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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
COLEGIADO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Victoria Gurjão Quadros

A fundação do Estado de Krakoa à luz do Neo-Realismo

“Humanos do planeta terra. Enquanto


vocês dormiam, o mundo mudou”.

Professor X.

Apresentação do Produto

Criada por Jonathan Hickman, a Dinastia X 01 é parte da minissérie de HQ’s Dinastia


X, proveniente da Marvel Comics e “gêmea” da minissérie Poderes de X. Juntas,
formam a saga Aurora de X (Dawn of X), que introduz a nova era dos mundialmente
conhecidos mutantes (Homo Superior) X-Men. A obra se passa posteriormente ao
evento conhecido como Genocídio Genoshiano, onde 16 milhões de mutantes são
mortos na ilha de Genosha1.

Em Dinastia X 01, o público é imediatamente apresentado a uma mudança de discurso


proveniente do líder mutante Charles Xavier: os humanos em breve não mais serão a
raça dominante e devem reconhecer os mutantes como herdeiros evolutivos, lhes
fornecendo reconhecimento do estado de Krakoa², soberania e anistia para seus
habitantes – qualquer mutante é reconhecido como habitante de Krakoa.

1
Genosha: Nação insular situada na costa leste da África, serviu de refúgio para os mutantes até o
momento do massacre que ceifou a vida de mais de 16 milhões de mutantes. Disponível no Uncanny X-
Men #235.
² Krakoa: Ilha Mutante criada a partir de inúmeros testes atômicos realizados em sua área, alterando seu
ecossistema e lhe fornecendo consciência, podendo controlar sua fauna e flora e podendo emitir sinais
psíquicos que se interligam a ecossistemas advindos de si.
“E, se estiverem se perguntando, ‘quem esses mutantes pensam que são para
poderem ditar regras para nós?’ Nós somos o futuro. Uma inevitabilidade
evolucionária. Os verdadeiros herdeiros da Terra. Vocês foram dormir ontem
à noite acreditando que o mundo seria seu para sempre. Este era seu sonho.
E, como o meu… era uma mentira. Esta é a nova verdade: Enquanto vocês
dormiam, o mundo mudou.” (HICKIMAN; LARRAZ; GARCIA, 2019)

Em troca desse reconhecimento, Charles Xavier discretamente passa a obter grande fatia
do mercado farmacêutico mundial, visando o desenvolvimento e oferta de 3 drogas
advindas de raros tipos de flores provenientes da ilha mutante: a Droga L, que estende a
vida humana em 5 anos, a Droga M que previne doenças mentais e a Droga I, o mais
eficiente antibiótico já criado. Já para mutantes, as flores fornecem portais de
teletransporte, a criação de um habitat semelhante à Krakoa e um habitat igual ao citado
anteriormente, porém fora do sistema consciente da ilha.

Entretanto, a alçada de Xavier não foi vista com bons olhos pelos humanos
remanescentes, pelo contrário: após o genocídio de Genosha, uma pesquisa humanitária
denominada “O problema Cor-Magnon” foi feita pela personagem Alia Gregor, onde
após correção, estabeleceu-se que a proliferação mutante estava cada vez mais intensa,
podendo ter os Homo Superior como raça dominante anos antes se não pelo genocídio.
O estudo não trás boas novas: a humanidade tem cerca de 20 anos até se extinguir e em
um cenário apocalíptico, a humanidade não vê outra saída se não a ativação do
Protocolo Orquídea, uma ação conjunta entre algumas das organizações já reconhecidas
no Universo da Marvel como AIM, SHIELD, STRIKE, SWORD, Tropa Alfa,
HAMMER, ARMOR e Hydra. O objetivo dessa aliança é a reativação do Programa
Sentinelas, que embora neutralizado pelos mutantes, ainda foi capaz de causar danos
significativos por uma segunda vez.

Justificativa

Criados por Stan Lee e Jack Kirby, os X-Men surgem em Setembro de 1963,
aproximadamente um mês após um dos mais famosos discursos de Martin Luther King
durante a Marcha de Washington. A história dos mutantes que são discriminados pela
sociedade emerge como uma alegoria às minorias raciais que buscavam obtenção de
direitos nos EUA e eventualmente abrange também alusão à homofobia e perseguição
contra judeus – Erik Lensherr, o Magneto, é um sobrevivente dos campos de
concentração nazistas.
Retratados como inferiores e socialmente excluídos durante boa parte de sua história, os
X-Men agora não mais são partes de uma minoria marginalizada. Segundo dados
fornecidos após pesquisa humanitária liderada por Alia Gregor, se não pelo massacre, os
mutantes já seriam maioria entre a população terrena – o genocídio apenas atrasou essa
dominância em 20 anos.

Reconhecido como próximo estágio da evolução humana, os mutantes formam o povo


residente na igualmente mutante ilha de Krakoa, seu território. Sendo dois dos
elementos do Estado já estabelecidos, resta apenas um: a Soberania. A soberania do
estado mutante não é negociável, é uma alternância política evolutiva assim como a
ascensão de sua espécie, que mais do que sua sobrevivência, preza pelo seu
reconhecimento.

Diante disso, a trama dos X-Men emerge mais uma vez como veículo para discussões
políticas, algo intrínseco às suas narrativas tanto quanto o próprio Gene X. Após
décadas abordando a opressão, os mutantes agora viram a mesa e abraçam sua
emancipação à luz de uma sociedade que cada vez mais empodera vozes antes
silenciadas.

Os X-Men são, talvez, os principais representantes das minorias dentro do mundo das
HQ’s e sua alteração de narrativa fornece também um vasto campo de estudos sobre o
novo caráter adotado – intrinsecamente ligado à uma extensa gama de possibilidades
acadêmicas. Dentro das Relações Internacionais, a existência de Krakoa e sua busca por
soberania emerge uma promissora exemplificação do nascimento de um Estado, sua
construção, suas capacidades e principalmente: seu caráter dentro da selva anárquica do
sistema internacional.

Quais conceitos são importantes?

Kenneth Waltz é o responsável por inaugurar uma nova perspectiva dentro do já


reconhecido Realismo em sua obra Teoria das Relações Internacionais. Ao contrário do
Realismo Clássico, Waltz analisa o sistema internacional não mais baseado na natureza
humana e sim na própria estrutura do Sistema Internacional.

Embora hajam consensos significativos entre os realistas que merecem ser citados e que
poderiam ser aplicados aqui, como a anarquia do sistema, a ameaça potencial, incerteza,
busca por sobrevivência e ações racionais buscando seus próprios objetivos, focaremos
apenas em três, advindos da obra de Waltz e pilares para a Estrutura do Sistema: o
princípio ordenador, o caráter das unidades e a distribuição das capacidades.

Caráter das
Unidades
(Estados)
Distribuição das
Princípio
Capacidades
Ordenador
(Posição de
(Anárquico)
cada Estado)

Estrutura
do
Sistema

Advindos de uma compreensão em terceira imagem do Sistema Internacional, os


conceitos citados acima diferem-se do Realismo Clássico e apelam para uma explicação
de “fora pra dentro”. O primeiro pilar citado é o Princípio Ordenador, entendido por
ambos os realismos como Anárquico e paralelo aos sistemas internos estatais que são
organizados e Hierárquicos. Para o autor, política internacional na Anarquia é definida
por constrangimentos estruturais, onde estados buscam alianças visando prevenir uma
hostilidade que possa afetar a estrutura.

“O que se observa é que a estrutura anárquica do sistema internacional


constrange o comportamento dos Estados, pois os pune ou recompensa,
embora eles sejam livres para agirem da forma que desejarem” (DUARTE,
2011 apud WALTZ, 2002).

O segundo pilar é o Caráter das Unidades, ou seja, os Estados que igualmente ocupam o
Sistema Internacional e desempenham funções e tarefas semelhantes, embora não sejam
iguais em suas capacidades. Nem todos os estados podem integrar a estrutura proposta
por Waltz, mas sim os estados considerados mais “importantes” através da obtenção de
características que lhe forneçam relevância em algum aspecto - estados compreendidos
como potências tem mais influência. Essas características podem ser econômicas,
tecnológicas, demográficas, militares ou diversas outras.
O último dos pilares é a própria Distribuição das Capacidades, que diz respeito não
necessariamente a uma característica das unidades e sim da estrutura, porque define a
posição que cada estado vai ocupar, suas diferenciações funcionais e grau de
capacidades. Segundo Waltz, existem apenas dois tipos de distribuição de capacidades:
Bipolar e Multipolar, sendo a primeira preferível porquê fornece maior estabilidade e
facilidade na formação de alianças pela compreensão do inimigo em comum.

Aplicação dos Conceitos

Dentro dos conceitos apresentados acima, pode-se traçar um paralelo alinhado à


ascensão da Ilha de Krakoa como estado soberano. Primeiramente, a compreensão do
Princípio Ordenador, que assim como no mundo real, não possui instâncias superiores
que possam intervir na relação entre os estados, ou seja, um sistema anárquico baseado
na autopreservação. A ordem advém do comportamento das unidades, que por si, devem
possuir características próprias visando vantagem entre os membros da estrutura e
insubordinação entre suas capacidades. Nessa compreensão, as flores de Krakoa e a
produção de das Drogas L, I e M exaltam-se como o diferencial essencial para a
inserção e presença da nação de Krakoa entre os membros da estrutura, conferindo-lhe
status de potência em seu âmbito de recursos naturais, econômicos e tecnológicos - os
quais são utilizados visando a autopreservação da vida mutante e lhe garantindo
segurança contra a possibilidade de hostilidade por outras nações.

Além disso, os fatores acima citados se aliam a inevitabilidade evolutiva, gerando um


sistema internacional bipolar baseado na relação de constante tensão entre humanos que
desejam manter a hegemonia da espécie e mutantes aliados a humanos que, aceitando a
improbabilidade de uma alteração evolutiva, se aliam às vantagens das proposições de
Xavier. A partir da compreensão de que a relação entre humanos e mutantes não pode
atingir outro estágio se não o conflitivo, Charles Xavier assume a postura de
autopreservação, utilizando racionalmente seus recursos e garantindo, a partir do seu
entendimento, a nulidade de um constrangimento por outros estados – que além de não
terem recursos à altura, encaram também o inexorável declínio da própria espécie.

Entretanto, compreender a impossibilidade da continuidade da espécie fez a


humanidade buscar suas próprias formas de autopreservação: a reativação do programa
sentinela. Utilizando a Esfera de Dyson criada por Tony Stark, o Protocolo Orquídea
tomou uma fonte quase inesgotável de recursos visando sua proteção e flertando
assiduamente com a possibilidade de um conflito – englobando uma das principais
premissas de Waltz: o estado natural é conflitivo, a guerra e mesmo que estados não
desejem viver nesse ambiente hostil, eles precisam resguardar seus interesses.
(DUARTE, 2011).

Ainda segundo Waltz, uma alteração das capacidades poderia alterar a própria estrutura
do sistema, tornando o Sistema Internacional dentro da nossa compreensão não mais
como um ambiente de apenas tensão ou constrangimentos estruturais, mas sim uma
estrutura bipolar irremediavelmente conflitiva – onde a guerra nada mais é que o único
meio possível para a sobrevivência da própria espécie.

Referencial Bibliográfico

CORRÊA, Fernanda. A Balança de Poder sob a Ótica de Kenneth Waltz: Uma


Discussão da Teoria Sistêmica. Revista InterAção, v. 11, n. 11. 2016.

DINASTIA X 001. São Paulo: Panini Brasil, n. 01, Julho 2020.

DINASTIA X 006. São Paulo: Panini Brasil, n. 06, Maio 2021.

DUARTE, Geraldine. Realismo Clássico versus Realismo Estrutural: natureza


humana ou estrutura do sistema? Revista Científica do Departamento de Ciências
Jurídicas, Políticas e Gerenciais do UNI-BH. Belo Horizonte, vol. IV, n. 1. 2011.

WALTZ, Kenneth. Structural realism after the Cold War. International Security,
v.25, n.1, 2000.

WALTZ, Kenneth. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva Publicações,


2002.

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