar: a vida foi algo que pudes- ao nada, “eu suspirava pela grande sensação
se ser questionado, repensado, inquietações de alívio que a morte certamente traria
nipônicas muito bem derramadas pelas pá- se apenas, como um lutador, eu pudesse
ginas do romance, no seguinte trecho:
7
“Uma das grandes ilusões consistem em esquecer que a
vida é seduzida pela morte”.
arrancar o pesado fardo da vida sobre os 1984, p. 115). O impulso pelo grotesco e pelo
ombros” (MISHIMA, 1984, p. 93). Eis sua sangue, isto é, pela carnificina, denuncia
doutrina da morte. Foi durante uma volta não apenas a ausência do belo, mas tam-
para casa, devido a um mal-estar, causando- bém direciona-nos para a tese de que “a be-
lhe uma febre, que o protagonista, olhando leza estaria associada à destruição e morte.
o mundo exterior pela janela do trem, [Isto é] a beleza só teria existência através
pensou na completa destruição pela guerra, da ruína e morte” (KUSANO, 2006, p. 467).
“fechava os olhos e imaginava uma cena em Logo, seguindo a tese salutar apontada por
que toda a minha família era aniquilada Kusano, podemos concluir que a estética da
num ataque aéreo” (Idem, p. 100). Eis, assim, decadência e da morte, em Confissões, dá-se
seu maior desejo: pela tríade beleza-ruína-morte.
O que eu queria era morrer entre es- Pouco a pouco o desejo de nulidade o
tranhos, tranquilo, sob um céu sem inflama como um incêndio interior nos ali-
nuvens. Entretanto, meu desejo di- cerces da existência e que, somado ao incên-
feria dos sentimentos daquele grego dio exterior, o faz elaborar a tese de que “era
antigo que queria morrer sob o sol na morte que eu havia encontrado meu real
brilhante. O que eu queria era algum objetivo na vida” (MISHIMA, 1984, p. 131).
suicídio natural, espontâneo. Queria Mergulhado na fantasia e no delírio, so-
uma morte como a de uma raposa,
nhava em apagar-se: “eu estava esperando
ainda não muito versada em astúcia,
[...] que durante aquele mês os americanos
que caminha descuidadamente por
uma vereda na montanha e é atingida desembarcassem na baía S, e [...] que uma
por um caçador devido à sua própria bomba monstruosa, como ninguém jamais
estupidez... (Idem, p. 100). imaginara, me matasse, não importa onde
eu estivesse abrigado...” (Idem, p. 142). Mes-
No apocalíptico ano de 1945 o Ja- mo contemplando a ideia de suicídio, não
pão mergulhou em chamas, “o céu ficou haveria motivo para o ato com a morte dan-
vermelho-vivo” (Idem, p. 114), uma festa çando tão próxima de si.
de destruição e morte. É neste ano que o O desfecho do protagonista Koo-chan
protagonista fica face a face com a carni- é a sensação do fracasso, da incapacidade.
ficina resultante dos bombardeios aéreos; “Eu estava completamente exausto. No en-
dá-se neste momento aquilo que Darci tanto, algum gatilho ainda estava adicio-
Kusano (2006, p. 466) chamou de “estética nado na minha mente” (Idem, p. 180-181).
da decadência”. Em uma de suas voltas Havia ainda um último gatilho, já que ne-
à fábrica, depara com vítimas do ataque, nhuma bomba o atingiu como compulsi-
corpos espalhados no chão com os olhos vamente desejara. Se considerarmos que
vazios que nada veem; mães, filhos, uma a obra seja autobiográfica, seria o seppuko
fotografia da agonia. Apesar disso, confessa o último ato de Koo-chan, assim como fez
Koo-chan ter sido “encorajado e fortalecido Mishima no quartel do Exército cravando a
por aquele desfile de miséria” (MISHIMA,
espada no ventre? Se, por um lado, o final ideal de belo e sublime. A mãe era o oposto
da narrativa é aberto, para pensar com Um- dessa ideia, tresloucada, maltrapilha, au-
berto Eco (1991), e se, por outro, é o romance sente de beleza e sendo de baixa condição
escrito em forma de diário, seria o protago- social, mas, como gerado de um farrapo
nista o samurai que cometeu o harakiri(isto humano, o próprio Mizoguchi tinha sua de-
é, o suicídio, prática dos samurais)diante da ficiência no mundo: ser gago. Sua gaguei-
derrota? Estas perguntas nos direcionam ra representa não só a dicotomia feio-belo
a confissões não apenas de uma máscara, como apresenta a atmosfera da monstruo-
mas também de uma filosofia negativa. Por- sidade que é sua vida já desde a infância. É
tanto, temos um personagem que carrega o lícito observar que o belo, para o protagonis-
peso do sofrimento, um romance que roça ta, é o mundo exterior e o Templo Dourado,
com a filosofia do pessimismo. ou a ideia que tinha, como se a beleza fosse
um objeto que se pudesse tocar; o feio era
2.2 O Templo representado por ele e pela mãe, e mais: é
como se o Templo Dourado fosse a media-
O desejo da morte, flatterlamort, tam- ção entre o belo e o feio. “Se a beleza real-
bém tem lugar privilegiado na narrativa mente existia ali, isso significava que minha
do outro expressivo romance de Yukio Mi- própria existência era uma coisa afastada
shima, O Templo do Pavilhão Dourado (1988), da beleza” (MISHIMA, 1988, p. 22).
que, também tendo a guerra como pano de Conhecer o Templo e confrontar o ob-
fundo, apresenta um dos mais enigmáticos jeto físico com a ideia que formara foi “in-
personagens da biografia do escritor: Mizo- teiramente decepcionante” (Idem, p. 24), por
guchi. Outro romance escrito como diário ver apenas um simples prédio de três pavi-
de um personagem apocalíptico, a narrativa mentos. A ideia era mais sublime porque o
autodiegética penetra no descontentamen- protagonista amava o que podemos chamar
to da realidade e fuga, que só se dará com de essência da coisa. A busca da beleza é
o que chamaremos de arquitetura da destrui- digna de emoção como quando assistimos
ção. Poderemos, assim, ler o romance por Mishima: uma vida em quatro capítulos (1985),
dois aspectos: antes e depois da presença do a adaptação do Templo Dourado, além de ou-
Templo Dourado na vida do protagonista. tros textos de Mishima, feita por Paul Sch-
Nascido em uma cidade litorânea do rader, produção de Coppola e George Lucas,
Japão, Mizoguchi narra, como Koo-chan, o ator diante do enorme templo, com uma
suas memórias da infância, que compreen- memorável trilha sonora de Philip Glass.
de o período antes de entrar para a vida mo- Mas é nessa busca que os pares antagônicos
nástica. Na infância, sempre ouvira do pai se mesclam na turva ótica do personagem:
sobre o Templo Dourado como uma espécie
O que é tão horrível em vísceras
de paraíso, isto é, neste período forma-se a
expostas? Por que cobrimos os olhos,
ideia do protagonista acerca do Templo, um
aterrorizados, quando vemos as tripas
de um ser humano? Por que as pessoas “Tornou-se meu sonho secreto que toda
ficam tão chocadas ao ver o sangue Kioto fosse envolvida em chamas” (Idem,
jorrando? Por que os intestinos de um p.46). Enquanto a capital do Japão ardia
homem são feios? Não é, exatamente, em chamas, Mizoguchi manifestava suas
da mesma qualidade da beleza de uma
inquietações e seus pensamentos mais
pele jovem e brilhante? (Idem, p. 57).
perversos, pois ele “era desesperadamente
Questionar o papel do belo e do feio pobre de sentimentos humanos” (Idem,
e levá-los ao limite era propício para um p.46). Já a ocupação americana, por
gago que vivia envolto de névoas, e é essa exemplo, pode ser observada quando os
névoa hedionda que o liga ao Templo, esta oficiais americanos visitam o Templo,
é a incapacidade que tinha o primeiro sendo Mizoguchi o guia daquilo que era um
amigo de Mizoguchi, Tsurukawa, de belo cartão postal para a ocupação.
amar o Templo, pela ausência de tal ótica Da presença no Templo e do contato
trágica do protagonista. A atmosfera com os ensinamentos do Zen budismo, Mi-
monstruosa do personagem, como dito zoguchi consegue ingressar na universida-
acima, irá se expandir em uma de suas de, que terá papel importante para elaborar
lembranças da infância em que, num quarto suas teses de vida, daí resultando sua ami-
onde constavam ele, o pai enfermo por zade com o personagem Kashiwagi. Ambos
tuberculose, a mãe e um parente que acabara irão compartilhar as deficiências da vida,
de chegar, Mizoguchi presencia a traição da motivo que os unirão fortemente, um por
mãe com aquele homem desconhecido, bem ser gago e o outro por ter os pés deformados
aos olhos do marido enfermo, que, mesmo – dois personagens que tinham um obstá-
moribundo, tentou proteger os olhos do culo na vida, sendo aquela névoa hedionda
protagonista para não presenciar tal ato. a condição mesma de vida. Da amizade e
Como se não bastasse, a morte posterior do das partilhas que ambos vivem, Mizoguchi
pai alimentara um sentimento de vingança, começa a elaborar sua tese da arquitetura
impulsionando-o para a amargura e para da destruição, onde “viver e destruir eram
a morte. Neste contexto, para atender o a mesma coisa” (Idem, p.107): se o Templo
desejo do pai, decidirá pela vida monástica, Dourado lhe aparecia como uma mediação
ingressando no Templo Dourado. entre ele e o mundo, entre ele e a vida, era
A transição para o que chamamos preciso destruí-lo. Destruir o Templo para
de segunda fase dá-se por dois motivos: poder viver será sua tese.
a entrada no monastério e a amizade com A ideia de incendiar o Temploestá
Kashiwagi. A guerra como pano de fundo muito próxima da concepção apocalíptica de
aos poucos mostrava a derrota do Japão, Cioran sobre, a partir da concepção de solidão
mas, como o Templo situava-se em Kioto, cósmica, incendiar o mundo, eliminar
não era um alvo de ataques aéreos, embora o Templo é, com um golpe cioraniano,
fosse de seu desejo a total destruição. eliminar a existência. Mizoguchi, aqui,