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doi: 10.5212/Uniletras.v.35i1.

0002

MORTE E LITERATURA NA ESCRITURA DE


YUKIO MISHIMA

MUERTE Y LITERATURA EN LA ESCRITURA DE


YUKIO MISHIMA
Rodrigo Michell Araujo*

Resumo: Este artigo investiga a experiência da morte na escritura de Yukio Mishima.


Tomamos como corpus de análise duas expressivas obras do escritor, Confissões de
uma Máscara (1984) e O Tempo do Pavilhão Dourado (1988), e, a partir de um diálogo
entre filosofia e literatura, argumenta-se que há na obra de Mishima um intenso
embate entre tradição e modernidade, resultando em uma mescla de vida e morte
sem hostilidades. Para isso, pomos as obras em contato com pensamentos como o do
filósofo romeno Emil Cioran e com a analítica existencial do filósofo alemão Martin
Heidegger, e dos entrecruzamentos justificamos um autor-samurai que escreve com
a espada, configurando uma escritura que carrega a morte como exercício ético de
liberdade.
Palavras-chave: Japão.Morte.Escritura.Ética.Liberdade.

Resumen: Este artículo investiga la experiencia de La muerte em la escritura de Yukio


Mishima. Tomamos como corpus de análisis dos expresivas obras del autor, Confissões
de uma Máscara (1984) e O Tempo do Pavilhão Dourado (1988), y a partir de un diálogo
entre filosofia y literatura, argumentamos que hayenla obra de Mishima um intenso
enfrentamiento entre tradición y modernidad y el resultado de la pugna es una
mezcla de vida y muerte sin hostilidades. Para ello, ponemos las obras em contacto
com pensamientos como el del filósofo rumano Emil Cioran y la analítica existencial
del filósofo alemán Martin Heidegger,  a través de cuyo encuentro justificamos un
autor-samurai que escribe con la espada, una escritura que lleva consigo la muerte
como ejercicio ético de libertad.
Palabras clave: Japón. Muerte.Escritura.Ética. Libertad.

* Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e à
Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC-SE) e integrante do Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura
(GeFeLit-UFS). E-mail: rodrigo.literatura@gmail.com

Uniletras, Ponta Grossa, v. 35, n. 1, p. 23-35, jan./jun. 2013


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Terra do poente tenha sofrido mudanças já desde o século


XIX com a “Restauração Meiji”, quando se
Como abordar uma civilização tão dis-
transferiu o poder do Período Edo para o
tante geograficamente de nós, ocidentais,
Período Meiji, marcando a economia do
como a civilização japonesa? E qual o nosso
país.
interesse por um país que por muito tem-
Yukio Mishima, pseudônimo do
po permaneceu fechado ao ocidentalismo,
célebre escritor Kimitake Hiraoka, nascido
como o Japão? Terra do poente, de clãs, im-
em Tóquio em 1925, presencia uma intensa
peradores, guerreiros e camponeses, palco
modernização de um país não meramente
de lutas cruzando eras. Terra dos samurais
transformado, após a ocupação americana,
e das gueixas que tanto dedilharam o imagi-
mas, de fato, nas palavras do historiador
nário ocidental pela beleza e bravura. Falar
Oliveira Lima (1997, p. 95), “adaptado”. A
da cultura japonesa é falar de uma cultura
própria obra de Oliveira Lima, No Japão,
imageticamente rica, profusa visual e ges-
consagrada por seus admiradores – como
tualmente, o que ratifica nosso imaginário
Gilberto Freyre –, embora sendo uma
de país das exuberâncias e do fascínio. Esta
“impressão” de um diplomata, traz muito
imagem se fundamenta quando tratamos
da atmosfera política e social do país no
principalmente da arte nipônica, dos ricos
redemoinho da adaptação, além daquilo que
detalhes de suas esculturas, da grandiosi-
em si permaneceu intocado e inabalável: “a
dade de seus templos, do simbólico de seu
encantadora natureza nipônica, misto de
teatro Nô, do poético de seu cinema. Sua
grandiosidade e graciosidade” (LIMA, 1997,
literatura não foge a esta regra, e, se nos
p. 99). É diante desta mista paisagem que
reportamos à poesia, desde as composições
Mishima tece uma literatura em que a base
tankas à difusão e popularidade dos haikais,
é palco de um confronto entre a tradição e
vemos como ela capta as pujanças de um
o novo. O autor vê desaparecer na cultura
país complexo e delicado.
nipônica a figura do samurai guerreiro do
Muito se tentou e buscou traduzir a
Império; amante das artes marciais e desde
essência da alma japonesa, e, assim, criando
cedo esculpindo o corpo para tornar-se um
um embate cultural muito próximo do que
grande samurai, uma tese que Mishima
apregoou o psicanalista Erich Fromm (1976),
levou até o final da vida – para encarar a
o ocidente “lógico” aristotélico, de um lado,
morte é preciso preparar e esculpir o corpo.
e o oriente “ilógico”, de outro. Tratamos
O que vemos no escritor é justamente uma
neste artigo de um peculiar escritor
luta em defesa da tradição nipônica, em
contemporâneo japonês que presenciou
defesa da ética samurai, em defesa do sol
profundas mudanças socioeconômicas no
poente no país que outrora tinha aprendido
país pós 1945, após o duro agosto em que
a harmonia entre vida e morte; uma partida
a primeira bomba atômica incendiou as
contra a atmosfera melancólica, nas palavras
portas nipônicas fazendo expor a japonidade
do sociólogo Maurice Pinguet (1987, p. 220):
a esse Outro – embora o império japonês

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“Dupla melancolia para quem compreendia deroso remédio da morte” (MISHIMA, 1987,
que a civilização capaz de forjar tais homens p. 31). Com isso, na obra de Mishima há um
[os samurais] também tinha morrido”. intenso embate entre tradição e moderni-
Embora grande conhecedor do Oci- dade e o resultado é uma mescla de vida e
dente, como nos mostra seu biógrafo, o jor- morte sem hostilidades, um estar diante da
nalista britânico Henry Scott Stokes (1986), morte e encará-la que tão bem os samurais
e levando para sua literatura uma tonalida- e o velho Japão souberam lidar. É neste mo-
de ocidental – por exemplo, citações e pen- vimento que a escritura de Mishima carrega
samentos de filósofos ocidentais, justifican- a morte em suas páginas.
do a grande fama que teve Yukio Mishima Expliquemos: que o olhar que lança-
fora do Japão –, o projeto de vida do autor foi mos para o Oriente e para a literatura de
defender até o fim o espírito feudal do país: Yukio Mishima não intente cair em uma
“Mishima parece partilhar da ilusão ociden- etnografia do “outro exótico”, campo de tra-
tal de que o Japão ainda é um país de samu- balho da antropologia. Nosso caminho críti-
rais; claro que o espírito deles persiste, mas co percorre alguns filósofos, não no intuito
a parafernália não” (STOKES, 1986, p. 21). O de que, na análise, estes se sobreponham à
que Stokes nos coloca, e o acompanhamos obra literária, mas que haja uma “aproxima-
na colocação, é que a cultura é dinâmicae, ção compreensiva”, como diz o crítico literá-
em se tratando daquele país por muito en- rio paraense Benedito Nunes, em No tempo
clausurado, uma figura feudal tenderia a fi- do niilismo e outros ensaios (1993, p. 82) – uma
car no imaginário. Mas é salutar preservar o transa entre campos disciplinares, matéria
imaginário não como uma “ilusão”, erro de a que Benedito Nunes se dedicou em toda
percepção, algo negativo, mas algo próximo sua crítica. É neste ponto de encontro entre
daquilo que tratou Gilbert Durand (1982), Ocidente e Oriente que estabelecemos uma
um imaginário que transforma o real. dialogação, no sentido heideggeriano, para
Deste modo, a partir de dois roman- fundamentar nossa análise crítica.
ces de destaque do autor, Confissões de uma
Máscara (1984) e O Templo do Pavilhão Doura- 2. Festim da morte
do (1988), investigamos como se configura 2.1 Confissões
essa atmosfera em suas obras e como não
só Mishima, mas também seus personagens
Guevaras, Mishimas: mortos, somos
defendem uma ética guerreira do samurai, invencíveis.
como ambos (e por isso suas obras tem
um tom autobiográfico, ou autoficcional) (LEMINSKI)1
partem em defesa do código Hagakure que,
como diz o próprio Mishima em um mani-
festo, “é uma tentativa de curar o caráter
pacífico da sociedade moderna com o po-
1
LEMINSKI, 2011, p.239.

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Jovens gladiadores postos a oferecer frenesis, tudo em doses altas, em que viver é
a vida, gritos agonizantes capazes de um dever, desagradável dever.
provocar até o mais pífio sentimento de Seu percurso de inquietação e constru-
tristeza, banhos de sangue, adagas, mais ção da máscara dá-se por três momentos: (i)
ainda: uma longa mesa sob uma toalha de memórias da infância, “preâmbulo de mi-
um branco sublime, candelabros elegantes, nha vida” (MISHIMA, 1984, p. 20), quando
pratos postos. Banquete fúnebre. Um dos se dá sua inclinação “para a morte, a noite
cozinheiros se aproxima da mesa e anuncia e o sangue” (Idem, p. 20) e quando “a relu-
que logo o jantar será servido. Mais gritos tante máscara começara a nascer” (Idem, p.
e gemidos, outro cozinheiro com um rapaz 24); (ii) descoberta do prazer, uma urgência
morto, corpo nu estendido ao chão. De de começar a viver, e quando começa, a par-
rosto para cima ou para baixo, pergunta tir dos doze anos, a arquitetar seu teatro da
o cozinheiro? Outro cozinheiro com uma morte; (iii) transição da adolescência para a
enorme travessa, ansiedade, corpo despido fase adulta marcada pela guerra, momento
sobre a travessa. Começa o banquete, um de descoberta da morte como real objetivo
garfo sobre o coração, jatos de sangue de vida.
por todo lado, gozo e excitação em cada Nascido numa manhã de janeiro de
movimento. 1925, Koo-chan passou a infância sendo
Assim é descrita a cena do teatro de criado pela avó, entre os odores da doença
morte em Confissões de uma máscara(1984), e da velhice. A ausência do belo escorre já
em que o protagonista do romance, Koo- pelas primeiras linhas – ausência que pode
-chan, fantasia seu desejo de morte. Escrito ser evidenciada também nas outras obras –
em forma de diário pelo narrador autodie- quando depara com um jovem sujo e abate-
gético, o romance é um córrego de sangue, -lhe o desejo de se transformar naquele
sofrimento e orgasmos, um palco de cruel- moribundo, de ser ele. Logo cedo percebera
dade aonde a morte chega até a ser posta que a vida não era contos de fadas. Mergu-
como personagem na narrativa. Koo-chan a lha em fantasias e lutas, além de despertar,
deseja como se esta assumisse um corpo de- ao mesmo tempo, o desejo carnal, embora
sejante, como a morte em corpo de uma mu- sem compreender – primeiro, a atração pe-
lher vestida de branco e de seios à mostra no las calças apertadas de um sujo transeunte,
filme de Ingmar Bergman, Na presença de um depois a atração pela figura heroica de um
palhaço (1997). Confissões pode ser chamado “homem” montado num cavalo como quem
de romance autobiográfico por conter mui- enfrentasse a morte, que depois iria desco-
tos passos do autor e de suas inquietações brir ser Joana d’Arc. Das memórias da in-
no protagonista2. Aflições, medos, delírios, fância, podemos aproximar o protagonista,
submerso às deficiências do mundo, àquilo
2
Sobre obras autobiográficas ou “escritas de si”, pode-se que chamou o filósofo romeno Emil Cioran
conferir o estudo de Philippe Lejeune, O pacto autobiográ-
fico (2008), e um salutar estudo de Georges Gusdorf, Les
de origens do mal, ou princípios satânicos do
écritures du moi, lignes de vie (1991).

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sofrimento: “Comment combattre le malheur? criando seu fetiche por axilas – o mesmo
Em nous combattrant nous-mêmes: en compre- ideal de axilas de São Sebastião.
nant que la source du malheur se trouve em nous” Mas é diante do espelho que Koo-chan
(CIORAN, 1990, p. 119)3. Carrega, pois, em depara com “o desgracioso reflexo do meu
seu interior todos os sofrimentos do mun- corpo nu” (Idem, p. 61), um confronto entre
do, um combate com ele mesmo e além: a beleza do Outro e a beleza de si mesmo.
combate com os sentidos da vida. Duro reflexo que nos remonta à antológica
O adeus à infância é expresso por cena do filme O sangue de um poeta (1930), de
dois caminhos: primeiro, pela sensação Jean Cocteau, que diz: “os espelhos deveriam
carnal e imersão na libido; segundo, que pensar mais antes de refletir as imagens”.
podemos dizer ser derivado do primeiro, Koo-chan conclui seu desgosto de si ao di-
pela denúncia do belo, direcionando-o a zer: “Nunca você vai ser parecido com Omi”
um esquartejamento – um écart èlement (MISHIMA, 1984, p. 61). A impossibilidade
existencial cioraniano (CIORAN, 2004). O de ser parecido, ou ser ele, remonta-nos à
que chamamos de descoberta do prazer, sua ideia de desprezo de si de Cioran quando
primeira ejaculação, dá-se frente à imagem constata, em sua obra Suslescimesdudésespoir
de São Sebastião, de Guido Reni, amarrado (1990, p. 99), que “Seul l’homme est capable de
a uma árvore e com as mãos levantadas. A tant de mépris de soi”4. O desprezo de si é um
imagem daquele corpo nu, apenas coberto passo que põe frente a frente o homem com
com um leve pano branco na região do a miséria da humanidade, sendo a máxima
órgão genital, além de flechas cravadas no do pensamento do filósofo pessimista (1990,
corpo, foi para Koo-chan não só o marco p. 100): “éternelle est la misère de l’humanité”5.
de seu primeiro gozo, como foi também Nostálgico, saturado de si, constata-se aqui-
o preâmbulo da agonia de morte pelo lo que disse Cioran: tudo é poeira. E mais:
martírio do corpo, dor magnífica e trágica. tudo é nostalgia. Se a máxima do filósofo
É como, digamos, se São Sebastião abrisse
é que “Je suis mécontent de tout”(Idem, p. 81)6,
as portas para o gozo da dor, crueldade e
será Koo-chan a concluir:
prazer, no personagem (posteriormente,
Mishima posaria nu na mesma posição Estava saturado de mim mesmo
de São Sebastião para uma fotografia de e, apesar da minha castidade,
Kishin Shinoyama em 1970, pouco antes de destruindo o meu corpo. Pensara que
sua morte). A outra imagem do prazer foi com “seriedade” (que pensamento
tocante!) eu também poderia escapar
a de um colega de colégio, Omi, “primeiro
à minha condição infantil. Era como
amor que enfrentei na vida” (MISHIMA,
se eu ainda não tivesse percebido
1984, p. 54), por quem teve vários momentos
de ereção, que chamava de mau-hábito,
4
“Somente o ser humano é capaz de tanto desprezo de si
mesmo”. Grifo do autor.
3
“Como lutar contra a desgraça? Lutando contra nós
mesmos: compreendendo que a origem da desgraça se
5
“Eterna é a miséria da humanidade”.
encontra em nosso interior”. Tradução literal nossa. 6
“Tudo me deixa insatisfeito”.

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que aquilo com que estava enojando Nessa época aprendi a beber e a fu-
agora era meu verdadeiro eu, era mar. Isso quer dizer que aprendi a
claramente uma parte de minha vida. fazer de conta que fumava e bebia. A
(MISHIMA, 1984, p. 73). guerra produzira uma maturidade es-
tranhamente sentimental em nós. Fez
Desta transição, entre a fase da infân- que pensássemos na vida como algo
cia e a fase adulta, podemos chamar de mo- que terminaria abruptamente pelos
vimento de êxtase: de morte e de erotismo. Do vinte anos; jamais considerávamos
sexo à morte, do sangue à carnificina, neste sequer a possibilidade de haver algu-
movimento Koo-chan é puro impulso. E o ma coisa além daqueles poucos anos
êxtase atinge os cumes quando os mundos remanescentes. A vida nos surpreen-
deu como sendo uma coisa estranha-
exterior e interior se mesclam neste mo-
mente volátil. (MISHIMA, 1984, p. 86).
vimento – o que aproxima a saturação do
protagonista da insatisfação cioraniana. E A rápida permanência nos bancos da
só mesmo nos cumes deste movimento que universidade dá-se por conta dos frequentes
podemos extrair a máxima apontada por ataques aéreos, adiantando o exame físico
Darci Kusano (2006, p. 424): “êxtase da mor- no serviço militar e, com a classificação
te com a consumação do êxtase erótico”. de apto para o serviço, o chamado para
Da adolescência para a fase adulta, isto o trabalho na fábrica de aviões. Éa partir
é, dos dezessete aos vinte e um anos, dois deste momento que aflora o sentimento e a
momentos marcam a exegese: a entrada na experiência da morte, ou, de acordo com o
universidade para o curso de direito, um personagem, finalidade da morte. Koo-chan
ano antes do final da guerra, em 1944, e a espera por ela, “ansiava impacientemente
convocação para o serviço militar em uma pela morte com uma doce expectativa”
fábrica de aviões já no último ano da guerra. (Idem, p. 93), deseja-a assim como Cioran
Neste período, com a guerra, aviões e bom- a admirava num movimento de êxtase.
bas como pano de fundo, é que se manifes- Podemos dizer que o protagonista concorda
ta o maior sentimento trágico na narrativa, com o pensamento de Cioran de que“l’une
alcançando a morte seu ponto alto. O Japão dês plus grandes illusions consiste à oublier
ameaçado começara a provocar mudanças que lavie est captive de lamort” (1990, p. 28)7.
na sociedade, se o amanhã era mesmo in- Esperar as bombas caírem e incendiarem
certo, a luz direcionava para o palco do pre- tudo, para que reste nada mais que ruínas,
sente, presente absoluto. Uma casa fechada, fogo purificador, pois só pela destruição do
sob ameaça de ter as portas forjadas, um ovo mundo poderia destruir-se, negar-se rumo
prestes a quebrar: a vida foi algo que pudes- ao nada, “eu suspirava pela grande sensação
se ser questionado, repensado, inquietações de alívio que a morte certamente traria
nipônicas muito bem derramadas pelas pá- se apenas, como um lutador, eu pudesse
ginas do romance, no seguinte trecho:
7
“Uma das grandes ilusões consistem em esquecer que a
vida é seduzida pela morte”.

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arrancar o pesado fardo da vida sobre os 1984, p. 115). O impulso pelo grotesco e pelo
ombros” (MISHIMA, 1984, p. 93). Eis sua sangue, isto é, pela carnificina, denuncia
doutrina da morte. Foi durante uma volta não apenas a ausência do belo, mas tam-
para casa, devido a um mal-estar, causando- bém direciona-nos para a tese de que “a be-
lhe uma febre, que o protagonista, olhando leza estaria associada à destruição e morte.
o mundo exterior pela janela do trem, [Isto é] a beleza só teria existência através
pensou na completa destruição pela guerra, da ruína e morte” (KUSANO, 2006, p. 467).
“fechava os olhos e imaginava uma cena em Logo, seguindo a tese salutar apontada por
que toda a minha família era aniquilada Kusano, podemos concluir que a estética da
num ataque aéreo” (Idem, p. 100). Eis, assim, decadência e da morte, em Confissões, dá-se
seu maior desejo: pela tríade beleza-ruína-morte.
O que eu queria era morrer entre es- Pouco a pouco o desejo de nulidade o
tranhos, tranquilo, sob um céu sem inflama como um incêndio interior nos ali-
nuvens. Entretanto, meu desejo di- cerces da existência e que, somado ao incên-
feria dos sentimentos daquele grego dio exterior, o faz elaborar a tese de que “era
antigo que queria morrer sob o sol na morte que eu havia encontrado meu real
brilhante. O que eu queria era algum objetivo na vida” (MISHIMA, 1984, p. 131).
suicídio natural, espontâneo. Queria Mergulhado na fantasia e no delírio, so-
uma morte como a de uma raposa,
nhava em apagar-se: “eu estava esperando
ainda não muito versada em astúcia,
[...] que durante aquele mês os americanos
que caminha descuidadamente por
uma vereda na montanha e é atingida desembarcassem na baía S, e [...] que uma
por um caçador devido à sua própria bomba monstruosa, como ninguém jamais
estupidez... (Idem, p. 100). imaginara, me matasse, não importa onde
eu estivesse abrigado...” (Idem, p. 142). Mes-
No apocalíptico ano de 1945 o Ja- mo contemplando a ideia de suicídio, não
pão mergulhou em chamas, “o céu ficou haveria motivo para o ato com a morte dan-
vermelho-vivo” (Idem, p. 114), uma festa çando tão próxima de si.
de destruição e morte. É neste ano que o O desfecho do protagonista Koo-chan
protagonista fica face a face com a carni- é a sensação do fracasso, da incapacidade.
ficina resultante dos bombardeios aéreos; “Eu estava completamente exausto. No en-
dá-se neste momento aquilo que Darci tanto, algum gatilho ainda estava adicio-
Kusano (2006, p. 466) chamou de “estética nado na minha mente” (Idem, p. 180-181).
da decadência”. Em uma de suas voltas Havia ainda um último gatilho, já que ne-
à fábrica, depara com vítimas do ataque, nhuma bomba o atingiu como compulsi-
corpos espalhados no chão com os olhos vamente desejara. Se considerarmos que
vazios que nada veem; mães, filhos, uma a obra seja autobiográfica, seria o seppuko
fotografia da agonia. Apesar disso, confessa o último ato de Koo-chan, assim como fez
Koo-chan ter sido “encorajado e fortalecido Mishima no quartel do Exército cravando a
por aquele desfile de miséria” (MISHIMA,

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espada no ventre? Se, por um lado, o final ideal de belo e sublime. A mãe era o oposto
da narrativa é aberto, para pensar com Um- dessa ideia, tresloucada, maltrapilha, au-
berto Eco (1991), e se, por outro, é o romance sente de beleza e sendo de baixa condição
escrito em forma de diário, seria o protago- social, mas, como gerado de um farrapo
nista o samurai que cometeu o harakiri(isto humano, o próprio Mizoguchi tinha sua de-
é, o suicídio, prática dos samurais)diante da ficiência no mundo: ser gago. Sua gaguei-
derrota? Estas perguntas nos direcionam ra representa não só a dicotomia feio-belo
a confissões não apenas de uma máscara, como apresenta a atmosfera da monstruo-
mas também de uma filosofia negativa. Por- sidade que é sua vida já desde a infância. É
tanto, temos um personagem que carrega o lícito observar que o belo, para o protagonis-
peso do sofrimento, um romance que roça ta, é o mundo exterior e o Templo Dourado,
com a filosofia do pessimismo. ou a ideia que tinha, como se a beleza fosse
um objeto que se pudesse tocar; o feio era
2.2 O Templo representado por ele e pela mãe, e mais: é
como se o Templo Dourado fosse a media-
O desejo da morte, flatterlamort, tam- ção entre o belo e o feio. “Se a beleza real-
bém tem lugar privilegiado na narrativa mente existia ali, isso significava que minha
do outro expressivo romance de Yukio Mi- própria existência era uma coisa afastada
shima, O Templo do Pavilhão Dourado (1988), da beleza” (MISHIMA, 1988, p. 22).
que, também tendo a guerra como pano de Conhecer o Templo e confrontar o ob-
fundo, apresenta um dos mais enigmáticos jeto físico com a ideia que formara foi “in-
personagens da biografia do escritor: Mizo- teiramente decepcionante” (Idem, p. 24), por
guchi. Outro romance escrito como diário ver apenas um simples prédio de três pavi-
de um personagem apocalíptico, a narrativa mentos. A ideia era mais sublime porque o
autodiegética penetra no descontentamen- protagonista amava o que podemos chamar
to da realidade e fuga, que só se dará com de essência da coisa. A busca da beleza é
o que chamaremos de arquitetura da destrui- digna de emoção como quando assistimos
ção. Poderemos, assim, ler o romance por Mishima: uma vida em quatro capítulos (1985),
dois aspectos: antes e depois da presença do a adaptação do Templo Dourado, além de ou-
Templo Dourado na vida do protagonista. tros textos de Mishima, feita por Paul Sch-
Nascido em uma cidade litorânea do rader, produção de Coppola e George Lucas,
Japão, Mizoguchi narra, como Koo-chan, o ator diante do enorme templo, com uma
suas memórias da infância, que compreen- memorável trilha sonora de Philip Glass.
de o período antes de entrar para a vida mo- Mas é nessa busca que os pares antagônicos
nástica. Na infância, sempre ouvira do pai se mesclam na turva ótica do personagem:
sobre o Templo Dourado como uma espécie
O que é tão horrível em vísceras
de paraíso, isto é, neste período forma-se a
expostas? Por que cobrimos os olhos,
ideia do protagonista acerca do Templo, um
aterrorizados, quando vemos as tripas

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de um ser humano? Por que as pessoas “Tornou-se meu sonho secreto que toda
ficam tão chocadas ao ver o sangue Kioto fosse envolvida em chamas” (Idem,
jorrando? Por que os intestinos de um p.46). Enquanto a capital do Japão ardia
homem são feios? Não é, exatamente, em chamas, Mizoguchi manifestava suas
da mesma qualidade da beleza de uma
inquietações e seus pensamentos mais
pele jovem e brilhante? (Idem, p. 57).
perversos, pois ele “era desesperadamente
Questionar o papel do belo e do feio pobre de sentimentos humanos” (Idem,
e levá-los ao limite era propício para um p.46). Já a ocupação americana, por
gago que vivia envolto de névoas, e é essa exemplo, pode ser observada quando os
névoa hedionda que o liga ao Templo, esta oficiais americanos visitam o Templo,
é a incapacidade que tinha o primeiro sendo Mizoguchi o guia daquilo que era um
amigo de Mizoguchi, Tsurukawa, de belo cartão postal para a ocupação.
amar o Templo, pela ausência de tal ótica Da presença no Templo e do contato
trágica do protagonista. A atmosfera com os ensinamentos do Zen budismo, Mi-
monstruosa do personagem, como dito zoguchi consegue ingressar na universida-
acima, irá se expandir em uma de suas de, que terá papel importante para elaborar
lembranças da infância em que, num quarto suas teses de vida, daí resultando sua ami-
onde constavam ele, o pai enfermo por zade com o personagem Kashiwagi. Ambos
tuberculose, a mãe e um parente que acabara irão compartilhar as deficiências da vida,
de chegar, Mizoguchi presencia a traição da motivo que os unirão fortemente, um por
mãe com aquele homem desconhecido, bem ser gago e o outro por ter os pés deformados
aos olhos do marido enfermo, que, mesmo – dois personagens que tinham um obstá-
moribundo, tentou proteger os olhos do culo na vida, sendo aquela névoa hedionda
protagonista para não presenciar tal ato. a condição mesma de vida. Da amizade e
Como se não bastasse, a morte posterior do das partilhas que ambos vivem, Mizoguchi
pai alimentara um sentimento de vingança, começa a elaborar sua tese da arquitetura
impulsionando-o para a amargura e para da destruição, onde “viver e destruir eram
a morte. Neste contexto, para atender o a mesma coisa” (Idem, p.107): se o Templo
desejo do pai, decidirá pela vida monástica, Dourado lhe aparecia como uma mediação
ingressando no Templo Dourado. entre ele e o mundo, entre ele e a vida, era
A transição para o que chamamos preciso destruí-lo. Destruir o Templo para
de segunda fase dá-se por dois motivos: poder viver será sua tese.
a entrada no monastério e a amizade com A ideia de incendiar o Temploestá
Kashiwagi. A guerra como pano de fundo muito próxima da concepção apocalíptica de
aos poucos mostrava a derrota do Japão, Cioran sobre, a partir da concepção de solidão
mas, como o Templo situava-se em Kioto, cósmica, incendiar o mundo, eliminar
não era um alvo de ataques aéreos, embora o Templo é, com um golpe cioraniano,
fosse de seu desejo a total destruição. eliminar a existência. Mizoguchi, aqui,

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pode concordar com a concepção de Cioran protagonista, “a beleza sempre me chega


de que só se alcança o nada pela morte. tarde” (Idem, p. 143) e que o Templo sempre
Nadificar-se, de acordo com a máxima de “tenta me separar da vida” (Idem, p. 144).
Cioran (1990, p. 63):“Je voudrais exploser, Mizoguchi (assim como o próprio Mishima)
couler, me décomposer”8.Também concordaria busca plotinianamente a Beleza suprema
Mishima com o nada heideggeriano? Quer da vida, já que lhe falta o belo na vida. A
dizer, um nada que é originário do Ser, pois vida constitui-se incompleta se não houver
se chega ao Ser pelo nada, bem como se a busca do belo, como nos fala a filosofia
chega ao nada pelo Ser. Que nada é esse que antiga grego-pagã do alexandrino Plotino
Heidegger fala? Seria o total aniquilamento, em seus tratados das Enéadas (1982); buscar
ou o filósofo alemão está dialogando com o belo é um ofício da Alma para encher-se
certa concepção do pensamento oriental de virtude e retornar àquilo que é a unidade
de nada como vacuidade (sunyana)? Pela primeira geradora de todas as coisas, o Uno,
ótica heideggeriana, parece que derrubar o Bem supremo, o Absoluto. Essa é a busca do
o Templo é entregar-se ao nada, ou protagonista, um sentido, um significado da
para usarmos um termo heideggeriano, vida pelas trilhas da beleza.
suspender-se no nada9. da, bem como chega-se Depois de derrubar o Templo, cogitava
ao nada pelo Ser.Como Kioto parecia intacta o nadificar-se, e isto se daria pelas vias do
aos bombardeios, e como nenhuma bomba suicídio; tendo comprado veneno e um
iria cair sobre o Templo, como desejava canivete “fiquei tão contente com eles que
Mizoguchi, o plano era incendiá-lo. “Coisas não pude deixar de me perguntar se não
mortas como seres humanos não podem era assim que se sentia um homem que
ser erradicados; coisas indestrutíveis como comprou uma casa nova e faz planos para
o Templo Dourado podem ser destruídas” o futuro” (MISHIMA, 1988, p. 222). Era
(MISHIMA, 1988, p. 181). preciso correr, correr para a morte, pois
Era preciso que o protagonista “correr leva ao fim e descansar também
destruísse o Templo (logo, seu ideal de beleza) leva ao fim. A morte parece ser o descanso
para alcançar a vida, e consequentemente definitivo” (Idem, p. 228). Empilhando uns
alcançar a Beleza, já que, segundo o fardos de palha por cima de um colchão
e um mosquiteiro diante de uma estátua
do Templo, Mizoguchi executa seu plano
8
“Gostaria de me explodir, afundar, decompor”. incendiando aquele templo de uma beleza
9
Tese de Heidegger, em sua preleção Que é metafísica? que lhe parecia insuperável, restava-lhe
(1989, p. 41), onde o suspender-se no nada é a possibili-
dade de liberdade e transcendência do ser. Só na ultra- agora (re) nascer pelas chamas. Sentado,
passagem do ente o ser alcança o poder-ser livre e só na observando a dança do fogo, ironicamente
transcendência ele pode se encontrar com o ente que ele
mesmo é. Heidegger só verá essa possibilidade de mani- acende um cigarro, confirmando sua
festação do nada pelo sentimento da angústia (tese de doutrina de chamas. “Sentia-me como um
Ser e tempo) e pelo despertar do tédio, tonalidade afetiva
fundamental do ser – tese de Os conceitos fundamentais da homem que se senta para fumar depois
metafísica (2011b).

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Morte e literatura na escritura de yukio mishima

de terminar um trabalho. Eu queria viver” dois personagens que tinham, digamos,


(Idem, p. 242). Os verbos sentir e querer, no uma “deficiência” como condição de vida,
pretérito imperfeito, denunciam a ânsia do um incapaz até de se olhar no espelho e
personagem pela realização do seu plano, de suportar-se, outro marcado pela gaguez,
desmanchar-se pela destruição e pelo fogo. o obstáculo que impedia de alcançar a
O final em aberto, assim como em Confissões, vida, restando apenas a nulidade; (ii) um
deixa a dúvida: será que Mizoguchi, assim sentimento de destruição causado pela
como observado no desfecho de Koo-chan, guerra como pano de fundo, ambos desejam
também levou o harakiriao limite? a queda do mundo, a queda das bombas,
ambos esboçam ruínas; (iii) o desejo da
3. Como escrever com a espada morte ou um exercício de admiração que flerta
com as estruturas da vida, em que, como
Ao longo das mudanças enfermos – cioranianamente falando –,
socioeconômicas de um Japão abalado experimentam o êxtase das profundidades
pela Segunda Guerra, YukioMishima lutou últimas da vida rumo ao vazio absoluto,
até o fim em defesa de uma “japonidade”. que só é possível pela morte, grande
Sintomático é seu discurso no quartel do purificadora. Destes três movimentos
Exército diante das tropas, um escritor- pode-se chegar à tríade beleza-ruína-morte.
samurai que fez de sua brilhante espada A beleza é essa chave que falta para abrir a
instrumento de revolução e libertação10. porta, porque se a beleza está ligada à ruína
Assim Mishima treinou seus personagens e à morte, como num filme sokuroviano11,
para o combate e para a morte. Por meio de ambos os protagonistas vão lutar por uma
Confissões e Templo, dois romances-diários, bela morte, como se estivessem num palco
Mishima nos mostra como escrever com a na encenação de uma peça Nô.
espada a partir de sua estética da decadência Se reportarmo-nos a uma acepção
e experiência da morte. do filósofo romeno Cioran, de que só“l’on
Como são incapazes de mudar a NE comprend La mort q’uen ressentant la vie
realidade em que vivem, a negação de si comme une agonie prolongée” (CIORAN, 1990,
e do mundo será a ponte que liga os dois p. 28)12, podemos ver como as páginas
personagens, Koo-chan e Mizoguchi, que da obra de Mishima são gritos agônicos.
lutarão contra o mundo, arquitetando seus Os personagens mishimianos, sob outra
planos de destruição, em que a morte é o ótica filosófica, trazem muito da analítica
caminho. De uma aproximação de ambos
os protagonistas, pode-se perceber: (i) a
presença de um miserabilismo na exegese:
11
Pode-se conferir um filme do cineasta russo
AlexsandrSokurov, O Sol (2005), em que há uma
explanação de como beleza-ruína-morte se relacionam,
cabendo notartratar-se de um filme sobre o império
10
Pode-se consultar a biografia de Mishima na primeira japonês.
parte dedicada ao seu seppuko, seu ato “revolucionário” de “Compreende-se a morte quem sente a vida como uma
12

suicídio (STOKES, 1986, p. 35-59). agonia prolongada”.

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existencial heideggeriana, e podemos A obra de Mishima, além de flertar


aqui trazê-la em dois momentos da obra com a morte e nela se dissimular, carrega-a
capital do filósofo alemão, Ser e tempo em suas páginas. Não por menos essa era a
(2011a): primeiro, a partir da investigação tese que o crítico literário Maurice Blanchot
dacompreensãodo ser, o Dasein (o ser-aí), por muito perseguiu –morte e literatura
na primeira parte da primeira seção do como possibilidade: “somente a morte me
Livro I; o Dasein que é base constituinte permite agarrar o que quero alcançar; nas
do ser-no-mundo, “estrutura essencial do palavras, ela é a única possibilidade de seus
Dasein” (HEIDEGGER, 2011a, p. 102), como sentidos. Sem a morte, tudo desmoronaria
nos diz no parágrafo doze, Dasein que “está no absurdo e no nada” (BLANCHOT, 1997, p.
e é no mundo” (Idem, p. 158), de acordo com 312). E se a vida é essa “que carrega a morte
o parágrafo vinte e três do capítulo sobre a e nela se mantém” (Idem, 1997, p. 329), rea-
mundanidade do mundo. Segundo, o Dasein, firmando nossa tese de uma mescla de vida
enquanto ser-no-mundo, é ser-para-a-morte, e morte sem hostilidades, tanto a escritura
como disserta Heidegger na segunda seção carrega a morte quanto o autor se autodes-
do Livro II em uma apreensão ontológica trói na escritura. Experienciar a morte: de-
da morte. No parágrafo quarenta e nove, sejá-la, encontrá-la. Uma transa. Um gozo.
diz-nos Heidegger: “no sentido mais amplo, Êxtase.
a morte é um fenômeno da vida. Deve-se É nas páginas incendiárias que
entender vida como uma espécie de ser ao Mishima apresenta sua morte-protesto, o
qual pertence um ser-no-mundo” (Idem, p. grito de desespero que luta para dizer “não!”.
321). O que o filósofo alemão nos diz é que Assim como faz do harakiri sua morte-
a morte é uma possibilidade privilegiada protesto, caminham seus personagens
do Dasein, do ser-aí, a morte pertence a para a autoeliminação: dois personagens-
este ser-aí, é iminente, está por vir. Os samurais rumo à morte-protesto para dizer
protagonistas mishimianos aqui analisados “basta!”. Mishima preparou sua vida e seus
são seres-no-mundo e seres-para-a-morte, personagens para isso. O poeta curitibano
pois lhes configuram a possibilidade mais Paulo Leminski (discípulo de Mishima
própria de Dasein, ou como diz Heidegger, na veia literária), em Ensaios e Anseios
“possibilidade existenciária” (Idem, p. 336). Crípticos (2011, p. 230), diz do mestre: “Era
Personagens imersos no horizonte da a integridade de uma cultura que Mishima
angústia, sendo que, ainda no Livro II de defendia quando abriu o ventre diante
Heidegger (Idem, p. 431), “a angústia cresce do Comandante do quartel de Tóquio,
a partir do ser-no-mundo enquanto ser- escrevendo com aço na pele de sua vida
lançado-para-a-morte”. Imersos no nada [...]: EU NÃO CONCORDO”. Junto com o
do mundo, na insignificância do mundo, ideal Hagakure, Mishima levou às últimas
de acordo com a analítica existencial de consequências uma filosofia de vida,
Heidegger. “sustentando que vida e morte são as duas

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Morte e literatura na escritura de yukio mishima

faces de um escudo” (MISHIMA, 1987, p. 46). LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico. Trad.


Ação e decisão, o caminho de Mishima é um Jovita Noronha, Maria Coimbra Guedes.
caminho em busca do Belo e cuja finalidade Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
é a boa morte, um caminho que segue as LEMINSKI, P. Ensaios e anseios crípticos.
trilhas dos antigos samurais. E sua obra Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
é um testemunho de liberdade e paixão. LIMA, O. No Japão: impressões da terra e da
Liberdade para a morte. Sem dúvida, um gente. 3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
artista em tempos de sol e aço. MISHIMA, Y. Confissões de uma máscara.
Trad. Manoel Paulo Ferreira. São Paulo:
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2004. ensaios. São Paulo: Ática, 1993.
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budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1976. Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM,
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Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras> 35

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