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O MITO DA VERDADE E A VERDADE DO MITO

Algumas pessoas bebiam e conversavam em um bar-lanchonete na esquina, aqui no centro


da cidade de Recife. Na pracinha próxima, um crente de paletó e gravata, de Bíblia em punho,
bradava em alto e bom som que "os bêbados vão para o inferno, porque o que está escrito na
Bíblia é a verdade de Deus e não mito inventado pelos homens". Diante disso, um dos
consumidores de aguardente fez a seguinte observação: "Se os crentes rejeitam os mitos
inventados pelos homens, dizendo que na Bíblia não tem mito e apoiam Bolsonaro dizendo
que ele é um mito, enviado por Deus, então os crentes são contraditórios e não sabem o que
dizem." Isso me levou a pensar no presente tema: O mito da verdade e a verdade do mito.

De acordo com o professor Junito de Souza Brandão, no "Dicionário Etimológico da


Mitologia Grega", Hermes, filho de Zeus e da musa Maia, nasceu numa Caverna, no Monte
Cilene, no Sul da Arcádia. Possuía duas naturezas, uma divina e outra humana, sendo revestido
de notável inteligência, tornando-se, por conseguinte, uma espécie de menino-prodígio, vindo
a envolver-se em algumas travessuras no mundo dos mortais. O mais importante é que
Hermes, segundo a "Ilíada" de Homero, recebe do Pai, Zeus, a agradável tarefa de ser
companheiro dos humanos, ajudando-os com estima e estímulo.

Assim, de acordo com a "Odisseia", também de Homero, Hermes se torna, não somente
mensageiro de Zeus aos mortais, mas também dispensador de bens divinos aos humanos. Em
fim, Hermes se torna Deus protetor dos viajantes, não somente no mundo natural, mas
também no mundo intelectual, espiritual. Para isso, Hermes precisava conhecer a verdade, em
sentido pleno, não somente nos caminhos da vida, mas também nos caminhos do espírito.
Assim, em uma de suas viagens, deparou-se com uma jovem bela e atraente, de quem
procurou se aproximar, mas ela mantinha distância.

Essa jovem era Alethéia, a verdade disfarçada em mulher. Hermes, movido pelo ímpeto
heróico-divino, quis possuí-la, mas ela afastou-se. Hermes resolveu seguí-la. Percebendo que
ela haveria de passar por um vale entre duas montanhas, resolveu preparar-lhe uma
armadilha, lançando mãos da "astéia", astúcia. Assim que Alethéia se aproxima da armadilha,
"Hélios", o Sol, acima das montanhas, projeta seus raios luminosos e protetores sobre a jovem
Alethéia, permitindo que somente sua sombra, caísse na armadilha de Hermes e esse
consegue prendê-la, pensando ter a verdade como propriedade sua, mas logo descobriu o
grande engano. A verdade não se deixa fazer presa de ninguém, nem dos deuses, pois estes
consentiram que a verdade fosse revelada aos homens.

Diante disso, o filósofo Aristóteles, em sua obra "O Órganon", seu tratado de Lógica, no qual,
expõe o método da ciência, vem a ressaltar a importância da "Tá Hermenéia", da
hermenêutica, enquanto ciência da interpretação, colocando Hermes na condição de Pai da
hermenêutica, ressaltando que a verdade existe para ser conhecida e não possuída. Somente
Deus tem a posse da verdade, mas em sua bondade e misericórdia permite aos mortais, o
conhecimento parcial da verdade, dentro dos limites do tempo, do espaço e da mente
humana. É lamentável que ainda hoje, não obstante, todo progresso da filosofia, da ciência e
da tecnologia, não faltem aqueles que se julgam donos da verdade.

Aos fariseus, que estavam presos à mediocridade, pela qual, pensavam que possuíam a
verdade, Jesus declara: "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará". Aos seus discípulos,
Jesus afirma: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai, a não ser por mim".
Assim, devemos reconhecer que a verdade liberta, a verdade abre caminho, a verdade imprime
o sentido da vida. Diante disso, Raymundo Dantas, autor do livro "Alethéia" declara reconhecer
que, na verdade, tudo é provisório sobre o mundo e sobre nós mesmos e, por essa razão, não
devemos permitir que qualquer coisa, de bem ou de mal, se instale permanentemente em nós
e entre nós, pois a verdade é o elo que liga Deus a nós, ao mesmo tempo em que nos liga a nós
mesmo, ao outro, e à natureza e a Deus.

Assim, Hans George Gadamer, autor do livro "Verdade e Método," ao abordar o problema
da verdade, em perspectiva científica, reconhece que a busca da verdade, embora se baseie
unicamente, no método científico, a verdade pode ser descoberta também, a partir da
consciência histórica e da consciência estética, pela via da hermenêutica. No livro "A arte de
Compreender", Gadamer ressalta que o problema hermenêutico é colocado em relação à
teoria do conhecimento, que parte da consciência mítica, passando pela consciência religiosa,
pela consciência filosófica, pela consciência científica, para em fim, alcançar a consciência
tecnológica, sem perder de vista, a Revelação Divina, que fundamenta e nutre a consciência
teológica. Vale ressaltar que o termo consciência sugere o saber com os outros e não o saber
sobre os outros. Em fim, o mito é o ponto de partida a caminho da verdade e a verdade do
mito, a consciência do não saber, alinhada à necessidade de buscar o saber.

Enfim, se um homem consegue ser transformado em um mito, a responsabilidade recai


sobre aqueles que o transformaram, pois a verdade do mito, necessariamente, será revelada.
No caso específico desse cidadão que ocupou o cargo de Presidente em nosso país, aclamado
por parte da população como mito, sua verdade já está sendo revelada, em termos do que se
tem denominado laranjais, milícias, rachadinhas, falcatruas, "fake news", mentiras,
negacionismo, genocídio e disseminação do ódio, até entre os evangélicos. Isso significa, o mito
da verdade cobra, não somente a verdade do mito, mas também, a verdade sobre o mito.
Pense nisso!

Um abraço fraterno!

Professor João Ferreira

Jucativa-0009 - 11-01-2022

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