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1. Desenvolvimento das funções urbanas
':: Não mais podemos imaginar que a estrutura física da cidade foi
- assim como não foram suas antigas fibras culturais - produto de um
crescimento inteiramente repentino. Essa suposição, natural quando
apenas as ruínas da Babilónia se achavam visíveis, foi desfeita pelo
descobrimento de uma cidade murada, com um santuário e um tipo
singularmente sutil da arte de retrato, numa das camadas mais baixas
de Jericó: muitos milênios antes de quaisquer restos conhecidos em
qualquer outra parte. As escavações revelaram a presença de grandes
depósitos para garantir um continuado suprimento de água, dando
ainda 4 SOO litros por minuto. As mais antigas casas descobertas têm
aposentos cujas formas arredondadas mostram os antigos elementos
(matriarcais) associados à domesticação.
Parece ser bem acentuada a possibilidade de ter grande parte da
carapaça física antecedido a instituição da realeza: é significativo não
ter sido a palavra "Lugal" (Grande homem, Rei) encontrada nos textos
protoletrados. Todavia, a transferência da ênfase do chefe para o rei,
assim como a passagem da cultura da enxada para a do arado, deve
ter-se dado no decorrer de um período bem longo, antes que a cidade
plenamente dimensionada surgisse afinal. Este derradeiro ato de or
ganização formal poderia ter ocorrido dentro de um espaço de tempo
tão reduzido quanto o que trouxe a evolução da pirãmide tumular do
Egito. Mas, tão logo as estruturas institucionais da cidade se haviam
cristalizado, sua forma ideal ou arquetípica sofreu surpreendentemen
te poucas alterações. Começando como uma concentração de força de
trabalho sob uma chefia firme, unificada c autoconfiante, a cidade an
j cestral foi, antes de tudo, um instrumento para a arregimentação de
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homens e para o domfnio da natureza, dirigindo a própria comunida
,
de para o serviço dos deuses.
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um individuo. Mas o que se acha curiosamente ausente em seu en nais permanentes era ainda mais evidente: para operar a distância, por
saio, que, por outra parte, é quase demasiado exaustivo, é uma com meio de agentes e prepostos, para dar ordens e fazer contratos, eram
preensão do fato de que é na cidade - e apenas nela, numa escala de necessários alguns artifícios extrapessoais. As mais antigas tabuinhas
tiva, com suficiente continuidade - que essas interações e transações, de Ur são meras listas e relações: registram quantidades de farinha,
cerveja, pão, gado, nomes de homens, os deuses de seus templos - sim
essas Se
proposições
o homem eantigo
respostas têm lugar. procurou romper os isola-
deliberadamente ples anotações de fato, que permitiam à comunidade manter-se a par
mentos e enquistamentos de uma comunidade por demais estabiliza das quantidades que poderiam, de outra maneira, ser incertas ou es
da, de costumes fixos e pouco disposta a abandonar suas felizes rotinas, capar à percepção.
dificilmente poderia c\e ter imaginado uma resposta melhor ao proble Felizmente, o controle de tais atividades, a ptincípio, esteve em
ma do que a cidade. O próprio erescimento desta dependia de trazer grande parte nas mãos de uma classe sacerdotal, livre da constante
alimentos, matérias-primas, habilidades e homens de outras comuni necessidade de trabalho manual c cada vez mais confiante nas funções
dades, quer pc\a conquista, quer pelo comércio. Ao fazer isso, a cidade mediadoras do espírito. Em graus progressivos de abstração e simbo
multiplicou as oportunidades de choque e estímulo psicológico. lização, tornou-se essa classe capaz de transformar o documento es
por essa razão, o estranho, o forasteiro, o viajante, o comercian crito num instrumento destinado a preservar e transmitir idéias, sen
te, o refugiado, o escravo e também até mesmo o inimigo invasor tive timentos e emoções que jamais haviam tomado qualquer forma visí
Na Odisséia, enumera Homero os forasteiros que mesmo uma comu Por meio de tais documentos, os governantes da cidade viviam
nidade mais simples "chamaria do exterior" - o "mestre de algum ofí uma múltipla vida: primeiro na ação, depois cm monumentos e inscri
cio, um profeta, um curador de doenças, um construtor, oU então um ções, c ainda outra vez no efeito dos acontecimentos documentados
admirável bardo". Em contraste com oS camponeses c chefes originá sobre o espírito dos povos posteriores, fornecendo-lhes modelos para
rios, são esses os novOS habitantes da cidade. Onde estavam ausentes, imitação, advertências de perigo, incentivos de realização. Viver pelo
a pequena cidade do campo permaneceu mergulhada num sonolento documento e para o documento tornou-se um dos grandes estigmas
da existência urbana: na verdade, a vida tal eomo era registrada - com
Durante grande parte da história urbana, as funções do recipiente
provincianismO. todas as suas tentações para a ultradramatização, a inflação ilusória e
continuaram mais importantes que as do ímã; com efeito, a cidade foi, a falsificação deliberada - muitas vezes tendia a se tornar mais impor
antes de tudo, um armazém, uma estufa e um acumulador. Foi por do tante que a vida tal como era vivida. Daí as perversões do monumenta
minar essas funções que a cidade serviu à sua função última, a função lismo, que ironicamente chegaram a seu ponto culminante pela jactân
transformadora. Por meio dos seus serviços municipais, as energias cia de Ozimandias. Essa tendência tem sido engrandecida em nossos
cinéticas da comunidade foram canalizadas para formas simbólicas ar dias, no cinema, no qual desempenhos fíctícios são encenados, antes
mazenáveis. A sociedade, como toda uma série de observadores tem ou depois do acontecimento real, a fim de deixar um documento "pre
notado, a partir de Augusto Comte até W. M. Wheeler, é uma "ativida ciso" para a posteridade.
de acumulativa": c a cidade tomOu-se o órgão essencial desse processo. O desenvolvimento dos métodos simbólicos de armazenagem
Não foi por acaso que o aparecimento da cidade como uma uni aumentou imensamente a capacidade da cidade como recipiente: a ci
dade contida em si mesma, com todos os seus órgãos históricos ple dade passou a não simplesmente manter junto um grande corpo de
namente diferenciados e ativos, coincidiu com o desenvolvimento do pessoas e instituições, maior que qualquer outra espécie de comuni
registro permanente, com glifos, ideogramas e escritas, com as primei dade, mas manteve e transmitiu uma porção de suas vidas maior do que
ras abstrações do número c doS sinais verbais. Pela época cm que isso as lembranças humanas poderiam transmitir pela palavra oral. Essa
aconteceu, o montante de cultura a ser transmitido oralmente achava-
A CiDADE NA HISTÓRIA A NATUREZA DA CiDADE ANTIGA 119
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to negativo, transmite às gerações posteriores inadaptações que pode da pela primeira vez na cidade ocorreu, em grande parte, graças a uma
riam ter sido lançadas fora, caso não se houvessem materializado na arrogação dos meios econâmicos de produção e distribuição, por uma
cidade, deixando nela a sua marca - assim como o próprio corpo trans pequena minoria, ligada ao templo e ao palácio. No épico da criação,
mite, sob a forma de uma cicatriz ou de uma erupção recorrente, algu Marduk observa a respeito do homem: "Seja ele onerado com o tra
ma dolorosa ofensa ou desordem ocorrida há muito tempo. Nossa ge balho dos deuses, para que possam estes livremente respirar." Estare
ração tem uma especial obrigação de reexaminar aquele resultado ur mos errando grandemente, se traduzirmos isso nestes termos: "Sejam
nossos súditos queimados com o labor diário, para que o rei e os sa
bano no pior dos ferimentos crõnicos - a guerra.
Sem dúvida, é da natureza dos bons recipientes não terem alte- cerdotes possam livremente respirar"?
rada a sua composição pela reação que se passa dentro deles; pois, se Esse pequeno grupo apoderou -se, sozinho, de fartos recursos,
os recipientes se alterassem tão rapidamente quanto o seu conteúdo, pois se considerava isento da obrigação de erguer ao seu próprio nível
ambos desapareceriam. Entretanto, se o recipiente urbano fosse por de a vida da maioria dos camponeses e artífices. Assumindo inicialmen
mais rigorosamente seletivo, perderia um dos seus atributos mais im te o controle dos poderes sagrados, na construção de santuários e na
portantes, a capacidade social, a facilidade para realizar a vida de várias elaboração do ritual, depois tornando secreto o registro permanente,
maneiras _ não venha, como disse o poeta vitoriano, "um bom costume ou melhor, as encantações mágicas, as notações matemáticas, as ob
servações científicas preservadas pelos documentos, o clero deu força
corromper o mundo" .
Assim, o vaso urbano que, falando em sentido figurado, pela pri- à autoridade real, que afora este tinha apenas o apoio da organização
meira vez conteve a cevada da Mesopotâmia haveria também de con burocrática e militar.
ter azeitonas atenienses, cerveja egípcia ou salsichas romanas. Às vezes, Muitas das mensagens codificadas no templo jamais passaram
a forma urbana abriu-se em fendas e ruiu; repetidas vezes, era lança- .1 além da abertura na qual foram lançadas: uma parte desse conheci
da ao chão e quebrada, espalhando-se o seu conteúdo, e danifican mento, que abrangia as propriedades dos sedativos e anestésicos, pro
do-se de maneira irrecuperável. Esse repetido dano provavelmente vavelmente foi perdida mais de uma vez, por causa do próprio sigilo
explica a relativa pobreza da invenção mecânica, exceto na guerra, tão empregado na sua transmissão; ao passo que a repetida destruição de
logo alvoreceu a Idade do Bronze. Mas, pelo menos até o século XVII, templos, nas guerras, causou danos muito piores que o de tão-somen
a cidade perdurou, sem qualquer mudança radical de forma: o mol- te apagar ou obliterar grandes obras de arte. Em conseqüência dessa
de no qual as atividades do "homem civilizado" se haviam resfriado combinação de sigilo na paz e destrutividade na guerra, grande parte
dos feitos da nova comunidade urbana foi insensatamente extermina-
e congelado.
120 A CIDADE NA HISTÓRIA
A NATUREZA DA CIDADE ANTIGA
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da, e uma parte ainda maior de seu potencial jamais chegou a se de
senvolver.
cidade. E o que começou como uma transformação em grande escala
Se alguma coisa prova que a cidade foi inicialmente um centro de
do ambiente passou a ser uma transformação do homem.
controle, muito antes de se tornar um centro de comunicação, as per Nem é preciso dizer que essa libertação da criatividade não foi
sistentes restrições exercidas à exténsão e comunicação do conheci uma das finalidades originais do agrupamento humano, nem ainda da
mento poderiam apoiar essa interpretação. Como nos Estados Unidos própria implosão urbana; e foi de forma apenas parcial e por movi
e na Rússia soviética de hoje, a grande função da cidadela era "guardar mentos súbitos que caracterizou o desenvolvimento da cidade. Ainda
os segredos oficiais". Esses segredos criavam uma lacuna entre os go hoje, apenas uma parte das energias totais da comunidade volta-se para
vernantes e os governados, quase os transformando em espécies bio a educação e expressão: sacrificamos muito mais às artes da destrui
lógicas diferentes; e foi somente depois que os próprios feitos da civi ção e extermínio que às artes da criação. Contudo, é graças à execução
lização foram chamados à baila, pela revolta popular, que uma parte de atas criadores, na arte, no pensamento, nas relações pessoais, que
desses segredos foi compartilhada. a cidade pode ser identificada como algo mais que uma organização
Existe um amargo lamento, a partir do primeiro grande levante puramente funcional de fábricas e armazéns, cavernas, tribunais, pri
popular egípcio, que revela a indignação das classes superiores, por sões e centros de controle. As torres e cúpulas da cidade histórica são
que as ordens inferiores haviam invadido seus recintos e não simples
lembretes daquela promessa ainda por ser cumprida. .
mente transformado suas esposas em prostitutas, mas, o que parecia
igualmente mau, capturaram os conhecimentos que lhes haviam sido
3. Exsudações culturais
sonegados. "Os escritos do augusto recinto [o templo] são lidos. (...) O
lugar dos segredos ... está [agora] desnudado. (... ) A magia está revela
da." (Advertências de Ipuver [2300-2050 a.c.?].) Até agora, tenho-me demorado na fase do monopólio do conhe
Todavia, as classes dominantes, no seu próprio monopólio dos cimento e do poder, origínariamente exercido pelos governantes da ci
processos criadores, haviam descoberto um princípio de importância dadela. Na verdade, porém, esse monopólio abrangia a maior parte
geral para o desenvolvimento humano. Esse princípio continua sendo das funções, que só vieram a ser tomadas e coletivamente distribuídas
apenas parcialmente compreendido e intermitentemente aplicado ain pela municipalidade depois de muitos milhares de anos. A isso poder
se-ia chamar a lei da exsudação cultural.
da hoje. Refiro-me ao emprego da deliberada sonegação e retiro, para
penetrar no ciclo puramente repetitivo do nascimento, nutrição e re No corpo da guarda da cidade encontramos o primeiro exército e
produção ou da produção, troca e consumo. Embora grande parte dos os primeiros oficiais de polícia; e, embora não possamos identificar os
excedentes produzidos na sociedade urbana fosse desperdiçada com edifícios separados, até uma data posterior, ali também encontramos
um extravagante consumo e atas ainda mais extravagantes de destrui o primeiro alojamento para aqueles funcionários militares, a caserna.
ção militar, uma parte considerável destinou-se ao lazer, ao tempo Ademais, ali encontramos o primeiro ministério do exterior, a primei
sem finalidade, libertado da rotina diária, dedicado à contemplação da ra burocracia, o primeiro tribunal de justiça (no portão do palácio) e
natureza e à disciplina do espírito humano. - igualmente, no lugar onde se ergue o templo, o primeiro observatório
Enquanto o revestimento exterior da cidade crescia, por assim di astronômico, a primeira biblioteca, a primeira escola e universidade e,
zer, seu interior igualmente se expandia: não somente seus espaços não menos, o primeiro "teatro". Tudo isso floresceu na cidadela, antes
interiores, dentro do recinto sagrado, mas sua vida interior. Os sonhos que houvesse quaisquer equivalentes municipais independentes, dis
transbordavam daquele interior e tomavam forma; as fantasias se trans pondo de um domínio maior no qual trabalhar, ou que ao menos se
pensasse em participação democrática.
formavam em drama e o desejo sexual florescia em forma de poesia,
dança e música. Dessa forma, a própria vida tornou-se uma expressão Esse monopólio real aplicava-se a muitas inovações técnicas que
coletiva de amor, desligada das urgências da reprodução social. Ativi apareceram na cidadela, muito antes de se propagarem pelo resto da
dades que brotavam para a vida apenas em ocasiões festivas, em co cidade. Foi na cidadela que, pela primeira vez, apareceram edifícios ii
munidades mais rudes, passaram a fazer parte da existência diária da prova de fogo, construídos de materiais permanentes; assim, também,
o calçamento. Foi ali, numa ou noutra região, que, antes de 2000 a.c.,
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construíram-se esgotos, condutos de água corrente, banheiras, latri 4. Divisão urbana do trabalho
nas, aposentos privados para dormir; e era no recinto do palácio, nu
ma época em que o resto da cidade se tinha tomado uma compacta Embora apliquemos termos tais como caçador, mineiro, pastor,
massa de casas, densamente ocupadas, que o rei e sua corte gozavam camponês aos grupos da Idade da Pedra, nisto estamos realmente
do que ainda é o maior e mais aristocrático dos luxos urbanos - uma transferindo um costume urbano posterior a uma fase anterior do de
amplitude de espaços abertos a se estender além da própria moradia, senvolvimento humano. Se pudéssemos recapturar a mentalidade dos
em jardins e lugares de prazer, algumas vezes constituindo todo um povos antigos, provavelmente verificaríamos que eles próprios se con
quarteirão de vilas destinadas aos nobres e altos funcionários. sideravam simplesmente homens que pescavam, lascavam a pedra ou
Até mesmo os ofícios industriais urbanos deveram sua existência, cavavam, conforme o momento e o lugar pudessem exigir. Que deves
em medida não pequena, ao patrocínio do rei, fato antigo ainda sim sem caçar ou Cavar todos os dias, confinados a um só local, desempe
bolizado na Inglaterra pela legenda "Por determinação de Sua Majes nhando um único trabalho ou uma única parte de um trabalho, difi
tade a Rainha". Foram as expedições reais de assalto que, pela primei cilmente poderia ter-lhes ocorrido como um modo de vida imaginável
ra vez, proporcionaram os frutos do comércio, por um processo unila ou tolerável. Mesmo em nossa época, os povos primitivos de tal modo
teral de colher matérias-primas: por ordem real, faziam-se armaduras, desprezam essa forma de trabalho, que seus exploradores europeus
forjavam-se armas, construíam-se carros. Às esposas e concubinas do foram forçados a utilizar toda espécie de chicana legal para conseguir
rei e aos nobres como ele, os ourives e joalheiros pela primeira vez de seus serviços.
dicaram suas artes. Quando, milhares de anos depois, introduziu-se A própria noção de uma divisão definida do trabalho, de fixação de
na Europa a fina porcelana chinesa, não foi por acaso que o novo pro muitas atividades naturais numa única ocupação de vida, de confina
duto passou a ser fabricado em fábricas reais de porcelana em Sevres, menta a um único ofício, data provavelmente, como indica Childe, da
Dresden, Meissen, Copenhague. A produção industrial teve início com fundação da cidade. O homem urbano, por essa vasta expansão cole
os artigos para a corte, e a própria produção em massa começou não tiva do poder e controle do ambiente, pagou com uma contração da
com os bens necessários, mas com as imitações baratas dos produtos vida pessoal. A antiga comunidade da Idade da Pedra, penetrando na
de luxo da classe superior, como as jóias de Birmingham, no século cidade, íoi desmembrada em dezenas de partes: castas, classes, profis
XVIII, ou os automóveis do século XX. sões, ofícios, artes.
Esses fatos a respeito das origens da cidade propriamente dita, Conforme se pode admitir, a primeira prova de especialização e
dentro da cidadela ou "pequena cidade", parecem essenciais para um divisão do trabalho talvez remonte à época paleolítica, nos poderes es
retrato completo das suas funções e finalidades. Em jargão econômi peciais exercidos pelo mágico ou chefe do ritual; e isso pode ter ocor
co comum, a cidadela serviu como o plano piloto inicial da cidade; e rido numa época em que talvez houvesse também alguma especiali
isso explica o fato de que tantas características tanto da cidade quan zação ocupacional entre aqueles que se dedicavam à mineração ou a
to do Estado, hoje em dia, guardem a marca de antigos mitos e mági lascar a pedra. Hocart sugeriu que a divisão do trabalho foi, originaria
cas aberrações, de obsoletos privilégios e prerrogativas, originariamen mente, a divisão hereditária das funções do ritual; e como os povos
te baseados nas pretensões reais: é testemunha disso o mito da sobe primitivos consideram o ritual como não menos importante que o tra
rania absoluta. Felizmente, ao unir a aldeia e a cidadela, o templo e o balho, ou melhor, como a forma de trabalho mais eficaz, não há neces
mercado, a cidade apoiava-se ainda nos fundamentos morais da al sidade de presumir que as duas formas de especialização se excluís
deia: os hábitos de trabalho regular e colaboração diária numa tarefa sem; pelo contrário, deveríamos esperar que se misturassem e confun
comum, a alimentação, reprodução e consagração da vida. O próprio dissem' assim como os ritos mágicos da fertilização se misturavam com
santuário da aldeia jamais foi completamente absorvido pelo centro a prática da semeadura e a irrigação das colheitas.
cerimonial principal, pois cultos e santuários subordinados formaram Antes mesmo que a cidade tomasse forma, deve ter havido algu
o núcleo das paróquias dos templos, na Mesopotâmia. Em Khafaje, ma fixação em castas e ocupações especiais, por meio da transmissão,
encontraram os arqueólogos um desses distritos de vizinhança, com dentro de determinada famnia, do conhecimento secreto de proces
seus caminhos a convergir na direção do templo. sos ou habilidades ancestrais. Mas os primeiros verdadeiros especia-
A CIDADE NA HISTÓRiA A NATUREZA DA CIDADE ANTIGA 125
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listas urbanos foram, provavelmente, os membros dos grupos arma ocupacionais e deformidades, comparando-as com as oportunidades
dos de caça, que desdenhavam do trabalho manual repetitivo cotidia oferecidas pela profissão do escriba, que vivia tranqüilamente e se mis
no, e dos guardiões do santuário, que provavelmente eram isentos dos turava com os grandes.
ofícios tnanuais. Na cidade, foi possível, pela primeira vez, desempenhar, uma vida
Nas antigas comunidades, o próprio trabalho é uma atividade de inteira, uma ocupação fracionária: o trabalhador era uma peça substi
tempo parcial, impossível de segregar completamente das outras fun tuível e uniforme, numa complexa máquina social, fixada na mesma
ções da vida, como a religião, o jogo, o intercurso comunal, a própria posição, repetindo as mesmas operações, confinada dentro do mesmo
sexualidade. Na cidade, o trabalho especializado passou, pela primei local, durante toda a sua vida. Petrie assinala que, mesmo fora da cida
ra vez, a ser uma ocupação de todos os dias, durante o ano inteiro. Em de, no domínio da mineração "sabemos, pelos documentos junto das
conseqüência, o trabalhador especializado, passando a ter a mão, ou o múmias, o quanto o trabalho era minuciosamente subdividido. Cada
braço ou a visão muito ampliada, ganhou excelência e eficiência, num detalhe era atribuído à responsabilidade de um indivíduo; um homem
grau impossível de alcançar, exceto por meio de tal especialização; fazia prospecções, outro experimentava a pedra, um terceiro tinha a
perdeu, porém, o alcance da vida como um todo. Esse sacrifício foi um seu cargo os produtos. Há mais de 50 diferentes qualidades e graus de
dos descaminhos crõnicos da civilização: tão universal que se tornou oficiais e trabalhadores, enumerados nas expedições de mineração".
urna "segunda natureza" do homem urbano. A bênção de uma vida Essas divisões se achavam incrustadas na própria natureza da ci
variada, plenamente humanizada, libertada das compulsões ocupacio dade, pois era apenas por sua capacidade de mobilizar e distribuir a
nais, íoi monopolizada pelas classes dominantes. Os nobres reconhe força de trabalho que essas operações entrelaçadas poderiam ser de
ceram isso c, em mais de uma cultura, reservaram para si mesmos o tí sempenhadas em todas as partes da vida econõmica. Pelo tempo em
tulo de 'verdadeiros homens". que Heródoto visitou o Egito, no século V a.c., a divisão geral do tra
Desde Adam Smith, toda gente tem plena consciência dos ga balho e a divisão minuciosa em especialidades tinha alcançado um
nhos em produtividade que o trabalho especializado assegurava, mui ponto comparável àquele a que de novo chegou em nossa própria
to antes da invenção de máquinas complexas. O fato de que a cultura época; isto porque ele assinala que" alguns médicos são para os olhos,
urbana desenvolveu tal especialização não foi a menor razão para o outros para a cabeça, outros para os dentes, outros para o ventre e ou
acúmulo de capital e a elevação de renda que acompanharam o cres tros para os distúrbios interiores".
cimento da cidade, antes que houvesse quaisquer avanços compará Assim, enquanto a nova forma urbana ajuntava ou unia, em coo
veis na invenção mecãnica. Ao passo que muitos dos habitantes das peração e integração, um grupo de pessoas maior do que jamais tinha
antigas cidades trabalhavam nos campos dos templos ou tinham fa existido em qualquer outro lugar, dividia-o também em correntes ni
zendas contíguas, uma crescente proporção da população praticava tidamente separadas, cada qual profundamef\te colorida com suas tin
outros ofícios e profissões, primeiro como criados do templo, depois tas ocupacionais. A totalidade do sistema de especialização do traba
como artífices de tempo parcial ou integral, trabalhando diretamente lho foi levada às raias da caricatura na índia, em que as castas e mes
sob encomenda ou para o mercado. mo as minúsculas divisões dentro das castas se tornaram hereditárias;
Na chamada "Sátira das Profissões", que talvez remonte ao se mas, ao tempo de Platão, essa divisão tomara-se tão arraigada no pen
gundo milênio a.c. no Egito, o autor menciona cerca de 18 diferentes samento que, como a própria escravidão, era considerada quase como
profissões, além da sua própria, a de escriba - mas omite as profissões uma realidade da natureza. Toynbee caracteriza a casta e a especializa
mais elevadas, o sacerdote, o soldado, o médico, o arquiteto, que de ção vocacional como traços marcantes da "civilização interrompida";
vem ter sido respeitosamente encaradas como inteiramente acima da em vários graus, porém, essa interrupção caracteriza todas as comuni
crítica ou do denegrimento; pois, na verdade, era, em parte, para ter o dades urbanas. Ainda hoje, muitos povos continuam incapazes de ima
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privilégio de ver tais augustas figuras que dava valor à profissão que ginar qualquer novo desenvolvimento urbano além deste. Libertados
qi" ele próprio seguia. As profissões que o escriba menciona variam do do trabalho físico pelas máquinas au tomáticas, os homens ainda apli
barbeiro ao embalsamador, do carpinteiro ao remendão e ao curtidor cariam as mesmas fixações e limitações vocacionais aos esportes, jo
"I de couro; e, em cada caso, acentua suas dificuldades, suas inabilidades gos, estudos, ciências.
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A estratificação ocupacional e de castas produziu, na cidade an paradas, ampliadas e segregadas em prédios e bairros definidos da ci
tiga, uma pirâmide urbana que tinha seu pico no governante absolu dade. A estalagem, a taverna, o mercado, o templo, a escola, o bordel,
to: rei, sacerdote, guerreiro, escriba formavam o ápice da pirâmide; mas tudo isso estaria sob os auspícios de profissionais de tempo integral.
;'1 apenas o rei, no ponto mais alto, recebia a plenitude dos raios do sol. Nesse sentido, a cidade tornou-se uma moradia coletiva ampliada. A
Abaixo dele, as camadas ampliavam-se em mercadores, artífices, cam par dessa diferenciação, deu-se um certo retiro: todas as funções ne
poneses, marinheiros, criados de casa, libertos, escravos, situando-se a cessárias, mesmo as corporais, ganharam uma forma jovial, tornando
camada mais baixa nas sombras perpétuas. Essas divisões eram distin se procuradas e prolongadas mais pelas ocasiões sociáveis que pro
guidas e aguçadas pela propriedade ou falta de propriedade, em vários porcionavam do que pelas suas finalidades práticas.
graus; e eram expressas ainda no traje, nos hábitos de vida, nos ali Essa abstração de funções especializadas e diferenciadas em re
rncntos, na moradia. lação à matriz da vida comum foi incentivada pela introdução da es
A segregação das funções econâmicas e dos papéis sociais, por crita e do dinheiro; isso porque, com o desenvolvimento do comércio
sua vez, criou recintos equivalentes dentro da cidade: não menos - se a longa distância, todos os variados valores humanos que tinham sido
[1 não em primeiro lugar -, o mercado. Se o templo local era o ímã para expressos apenas em termos de vida imediata íoram traduzidos num
os moradores de toda uma vizinhança, haveria também uma muralha
meio neutro, que poderia ser objeto de troca, armazenagem e uso
ocupacional, parcialmente visível, identificável pelos tipos de casas e como fonte de poder, para comandar o trabalho de outros homens.
destinada a servir de envoltório de classes. Essa prática perdura hoje Originariamente, as principais formas de civilização urbana po
no espontâneo agrupamento de todas as ocupações, mesmo sem a dem ter começado no templo, com o primeiro crescimento da racio
pressão de qualquer ordenação municipal de zoneamento. Assim, na nalização e regimentação naqueles bairros sagrados. A própria prosti
Filadélfia, a cidade onde atualmente me encontro escrevendo estas tuição possivelmente deriva-se do emprego de sacerdotisas nos ritos
palavras, os médicos congregam-se numa pequena área cujo eixo é de fertilidade, pois o costume da prostituição no templo não tem sido
Spruce Street, ao passo que os agentes de seguros enchem todo um apenas preservado até os nossos dias, em países como a Índia, mas os
quarteirão entre Independence Hall e a zona de cereais por atacado. templos das deusas do amor, lstar, Afrodite, Vênus, Isis, eram, tradicio
"Harley Street", "Madison Avenue", "State Street" são expressões nalmente, os lugares favoritos para o encontro de amantes. A prosti
abreviadas não só de ocupações mas de todo um modo de vida que in tuição no templo escandalizou Heródoto, pois, na Babilânia, parece
dividualizam. Roma e Antióquia, sem dúvida, e provavelmente Nínive ter exigido a conscrição de todas as mulheres, inclusive as casadas,
e Ur, tinham seus equivalentes. pelo menos por um dia do ano; e as conscritas mais feias eram obri
A divisão do trabalho e a segregação de funções anteciparam a gadas a permanecer dentro do templo, indefinidamente, até que al
economia monetária: num sentido, constituíram uma ampliação da guém delas se apiedasse e com elas se deitasse.
prática do sacrifício, no abandono ou adiamento de uma variedade de Tudo isso acentua as características mais gerais da cidade: a ma
funções e da livre troca de papéis, a fim de se concentrar numa única neira pela qual dava ela uma forma especializada, abstrata, profissio
atividade, para benefício do rei, do deus e da cidade. Não importa seja nal, coletiva às necessidades humanas a cuja satisfação, até então,
:;
ou não a prostituição a mais antiga profissão do mundo, é notável que ninguém jamais pensara dedicar uma vida inteira.
as especialistas nos jogos sexuais fizessem seu aparecimento tão cedo Ora, aqui devemos mais uma vez assinalar o papel contraditório
nos textos que dizem respeito à vida urbana. Lemos que, enquanto e ambivalente desempenhado pela cidade. Biologicamente, o homem
"Gilgamesh convocava os artífices, os fabricantes de armaduras", Istar se desenvolvera mais do que as outras espécies porque permanecera
reunia" as vendedeiras de prazer e as meretrizes dO templo". não especializado - onívoro, com liberdade de movimentos, "destro",
Essa prematura especialização sexual dá a entender que, nas ci onicompetente e, contudo, sempre um tanto malformado, incomple
dades antigas, pode ter havido um número desproporcional de ho to, nunca se adaptando plenamente a qualquer situação única, muito
mens solteiros; mas também mostra um processo mais geral, pelo qual embora esta pudesse durar tanto tempo quanto a última Idade Gla
as funções que outrora se achavam unidas na moradia de aldeia - dor cial. Em vez de dificultar suas atividades pela produção de órgãos es
mir, beber, comer, conversar, copular, educar - com o tempo foram se- pecializados, destinados a assegurar uma adaptação cfetiva, o homem
A CIDADE NA HISTORIA A NATUREZA DA CIDADE ANTIGA 129
128
urbano. Não admira que Sir Mortimer Wheeler exultasse, quando afi Benares, poderiam produzir pelo menos 50 espíritos exeepcionais numa
única existência; e esses espíritos, dada a própria intimidade da comu
nal identificou o grande celeiro da cidadela de Mohenjo-Daro: porque
os guardiões do celeiro, com o apoio de uma soldadesca armada, ti nicação urbana, seriam abertos a uma variedade muito maior de desa
fios e sugestões do que se aparecessem numa comunidade menor.
nham poderes de vida e morte sobre toda a comunidade. Não era sem
razão que aquele grande armazém se achava dentro das pesadas mu Finalmente, se o homem urbano subdividido, ou Teilmellsch, pre
judicou a integridade inconsciente do tipo mais simples de aldeia, pelo
ralhas da cidadela, protegido contra os habitantes da cidade.
Que teria tomado a divisão do trabalho, apesar de todas as suas menos indiretamente conseguiu um novo senso da personalidade in
dividual, a emergir da crisálida da tribo, do clã, da família e da aldeia,
qualidades limitadoras da vida, tolerada, ainda que não inteiramente
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Isso porque, no pólo oposto ao especialista vocacional, levantava-se cidade. O poder e a propriedade tinham, não premeditadamente, pre
agora uma pessoa individual, no papel do próprio monarca: o Faraó do parado um ninho para a personalidade. E, com o tempo, a personali
Egito ou o Lugal da Suméria. Na base, poderia haver escravidão e dade haveria de solapar suas infladas pretensões e exigências.
.,! compulsão; mas, no topo - por muito tempo, apenas no topo -, havia
liberdade, autonomia, escolha, tudo isso a emergir dos atributos da
( personalidade, coisa dificilmente possível num regime baseado na 6. Ritmo de desenvolvimento
coesão da família e na unanimidade tribal.
O fiaI real. como mostrou Frankfort, deu às ações de toda uma É possível que grupos de organismos ocupem um ambiente co
comunidade os atributos de uma pessoa integrada: a boa disposição mum e façam uso das atividades uns dos outros, sem que nenhum
de assumir riscos, de fazer escolhas, de perseguir metas distantes e organismo alcance seu pleno desenvolvimento ou chegue às suas po
difíceis. Fossem quais fossem as privações e dificuldades impostas tencialidades máximas de desenvolvimento. Na verdade, podem viver
pela organização urbana em larga escala, o membro mais mesquinho juntos por longo tempo, enquanto sofrem uma continuada deterio
,i
da comunidade participava, ricamente, na ampliação das funções do ração, assinalada por deformações físicas, redução da resistência às
rei e na contemplação de atributos ainda mais divinos, nos quais, doenças e um período de vida reduzido. A sobrevivência, por si mes
como cidadão de uma cidade não desprezível. também ele tinha par ma, nada indica a respeito do desenvolvimento ou posição do organis
te. Naquele sentido, a cidade inteira pertencia até ao mais humilde mo que sobrevive.
dos habitantes. Na formação original da cidade, a simbiose positiva da comuni
No rei, repito, a pessoa emergiu pela primeira vez, numa posição dade de aldeia neolítica foi, em grande parte, substituída ou pelo me
de responsabilidade superior ao grupo, destacada da matriz comunal. nos solapada por uma simbiose negativa apoiada na guerra, na explo
Com a ascensão da cidade, o rei passou a encarnar uma nova idéia de ração, na escravização, no parasitarismo. A primeira havia alcançado a
desenvolvimento humano e a cidade tomou-se nada menos que a cor estabilidade num equilíbrio guardado de maneira por demais firme
porificação personificada dessa idéia em evolução. Um a um, os privi para permitir o crescimento. Com a introdução dos elementos preda
légios e prerrogativas da realeza foram transferidos à cidade e a seus tórios-parasitários na comunidade urbana em formação, começou a
cidadãos. Milhares de anos foram necessários para efetuar essa mu existir um novo estímulo ao crescimento, que explica o exagerado au
dança; e, pela época em que foi consumada, os homens tinham esque mento de todas as funções da cidadela. Mas os próprios meios de al
cido onde e como havia começado. cançar esse crescimento orientaram a comunidade para o sacrifício,
Assim, a cidade passou a ser um ambiente especial. não apenas para a constrição da vida e para a prematura destruição e morte.
para suportar reis, mas para fazer pessoas: seres que eram mais plena O fato é que o parasitarismo praticado pelos governantes da ci
mente abertos à realidade do cosmo, mais prontos a transcender às dade aumentou, tornando-se cada vez mais exorbitante com a sua
exigências da sociedade e do costume tribal, mais capazes de assimilar exigência de riqueza e poder visível; em vez de submeter essas pre
valores antigos e de criar novos, de tomar decisões e seguir direções tensões ao ordálio da realidade e de compartilhar com seus concida
novas, do que seus iguais em situações limitadas. A primeira prerrogati dãos uma parte maior dos bens que monopolizavam, fizeram eles au
va real passada, de modo um tanto relutante, aos demais membros da mentar suas exigências, além da possibilidade de serem localmente
comunidade foi a imortalidade, conforme a concebiam os egípcios; mas, executadas.
com o tempo, seguiram-se outros atributos. Essas imposições não poderiam ser enfrentadas apenas pela am
No fim, a própria cidade tomou-se o principal agente da transfor pliação da área da exploração: de tal sorte que o crescimento das gran
mação do homem, órgão da mais plena expressão da personalidade. des capitais, como Nínive, Babilônia e Roma, somente foi efetuado
Na cidade, penetra uma longa procissão de deuses: dela saem, a lon pelo alargamento das dimensões do interior tributário e pela introdu
gos intervalos, homens e mulheres, à vontade em seu mundo, capazes ção de uma simbiose negativa, baseada na aterrorizada expectativa de
de transcender às limitações de seus deuses. Mas não foi pensando nes destruição e extermínio.
sa possibilidade final que os homens originariamente deram forma à "É perfeitamente claro", observa Contenau, "que a imensa rique-
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za dos impérios assírio e babilónico, para não mencionar qualquer ou
tro, dependia em grande parte da instituição da escravidão." Da mes venções técnicas, ao passo que as culturas mais criadoras transmudam
ma forma, deve ser igualmente claro que essa riqueza teria sido muito Suas energias em formas mais elevadas e mais refinadas; de tal sorte
que até mesmo seus aparelhos técnicos tornam-se progressivamente
desmaterializados, reduzidos em volume ou peso, simplificados em
maior, e muito mais durável o poder exibido, se os governantes desses
serto, O Bem e o Mal. Essas maquinações e lutas apareceram pela pri pelo próprio artifício do costume e do cenário, pois o próprio cenário
meira vez, provavelmente, como impulsos e desejos inconscientes, an amplia a voz e aumenta a estatura aparente dos atores. Essa vida ur
tes de encontrarem na cidade um teatro de ação. bana, por mais pesadamente comprometida com o ritual, ainda é
O aspecto lúdico desta luta jamais foi completamente absorvido cheia de novas situações, para as quais a sabedoria proverbial e as rea
pela aparelhagem económica e política da cidade, de tal sorte que as ções que o tempo consagrou já não são adequadas. Se retraçarmos su
provas atléticas e gladiatórias existiam ao lado das lutas mais agressi ficientemente os componentes desse drama, verificaremos que cada
vas pelo poder; não tanto uma sublimação dos impulsos agressivos um deles, e não apenas o teatro, deriva-se da religião; e, assim como
quanto um adestramento preparatório mais inocente na arte, como no os primeiros concursos registrados eram os dos deuses e heróis, assim
brinquedo de bonecas de uma menina. Formar um círculo de especta também os próprios primeiros dramas bem definidos eram desempe
dores ao redor dos atares, num concurso, era provavelmente a primei nhados no templo.
ra função do ágora ou do fórum; e a prática de realizar tais concursos Situação, argumento, conflito, crise, resolução - em tais termos o
foi passada a cidades posteriores. Na Atenas do século V, a eclésia, drama representado traduz, na nova vida vivida na cidade e no refle
!!. mostra W. S. Ferguson, era um grande"agon" ou concurso de estadis xo do símbolo, as tensões e excitções daquela vida que, por sua vez,
assumem um significado maior. A medida que o elenco de persona
tas: e havia concursos de oleiros, como nos informam os orgulhosos
gens se tornava mais extenso, o argumento passava a ser mais denso,
dizeres de uma pedra tumular, bem como concursos de criadores de
e o resultado a ser cada vez menos previsível.
cavalos, cantores, companhias militares, compositores e dramaturgos.
A "reedificação do homem foi obra da cidade". Essa observação
A prática de escolher líderes e "tomar partido" foi uma das primeiras
de Robert Redfield, sábio estudioso das culturas de folk mais primiti
formas de diferenciação social. A cidade aumentou de muito esse pro
vas, vai mais a fundo do que a maior parte dos sociólogos e psicólo
cesso e multiplicou suas ocasiões. gos, com exceção de J. L. Moreno, usualmente tem admitido. As co
Afora o texto do "mistério" representado em Abidos, entre os munidades primitivas certamente refizeram o homem; mas, uma vez
mais antigos textos literários urbanos que encontramos acham-se os que tinham encontrado seu molde especial, comum para o todo, pro
dos sumérios, simples disputas entre personagens opostas, o preto e curaram prejudicar ou circunscrever novas mudanças. Na cidade, pelo
branco elementar tanto do drama quanto da dialética primitiva: dispu contrário, a formulação e reformulação das identidades é uma das
tas entre o Verão e o Inverno, entre o Arado e a Picareta, entre o Zagal funções principais. Em qualquer direção, cada período urbano propor
e o Agricultor. Com a autoconsciência urbana, ocorre também um sen ciona uma multidão de novos papéis e uma diversidade igual de no
tido mais agudo das diferenças, inicialmente expressas em grossos vas potencialidades. Tais coisas produzem mudanças correspondentes
contrastes, mas, por fim, em todos os finos matizes e incisivas linhas no direito, nas maneiras, nas avaliações morais, no costume c na ar
que compõem o "caráter", parcialmente formado pelo papel, parcial quitetura, e finalmente transformam a cidade numa totalidade viva.
mente por intermináveis variações individuais sobre o tipo comum. Tal individuação do caráter, com sua supressão da máscara tribal
Ao lado disso, talvez ocorra um gosto maior ainda pelo próprio ou comunal, corre ao lado do desenvolvimento de outras funções su
combate, isto é, o confronto e luta de homem contra homem, como a periores' pois não é apenas a inteligência que é incentivada pela ob
própria essência da existência urbana; e, ao lado dessa tensão maior, servação sistemática e pela documentação, mas os sentimentos são
ocorria uma agressividade mais violenta, de tal sorte que os adversá moderados e as emoções refinadas e disciplinadas pelo seu constante
rios dirigem insultos um ao outro e fazem juramentos que seriam tra intercurso com os de outros homens, tendo por fundo um cenário de
tados como ofensas mortais, não fosse o sentido salvador do próprio arte. Aqui, pela ação e participação e ainda pelo retiro e reflexão, o ho
drama - o de que tudo isso faz parte do papel, que á vida representada mem urbano pode dar a uma porção maior da vida o benefício de um
é uma espécie de faz-de-conta. Na medida em que a cidade desem jogo continuado do espírito e da mente coletiva. O que começou como
penha suas funções essenciais, mantém as lutas e tensões dentro de li uma luta exterior contra forças naturais hostis vem a culminar num
mites e engrandece o seu significado. drama interior cuja 1 ,"solução não é qualquer vitória psicológica mas
A cidade antiga é, pois, acima de tudo, um teatro, no qual a pró uma compreensão mais íntima de si mesmo e um desenvolvimento
pria vida comum adquire os caracteres de um drama, engrandecidos interior mais rico.
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As rotinas cotidianas da cidade, o trabalho da casa, o ofício, a pro de deixou de ser uma comunidade de mente inteiramente igual, intei
fissão, podem ser desempenhados quase em qualquer parte: mesmo ramente obediente a um controle central. "Uma cidade que é de um
quando assumem uma forma altamente especializada, podem funcio homem apenas não é cidade" - diz Haemon em Alltígolla, de Sófocles.
nar num enclave independente fora da cidade - assim como tantas Somente onde as diferenças são estimadas, e tolerada a oposição, pode
grandes organizações semifeudais têm começado de novo a fazer em a luta ser transmudada em dialética: assim, em sua economia interna,
nossos dias. Mas apenas numa cidade todo um elenco de personagens a cidade é um lugar - desviando um pouco as palavras de Blake _ que
para o drama humano pode ser reunido: por isso, apenas na cidade há deprime o corpóreo e promove a guerra mental.
suficiente diversidade e competição para tomar mais leve o argumen Essa função mental especial da cidade foi colocada com conci
to e trazer os atores até o ponto mais alto da participação hábil e in são clássica por aquele hábil observador de cidades, o elisabetano John
tensamente consciente.
Stow: "Os homens, por essa proximidade de conversação, são afasta
TIrem-se as ocasiões dramáticas da vida urbana, aquelas que se
dos da bárbara ferocidade da força, para certa brandura de maneiras e
dão na arena, no tribunal, no julgamento, no parlamento, no campo
para a humanidade e a justiça, ao passo que se dão por satisfeitos em
de esportes, na reunião do conselho, no debate, e metade das ativida
dar e tomar o que é certo, para e de seu iguais e inferiores, e em ouvir
e obedecer a seus chefes e superiores."
des essenciais da cidade desapareceriam e mais que metade de seus
E se as facilidades que oferece ao diálogo e ao drama, em todas
significados e valores seriam postos de lado, senão anulados. Do ritual
as suas ramificações, constituem uma das forças essenciais da cidade,
e da ação dramática, em todas as suas formas, emergiu algo de mais
então uma das chaves do desenvolvimento urbano deve estar eviden
importante ainda; nada menos que o diálogo humano. Talvez a melhor
te: acha-se ela no alargamento do círculo daqueles que são capazes de
definição da cidade, em seus aspectos superiores, é a que diz ser ela o
tomar parte nele, até que, por fim, todos os homens participem da
lugar destinado a oferecer as mais amplas facilidades de conversação
conversa. Neste processo, os papéis originais, talhados para os homens
significativa.
da cidade, com uma existência dedicada a uma função única, devem
O diálogo é uma das expressões mais importantes da vida na ci
ser reconhecidos pelo que sempre foram: limitações do alcance e sig
dade, delicada flor de seu longo crescimento vegetativo. Certamente, nificado total do drama humano, bloqueios institucionais do desen
o diálogo desenvolveu-se com dificuldade, se é que se desenvolveu, na
'I volvimento livre e pleno da personalidade. Ao submeter-se muito
cidade antiga, pois as primeiras comunidades urbanas eram baseadas mansamente a essa limitação, o homem do Velho Mundo deixou aos
antes no monólogo do poder; e, depois que a imposição sacerdotal ou seus sucessores de dias mais tardios uma tarefa por terminar.
o comando real se haviam adiantado, não era prudente revidar. Não é por acaso, pois, que mais de uma cidade histórica alcançou
Na realidade, foi o diálogo o primeiro passo desde aquela confor seu ponto culminante no diálogo que resume sua experiência total da
midade tribal que constitui um obstáculo tanto à consciência de si vida. No Livro de Jó, vê-se Jerusalém; em Platão, Sófocles e Eurípides,
mesmo quanto ao desenvolvimento. Ganhando confiança graças ao Atenas; em Shakespeare e Marlowe, Dekker e Webster, a Londres eli
número, o diálogo desafiava a mortal unanimidade promovida pelo sabetana. Num sentido, o diálogo dramático é, ao mesmo tempo, o
absolutismo centralizado. A "Queixa do Camponês Eloqüente" egíp símbolo mais pleno e a justificação final da vida na cidade. Pela mesma
cio pode não ter sido repetida muitas vezes: mas esse primeiro revide razão, o símbolo mais revelador do fracasso da cidade, da sua própria
provocou uma mudança tão inesperada de atmosfera que a história foi inexistência como personalidade social, é a ausência do diálogo - não
copiada e contada por milhares de anos, quando menos porque ante necessariamente o silêncio, mas igualmente o som ruidoso de um coro
cipava o advento de um diálogo autêntico e mais universal. que pronuncia as mesmas palavras, num conformismo acuado embora
Como tantos outros atributos emergentes da cidade, o diálogo complacente. O silêncio de uma cidade morta tem mais dignidade que
não fazia parte de seu plano ou funcionamento original, mas tomou os vocalismos de uma comunidade que não conhece nem o retiro nem
se possível pela inclusão de diversidades humanas dentro do anfitea a oposição dialética, nem a observação irõnica nem a disparidade esti
tro urbano fechado. Isso transformou o diálogo em drama. Pelo pró mulante, nem um conflito inteligente nem uma resolução moral ativa.
prio crescimento de suas ocupações e caracteres diferenciados, a cida- Semelhante drama está destinado a ter um fatal último ato.