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A CIDADE GENÉRICA

1.Introdução 1.1. Será a cidade contemporânea como


II I .roporto contemporâneo «igual a todos os outros»?
',i I possível teorizar esta convergência? E em caso
rll 11mativo, a que configuração definitiva aspira? A con-
VI I gência é possível apenas à custa do despojamento
til identidade. Isso é geralmente visto como uma per-
li/I. Mas à escala em que isso acontece, tem de signi-
111:malgo. Quais são as desvantagens da identidade
li, Inversamente, quais as vantagens da vacuidade?
I 11 esta homogeneização aparentemente acidental
I) eralmente deplorada- fosse um processo inten-
r lon l, um movimento consciente de distanciamento
Ilrl diferença e aproximação da semelhança? E se esti-
vuun s a assistir a um movimento de libertação glo-
11111:
«abaixo o ca-rácter!» O que resta se removermos
ri 111ntidade? O Genérico? 1.2. Na medida em que a
I1I111Lidade deriva da substância física, do histórico, do
I 11111
xto e do real, de certo modo não consegu i mos
1111
Iginar que algo contemporâneo -feito por nós-
1111111
ibua para ela. Mas o facto do crescimento hurna-
1111
li r exponencial implica que o passado se tornará
1111cJ do momento demasiado «pequeno» para ser

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habitado e partilhado por aqueles que estão vivos. Nós londres -cuja única identidade é a falta de uma
mesmos o esgotamos. Na medida em que a história Id ntidade clara- está perpetuamente a tornar-se
encontra o seu depósito na arquitectura, as cifras cada vez menos Londres, mais aberta, menos estáti-
actuais da população vão inevitavelmente disparar e on). 1.4. A identidade centraliza; insiste numa essên-
dizimar a substância existente. A identidade concebi- Li , num ponto. A sua tragédia é dada em termos geo-
da como forma de partilhar o passado é uma proposta ITl tricos simples. À medida que se expande a esfera
perdedora: não só existe -num modelo estável de 11 influência, a área caracterizada pelo centro torna-
expansão contínua da população- proporcionalmen- I cada vez maior, diluindo irremediavelmente tanto a
te cada vez menos o que partilhar, mas a história tem torça como a autoridade do núcleo; inevitavelmente,
uma ingrata meia-vida -quanto mais se abusa dela, /! distância entre o centro e a circunferência aumenta
menos significativa se torna- até chegar o momento 111 ao ponto de ruptura. Nesta perspectiva, a desce-
em que as suas decrescentes dádivas se tornam insul- horta recente e tardia da periferia como zona de valor
tuosas. Esta rarefacção é exacerbada pela massa p tencial -uma espécie de condição pré-histórica
sempre crescente de turistas, uma avalanche que, na 11118 pode ser finalmente digna de atenção arquitectó-
busca perpétua do «carácter», tritura as identidades nlca-> é apenas uma insistência dissimulada na prio-
bem-sucedidas transformando-as em poeira insig- II(J de e na dependência do centro: sem centro não há
nificante. 1.3. A identidade é como uma ratoeira, onde pc riferia; o interesse do primeiro compensa presumi-
cada vez mais ratos têm de partilhar o isco original, e VI [mente a vacuidade do segundo. Conceptualmente
que, examinada mais de perto, pode estar vazia há III tà, a condição de periferia é agravada pelo facto da
séculos. Quanto mais poderosa for a identidade, mais li mãe continuar viva, roubando o espectáculo, enfa-
nos aprisiona, mais resiste à expansão, à interpreta- 11/ ndo as insuficiências da sua descendência. As
ção, à renovação, à contradição. A identidade torna-se ultimas vibrações que emanam do centro esgotado
semelhante a um farol-fixa, sobredeterminada: pode hupedern a leitura da periferia como uma massa criti-
mudar a sua posição ou o padrão em que emite, mas o I I. Não só o centro é por definição demasiado peque-
preço é desestabilizar a navegação (Paris só se pode 110 para cumprir as obrigações que lhe estão consig-
tornar mais parisiense -já está a caminho de se tor- 1I Idas, como também não é já o centro real, antes uma
nar hiper-Paris, uma caricatura polida. Há excepções: 11111 gem empolada em vias de implosão; contudo, a

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sua presença ilusória nega legitimidade ao resto da ,lllIlllmento, bancos, abóbadas, laboratórios, etc.-
cidade (Manhattan denigra como «gente das pontes e , I) c nstruídos por baixo do centro. O centro já não se

túneis» aqueles que precisam do apoio das infra- I' pnnde para fora ou para o alto, mas sim para dentro

estruturas para entrar na cidade e fá-los pagar por 1111 direcção ao próprio centro da Terra). Desde o enxer-
isso). A persistência da actual obsessão concêntrica 111 ti vias de comunicação, circunvalações e túneis
faz que todos nós sejamos gente das pontes e túneis, IIlllorrâneos mais ou menos discretos, a construção
cidadãos de segunda classe na nossa própria civiliza- tlll c da vez mais tangenciais até à transformação roti-
ção, privados dos nossos direitos por essa tonta coin- 1/1 11 de habitações em escritórios, de armazéns em
cidência do nosso exílio colectivo do centro. 1.5. Na IIJII~;.de igrejas abandonadas em clubes nocturnos,
nossa programação concêntrica (o autor passou parte ,li nd as falências em série e subsequentes reabertu-
da sua juventude em Amesterdão, cidade da máxima I til e espaços comerciais cada vez mais caros até à
centralidade) a insistência no centro como núcleo de 1IIIplacável conversão de espaço utilitário em espaço
valor e significado, fonte de toda a significação, é "Illlblico», a pedonalização, a criação de novos par-
duplamente destrutiva: não só o volume sempre cres- '111( , plantando, ligando e expondo a sistemática res-
cente das dependências é uma tensão essencialmen- 111111 ção da mediocridade histórica -toda a autenti-
te intolerável, como também significa que o centro I ulade se vê incessantemente evacuada. 1.6. A Cidade
tem que ser constantemente mantido, quer dizer (jl nérica é a cidade libertada da clausura do centro,
modernizado. Como «lugar mais importante» parado- I lI) spartilho da identidade. A Cidade Genérica rompe
xalmente tem que ser, ao mesmo tempo, o mais velho e I om o ciclo destrutivo da dependência, não é mais do

o mais novo, o mais fixo e o mais dinâmico; sofre a 1111 um reflexo da necessidade actual e da capacida-
adaptação mais intensa e constante, que em seguida dI ctual. É a cidade sem história. É suficientemente
se vê comprometida e complicada pelo facto de ter de 1',londe para toda a gente. É fácil. Não necessita de
ser uma transformação irreconhecível, invisível a olho IlIl1nutenção. Se se tornar demasiado pequena sim-
nu (a cidade de Zurique encontrou a solução mais pl smente expande-se. Se ficar velha, simplesmen-
radical e dispendiosa ao voltar a uma espécie de II utodestrói-se e renova-se. É igualmente ernocio-
arqueologia inversa: camada após camada de novas nnnte -ou pouco emocionante- em toda a parte.
modernidades -centros comerciais, parques de esta- I «superficial» -tal como um estúdio de Hollywood

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pode produzir uma nova identidade todas as manhãs 11\. Torna-se transparente, como um logótipo. O con-
de segunda-feira. 2.1. A Cidade Genéri- II I io nunca sucede ... pelo menos ainda não aconte-
ca cresceu espectacularmente nas últimas décadas. II U. ~ 3.1. A Cidade Genérica é o que resta
Não só o seu tamanho aumentou, mas também os til pois de grandes sectores da vida urbana terem pas-
seus números. No início da década de 1970, era habi- I o para o ciberespaço. É um lugar de sensações
tada em média por 2,5 milhões de residentes oficiais II nues e distendidas, de emoções escassas e distan-
(e mais ou menos 500.000 eventuais); agora, ronda os II ti, discreto e misterioso como um grande espaço ilu-
15 milhões. 2.2. Será que a Cidade Genérica comecou nunado por um candeeiro de mesa-de-cabeceira.
na América? É tão profundamente pouco original que I .omparada com a cidade clássica, a Cidade Genérica
só pode ter sido importada? Em qualquer caso, a Cida- I t L' sedada, normalmente observada de uma posição
de Genérica agora também existe na Ásia, Europa, I entária. Em vez de concentração -presença
Austrália e África. A passagem definitiva do campo, da " ultânea- na Cidade Genérica, cada «momento»
agricultura para a cidade não é uma passagem para I)oncreto afasta-se dos demais para criar um transe
a cidade como a conhecemos: é a passagem para a tli experiências estéticas quase inapreciáveis: as
Cidade Genérica, uma cidade que se expandiu tanto vmiações de cor na iluminação fluorescente de um
que chegou ao campo. 2.3. Alguns continentes como a Ildifício de escritórios pouco antes do pôr do Sol, as
Ásia aspiram à Cidade Genérica; outros envergonham- ubtilezas dos brancos ligeiramente diferentes de um
se dela. Como tende para o tropical-convergindo em I'lIinel iluminado à noite. Tal como a comida japonesa,
torno do equador- grande parte das Cidades Genéri- li!; ensações podem reconstituir-se e intensificar-se
cas são asiáticas, o que aparentemente é uma contra- I\ I mente, ou não: podem ser simplesmente ignoradas
dição nos termos: o superfamiliar habitado pelo ines- (11 uma opção). Esta difusa falta de urgência e insis-
crutável. Um dia voltará a ser absolutamente exótica, I ncia actua como uma droga potente: induz uma oiu-
um produto descartável da civilização ocidental, gra- l'lnação do normal. 3.2. Numa drástica inversão do que
ças à resemantização que a sua própria difusão deixa upostamente a principal característica da cidade
na sua esteira ... 2.4. Por vezes, uma cidade antiga e «negócio»- a sensação dominante da Cidade

singular, como é o caso de Barcelona, ao simplificar I i nérica é uma calma misteriosa: quanto mais calma
excessivamente a sua identidade passa a ser Genéri- 10 , mais se aproxima do seu estado puro. A Cidade

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Genérica enfrenta os «males» que se atribuíam à cida- mnis pequena, de um computador pessoal ou talvez
de tradicional antes que o nosso amor por esta se tor- 111 mo de uma disquete. 3.4. Os campos de golfe são
nasse incondicional. A serenidade da Cidade Genérica tudo o que resta da alteridade. 3.5. A Cidade Genérica
consegue-se através da evacuação do domínio públi- IlJIn números de telefone fáceis, não esses rebeldes
co, como na emergência de um simulacro de incêndio. IIiLuradores do lóbulo frontal de dez algarismos que
A superfície urbana agora só alberga o movimento I xi tem na cidade tradicional, mas sim versões mais
necessário, fundamentalmente os carros; as auto- homogéneas, por exemplo com os algarismos inter-
estradas são uma versão superior das avenidas e pra- 111 dios idênticos. 3.6. A sua principal atracção é a

ças, ocupando cada vez mais espaço; o seu traçado, 1111 mia. 4.1. Anteriormente manifesta-
que aparentemente procura a eficácia automobilísti- 1:0 s da máxima neutralidade, os aeroportos estão

ca, é de facto surpreendentemente sensual, uma pre- /'I/~ ra entre os elementos mais singulares e caracte-

tensão, utilitária que entra no domínio do espaço tiso. / I!;ticos da Cidade Genérica, sendo o seu mais podero-
O_quee novo neste domínio público sobre rodas é que o veículo de diferenciação. Têm de o ser, já que é mui-
nao pode ser medido em termos de dimensões. O mes- 111 vezes tudo o que uma pessoa comum fica a
mo percurso (digamos de dez quilómetros) proporcio- conhecer de uma determinada cidade. Tal como numa
na grande número de experiências completamente / licaz apresentação de um perfume, os murais foto-
diferentes: pode durar cinco minutos ou quarenta; 1',1 ficos, a vegetação e os costumes locais proporcio-
pode ser partilhado com quase ninguém ou com toda a uarn um primeiro choque concentrado da identidade
população; pode proporcionar o prazer absoluto da local (por vezes é também o último). Longínquo, con-
velocidade pura e não adulterada -caso em que a lortável, exótico, polar, regional, oriental, rústico, novo
sensação da Cidade Genérica pode mesmo tornar-se IlU mesmo «inexplorado»: são estes os registos emo-

intensa ou pelo menos adquirir densidade- ou mo- cionais que evocam. Assim, com esta carga conceptu-
mentos de paragem totalmente claustrofóbicos _ il. os aeroportos transformam-se em sinais ernble-
caso em que a rarefacção da Cidade Genérica será máticos, gravados no inconsciente colectivo global,
mais perceptível. 3.3. A Cidade Genérica é fractal, uma c m selvagens manipulações dos seus atractivos não
repetição infindável do mesmo módulo estrutural sim- 1\ ronáuticos -lojas tax-ttee, qualidades espaciais
ples; é possível reconstruí-la a partir da sua entidade ( pectaculares, a frequência e a fiabilidade das suas

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ligações com outros aeroportos. Em termos da sua .uuco, interminavelmente extrudido numa planta line-
iconografia/desempenho, o aeroporto é um concen- /11' provavelmente, década de 1990. (A sua estrutura
trado tanto do híper-local como do híper-global _ uunificada como um carvalho: Alemanha). 4.4. Exis-
híper-global no sentido de que podemos adquirir aí Itllll aeroportos de dois tamanhos: demasiado gran-
artigos que não se encontram nem mesmo na cidade' di 1 demasiado pequenos. Contudo, o seu tamanho
híper-local no sentido em que se podem adquirir nele 11 () tem influência no seu desempenho. Isto sugere
coisas que não se podem obter em mais parte nenhu- 'III( o aspecto mais intrigante de todas as infra-estru-
ma. 4.2. A tendência da Gestalt dos aeroportos é para 1111(l é a sua elasticidade essencial. Calculados com
uma autonomia cada vez maior: por vezes, não têm 11(I tidão em função do número -de passageiros por
sequer na prática qualquer relação com a Cidade 11110- são invadidos por um sem número deles e
Genérica específica. Ao tornarem-se cada vez maio- ohrevivern, expandidos até à máxima indetermina-
res, equipados com mais serviços não associados às " (J. 5.1. A Cidade Genérica é rigorosa-
viagens, estão em vias de substituir a cidade. A condi- 1111 nte multirracial, tendo em média 8 % de negros,
ção de estar «em trânsito» está a tornar-se universal. 1 Y % de brancos, 27 % de hispânicos, 37 % de chine-

Em conjunto, os aeroportos contêm populações de I DI siáticos, 6 % de indeterminados e 1 O% de outros.


milhões de habitantes, além de contarem com a maior 1 uno só multirracial mas também multicultural. É por
força de trabalho diurna. Tendo em conta a totalidade , I razão que não surpreende encontrar templos
dos seus serviços, são como bairros da Cidade Genéri- nutre os prédios, dragões nas avenidas principais ou
ca, sendo mesmo por vezes a sua razão de ser (o seu 1111(..1 s no CBO (Central Business Oistrict: centro
centro?), com a atracção adicional de serem sistemas I umercial e financeiro). 5.2. A Cidade Genérica é sem-
herméticos dos quais não há escapatória -salvo para I'll Fundada por pessoas em trânsito, determinadas a
ir para outro aeroporto. 4.3. A data/idade da Cidade ( f\uir adiante. Isto explica a insubstancialidade das
Genérica pode ser reconstruída a partir de uma leitura 11II1S fundações. Como os flocos que se formam subi-
atenta da geometria do seu aeroporto. Planta hexago- I unente num líquido transparente ao juntarem-se
nal (em casos singulares, pentagonal ou heptagonal): IIIIOSsubstâncias químicas, para posteriormente se
década de 1960. Planta e corte ortogonais: década de ncurnularern numa pilha incerta no fundo, a colisão ou
1970. Cidade col/age: década de 1980. Um corte curvo ( onfluência de duas migrações -por exemplo, emi-

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grados cubanos a caminho do norte e judeus aposen- 111111 idor da sua identidade: um híbrido de política e
tados indo para o sul, em última instância todos a I'nlllngem. Ao mesmo tempo refúgio do ilegal e do In-
caminho de outro lugar- estabelece, quando menos 1111\IIOlável e submetida a uma interminável marupu-
se espera, um assentamento. Nasceu uma Cidade 111,,1\0, representa um triunfo simultâneo do cosmético
Genérica. 6.1. A grande originalidade da I do primordial. A sua exuberância imoral compensa
Cidade Genérica é simplesmente a de abandonar o 111111 s fraquezas da Cidade Genérica. Supremamente
que não funciona -o que sobreviveu ao seu uso- 1lllllgânica, o orgânico é o mito mais poderoso da Cida-
para romper a capa de asfalto do idealismo com os di C nérica. 6.3. A rua morreu. Essa descoberta COIn-
martelos pneumáticos do realismo e aceitar qualquer I 1IIIucom as frenéticas tentativas da sua ressurreição.
coisa que cresça em seu lugar. Nesse sentido, a Cida- 1\ 111 te pública está por toda a parte -como se duas
de Genérica concilia tanto o primitivo como o futurista 11101 tes fizessem uma vida. A pedonalização- pensa-
-na verdade, somente estas duas coisas. A Cidade 1111ara preservar -canaliza simplesmente o fluxo
Genérica é tudo o que fica do que costumava ser a IIII!; condenados a destruir com os seus pés o objecto
cidade. A Cidade Genérica é a pós-cidade que se está 1111ua presumida veneração. 6.4. A Cidade Genérica
a preparar no lugar da ex-cidade. 6.2. A Cidade Genéri- li 1 a passar da horizontalidade para a verticalidade.
ca mantém-se unida não por um domínio público 1I 11ran ha-céus parece ser a ti pologia fi nal e defi nitiva.
excessivamente exigente -progressivamente degra- l ngoliu tudo o resto. Pode existir em qualquer lugar:
dado numa sequência inesperadamente longa em 1IIIInarrozal ou no centro da cidade, já não há nenhu-
que o fórum romano está para a ágora grega como o 1111\ diferença. As torres já não estão juntas; separam-
centro comercial está para a rua principal- mas pelo I de modo a que não interajam. A densidade isolada é
residual. No modelo original dos modernos, o residual 11ideal. 6.5. A habitação não é um problema. Ou foi
era simplesmente uma zona verde, o seu controlado 1111lmente resolvida ou foi deixada completamente ao
asseio era uma afirmação moralista de boas inten- /I(;OSO; no primeiro caso é legal; no segundo, «ilegal»;
ções, desencorajando a associação e o uso. Na Cidade 111) primeiro caso, são torres ou, geralmente, prédios
Genérica, por virtude da sua capa civilizacional ser tão (com um máximo de 15 metros de profundidade); e no
fina, e graças à sua tropicalidade imanente, o vegetal '11 undo (em perfeita complementaridade) uma cros-
transforma-se em Resíduo Edénico, sendo o principal 111 de barracas improvisadas. Uma solução consome o

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céu; a outra o terreno. É estranho que aqueles que têlll III I1I pos e sementes tivessem, como na natureza,
menos dinheiro habitem o recurso mais caro -a te: I IIItlo n terra ao acaso, se tivessem fixado -aprovel-
ra- e os que pagam habitem o que é de graça -o I,
I IIltlo fertilidade natural do solo- e agora formas-
Em ambos os casos, a habitação demonstra ser SUl I111um conjunto: uma reserva arbitrária de genes que
preendentemente acomodatícia - não só a popul
11111 v zes produz resultados assombrosos. 6.9. A es-
cão duplica de tantos em tantos anos, como também, 1111/1a cidade pode resultar indecifrável e defeituosa,
com o decrescente controlo das diferentes religiões, O 11111' i so não significa que não haja escrita; pode ter
número médio de habitantes por unidade se reduz
1IIIIILecido simplesmente que tenhamos criado um
para metade -devido a divórcios e outros fenómenos
IIIIVOanalfabetismo, uma nova cegueira. A detecção
de divisão familiar- com a mesma frequência que
1"11:1nte revela os temas, as partículas e os fila~en-
duplica a população da cidade; à medida que estes
I" que se podem isolar da aparente impanetrabilida-
números crescem, a densidade da Cidade Genérica
ti" I sta ur-sopa wagneriana: notas deixadas numa
está perpetuamente em redução. 6.6. Todas as Cida- til!! sia por um génio numa visita há 50 anos, relato-
des Genéricas surgem da tabula rasa; se não havia
110:; multi-copiados da ONU que se desintegram no
nada, agora elas estão lá; se já existia algo, elas subs- 1111 silo de vidro em Manhattan, descobrimentos de
tituíram-no. Teria que ser assim, de outro modo se-
.uulgos pensadores coloniais com olho clí~ico para
riam históricas. 6.7. A paisagem Urbana Genérica é
11clima, imprevisíveis ricochetes de educaçao para o
geralmente uma amálgama de sectores excessiva- IIi enho que recuperam força como um processo glo-
mente ordenados -que datam do início do seu desen- 11111 de branqueamento. 6.10. A melhor definição da
volvimento, quando «o poder» ainda não se tinha dilu-
I nt tica da Cidade Genérica é o «estilo livre». Como
ído- e soluções cada vez mais livres por toda a parte.
" screvê-Io? Imaginemos um espaço aberto, uma ela-
6.8. A Cidade Genérica é a apoteose do conceito de
I ( ira na floresta, uma cidade nivelada. Há três ele-
escolha múltipla: todas as hipóteses marcadas, uma
111ntos: as estradas, os edifícios e a natureza; todos
antologia de todas as opções. Em geral, a Cidade
( I s coexistem com relações flexíveis, aparentemente
Genérica foi «planeada» não no sentido habitual de
:; m motivo, numa espectacular diversidade organiza-
uma organização burocrática que controla o seu des-
liva. Qualquer dos três pode dominar: por vezes a
envolvimento, mas sim como se diversos ecos, espo-
« strada» perde-se -e volta a encontrar-se serpen-

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teando num desvio incompreensível; por vezes não 1111 icatura grotesca da vida na cidade histórica. 6.13.
vemos edifícios, só a natureza; depois, de modo igual- I tnte horizontalidade na Cidade Genérica, mas está
mente imprevisível, vemo-nos rodeados só por edifí- 11111 vias de extinção. Consiste da história que ainda
cios. Em certos pontos assustadores, as três coisas 11110 foi apagada ou então de enclaves ao estilo Tudor
estão simultaneamente ausentes. Nesses «sítios» (na 111" se multiplicam em redor do centro, como emble-
verdade, qual é o oposto de sítio? São como buracos 1111\' recém-cunhados da preservação. 6.14. Ironica-
perfurados no conceito de cidade), a arte pública monte, embora sendo nova, a Cidade Genérica está
emerge como o monstro do lago Ness, figurativa e abs- Illd ada por uma constelação de Cidades Novas: as
tracta em partes iguais, habitualmente auto-mantida. Lld des Novas são como anéis de crescimento anual.
6.11. As cidades específicas continuam a discutir os 1)1) lgurn modo, as Cidades Novas envelhecem com
graves erros dos arquitectos -por exemplo, as suas 1IIIIita rapidez, tal como uma criança de cinco anos
propostas para criar redes pedonais elevadas com '1" fica com rugas e artrite devido à doença chamada
tentáculos que levam de um prédio para o seguinte piO éria. 6.15. A Cidade Genérica apresenta a morte
como solução para a congestão- mas a Cidade Gené- rlulinitiva do planeamento. Porquê? Não porque não
rica simplesmente desfruta das vantagens das suas (j planeada -de facto, enormes universos comple-
invenções:plataformas, pontes, túneis e auto-estradas II1 ntares de burocratas e promotores imobiliários
-uma enorme proliferação da parafernália de liga- I 1Ializam fluxos inimagináveis de energia e dinheiro
ção- frequentemente cobertos de fetos e flores como pfl a a sua concretização; pelo mesmo dinheiro, as
se para esconjurar o pecado original, criando assim 111 s planícies podiam ser fertilizadas com diaman-
uma congestão vegetal mais severa do que um filme 11 s, os seus terrenos lamacentos pavimentados com
de ficção científica dos anos 1950. 6.12. As estradas ln] s de ouro ... Mas a sua descoberta mais perigosa e
são apenas para os carros. As pessoas (os peões) são IIliLimulante é que o planeamento não faz qualquer
largados em caminhos (como num parque de diver- rlilerenca. Os edifícios podem colocar-se bem (uma
sões), em «promenades» que as levantam do solo e I() re perto de uma estação de metro) ou mal (centros
depois as sujeitam a todo um catálogo de situacões 11 quilómetros de distância de qualquer estrada). Todos
exageradas -vento, calor, escarpas, frio, interior, ~xte- Ilorescem/morrem de maneira imprevisível. As redes
rior, cheiros e vapores- numa sequência que é uma viúrias expandem-se em excesso, envelhecem, apo-

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1111( Inço de «centro urbano» na periferia, ou inclusiva-
drecem.' tornam-se obsoletas; as populações dupll
111111110 comecar uma cidade no meio do nada e desen-
cam, triplicarn, quadruplicam e de repente desapar
I 1110 r assim uma prosperidade que ponha a cidade
cem. A superfície da cidade explode, a economi t
11II m pa. 7.2. Com frequência, o regime desenvolveu
acelera, desacelera, dispara, afrouxa. Como velha
11111 urpreendente grau de invisibilidade, como se
mães que continuam a amamentar os seus embriõe
jl,IIIÇ s à sua permissividade a Cidade Genérica resis-
titânicos, cidades inteiras são construídas sobre infra
III '1 ao ditatorial. 8.1. É deveras surpro-
estruturas coloniais, cujas plantas os opressores
Illd nte que o triunfo da Cidade Genérica não tenha
levaram de volta para casa. Ninguém sabe de onde
I o\l1cidido com o triunfo da sociologia -uma disciplina
cor:n0 ou desde quando funcionam os esgotos, nin~
IIIJ «campo» foi ampliado pela Cidade Genérica para
guem sabe a localização exacta das linhas telefónicas
til im de tudo o que se possa imaginar. A Cidade Ge-
qual foi a razão para colocar ali o centro, nem onde
I I(li ica é sociologia a acontecer. Cada Cidade Genéri-
acabam os eixos monumentais. O que tudo isso
I I uma placa de Petri, ou um quadro preto infinita-
demonstra é que há infinitas margens ocultas colos-
111( nte paciente no qual quase qualquer hipótese pode
sais reservas de inércia, um perpétuo processo orgâ-
( r «demonstrada» e logo apagada, para nunca mais
nico de afinação, normas, comportamentos; as ex-
I (, ar nas mentes dos seus autores ou do seu público.
pectativas mudam com a inteligência biológica do
.2. Claramente, há uma proliferação de comunidades
animal mais atento. Nesta apoteose de escolha múlti-
um zapping sociológico- que resiste a uma única
pla nunca voltará a ser possível reconstruir a causa
1111 rpretação dominante. A Cidade Genérica está a
e o efeito. Funcionam, é tudo. 6.16. A aspiração da
d ,bilitar todas as estruturas que no passado levaram
Cidade Genérica à tropicalidade implica automatica-
I que algo se consolidasse. 8.3. Ainda que infinita-
mente a rejeição de qualquer referência prolongada à
IT\ nte paciente, a Cidade Genérica também se mostra
cidade como fortaleza, como cidadela; é aberta e aco-
il rsistentemente rebelde perante a especulação:
modatícia como um mangal.~7.1. A Cidade
d monstra que a sociologia pode ser o pior sistema
Genérica tem uma relação (por vezes distante) com
p ra captar a sociologia a acontecer. Vence todas as
um regime mais ou menos autoritário, local ou nacio-
críticas estabelecidas. Contribui com uma grande
nal. O habitual é que os amigos do dirigente -quem
quantidade de provas a favor e -em quantidades ain-
quer que ele seja- tenham decidido promover um

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da mais impressionantes- contra cada hipótese. Em ln lnzendo soar sinistras campainhas: versões domes-
A os prédios construídos em torre levam ao suicídio, 111:l\das do navio fantasma de Der fliegende Holldnder.
em B, à felicidade para sempre. Em C, são vistos como Iv cabines telefónicas ou são vermelhas e transplan-
um primeiro passo no caminho da emancipação (con- IlIeI s de Londres, ou estão dotadas de pequenos
tudo, presume-se que sujeito a algum tipo de coação); Ii lhados chineses. Lipservice -também chamado
em D, simplesmente como algo que passou de moda. 1\11 rthoughts, Waterfront, Toa Late, 42nd Street,
Construídos em quantidades inimagináveis em K, t lmplesrnente Village ou mesmo Underground+" é
estão a ser dinamitados em L. A criatividade é inexpli- 11111elaborada operação mítica: exalta o passado
cavelmente alta em E, e inexistente em F. G é um I orno só o recentemente concebido sabe. É uma
mosaico étnico ininterrupto; H está constantemente mriquina. 9.2. A Cidade Genérica teve em tempos um
à mercê do separatismo, para não dizer à beira da I) I ado. No seu esforço para alcançar notorieda-
guerra civil. O modelo Y nunca perdurará devido à alte- I Ii , grandes sectores dela de certo modo desaparece-
ração que produz na estrutura familiar, mas Z floresce 1IIIn, a princípio sem que ninguém o lamentasse -
-uma palavra que um académico nunca aplicaria a ogundo parece, o passado era surpreendentemente
qualquer actividade da Cidade Genérica- por causa lnsalubre, mesmo perigoso- e depois, sem avisar, o
dela. A religião desaparece em V, sobrevive em W e IIIIViotransformou-se em pesar. Alguns profetas -de
transmuta-se em X. 8.4. Estranhamente, ninguém longos cabelos brancos, peúgas cinzentas e sandá-
pensou que, ao acumularem-se, as infinitas contradi- 111- tinham sempre avisado que o passado era
ções destas interpretações demonstram a riqueza da necessário, um recurso. Lentamente, a máquina de
Cidade Genérica; essa é a hipótese que foi eliminada I lostruicão comeca a imobilizar-se; algumas casinho-
antecipadamente.~9.1. Há sempre um bairro I 1 ale~tórias do branqueado plano euclidiano sal-
chamado Lipservice,' onde se conserva uma parte v irn-se, restituídas a um esplendor que nunca tive-
mínima do passado: normalmente há um velho com- I fim ... 9.3. Apesar da sua ausência, a história é a
boio/eléctrico ou autocarro de dois pisos que lá circu- 1'1incipal preocupação, ou mesmo indústria da Cidade

, Jogo de palavras: to pay lip service significa algo como «dar palmadi- 'Ilospectivamente «Margem», «Muito tarde», «Rua 42», «a Vila» e
nhas nas costas» [N. do T.].
,(~lubterrâneo» [N. do T.].

50 51
Genérica. Nos terrenos libertados, em volta das casi- o víssemos com o telescópio ao contrário- ou foi
nhotas restauradas, constroem-se mais hotéis para mesmo completamente eliminado. 9.7. Só a recorda-
acolher turistas adicionais na proporção directa da eli- I'IlO dos excessos anteriores é suficientemente forte
f

minação do passado. O seu desaparecimento não tem pnra intensificar o anódino. Como se tentassem aque-
qualquer influência no seu número, ou talvez se trate I. r-se ao calor de um vulcão extinto, os sítios mais

apenas de uma avalanche de última hora. O turismo é p pulares (com turistas, e na Cidade Genérica isso
agora independente do destino ... 9.4. Em vez de recor- Inclui toda a gente) são os que alguma vez estiveram
dações específicas, as associações de ideias que a rn is intensamente associados ao sexo e à má condu-
Cidade Genérica mobiliza são recordações gerais, 111. Os inocentes invadem os antigos redutos de proxe-

recordações de recordações: se não todas as recorda- 11 tas, prostitutas, traficantes, travestis e, em menor
ções ao mesmo tempo, ao menos uma recordação abs- wau, de artistas. Paradoxalmente, no mesmo momen-
tracta e simbólica, um déjà vu que nunca acaba, uma 10 em que a auto-estrada da informação está pronta
recordação genérica. 9.5. Apesar da sua modesta pre- Il ra levar a pornografia às toneladas até às suas salas
sença física (Lipservice nunca tem uma altura superior d estar, é como se a experiência de caminhar sobre
a três andares: homenagem aJaneJacobs ou vingança t 'sas brasas reaquecidas da transgressão e do peca-
desta?), condensa todo o passado num único conjunto. ti os fizesse sentirem-se especiais e vivos. Numa épo-
A história regressa aqui não como uma farsa mas como t: que não gera nova aura, o valor da aura estabelecida
um serviço: mercadores mascarados (chapéus cómi- dispara. Será ao caminhar sobre essas cinzas que mais
cos, ventres à mostra e véus) promovem voluntaria- p rto se encontrarão da culpa? Existencialismo diluído
mente as condições (escravatura, tirania, doença, t: m a intensidade de uma garrafa de Perrier?9.8. Cada
pobreza ou colonialismo) por cuja abolição o seu país Cidade Genérica tem uma beira-mar, não necessaria-
noutros tempos se lançou numa guerra. Como um vírus mente com a água -também pode ser com um deser-
que se multiplica por todo o mundo, o colonial parece I , por exemplo- mas pelo menos uma linha limítrofe
ser a única fonte inesgotável do autêntico. 9.6. 42nd onde se encontra com outra situação, como se uma
Street: embora aparentemente sejam os lugares onde p sição de escape próximo fosse a melhor garantia
o passado se preserva, na verdade são os lugares on- p ra o seu divertimento. Aqui os turistas reúnem-se
de o passado mais mudou, está mais distante -como \ s magotes em volta de um punhado de tendas. Mul-

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tidões de vendedores ambulantes tentam venderlhes convertidos em casas. 10.2. A única actividade é ir às
os aspectos «únicos» da cidade. As partes únicas de compras ... Mas porque não considerar que ir às com-
todas as Cidades Genéricas juntas criaram um souve- pr s é algo temporário, provisório? Espera melhores
nir universal, um cruzamento científico entre a Torre di s. E a culpa é nossa -nunca pensámos em nada
Eiffel, o Sacré-Coeur e a Estátua da Liberdade: um edi- 111 lho r para fazer. Os mesmos espaços inundados com
fício alto (normalmente entre os 200 e os 300 metros) () tros programas -bibliotecas, banhos, universida-
submergido numa pequena bola de água com neve ou, ti s- seria espectacular; ficaríamos estupefactos
se estivermos próximo do equador, com flocos de ouro; p rante a sua grandiosidade. 10.3. Os hotéis estão a
diários com capas de couro picadas de varíola; san- II nsformar-se no alojamento genérico da Cidade
dálias hippies -mesmo que os verdadeiros hippies (I nérica, no seu prédio edificado mais comum. Antes
sejam repatriados rapidamente. Os turistas afagam- costumavam ser os escritórios que pelo menos impli-
nos -nunca ninguém viu uma venda- de seguida c vam um ir e vir e supunham a presença de outros
se~tam-se em exóticos restaurantes que bordejam a nlojamentos importantes em qualquer outro sítio. Os
beira-mar. Aí provam toda a gama de pratos do dia: hotéis são agora contentores que, na expansão e na
picantes que em princípio e em última análise podem universalidade dos seus serviços, fazem com que qua-
ser o sinal mais fiável de estarem noutro sítio; pana- l) todos os restantes edifícios se tornem redundantes.

dos de vaca ou sintéticos; crus, um costume atávico Actuando também como centros comerciais, são o
que será muito popular no terceiro milénio. 9.9. As mais parecido que temos com a existência urbana ao
gambas são o aperitivo fundamental. Gracas à sim- stilo do século XXI. 10.4. O hotel implica agora um
plificação da cadeia alimentar e às vicissitudes da pre- ncarceramento, uma prisão domiciliária voluntária;
paração -sabem aos queques ingleses, quer dizer, não há outro sítio onde ir que possa competir com ele;
a nada. 10.1. Os escritórios continuam a hegamos e lá ficamos. Em conjunto, descrevem uma
existir, de facto cada vez em maior número. As pessoas cidade de dez milhões de habitantes, todos encerrados
dizem que já não são necessários. Dentro de cinco a nos seus quartos, uma espécie de animação invertida
dez anos, trabalharemos todos em casa. Mas precisa- -a densidade implodida. 11.1. Feche-
remos de casas maiores, suficientemente grandes mos os olhos e imaginemos uma explosão de bege. No
para as utilizar em reuniões. Os escritórios terão de ser seu epicentro espalha-se a cor das pregas vaginais

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(não excitadas), em beringela metálico mate, tabaco- \(l.OOO escritórios de arquitectura, de que nunca nin-
caqui, abóbora acinzentada, todos os carros a cami- 1,11 m ouviu falar, todos vibrantes de uma inspiração
nho da brancura nupcial. .. 11.2. Há edifícios interes- luovadora. Supostamente mais modestos que os seus
santes e aborrecidos na Cidade Genérica, como em I olegas mais conhecidos, estes escritórios estão .liga-
todas as cidades. Em ambos os casos a sua ascendên- tio por uma consciência colectiva de que algo vai mal
cia remonta a Mies van der Rohe: a primeira categoria IIIl arquitectura e que só pode ser corrigido mediante
à sua torre irregular da Friedrichstrasse (1921); a Il!l seus esforços. O poder dos números outorgalhes
segunda, às caixas que ele concebeu não muito tempo lima esplêndida e lustrosa arrogância. São eles que
depois. Esta sequência é importante: obviamente, !lI jectam sem vacilar. De mil e uma fontes, com uma
depois de uma experiência inicial, Mies tomou uma \H cisão sem controlo, reúnem mais riquezas do que
decisão de uma vez por todas contra o interesse, a poderia qualquer outro génio. Em média, a su~ educa-
favor do aborrecimento. Quando muito, os seus edifí- 1:110 custou 30.000 dólares, sem contar com viagens e
cios posteriores captam o espírito do seu trabalho illojamento. 23 % foram branqueados nas universida-
anterior -sublimado, reprimido?- como uma ausên- I I s norte-americanas da Ivy League, onde estiveram
cia mais ou menos perceptível, mas nunca mais voltou IHn contacto -há que reconhecer que durante perio-
a propor projectos «interessantes» para possíveis ti s muito curtos- com a elite bem paga da outra pro-
edifícios. A Cidade Genérica demonstra que estava li são «oficial». Daí se deduz que um investimento
equivocado: os seus arquitectos mais ousados aceita- I: mbinado total de 300 mil milhões de dólares em for-
ram o desafio que Mies recusou, até a um ponto que I11 ção de arquitectos (30.000 dólares [custo médio]
hoje é difícil encontrar uma caixa. Ironicamente, esta x 100 [número médio de trabalhadores por atelier] x
homenagem exuberante ao Mies interessante mostra I 0.000 [números de ateliers em todo o mundo]) está a
que «o» Mies estava enganado. 11.3. A arquitectura da ti senvolver e a produzir a todo o momento Cidades
Cidade Genérica é, por definição, bela. Construída a Clenéricas. 11.4. Os edifícios que são formalmente
uma velocidade incrível e concebida a um ritmo mais t: mplexos dependem da indústria da parede-cortina,
incrível ainda, há uma média de 27 versões aborta- t: m adesivos e selantes cada vez mais eficazes que
das por cada edifício realizado, mas este não é o ter- II nsformam cada edifício numa mescla de carni-
mo adequado. Os projectos são elaborados nesses !) -de-forcas e tenda de oxigénio. O uso de silicone

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-«estam os a estender a fachada tanto quanto for eleva a mediocridade a um nível superior; é como o
possível»- aplanou todas as fachadas, colou o vidro à Merzbau de Kurt Schwitters à escala da cidade: a Cida-
pedra, ao aço e ao betão numa impureza própria da era de Genérica é uma Merzstadt. 11.7. O ângulo das facha-
espacial. Essas uniões dão a impressão de certo rigor ti s é o único indicador fiável da genialidade arquitec-
intelectual graças à aplicação generosa de um com- I nica: 3 pontos por se inclinar para trás, 12 pontos por
posto espermático transparente que mantém tudo II inclinar para a frente, penalização de 2 pontos pelos
unido, mais pelo objectivo do que pelo desenho: um I cuos (demasiado nostálgicos). 11.8. A substância
triunfo da cola sobre a integridade dos materiais. Como iparenternente sólida da Cidade Genérica é enganosa.
tudo o resto na Cidade Genérica, a sua arquitectura éo l)1 % do seu volume consiste num átrio. O átrio é um
resistente tornado maleável, uma epidemia do flexível I curso diabólico pela sua capacidade para dar subs-
causada não pela aplicação dos princípios, mas sim I ncia ao insubstancial. O seu nome romano é uma
pela aplicação sistemática do que não tem princípios. 1'1 rantia eterna de classe arquitectónica -as suas ori-
11.5. Dado que a Cidade Genérica é principalmente I~ ns históricas fazem com que o tema seja inesgotá-
asiática, a sua arquitectura funciona geralmente com v l. Dá alojamento ao habitante das cavernas no seu
ar condicionado; e é aí onde o paradoxo da recente I rnecimento incessante de comodidade metropolita-
mudança de paradigma -que a cidade já não repre- u .11.9. O átrio é espaço vazio: os vazios são o prédio
senta o máximo desenvolvimento, mas sim um subde- ndificado essencial da Cidade Genérica. Paradoxal-
senvolvimento no limite- se torna agudo: os meios mente, a sua vacuidade assegura a sua natureza física,
brutais com que se consegue o acondicionamento uni- tI ndo o exagero do volume o único pretexto para a sua
versal imitam, dentro dos edifícios , as condicões
, cli- manifestação física. Quanto mais completos e repetiti-
máticas que antes «sucediam» fora: tempestades v s são os seus interiores, menos se nota a sua repeti-
repentinas, mini tornados, jactos de ar gelado na cafe- <; - o essencial. 11.10. O estilo de eleição é o pós-rnoder-
taria, ondas de calor e inclusive neblina; um provincia- Il e sempre permanecerá assim. O pós-modernismo é
nismo do mecânico, abandonado pela massa cinzenta o único movimento que conseguiu ligar o exercício da
em busca do electrónico. Incompetência ou imagina- nrquitectura ao exercício do pânico. O pós-modernis-
ção? 11.6. A ironia é que desse modo a Cidade Genérica mo não é uma doutrina baseada numa interpretação
alcança o seu ponto mais subversivo, mais ideológico; I,uperiormente civilizada da história da arquitectura,

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mas sim um método, uma mutação da arquitectura p ra o século XXI. 12. Geografia 12.1. A Cidade Genérica
profissional que produz resultados suficientemente vive num clima mais quente do que é habitual; vai a
rápidos para acompanhar o ritmo de desenvolvimento c minho do sul -até ao equador- para longe d:ssa
da Cidade Genérica. Em vez de consciência, como tal- confusão que o norte fez com o segundo milénio. E um
vez tivessem esperado os seus inventores originais, o conceito num estado de migração. Oseu destino final é
que cria é um novo inconsciente. É o pequeno ajudante "er tropical-melhor clima, gente mais bonita. É habi-
da modernização. Qualquer um o pode fazer - um l da por aqueles que não gostam de viver noutro lado.
arranha-céus inspirado num pagode chinês e/ou uma 12.2. Na Cidade Genérica as pessoas não só são mais
cidade tosca na numa colina. 11.11. Toda a resistência bonitas do que os seus contemporâneos, também têm
ao pós-modernismo é antidemocrática. Cria um reves- lama de serem mais serenas, menos preocupadas em
timento «furtivo» em redor da arquitectura que a torna relacão ao trabalho, menos hostis, mais simpáticas -
irresistível, como um presente de Natal proveniente de ma prova, por outras palavras, de que existe uma liga-
uma instituição benemérita. 11.12. Haverá uma ligação ção entre a arquitectura e o comportamento, de que a
entre a predominância de espelhos na Cidade Genérica cidade pode melhorar as pessoas através de métodos
~será para celebrar o nada através da sua multiplica- ainda não identificados. 12.3. Uma das características
çao ou um esforço desesperado para captar as suas com maior potencial da Cidade Genérica é a estabilida-
essências em vias de evaporação?- e as «prendas» de do tempo -sem estações, previsão de ambiente
que, durante séculos, se consideraram o presente mais soalheiro- no entanto todos os prognósticos se apre-
popular e mais eficaz para os selvagens? 11.13. Maxi- sentam em termos de mudança eminente e agrava-
mo Gorki fala, em relação a Coney Island, de «tédio mento futuro: nuvens em Carachi. Do ético e do religio-
variado». É claro que pretende estabelecer um parado- so, o tema da fatalidade passa a estar no âmbito
xo. A variedade não pode ser entediante. O tédio não inescapável do meteorológico. O mau tempo é quase a
pode ser variado. Mas a variedade infinita da Cidade única preocupação que paira sobre a Cidade Genérica.
Genérica quase consegue, pelo menos, tornar a varie- 13. Identidade 13.1. Há uma redundância calculada (?)
dade uma coisa normal: banalizada, numa inversão da na iconografia que a Cidade Genérica adopta. Se esti-
expectativa, é a repetição que se torna inabitual e por- ver próximo da água, os símbolos aquáticos espalham-
tanto potencialmente audaz e estimulante. Mas isso é se por todo o seu território. Se for um porto, barcos e

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guindastes aparecerão muito longe terra dentro (con- uma profissão de escavação: revela estrato após estra-
tudo, não faria sentido mostrar contentores: não se 10 da civilização (quer dizer, da cidade). A Cidade Gené-
pode particularizar o genérico através do Genérico). Se uca, como um esboço que nunca se acaba, não é
for asiática, por todo o lado aparecerão mulheres 1\1lhorada, antes abandonada. A ideia de estratifica-
«delicadas» (sensuais, inescrutáveis) em poses elásti- cno, intensificação e conclusão são estranhas a ela:
cas, indicando submissão (religiosa, sexual). Se tiver 11110 tem estratos. O seu estrato segu inte tem lugar
uma montanha, cada folheto, cada ementa, cada 11utro sítio, que até pode ser mesmo ao lado -e isso
bilhete ou cartaz reproduzirá a colina, como se nada pode ser o tamanho de um país- ou então noutro
mais fosse convincente senão essa redundância sem li I ar completamente diferente. O arqueólogo (= arque-
fim. A sua identidade é como um mantra. ~ ul gia com mais interpretação) do século xx necessita
14.1. Lamentar-se por falta de história é um reflexo li um número ilimitado de bilhetes de avião e não de
entediante. Revela um consenso tácito de que a pre- uma pá. 14.4. Ao explorar/expulsar os seus melhora-
sença da história é algo desejável. Mas quem diz que é 111ntos, a Cidade Genérica perpetua a sua própria
esse o caso? Uma cidade é um plano habitado do modo II1 nésia (o seu único vínculo com a eternidade?). A sua
mais eficaz por pessoas e processos, e na maioria dos 111 ueologia será portanto a prova do seu esquecimen-

casos a presença da história apenas debilita o seu 10 progressivo, a documentação da sua evaporação.
rendimento ... 14.2. A presença da história limita o 1\ ua genialidade acabará de mãos vazias -não no rei
puro aproveitamento do seu valor teórico como ausên- 1111 vai nu, mas sim num arqueólogo sem achados ou
cia. 14.3. Ao longo da História da Humanidade -para 1IIImajazida vazia. 15.1. As infra-
começar um parágrafo à maneira norte-americana- I nlruturas que se reforçavam e completavam mutua-

as cidades cresceram mediante um processo de con- 111 nte, estão a tornar-se cada vez mais competitivas e

solidação. As mudanças fazem-se no lugar. As coisas 10 is; já não pretendem criar conjuntos que funcio-
melhoram. As culturas florescem, degradam-se, unm, agora produzem entidades funcionais. Em vez de
renascem e desaparecem, são saqueadas invadidas, II es e organismos, a nova infra-estrutura cria encla-
humilhadas e espoliadas, triunfam, renascem, têm VI ' e impasses: não mais o grand récit, mas sim des-
idades de ouro e ficam subitamente em silêncio -e VIO parasitas (a cidade de Banguecoque aprovou pla-
tudo no mesmo lugar. Por esta razão a arqueologia é 111) para três sistemas rivais de metro elevado para

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chegar de A a B: que ganhe o mais forte). 15.2. A infr , I 11, gesticulando, revirando os olhos, iniciando brigas,
estrutura já não é uma resposta mais ou menos retat rlndo, coçando as barbas, com os postiços pingando
dada a uma necessidade mais ou menos urgente, ma I til , apinhando-se no centro da imagem, agitando
antes uma arma estratégica, uma profecia: o porto VIII paus e punhos, derrubando bancas, pisando ani-
não se amplia para prestar serviços a um territórl ) 1IIIis... As pessoas gritam. Vendendo mercadorias?
interior de consumidores frenéticos, mas sim para ell ÀII nciando futuros? Invocando deuses? Bolsas são
minar/reduzir as hipóteses de sobrevivência do porto Y iuubadas, criminosos são perseguidos (ou ajudados?)
até ao século XXI. Numa única ilha, a metrópole meridio pl I multidão. Os sacerdotes rezam e pedem calma.
nal Z, ainda na sua infância, é «dotada» de um novo À~,crianças correm como loucas por entre uma floresta
sistema de metro para fazer com que a metrópole W, d, pernas e túnicas. Animais berram. Estátuas caem.
já consolidada a norte, pareça pouco fluida, conges- Àli mulheres gritam -ameaçadas? exaltadas? A multi-
tionada e antiga. A vida em V simplifica-se para fazer 11110 agitada torna-se oceânica. As ondas rebentam.

com que a vida em U se torne insuportável.lIDI!!II ÀI\ ra cortamos o som -silêncio, um alívio abençoa-
16.1. Só o redundante conta. 16.2. Em cada fuso horá ,10- e fazemos rodar o filme para trás. Os homens e as
rio há mais ou menos três representações do musical mulheres, agora mudos mas visivelmente agitados,
Cats. O mundo está rodeado por um anel de Saturno de I ntrocedern aos tropeções: o observador já não regista
miadelas. 16.3. A cidade costumava ser uma reserva npenas seres humanos, mas começa a notar os espa-
natural de caça sexual. A Cidade Genérica é como uma 1;0 entre eles. Ocentro esvazia-se; as últimas sombras

agência matrimonial: concilia eficazmente a oferta e a " 11 m do enquadramento da imagem, provavelmente

procura. Orgasmos em vez de sofrimento: aí está o pro- queixando-se, mas felizmente não os ouvimos. Agora o
gresso. As possibilidades mais obscenas são anuncia- ',ilêncio é reforçado pelo vazio: a imagem mostra ten-
das com a letra de imprensa mais limpa: a Helvética ti s vazias, alguns restos de lixo pisado. Que alívio ...
tornou-se pornográfica.1fIi!iD 17.1. Imaginemos um I stá terminado. Esta é a história da cidade. A cidade já

filme de Hollywood sobre a Bíblia. Uma cidade algures 1100 existe. Agora já podemos sai r do ci nema ...
na Terra Santa. Uma cena de mercado: da esquerda
para a direita, figurantes vestidos com trapos de cores
vivas, peles e túnicas de seda entram na imagem a gri-

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