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A moda descartável da Shein e suas relações digitais como

consequência da pandemia de Covid-19

Moda Economia Comportamento | Uma reflexão do crescimento da Shein e


as implicações socioeconômicas do hábito de ciclagem de consumo em redes
sociais

Por Lisly Moreira

A inteligência artificial e marketing digital da empresa chinesa Shein se


destacou muito no cenário mundial - e principalmente brasileiro - a partir de 2020
com a pandemia. Além das vantagens mercadológicas de campanhas no Google,
Youtube e Tiktok, é um varejo digital com tecnologia da empresa em eficiência no
modo de operar o fast-fashion na era de redes sociais como TikTok e levou outros
varejistas, como Zara, Renner, C&A, Forever21, entre outros, a ficarem para trás. A
Receita Federal está explorando opções para cobrar tributos das vendas de lojas
como Shein e Shopee. Não são considerados uma ameaça macro porque vendem
produtos muito baratos, e ainda sim estão à frente mercadologicamente.
A moda e seus ciclos rápidos, de “trends” que duram cada vez menos
tempo e geram necessidade de novas aquisições e novas confecções de vestimenta
é algo que tem sido observado com os vídeos de “haul” e “unhaul”. A modalidade de
vídeo feita por internautas serve para mostrar a quantidade grande de roupas que
foi adquirida por um preço barato, e consequentemente a quantidade de roupas que
será descartada/doada após a aquisição de novas peças. O “haul” e sua inspiração
para um consumo abusivo, cria um ambiente de pressão para sempre estar
comprando novas roupas e acessórios e estar sempre se adaptando ao que o
algoritmo te mostra. O lado avesso, de descarte, não é inconsciente, está atrelado a
noções subconscientes de eco-capitalismo e movimento a favor do re-uso,
"thrifting", brechós e ademais. É um descarte de consciência, porque na verdade, as
roupas de fast-fashion tem baixíssima durabilidade e dificilmente serão
reaproveitadas se a maioria das pessoas continua comprando peças da nova moda.
A usabilidade das roupas pós-pandemia também ampliou um fenômeno
subjetivo, que é o de roupas que só servem para usar em casa. Não porque são
simples demais, e sim porque não são práticas e são muito chamativas ou
exageradas para atividades diárias, e portanto servem o propósito de uma “fantasia”
usada para tirar fotos e gravar conteúdo. Para gerações jovens, não é um
desperdício, se houver a ponderação de que o circuito digital de trocas pessoais,
tem sim um peso de relações sociais, e viver em isolamento apenas exagerou a
situação. Em pesquisa da Piper Sandler, a geração Z define roupas como a
prioridade - mais importante do que comida. Na era de influencer, a aparência é
consciente e auto-indulgente, as pessoas sabem que estão exagerando, ninguém
está querendo pintar uma vida de faz-de-conta, meramente é uma relação de trocas
estéticas e aparentes, que renderão comentários, conversa, likes, e até amizade ou
paqueras.
No Brasil, a Shein passou de 0% para 21% de compradores digitais, em
apenas um ano, em 2021, de acordo com pesquisa da NielsenIQ|Ebit. Todos os
produtos da Shein são produzidos na China, as bases internacionais em outros
países servem apenas para estoque e despacho. A XP Investimentos fez um
relatório detalhado em 2022 do impacto da Shein para os varejistas brasileiros, mas
o impacto ambiental e humanitário não é discutido nos portais de notícia e análise
financeira. Há noção política de discussão em torno de consumir fast-fashion, mas
há o argumento de vestimentas feitas sem crueldade animal e que a classe média,
principalmente fora da América do Norte e Europa, tem poder econômico para
consumir apenas fast-fashion, então é um ciclo difícil de romper. A alta costura não
é acessível para que pessoas juntem dinheiro suficiente nem mesmo para uma
unidade de vestido, e em contrapartida podem comprar dezenas na Shein.
O Brasil representa grande potencial econômico para empresas da China.
A Shopee e Shein foram os aplicativos mais instalados no Brasil, e o consumidor
brasileiro representa 80% das vendas, de acordo com nota da Shopee. O potencial
de viralização dos produtos da Shein e do comportamento dos usuários é o melhor
tipo de propaganda, um boca-a-boca em tempos de redes sociais. Novamente, com
a pesquisa NielsenIQ|Ebit, 26% dos consumidores conheceram os sites em 2021
por indicação de amigos.
Diferente de Zara ou H&M, varejistas internacionais, a Shein consegue
produzir mais rápido. O seu tempo de produção é estimado entre 3 e 7 dias
enquanto os outros são estimados em 21 dias. O relatório da XP Investimentos
declara ainda que a Shein conta com cerca de 500 lançamentos por dia. De acordo
com CB Insights, a Shein vale US$ 100 bilhões, atrás somente da Byte Dance, dona
do Tik Tok e avaliada em US$ 140 bilhões; e da Space X, do bilionário Elon Musk,
com um valor estimado em US$ 127 bilhões.

A partir de Janeiro de 2022 a Shein supera Renner nas pesquisas. Enquanto isso, Zara e C&A têm
uma queda contínua. O gráfico acima mostra que o maior competidor da Shein é a Renner, mas a
disparidade de números é de 100 para Shein contra 47 para Renner em Setembro de 2022. As
médias são 70 para Shein, 58 para Renner, 17 para Zara e 11 para C&A
É possível observar um crescimento repentino a partir de 2020 nas trends de “Haul” de roupas da
Shein. Já era um tipo de conteúdo, mas que se tornou mais feito desde a popularização da Shein.

A Shein é uma produtora de roupas para conteúdo. Portanto, se na pandemia o


consumo aumentou, o modo de produção e preços da Shein permitiram que esse
comportamento exacerbar-se. A empresa parece ter desenvolvido mais aportes
para sustentar esse tipo de consumidor.
O comportamento específico e dinâmica social das redes cria novas camadas
de mediações Pior isso se torna, quando mulheres, sempre submetidas a serem
passíveis de algo, precisam estar se identificando e se enquadrando em
comunidades/estéticas/nichos que a colocam em uma caixa, que mesmo que seja
uma caixa de mulheres, para mulheres e com um ótimo projeto e intenções, não é
suficiente para que um indivíduo se identifique com toda sua complexidade.
Notamos então o fenômeno de mulheres seguindo trends e mudando de
estéticas, isso se dá pela fast fashion exarcebada do fluxo digital, mas também se
dá porque os ciclos da moda e de senso estético estão constantemente competindo;
com o produto que consomem, o conteúdo produzido, a imagem que conquistam
publicamente e o que aquilo representa para cada pessoa que se rotula dessa
maneira. Não que seja feito intencionalmente, porém as mulheres que já sempre
foram vistas por lentes de o que produzem ou o que consomem e como consomem
são suscetíveis a estarem presas em noções estruturais.
Há um tipo novo de modernidade ou algum tipo de distinção a ser feita a
respeito da internet, e que engloba a hipermodernidade de Lipovestsky,
reprodutibilidade técnica de Benjamin, se misturarmos o existencialismo de Sartre
com a modernidade reflexiva de Ulrich Beck, e todos outros teóricos da sociedade
pós-meta-líquida-ultra ou afins, de Giddens até Bauman, quero fazer uma ressalva
que todos se aproximam mas não parecem afirmar.
A distinção está na moralidade em tempos de cibercultura. A moralidade da
humanidade, principalmente para aqueles participantes da internet, mesmo para os
que não sao heavy users, se apoia no consumo. A moralidade do consumo hoje,
não em termos de hiperconsumo, ou a razão por trás do consumo - seja ela por
status, vaidade, hábito, pressão - e sim a moral do produto consumido. Isso é um
fenômeno recente porque trata-se algo que surge de maneira notável com o
aumento da distribuição de produtos culturais, seu acesso facilitado e em alta escala
na internet, pirataria física e digital, streaming, compartilhamento de arquivos,
noções de nicho e subculturas.
Obviamente que por toda história da humanidade e de produção intelectual
houveram eras e eras de censura, proibição e condenação acerca do conteúdo
consumido. Se pensarmos nos esforços para manter populações medievais
analfabetas, o Index da Igreja católica, o puritanismo que impedia mulheres de ler
ou sobre o que ler, governos autoritários e propagandas contra material subversivo.
Há um histórico de comunidade em vigia, podemos pensar no panóptico de Foucault
para tornar a analogia mais clara. Sempre estivemos cientes do que consumimos de
acordo com que os outros consomem. Seja para sermos incluídos e fazer parte da
comunidade e suas respectivas discussões ou para ir contra a cultura vigente.
O que é diferente é que a moralidade individual, valores pessoais e
alinhamento ideológico de uma pessoa não estavam tão fortemente presos a sua
psique, subjetividade e personalidade. Cada conteúdo e seu fluxo rápido e frenético
transmitem diversos sentidos por vez e é possível notar um padrão de moral, montar
um perfil e decidir quem é o outro. Para cada # com um estilo diferente para
referenciar, e todo peso que a persona digital precisa suportar para pensar nas
camadas de sentido daquela roupa, naquele cenário, dependendo dos assuntos
debatidos naquele espaço de tempo. Por isso múltiplos estilos fazem sucesso ao
mesmo tempo; estilo y2k, estilo street, estilo clean girl, estilo rockstar gf, estilo
coquette, estilo cottagecore, estilo emo goth, e outras dezenas. Não apenas para
roupas, mas acessórios, cabelo e maquiagem também. Um saldo com peso e
desgaste diário maior para aqueles que se identificam com a moda feminilizada.
O saldo dessas compras e o impacto psicológico que justifica essa formação
nas mulheres jovens do TikTok e Youtube prova-se então mais complexa do que
apenas um novo hábito do isolamento social. Há motivos da coerção que mulheres
passaram a sentir com maior intensidade após o início da pandemia de Covid-19 e
que trazem à tona o circuito tóxico de produzir e consumir para redes sociais, já que
toda mídia tem uma lógica de causar insegurança ou desejo para engatilhar
consumo.

“Even pretending you aren't catering to male fantasies is a male fantasy [...]
You are a woman with a man inside watching a woman. You are your own
voyeur.” - Margaret Atwood

“Mesmo fingindo que você não está atendendo a fantasias masculinas é


uma fantasia masculina. Você é uma mulher com um homem assistindo uma
mulher. Você é seu próprio voyeur.”

A Shein não é uma entidade maquiavélica, e se for tratada como tal, é tanto
quanto todas empresas e capitais privados têm o potencial de ser, não se
acompanha o ciclo frenético de consequências para milhares de vida, e a
ramificação dessas consequências. A Shein declarou que até 2024 planeja expandir
seu mercado global e ações americanas.

Sites consultados:

Brasileiros "enchem os carrinhos" no Shopee, Shein e Aliexpress - Diário do Comércio (diariodocomercio.com.br)

Expansão da Shein no Brasil acende alerta nas varejistas de moda - Forbes

Shein no Brasil? Veja o impacto para as varejistas brasileiras - XP Investimentos

Do hype aos bilhões: como a chinesa Shein superou gigantes da moda como a Zara e agora quer abrir capital nos EUA - Seu
Dinheiro

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