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Metamorfose

Daniel Roy

Uma metamorfose singular

No terceiro ensaio de sua teoria sexual, intitulada “As metamorfoses da puberdade1”, Freud formula
claramente que a transformação da puberdade se apoia “na vida sexual 2”, o que, em sua perspectiva,
indica precisamente que a metamorfose concerne à pulsão sexual. Essa metamorfose faz a pulsão
passar de um modo “infantil” a um modo “definitivo3”. Freud vai se dedicar a caracterizar essa
mudança unicamente de acordo com uma lógica dedutível da atuação das pulsões, estando em
segundo plano a questão de saber como o indivíduo que é suporte dessas pulsões se encontra
afetado por elas.

Uma mudança de corpo

A mudança de corpo é uma mudança de objeto: anteriormente “auto-erótica”, a pulsão concerne


somente o próprio corpo, ou ao menos certas zonas; a partir de agora, ela “encontra o objeto
sexual4”, ou seja, um outro corpo. Como essa mudança é possível e o que está em jogo? Pois
compreendemos que entramos com Freud em uma zona de risco: “uma das tarefas implícitas na
escolha do objeto consiste em não se desencontrar do sexo oposto 5”. “É como a travessia de um
túnel perfurado desde ambas as extremidades 6”: corremos o risco de que as duas vias não se
encontrem... Essas duas vias correspondem àquilo que Freud denomina “corrente de ternura” e
“corrente sensual”. Veremos que, nessa lógica, não há verdadeiramente saída possível do túnel e que
Freud esbarra em dois impasses.
O primeiro diz respeito à corrente sensual. Efetivamente, no ensaio precedente sobre a sexualidade
infantil, Freud esclareceu que “a princípio, a pulsão sexual infantil não mostra nenhuma
necessidade7” de um objeto sexual. Seu objeto sendo indiferente, cada pulsão parcial busca sua
satisfação: para fazê-lo, ainda que possamos isolar as “zonas erógenas”, qualquer parte do corpo
serve. Mas o Lustgewin, o ganho de prazer que é o produto dessa operação, se apresenta a partir de
agora como um possível obstáculo para a corrente sensual na “descoberta de objeto”, quando “já na
vida infantil, a zona erógena em questão ou a pulsão parcial correspondente haja contribuído numa
medida incomum para a obtenção de prazer8”. Assim, nada na pulsão predispõe a uma mudança de
corpo, a não ser para encontrar aí um objeto para sua satisfação: é a abertura às vias perversas do
desejo.
Mas Freud indica uma outra via concernente à “escolha de objeto”: “com frequência ou regularmente,
já na infância se efetua uma escolha objetal como a que mostramos ser característica da fase de
desenvolvimento da puberdade, ou seja, o conjunto das aspirações sexuais orienta-se para uma única
pessoa, na qual elas pretendem alcançar seus objetivos. Na infância, portanto, essa é a maior
aproximação possível da forma definitiva assumida pela vida sexual depois da puberdade 9”. É a via do
amor, da Verbiebheit, endereçado à mãe ou a um de seus substitutos, que recolha assim nas “antigas
aspirações sexuais, […], (as) pulsões parciais infantis10”: é a corrente de ternura que “comporta em si

1
SIGMUND, F (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. P.119-229.
Tradução Jayme Salomão. Nessa edição em português, utilizou-se o subtítulo “As transformações da
puberdade”.
2
Idem, p.196
3
Idem, p.196
4
Idem, p.196
5
Idem, p.140
6
Idem, p.196
7
Idem, p.180
8
Idem, p.200
9
Idem, p.188
10
Idem, p.189
o que resta da primitiva eflorescência infantil da sexualidade11”. Novo impasse então na via da
corrente de ternura: “O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro 12” do primeiro objeto de
amor e é precisamente a isso que o sujeito deve renunciar na puberdade! Freud o formula sem
ambiguidade: “A escolha de objeto da época da puberdade tem de renunciar aos objetos infantis e
recomeçar como uma corrente sensual13”. Mas nós acabamos de ver que essa via estava igualmente
semeada de emboscadas, que resultam da lógica das pulsões parciais.
O exame do texto freudiano nos leva assim a concluir por uma impossível convergência da corrente
de ternura e da corrente sensual, do amor e do desejo, sobre um mesmo objeto. Essa convergência se
mantém apenas como “um dos ideais da vida sexual14”, que assume valor de obstáculo para a nova
escolha de objeto, para a mudança de corpo que ela implica, ou seja, o encontro com o Outro sexo. É
necessário, entretanto, nos perguntarmos porque Freud se manteve nessa contradição e para tanto
fazer uma outra leitura de sua introdução ao subcapítulo “O encontro do objeto 15”. É nessa
passagem, com efeito, que ele dá destaque a um tempo no qual “a pulsão sexual tinha um objeto fora
do corpo próprio, no seio materno16”. É um tempo anterior à qualquer representação, uma primavera
da vida, um tempo para “esses primeiros e mais importantes de todos os vínculos sexuais 17”. Mas não
nos enganemos diante disso, esse tempo anterior ao autoerotismo das pulsões parciais constitui o
objeto da “mais primitiva satisfação sexual 18” como radicalmente perdido. O amor se concebe então
como aquilo que ao mesmo tempo vem ocultar e indicar essa perda. Devemos, então, deduzir disso
que é essa perda, já “definitiva”, que estará novamente em questão no momento da puberdade,
quando o “encontro do objeto” é de fato o encontro com o Outro sexo, tanto para o menino como
para a menina. A puberdade deve, então, ser compreendida como o tempo de uma redescoberta
dessa dimensão da perda no cerne da satisfação: não há outra saída para que se opere uma mudança
de corpo, segundo a lógica da pulsão. É isso que iremos examinar agora.

Uma mudança de satisfação

A mudança de satisfação é uma mudança de objetivo: anteriormente “um certo prazer”


acompanhava a satisfação de cada pulsão, “independendo umas das outras 19”, e não estava isento de
um certo “desprazer”, “um sentimento de tensão 20”; a partir de agora um novo prazer faz sua
aparição, “em sua totalidade, é um prazer de satisfação21”. Esse novo prazer é obtido por meio do
precedente, “que atua, assim, como um prêmio de incentivo 22”: sua estrutura é equivalente, nos diz
Freud, àquela produzida pelo Witz.
Esse novo prazer é acompanhado por uma queda da tensão, ou bem uma perda: nós temos aqui uma
outra perspectiva do caráter “definitivo” da mudança introduzida pela puberdade. Nada há de
automático nesse processo, ao contrário, trata-se do encontro com um gozo (porque esse é o nome
lacaniano do “prazer de satisfação”) que inclui a perda. Eis aqui o que permite sair do dilema
freudiano em torno do par excitação/satisfação: na infância, a satisfação da pulsão tem como efeito
uma “excitação sexual”; a partir de agora, a excitação sexual pode ser posta a serviço de uma outra
satisfação. Freud toma o exemplo dos “atrativos” que apresentam para o olho o objeto sexual: o bom
encontro, na acepção da pulsão parcial, se transforma em desprazer se ela não encontra uma saída
no novo modo de satisfação. Diríamos, assim, de bom grado, que é a existência mesma de um novo
modo de satisfação que introduz o desprazer no cerne da pulsão, aqui da Schaulust. Se a criança
empresta de boa vontade seu corpo à satisfação da pulsão escópica, na alternância entre ver e ser
vista, nessa ocasião não sem “excitação sexual”, doravante o surgimento da vergonha ou da angústia,

11
Idem, p.196
12
Idem, p.210
13
Idem, p.189
14
Idem, p.189
15
Idem, p.209
16
Idem, p.210
17
Idem, p.210
18
Idem, p.210
19
Idem, p.196
20
Idem, p.198
21
Idem, p.199
22
Idem, p.199
os embaraços com a imagem do corpo vêm assinalar a introdução no dispositivo da dimensão da
castração, com a tomada de posição do sujeito em relação à ela.

Uma mudança de órgão

Uma conclusão “inequívoca23” se impõe então ao sujeito: a excitação é “uma preparação ao ato
sexual”. É um saber novo e a questão é agora saber se o sujeito consente a se deixar determinar por
ele. Esse ponto esclarece a famosa “ignorância” das crianças a respeito do ato sexual: não se trata de
uma falta de conhecimento, tese rapidamente desmentida pela menor investigação junto às crianças
contemporâneas, mas da ausência de inscrição nesse novo saber, que implica consequências.
Mas como se introduz esse saber novo? Tudo gira em torno de um órgão que é o pivô de todas essas
mudanças e que se trata agora de definir com Freud. Ele caracteriza o momento da puberdade pela
aparição de “um aparelho altamente complexo, à espera do momento em que será utilizado 24”. Se ele
não negligencia as contribuições da ciência de seu tempo no nível anatômico e fisiológico, em
particular o que ele denomina “a teoria química”, isto é, os primórdios da descoberta do papel dos
hormônios na puberdade, é especialmente para evidenciar a possível congruência com sua “teoria da
libido25”. Nós compreendemos então que “um aparelho [...] à espera do momento em que será
utilizado” não deve ser identificado aos órgãos genitais que acabaram de sofrer sua transformação
púbere: é a libido que constitui o novo órgão, o novo aparelhamento do corpo no momento da
puberdade.
Essa conclusão é surpreendente: a libido já não está lá muito antes do momento da puberdade, como
a energia a indexar toda a maquinaria pulsional elaborada por Freud? Certamente, isso é inegável.
Mas a novidade que introduz Freud é a seguinte: é a libido, e apenas a libido, que permite, no
momento da puberdade, a repartição entre os sexos. Nesse momento, é preciso seguir Freud passo a
passo. Com efeito, há nesse ensaio uma tese forte: se nos situamos de acordo com lógica da pulsão,
“a atividade auto-erótica das zonas erógenas é idêntica em ambos os sexos, e essa conformidade
suprime na infância a possibilidade de uma diferenciação sexual como a que se estabelece depois da
puberdade26”. É nessa linha que se encontra a passagem que deu lugar às múltiplas reações nos
alunos de Freud: “a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino27”. Numerosos
comentadores lamentaram que Freud, ao contrário do que ele mesmo anunciou, não tenha integrado
no corpo de seus Três ensaios seu artigo de 1923 “A organização genital infantil28”, no qual propõe
que “a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é sua diferença da organização final
do adulto”, que seria “para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou
seja, o masculino29”.
O desejo implícito deles é manifestamente de propor um “estado fálico” como “elo perdido” na
passagem da sexualidade infantil à sexualidade adulta. Ao contrário, nós lemos esse “esquecimento”
de Freud como o testemunho de que ele não sucumbe às tentações do desenvolvimento, ao preço
algumas vezes de enunciados que podem parecer contraditórios. O que ele estabelece claramente é
que, na infância, é o falo que indica a direção, tanto no menino quanto na menina (cf “as zonas
dominantes”, p.208): o que caracteriza o infantil é que o falo é aí o órgão pivô. É precisamente o
paradoxo da puberdade em Freud: a puberdade é o momento no qual o sujeito tem que se haver com
a libido sem o socorro do falo. Se o falo bem indica a direção a seguir, nem por isso ele pode ser o
veículo que permite prosseguir o caminho, com o risco de gerar um certo número de dificuldades na
identificação a seu próprio sexo e no exercício da função sexual. Se Freud desenvolve as
consequências deste paradoxo para a menina nas páginas 208 e 209, somos levados a considerar a
lógica do paradoxo para os dois sexos.

23
Idem, p.215
24
Idem, p.197
25
Idem, p.205
26
Idem, p.207
27
Idem, p.207
28
SIGMUND, F (1923). A organização genital infantil. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XIX. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p.158. pp.155-
161.
29
Idem, p.158
O menino e a menina

Essa lógica é aquela do Witz, do Witz da libido que se constrói a partir da lógica do falo, mas que dela
difere radicalmente. Relembremos seu mecanismo: um “prazer preliminar” é destinado a liberar um
prazer maior pela supressão de inibições internas. Mas não se pode esquecer que esse prazer maior
é, inicialmente, um novo modo de satisfação, um gozo que introduz qualquer coisa de “definitivo” na
vida sexual e que necessita que as pulsões parciais não reivindiquem para elas mesmas o “ganho de
prazer”. Um dos maiores obstáculos a esse processo será que o falo não cede sobre seu “primado”
infantil:
- Para o menino, a dificuldade provém de que é sobre o órgão fálico que deve operar-se a passagem
“da representação de uma perda”, consequentemente imaginária, a uma perda ligada ao novo modo
de satisfação. Essa passagem se equivale a uma negativização do órgão fálico e corresponde para o
sujeito ao momento no qual ele é confrontado à responsabilidade desse órgão “fora do corpo” que é
a libido sem o suporte do legado fálico. Concebemos assim o valor de obstáculo que constitui para a
vida sexual, de um lado, todo investimento narcísico do falo ou do próprio corpo e, de outro, toda
fixação “auto erótica”, ou seja, masturbatória, ao órgão. A outra consequência trata das relações com
o outro sexo: permanecer fixado ao primado do falo para repartir os sexos condena o menino à
“depreciação das mulheres, o horror30”; engajar-se na via aberta pela nova satisfação faz correr o
risco “de um aumento da superestimação sexual [...] face à mulher que se recusa e renega sua
sexualidade”. Mas não nos enganemos, a provação não é da mesma ordem: de um lado,
impossibilidade do encontro e distúrbios da potência sexual; de outro, risco do encontro, sem outra
garantia que a tomada de posição de um outro sujeito quanto ao seu próprio sexo, o que tampouco
acontece sem dificuldade.
- Para a menina, ou seja, sobre a difícil questão de saber “como a menina se torna uma mulher”,
seguiremos as indicações de Freud neste ensaio e a lógica anteriormente descoberta. Nessa linha,
precisamos concluir que se realmente existe uma mudança de órgão para a menina, essa não é a
passagem de uma sexualidade clitoridiana a uma sexualidade vaginal, mas a passagem de uma
sexualidade fálica, eventualmente “fixada” sobre a excitação clitoridiana, a uma sexualidade sem o
falo. Nessa passagem, aí onde Freud falava para o menino “de uma ofensiva” da libido, para a menina
ele evoca “um recalque”. A dificuldade dessa passagem para a menina é que esse recalque da
sexualidade clitoridiana pode provocar em seguida uma “negativa” da sexualidade, ou seja, uma
recusa da libido como novo órgão para repartir a escolha do sexo. Esse perigo é aumentado pelo fator
evocado acima, a saber que, devido a essa denegação, a menina adquire valor fálico para o menino.
Ela recupera por ali, por intermeio de seu próprio corpo ou daquele de duplos imaginários, o
investimento fálico ao qual ela renunciou. O aviso, geralmente mal compreendido, de que a libido é
sempre “masculina”, indica nesse caso preciso que, para a menina, é ao consentir que a libido tome
uma parte “ativa”, que a libido seja o órgão agente dessa passagem, que uma “transferência” pode se
completar “do clitóris [...] para partes femininas vizinhas31”. Se não podemos ir mais longe a partir
deste texto, não esqueçamos que Freud conclui seu artigo de 1931 “Sexualidade Feminina” pela
seguinte constatação: “a existência de tendências libidinais com objetivos passivos, contém em si
mesma o restante de nosso problema32”. Ele indica aqui um outro tipo de “defesa contra a
feminilidade” ligado ao momento no qual a menina se torna mulher: confrontada à libido sem o
recurso do primado do falo, a menina reencontra as moções libidinais passivas, dirigidas para a mãe,
das quais depende, segundo Freud, a intensidade de um Penisneid primário endereçado à mãe.

30
Idem, p.160
31
SIGMUND, F (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p.209.
pp.119-229. Tradução Jayme Salomão.
32
SIGMUND, F (1931). Sexualidade Feminina. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p.248. pp.229-251. Tradução
Jayme Salomão.
Uma mudança de autoridade

Uma outra “metamorfose” constitui a questão no momento da puberdade: se “os laços com a família
(seriam) os únicos que eram decisivos na infância33”, trata-se agora da consumação de “uma das
realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o
desligamento da autoridade dos pais34”.
Essas duas citações permitem situar a exigência de ruptura radical com o tempo da infância, ruptura
que frequentemente não é realizada. Do que se trata? Freud nos dá aqui uma definição precisa da
posição infantil: a infância é o tempo no qual tudo o que concerne à pulsão sexual cai sob a
autoridade dos pais. É uma das formulações possíveis do complexo de Édipo. Isto significa que
qualquer que seja o novo que se introduz durante a infância, os diferentes desmames, os diversos
investimentos pulsionais, esse novo será sempre referido à autoridade dos pais, o que inclui também
a possibilidade de transgredi-la. Mas, seja na aceitação ou na recusa, a dimensão de perda inerente a
toda mudança será imputada aos pais, depositada na conta deles. É o abandono dessa posição,
necessária no tempo da infância, que o sujeito é intimado a efetuar. Como isso é possível?
A afirmação que faz Freud que “A afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais importante, embora
não o único, dos vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho para a escolha do
objeto35”, evoca com efeito mais um processo de continuidade do que de ruptura. Não nos
esqueçamos, entretanto, de que a introdução de um novo modo de satisfação deixa o sujeito, a partir
de agora, sem garantia em uma escolha de objeto que inclui a dimensão do Outro sexo. É preciso
então nos determos com Freud sobre o estatuto dos “vestígios” que ele evoca nessa última citação.
Esses vestígios são representações: “é na [esfera da] representação que se consuma inicialmente a
escolha do objeto e a vida sexual do jovem em processo de amadurecimento não dispõe de outro
espaço que não o das fantasias, ou seja, o das representações não destinadas a concretizar-se36”. É
assim pelas fantasias (“o despertar de seus sonhos”, dirá Lacan em sua introdução à peça de
Wedekind O despertar da primavera) que o sujeito pode mensurar as consequências do novo modo
de satisfação. De qual maneira? É preciso se deter sobre as características dessas fantasias, sobre as
quais Freud nos diz: “se distinguem por sua ocorrência generalizada e sua considerável independência
do que foi vivenciado pelo indivíduo37”. O que há então de universal nessas fantasias? “Fantasias de
escutar as relações sexuais dos pais, da sedução pelas pessoas amadas, da ameaça da castração [...]
as fantasias do ventre materno, cujo conteúdo é a permanência nele e mesmo as vivências que ali se
teria, e o chamado ‘romance familiar’ [...]38”, elas são todas centradas sobre um irrepresentável, que
faz furo nas representações de “autoridade” dos pais. Enquanto tais, elas tentam evitar essa falta na
representação, essa falta no saber, e é precisamente ao “superá-las”, ou seja, ao se avançar nessa
zona onde o saber falta, que o sujeito pode “se desligar da autoridade dos pais”. “Não há outra
responsabilidade que a sexual” será a fórmula que Lacan nos dará para condensar esse longo trajeto
realizado com Freud. Nada aqui que seja específico de uma psicologia do adolescente, mas sobretudo
um desafio que poucos sujeitos consentem sustentar.

O Witz: uma terceira via?

Falar de terceira via é dizer que ali existem duas outras. Nós as cruzamos ao seguir o texto freudiano,
mas nós iremos caracterizá-las por duas figuras emblemáticas: o cavaleiro branco e o dealer. O
cavaleiro branco é o falo, significante do desejo. O desejo não é uma palavra vã: o sujeito é
convocado a sustentá-lo a cada vez em que se encontra engajado em um ato, seja no qual ele é
agente, seja quando ele é tomado pelos efeitos de um ato colocado por outro sujeito. O que o
cavaleiro branco diz ao sujeito é que a cada vez que seu desejo é convocado, isso vale alguma coisa,
isso tem um valor, é aferido no Outro. Mas, porém, é uma promessa sem garantia, sempre ameaçada
de uma possível Versagung. É isso a crise da adolescência, quando o sujeito, porque um novo modo
de gozo aparece, percebe que há uma ruptura de promessa. O cavaleiro branco prometeu, mas de

33
SIGMUND, F (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade... p.213
34
Idem, p.214
35
Idem, p.216
36
Idem, p.213
37
Idem, p.213
38
Idem, p.214
fato, não há garantia. De um lado, é realmente por isso que não é fácil sair do tempo da infância, e de
outro, se o psicanalista se encontra solicitado nesse tempo, não é o caso de representar o papel do
cavaleiro branco do desejo.
O dealer é a fantasia. Ele é também dominado pelas condições do significante, pelas condições do
mercado do desejo, mas ele as utiliza para outros fins: ele diz ao sujeito que ele tem o que é preciso
para seu desejo, e que além disso, ele terá um gozo imediato. Ele não está mal colocado para lhe
dizer, porque ela, a fantasia, sabe quais são os elementos significantes que se distinguem
especialmente para o sujeito, em sua singularidade, para introduzí-lo na ordem do amor. E nós vimos
que ao se confrontar com isso, o sujeito, na provação da puberdade, tinha a chance de encontrar uma
medida para um não saber radical sobre o sexual. O analista não protesta contra aquilo que diz ou faz
a fantasia, mesmo que ele não ignore suas possíveis derivas em curto-circuito do desejo.
A terceira via do Witz não exclui, então, a referência ao falo como significante do desejo nem às
condições de amor sustentadas pela fantasia. Ela é apenas aquilo que permite dar um passo a mais no
momento no qual amor e desejo, em nome de suas condições “infantis”, não se sustentam face à
emergência de uma nova satisfação. E, precisamente, essa nova satisfação não pode ser recebida
pelo sujeito, a não ser pela estrutura do Witz. Nós vimos o mecanismo: o prazer preliminar,
proveniente das pulsões parciais, se coloca a serviço de uma nova satisfação. Mas é necessário
igualmente precisar a economia paradoxal disso: se há, como no Witz, economia de gasto psíquico e
obtenção de um novo ganho de prazer, não é menos verdade que esse gozo será recebido pelo
sujeito como perda “definitiva”. Esse efeito de “gozo-sentido” novo, esse passo de “gozo-sentido”
tem a mesma estrutura que o “sem sentido” do qual Lacan indexa o chiste, em seu seminário As
formações do inconsciente: esse efeito não é produto de uma metáfora, de uma substituição de uma
satisfação por outra, mas introdução, de maneira metonímica, do valor como tal disso que “em razão
do significante, não consegue ser significado39”. Daí a necessidade da “terceira pessoa”, do Outro que
ratifica essa nova mensagem, mesmo que ela escape ao código prévio. J.-A. Miller nos relembra em
seu seminário em Barcelona Introdução ao seminário V de Lacan, que “A estrutura da tirada
espirituosa teria de nos ensinar, ainda que seja difícil dizer desta maneira, algo como as técnicas do
novo, pois essa estrutura do Witz é a produção de uma distância, mas que se completa pelo seu
reconhecimento dado pelo Outro. Mas nem tudo consiste em desconcertar o Outro, é preciso ainda
obter seu consentimento40”. O momento da puberdade, concebido a partir do Witz, convoca um
Outro que já não está lá, dizendo propriamente, “um Outro que não existe”: é o tempo, não episódio
no desenvolvimento, mas tempo lógico, no qual o sujeito pode aprender a “prescindir do Nome-do-
Pai [...] com a condição de nos servimos dele 41”. Há aí um nó estrutural que dá conta de toda a
eflorescência sintomática, na subjetividade dos ditos “adolescentes” e no social, onde se trata tanto
de “desconcertar o Outro” como de buscar desesperadamente seu “consentimento”. O psicanalista
não está mal colocado, não para encarnar esse Outro, mas para lembrar em tempo oportuno que não
existe Witz sem uma “terceira pessoa” para reconhecê-lo: posição distanciada de todo cinismo,
apenas apta a opor-se aos curtos-circuitos do ato ao qual um gozo inédito convoca o sujeito.

Tradução e Revisão
Bruna Simões Albuquerque
Lisley Braun Toniolo

39
LACAN, J (1957-58). O Seminário livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999, p.156.
40
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1999, p. 14-15.
41
LACAN, J (1975-76). O Seminário livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007,
p.132.

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