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Star Trek: A Taste of Armageddon e o Institucionalismo

Andrew Gil
Introdução

A série americana Jornada nas Estrelas (Star Trek), criada pelo ex-piloto americano e
produtor Gene Roddenberry, é memorável não só pelos personagens emblemáticos como
Spock (o âmago da lógica) ou por sua estética liberal e multicultural para uma série
americano dos anos 60. Mas sim, sobretudo, por trazer em seus episódios ácidas e
contundentes críticas sociais dentro do contexto da Guerra Fria e do movimento pelos direitos
civis. É neste último ponto que este texto busca elaborar uma explicação sobre o que ocorre
no episódio a Taste of Armageddon utilizando-se da teoria institucionalista pelas lentes, em
especial, de Berger e Luckmann(1985). Com este fim, o texto está disposto em: uma revisão
do enredo do episódio (delimitado às partes que nos interessam); a exposição dos conceitos
chaves da teoria; uma oferta de interpretação dos aspectos do enredo com os conceitos
institucionais e as considerações finais.

Enredo de Taste of Armageddon

A trama se inicia com a nave espacial Enterprise escoltando um embaixador para o


planeta Eminiar VII tendo como objetivo o estabelecimento de relações diplomáticas. Nada
se sabe sobre o planeta, exceto que este trava um longa guerra (500 anos) com o planeta
Vendikar. Ao se aproximar do planeta, no entanto, a nave recebe uma transmissão ordenando
que todas naves próximas se afastem do planeta. Tal transmissão é negada pelo capitão da
Enterprise (James T Kirk), por influência do embaixador, e ao estabelecer contato com a
civilização de Eminiar VII. os tripulantes da Enterprise descobrem uma realidade muito mais
torpe do que poderiam imaginar.
Eis que em Eminiar VII, a guerra travada com o planeta Vendikar não é uma guerra
de facto, mas sim uma guerra virtual. Ambas as sociedades, para evitarem o verdadeiro banho
de sangue e destruição, estabeleceram um tratado cujo resultado é uma longa guerra em que
as baixas são, por intermédio dos computadores, determinadas e os cidadãos dos planetas
(super-desenvolvidos) são escolhidos para entrarem em câmaras de autodestruição e assim
terminarem suas vidas, cumprindo assim o tratado entre os dois planetas sem qualquer tipo de
efeito colateral na infraestrutura. Além do mais, não só é descoberto isso, como também que
a Enterprise e toda sua tripulação foram computados como baixas de guerra e devem ser
voluntariamente destruídos para evitar a grande guerra entre os povos que potencialmente os
levaria à ruína.
Após muita ação, aventura e intriga. O capitão e a equipe que desceu ao planeta
conseguem destruir os computadores que julgam a guerra, quebrando o tratado com
Vendikar, para o desgosto dos habitantes de Eminiar VII. Mas, com esta quebra protocolar, o
medo da guerra “de verdade”, a qual custa vidas, infraestrutura e muitas outras coisas, torna-
se argumento suficiente para que Kirk convença o conselho do planeta a buscarem um cessar-
fogo com o planeta rival e, portanto, encerrando a interminável guerra de ambos. Com isto,
podemos dizer que a realidade das duas civilizações foi, pelo menos, profundamente
modificada.
Berger e Luckmann(1985) - A Construção Social da Realidade

Os autores em seu livro buscam explicar como se compõe a realidade a partir das
relações sociais. Para fins de completude, analisam eles tanto os componentes e processos
objetivos quanto subjetivos e os expõem em processo gradativo e complementar. Mas, para o
escopo deste trabalho é apresentado os conceitos específicos e o racional que serão usados
para as comparações a vir em sequência. Em especial os de caráter da realidade objetiva.
A institucionalização, segundo Berger e Luckmann, é dada por uma
necessidade de exteriorizar os impulsos biológicos humanos em uma ordem social. A própria
instituição surge do hábito,o hábito é provido da constância de interação e ação e esta
instituição é reconhecida, tipificada e acessível a todos os membros. Isto se dá justamente
porque é um produto histórico, uma onda repetida por ancestrais dos ancestrais. Em certo
ponto, as instituições criadas pelos seres de uma sociedade se tornam em si os guardiões
excelentes da sociedade que é chamada de realidade objetiva pelos estudiosos. Por que são
necessários estes guardiões? Por consequência da insegurança e a dificuldade que seria ao
homem ter que repensar cada ação como se fosse a primeira vez, um produto moroso da
espontaneidade humana nunca será menos cansativo do que a ação ditada pelas instituições.
Através da linguagem, o homem comunica as normas que regem sua sociedade, sejam
elas explícitas ou implícitas, e também expõe os papéis que cada um realiza dentro daquela
realidade. A defesa da realidade ocorre em especial contra o pensamento dissidente ou
herético(por vezes, subuniversos da realidade inicial), mas mais ainda contra outra realidade
sustentadora de outra civilização que entra em choque e a força se torna o decisor de quem
terá a soberania. Certos aspectos das instituições passam a ser reificados(tornados super-
humanos) tornando-se ditadores de concepções da vida ideal naquela sociedade.
As instituições e seus aspectos institucionalizados, são legitimados em um processo
de produção de novos significados que tornam coesos e coerentes os significados anteriores.
Um outro aspecto do processo de legitimação e deslegitimação, ligado na verdade com a
perda de sentido, é o momento súbito em que algo desafia a ordem institucional e retira o
chão que apoiava os habitantes de um dita sociedade. Este é, em verdade, o reflexo da vitória
do caos sobre a legitimação e a falha da ordem institucional. Por isso, há um combate
constante contra a destruição dessa ordem. Esta grande “peleia” pode ser travada também
pelo que os autores chamam de terapêutica, ou trocando em miúdos, um esforço de
convencimento e alteração da cognição para assegurar o fim da discordância interna entre “os
hereges” e também o processo de aniquilação - a destruição do que está além do universo
defendido. Apesar dos autores indicarem todo este processo como algo mais psicológico ou
cognitivo, não seria absurdo contemplar também a ação violenta e física contra aqueles que
detenham pensamentos que podem levar ao caos ou à modificação da ordem institucional.
A instituição da guerra em Eminiar VII

É forçoso admitir que como uma série de ficção científica, Jornada nas Estrelas
exagera em seus conceitos, porém podemos traçar algumas relações interessantes com a
teoria exposta na seção anterior. Primeiramente, em Eminiar VII, a guerra em si se
transformou em uma instituição legitimada por dois inteiros povos em planetas diferentes em
500 anos (mais do que suficiente história). Os habitantes do planeta sequer reagem à ordem
da morte porque cognitivamente apreendem uma realidade em que o significado de sua morte
é a sobrevivência de sua civilização. O processo limpo em que ocorre é um hábito tal qual
acordar cedo, fazer uma oração ou beber com amigos em um bar no centro de uma cidade
brasileira. A instituição da guerra é mutuamente legitimada pelo conselho do planeta que
entende que seu papel é garantir a realidade que este povo construiu socialmente. Impulsos
como compaixão e misericórdia foram domados na ordem social, eles são agora traços
“bárbaros”, até poderíamos chamar de aspectos de um subuniverso herético, usando-nos da
nomenclatura dos autores.
A razão da defesa deste modelo de guerra institucionalizado é o medo do caos, ou
seja, o produto da verdadeira guerra. A matança, os crimes de guerra, o sangue e as
explosões, todos são sinais de um caos que destruiria a camuflagem de prosperidade material
daquela sociedade. Com este medo, o homem, tal qual explicado na seção prévia, ergueu
instituições e trava o combate com outros universos. A chegada da nave Enterprise, vinda de
uma civilização parecida com a nossa mas eticamente aprimorada, é mais letal do que uma
bomba atômica neste ordenamento social. O combate é o corpo do episódio. Durante todo o
passar do primeiro contato ao final, os habitantes tentam convencer os tripulantes da
necessidade de suas mortes como ditadas pelos instrumentos representativos da instituição, os
supercomputadores. Quando falham pelas vias “terapêuticas” - entenda-se aqui que os
tripulantes não são hereges, mas membros de outra sociedade, contudo, os mecanismos de
defesa da realidade são similares - passam ao ponto da violência explícita.
O final do episódio pode ser visto como a materialização da destruição da instituição
representada pelos computadores julgadores do embate interplanetário. O ato lança todo o
planeta em um caos e tira o véu sutil que cobria o medo dos habitantes de um verdadeiro
"Armagedon”. A fim de dar razão e novamente proteger a realidade, mas de uma nova forma,
o conselho é forçado a instituir outra maneira de afugentar o caos aceitando negociar um
cessar-fogo após 500 anos com os seus rivais (que curiosamente estavam em uma situação
tão desesperadora quanto eles mesmos).
Finalmente, seria cabível dizer que os habitantes de Eminiar VII substituíram a
instituição da guerra com Vendikar por uma instituição de boas relações e paz com os
vizinhos. Claro, como Berger e Luckmann(1985) afirmam, somente a história e a legitimação
por parte de outras instituições e os cidadãos desta sociedade poderão confirmar que esta
substituição realmente se trata de uma instituição e que efetivamente protegerá a realidade
daquele mundo - o que nunca deixou de ser o objetivo nem dos tripulantes da Enterprise, nem
dos eminirianos, apenas uma discordância entre como isto deveria acontecer e quais aspectos
da realidade próspera do planeta deveriam ser preservados.

Considerações Finais

Nos anos 60, os Estados Unidos e a União Soviética mantinham um conflito não
direto o qual repercutiu em diversas guerras “proxy”. A mais emblemática delas, argumento,
foi a Guerra do Vietnã, em que o alistamento obrigatório foi empregado de maneira aleatória
por intermédio da televisão que mostrava por sorteio aqueles que lutariam ou não. O episódio
foi construído, definitivamente, como uma crítica a esta forma de realizar a situação,
conjuntamente com as instituições da “guerra” americanas que operam até o dia de hoje
naquela nação de maneira bem explícita.
É posto que o institucionalismo pelas lentes de Berger e Luckmann(1985) consegue
explicar fenômenos sociais como o que ocorreu nos anos 60 e também no episódio da série.
Claro que ao constituir este texto, diversas teorias estudadas perpassam a mente como
diferentes caminhos que poderiam pintar uma obra mais completa do que é retratado. Mas, a
reflexão maior do episódio nos é atual enquanto civilização por conta de nossas instituições.
Sabe-se que as instituições existem e operam, mas enquanto membros desta sociedade ou da
grande sociedade humana, como queremos que elas operem? Como desejamos que elas
existam? Quais princípios de fato queremos que elas protejam de nossa realidade e quão
presos estamos à segurança que elas nos passam em nossa própria realidade?
No entanto, a série não nos nega a possibilidade de revermos a realidade e suas
instituições e repensarmos sobre elas, até mesmo de agirmos para constituir um futuro mais
pacífico e ético. Como no diálogo do próprio capitão Kirk com o conselheiro do planeta:
“Certo. É instintivo. Mas o instinto pode ser combatido. Nós somos seres humanos com
sangue de um milhão de anos selvagens em nossas mãos, mas nós podemos pará-lo. Nós
podemos admitir que somos matadores, mas que não vamos matar hoje. Isso é tudo que
precisamos”(Tradução Própria). Será que tal mudança é possível? Cabe-nos investigar.

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