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O Programa de Volta para Casa, criado em 2003, pela Lei 10.708 de 31 de julho de 2003,
prevê o pagamento de um auxílio-reabilitação3 psicossocial para portadores de
transtornos mentais egressos de longas internações (mais de dois anos). O benefício tem
duração de um ano e pode ser renovado por mais um, contemplando pessoas que residem
com suas próprias famílias ou substitutas ou, ainda, habitam os Serviços Residenciais
Terapêuticos – SRTs. Durante o período em que estão vinculados ao Programa, os
usuários devem frequentar o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS e serem
acompanhados pela equipe de saúde mental do município (Brasil. Ministério da Saúde,
2003).
Quando pensamos em “voltar para casa”, em uma simples relação de causa e
efeito, pensamos em voltar para um lar, para um lugar de onde partiu e agora vai
retornar, e para uma família com quem antes habitava e que agora receberá (ou não)
essa pessoa com transtorno mental após a alta hospitalar. No entanto, entendemos ser
necessário ampliar essa relação para os múltiplos sentidos que esse “voltar para casa”
pode ter, não levando em conta um único e pré definido destino após a saída da
instituição psiquiátrica.
Ademais dessas transformações familiares, existem aquelas pessoas que,
independente de como suas famílias se apresentam, não possuem vínculos com as
mesmas. Essas pessoas, esclarece Moreira (1983), usufruem de uma das funções do
hospital psiquiátrico, qual seja a de servir como abrigo para quem não possui família,
ou mesmo um lar, como mendigos, menores abandonados ou mesmo idoso. Pela
literatura já citada anteriormente, essa não é uma função do hospital criada em nossos
dias, porém, como a exclusão do louco era a regra e a internação era um caminho sem
volta, a falta de família não era evidenciada e não havia diferença nos
encaminhamentos dados a essa pessoa, possuindo ela, ou não, referência e vínculos
familiares.
A Lei 10.216, de acordo com Amarante (2007), é considerada como um passo decisivo
da reforma psiquiátrica. O autor ressalta a importância da inclusão do Ministério
Público Estadual, que deve ser comunicado em casos de internações involuntárias e
lamenta que a Lei aprovada não tenha garantido todos os direitos previstos no projeto
original, como a extinção progressiva dos manicômios.
Assevera Amarante (2007, p. 103): “O conjunto de estratégias e princípios no campo
da saúde mental e atenção psicossocial no Brasil é responsável por um novo cenário
político em que há um efetivo processo de participação e construção social sem similar
em nenhum outro país do mundo, mesmo na Itália”. O autor destaca as seguintes
estratégias e dispositivos que vêm contribuindo para a assistência em saúde mental:
1º - Ter sempre uma relação dos parentes, amigos e conhecidos dos internados para
que aqueles sejam sempre informados do estado dos pacientes e aconselhados a
retirá-los do estabelecimento em caso de cura ou melhora acentuada.
2º - Auxiliar materialmente os egressos sem parentes ou amigos ou pessoas que por
eles se interessem.
3º - Auxiliar materialmente os egressos cujas famílias forem necessitadas.
4º - Fazer o possível para arranjar colocação para os egressos válidos, de acordo
com suas aptidões, em casas particulares, oficinas, etc..
5º - Colocar os egressos incapazes de trabalhar, mas que também não podem ser
conservados no serviço nem na família, em asilos, colônias familiares, ou
instituições análogas.
6º - Estar sempre em contato com os egressos por intermédio das visitadoras
sociais.
7º - Vulgarização dos conhecimentos de psiquiatria, de modo que o povo
compreenda seu dever de auxiliar os egressos, aceitando-os na comunidade e
amparando-os.
8º - Facilitar o tratamento, em domicílio ou em estabelecimento apropriado, dos
egressos que apresentarem quaisquer manifestações que façam suspeitar a volta do
estado mental patológico.
Seja no que se refere aos Residenciais Terapêuticos ou às famílias, o fato é que “voltar
para casa” é um fenômeno de nossos dias ainda pouco explorado na literatura. Sendo
assim, justificamos esta pesquisa por entender que um estudo desta natureza talvez
possa contribuir para retratar o que está ocorrendo nesse campo e ao mesmo tempo ser
útil à avaliação da implantação e implementação das políticas públicas vigentes ou,
mesmo, à criação de novas propostas no que se refere à saúde mental.
Deixa-se em último plano tudo o que diz respeito ao Sistema Único de Saúde,
desde a estrutura legislativa até a lógica assistencial. Constata-se, enfim, um
inadmissível descompasso entre os avanços importantes na área da Saúde
Mental e da Saúde Pública no Brasil, e o conteúdo do ensino da universidade,
que se permite o luxo de ignorar aberta e desdenhosamente todo este território,
da Reforma Psiquiátrica ao SUS.
Basaglia, citado por Machado, Manço e Santos (2005, p. 1477), revela que muitos
pacientes apresentam dificuldade em deixar a instituição psiquiátrica e viver
socialmente e atribui a dois motivos:
Além disso, Moreira (1983, p. 113) afirma que, “(...) após sucessivas reinternações,
dependendo do estado do paciente, podem acabar, também por diminuir sua capacidade
de resistência ou levá-lo a preferir, definitivamente, a vida hospitalar ao convívio
social”. Goffman (2008, p. 23) também aborda a dificuldade de deixar uma instituição
total10 após longa internação, esclarecendo que esse processo está relacionado ao fato de
que, ao voltar para o mundo exterior, o internado sofre um “desculturamento”,
tornando-se “(...) temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida
diária’’
10
Instituições totais são definidas por Goffman (2008, p. 16) como aquelas instituições que “(...) são
muito mais “fechadas” do que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à
relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no
esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou
pântanos”.
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Para Goffman (2008, p. 25), a internação em instituições totais, como os manicômios,
impede que o internado expresse alguns papéis sociais, que podem acabar não sendo
recuperado, mesmo após a saída da instituição, o que pode ser muito doloroso. O autor
exemplifica algumas dessas possíveis perdas: “Pode não ser possível recuperar, em fase
posterior do ciclo vital, o tempo não empregado no progresso educacional ou
profissional, no namoro, na criação dos filhos”.