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Os manuscritos do Rio de Janeiro: um olhar socio-teológico do

Gênesis no conto “Na arca”, de Machado de Assis

Alzemir Menegidio da Silva


Mestrando em Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie

Introdução

Este ensaio se propõe a analisar a produção de sentido do conto “Na arca”,


de Machado de Assis. A presente investigação conferirá destaque à construção da
obra numa perspectiva da Teoria de Antônio Cândido, conceito este que visa
compreender o efeito de sentido produzido pela obra a partir dos mecanismos
linguísticos, construção sintática e estilística.
Para Antonio Candido, "O poeta não é uma resultante, nem mesmo um
simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única.
Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma,
porque ele combina e cria ao devolver à realidade." (Candido, 2006, p. 27). Sendo
assim, Candido é crítico de métodos prontos que ao longo de décadas algumas
ciências se propuseram a entregar, o autor diz que elas não podem indicar o início, o
meio e o fim em que uma obra deve se esgotar todo seu sentido, para ele, o apoio
das ciências como a Filosofia, a Sociologia e/ou Psicologia devem cooperar, ou seja,
devem ser instrumentos para a interpretação de um fato literário.
Partindo desse entendimento de Candido é que será analisada a obra de
Machado pelo viés da Sociologia, contemplando mais precisamente a cultura judaica
em que suspostamente os personagens estão inseridos, envolvendo suas lendas,
mitos, a religião e relatos “históricos”. Para chegar à compreensão, a Bíblia, livro
esse que faz a intertextualidade com o conto de Machado, será utilizada, a fim de
que projete luz aos discursos produzidos pela narrativa, com o propósito de criar um
diálogo com os temas propostos.
1. Estilística

A obra toda é estruturada em forma de capítulos e versículos, esse estilo de escrita


é a forma como a Bíblia, livro sagrado do cristianismo, se estrutura. O conto
machadiano é uma referência à história contada pela Torá, livro este que compõe os
cinco primeiros livros do livro sagrado da religião judaica e tem origem no termo
hebraico Yará, que significa ensinamento, instrução ou lei.
Estas divisões e subdivisões bíblicas – capítulos e versículos, foram criadas para
facilitar a tarefa de citar as Escrituras. Stephen Langton, professor da Universidade
de Paris e mais tarde arcebispo da Cantuária, dividiu a Bíblia em capítulos em 1227.
Stephen Langton publicou uma versão da bíblia em latim (Vulgata) com sua nova
divisão de 1189 capítulos, sendo 929 no AT (Antigo Testamento) e 260 no NT (Novo
Testamento). Essa divisão de capítulos e versículos da Bíblia dura até hoje. A
versão da Bíblia de Langton ficou conhecida como a Bíblia Parisiense. Mais tarde,
em meados do século 16, a Bíblia de Lutero, publicada em 1534, foi impressa com
essa divisão.
Machado de Assis escreve o conto mantendo a estrutura do “livro sagrado” em três
capítulos: Capítulo A, Capítulo B e Capítulo C, cada qual por sua vez subdividido em
pequenas unidades numeradas em ordem crescente, como os versículos, à
semelhança dos capítulos dos livros da Bíblia.
Para Antonio Candido, os temas sociais entram na literatura a partir da estrutura
literária, não apenas como conteúdo. Antonio Candido apresenta o conceito de
redução estrutural, entendido como “o processo por cujo intermédio a realidade do
mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura
literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo”
(CANDIDO, 2015, p. 9). Logo, para Candido, não – apenas o conteúdo nos adentra
ao sentido do texto, mas a estrutura da obra é fundamentalmente importante e
determinante para o estudo e compreensão do mesmo.
Ainda mais, “[...] a narrativa se constitui a partir de materiais não literários,
manipulados, a fim de se tornarem aspectos de uma organização estética regidas
pelas suas próprias leis, [...]” (CANDIDO, 2015, p. 9).
Os livros que compõem o compêndio bíblico são conhecidos como: livros canônicos,
pois foram reconhecidos pela comunidade cristã como livros inspirados. Já os livros
que ficaram de fora do cânon são chamados de apócrifos, porque são livros que,
segundo a religião em questão, não foram inspirados por Deus. O autor de, “Na
arca” diz em seu título que são três capítulos inéditos do Gênesis. É como se esses
capítulos não tivessem sidos aceitos pela comunidade cristã como sagrado, e, ele os
reintroduz ao cânon bíblico. O que Machado faz é uma apropriação do texto tido
como sagrado e coloca seu escrito em mesmo nível de sacralidade. Ao
complementar o livro do Gênesis, colocando como – três capítulos inéditos, o autor
Realista sugere não uma reescrita, mas uma inserção de uma parte do texto
sagrado que por alguma razão desconhecida havia ficado fora do cânon bíblico. Mas
para que isso fosse aceito pelo leitor como parte original da antiga obra literária
judaico-cristã, Machado assume a forma estrutural bíblica, inclusive dividindo por
capítulos e numerando frases como se fossem versículos.
De acordo com o que foi visto acima, àquilo que Antonio Candido denominou
redução estrutural (Candido,2010), é possível entender as realidades inseridas por
Machado através da forma literária, da configuração artística e os recursos por ele
utilizados na composição da obra, é por meio da criação alegórica que o autor faz o
leitor penetrar nas realidades por ele inseridas, trazendo a percepção de uma
realidade histórica.
“[...] o leitor tem a impressão de estar em contacto com realidades vitais, de estar
aprendendo, participando, aceitando ou negando, como se estivesse envolvido nos
problemas que eles suscitam”. (CANDIDO, 2015, p. 9).
Portanto, torna-se claro que é essa formação literária a grande sacada de Machado.
Se o texto bíblico é alegórico, e através dessas alegorias, formados por
personagens essencialmente humanos, com seus defeitos e qualidades, com suas
virtudes e seus vícios, tendo o intuito de doutrinar, ensinar, instruir e/ou ao menos
fazer o homem refletir sua essência, Machado cumpre fielmente essa particularidade
reinserindo-os ao contexto histórico, trazendo à tona características humanas
atemporais.

1.1. A canonicidade do texto machadiano – através da sintaxe

Compete se atentar para o fato de que o relato bíblico não faz menção sobre o
período de cento e cinquenta dia em que Noé, seus filhos, sua mulher e as mulheres
de seus filhos estiveram dentro da arca. No capítulo 7, eles entram na arca, já no
capítulo 8, estão realizando os preparativos para a saída.
Machado atento a esse detalhe, insere sua narrativa entre os capítulos 7 e 8.
Nota-se a forma abrupta como Machado inicia sua narrativa:

1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: - "Vamos sair da arca,
segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A
arca tem de parai no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.

Cabe salientar a introdução da conjunção “então” logo no início do parágrafo,


consequentemente de toda a narrativa. O uso dessa conjunção pressupõe que algo
havia sido dito anteriormente. A conjunção coordenativa conclusiva – então leva o
leitor à necessidade de entender preliminarmente os capítulos anteriores.
Colocando-a no início desse capítulo, Machado faz o elo entre a narrativa mosaica e
sua narrativa.
Sendo assim, o autor canoniza seu escrito tanto quanto o escrito hebraico. Coloca-o
no mesmo nível de autoridade canônica, quando da introdução da conjunção
explicativa no segundo versículo:

2. - "Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi dar


cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens.
Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.

Verifica-se que a conjunção introdutória desse versículo leva a justificativa à


divindade, assim como Moisés atribui seu escrito a uma ordem divina, Machado
propõe um discurso de autoridade “incontestável” – ao Deus dos hebreus. Logo, seu
discurso é tão fidedigno quanto o escrito sagrado, por isso canônico.

1.2. A sintaxe
O autor assume um estilo narrativo que os escritores bíblicos usam para narrar suas
histórias. Há a ausência e/ou poucos elos entre as orações e períodos. Inclusive, a
mudança de locutor de forma abrupta, a mudança de cena também inesperada,
como se pode observar neste trecho:

24. - Depois ficou meditabundo.


25. - E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava levantada,
bradou com tristeza:
26. - "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos
limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?"
27. - E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pai.
28. - A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.

1.3. O pertencimento – Do gênesis


O subtítulo – Três capítulos inéditos do Gênesis é muito revelador, pois nos traz
informações precisas acerca do conto: é inédito, pertence ao Gênesis.
Machado não deixa que o leitor duvide da canonicidade do conto, mesmo a despeito
de ser inédito.
Inédito, porque não consta no livro sagrado judaico-cristão. O único pergaminho em
que relata a história do patriarca Noé, não nos apresenta o conflito entre os filhos de
Noé durante os dias em que estiveram dentro da arca.
Parece que Machado está dizendo “não está no original, é inédito, todavia isso
aconteceu e pertence ao Gênesis”.
Constata-se a presença da preposição – “do” no subtítulo, o fenômeno linguístico
desempenhado por essa preposição estabelece a semântica de posse, é uma ideia
de pertencimento a algo, a alguém. No caso em apreço, ela determina a
circunstância de posse, o conto não consta na narrativa bíblica, no entanto pertence
a ela, faz parte de seu compêndio.

2. Da Intertextualidade e da Interdiscursividade

Nenhum discurso é totalmente novo, ou também, não há discurso neutro. Isso nos
leva a creditar que, o que pensamos e/ou falamos, fazemos sob uma perspectiva de
conhecimento de mundo. A teoria científica, o Determinismo Cultural, baseia-se no
relativismo cultural — a noção de que crescer em uma sociedade é tão diferente de
crescer em outra que não podem ser adequadamente comparadas. É como se um
residente de um país atuasse em uma realidade diferente de um residente de outra,
porque falam uma língua diferente, acreditam em uma religião diferente, e assim por
diante. O homem é inserido arbitrariamente em uma cultura, em um determinado
tempo, em um determinado meio e uma determinada raça, logo, ao chegar a este
mundo já há conceitos pré-estabelecidos a serem aprendidos, ideias a serem
abstraídas, podendo ser reformuladas, negadas e/ou transformadas, evoluídas.
Diante desse quadro, a linguagem, manifestação do pensamento, opera segundo o
conhecimento de mundo adquirido. Portanto, ainda que um ser levante novas teses,
pressupõe-se que é a partir de um ponto inicial essencialmente já conhecido que se
constrói novos conceitos. E, é nesse dialogismo entre o pensamento adquirido e a
reformulação de um novo conceito que se estabelece a intertextualidade e o
interdiscurso.
[...] “O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que
a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a
intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o
contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se
manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não intertextualidade. No
entanto, é preciso verificar que nem todas as relações dialógicas mostradas
no texto devem ser consideradas intertextuais”. (Fiorin, 2006, p. 181)

O que se verifica é que um texto mantém uma relação com outro/outros textos, seja
consciente ou inconscientemente. A intertextualidade é a incorporação de um texto
dentro de outro, seja para afirmá-lo, negá-lo ou transformá-lo. Já a
interdiscursividade é o processo de incorporação de discursos não materializados
diretamente em fontes
conhecidas. É “o processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou
figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. (Fiorin, 2006, p. 32)
Em “Na arca” o autor estabelece uma relação intertextual com o texto do Gênesis
sobre o relato tão conhecido – O dilúvio, prefigurado na pessoa do personagem Noé,
que constrói uma arca a pedido da divindade, para que ele e sua família sejam
salvos da destruição iminente da raça humana.
O interdiscurso se manifesta através de discursos ainda em relevância em nossa
sociedade contemporânea, discursos esses que vararam séculos e continuam ainda
tão pertinentes por serem atemporais e universais. Machado, como um bom leitor,
percebe que discursos como: a família patriarcal (família tradicional), a degeneração
da raça humana, seja biológica, ética ou “espiritual”, a violência, a ganância
materialista – representada pelo capitalismo, assim como o discurso de poder, ainda
se fazem presentes nos discursos atuais.
Dessa forma, o escritor busca discursos de sua época – século XIX, para através de
uma narrativa bíblica – intertextualidade, criar um discurso que dialoga com o
discurso de um outro escritor, Moisés, segundo a tradição judaico-cristã, com o
intuito de trazer luz a temas imprescindíveis na construção de uma sociedade justa e
humana.
3. Do sentido sociocultural

O texto de Machado dialoga com presente e passado. Há um vínculo entre questões


humanitárias que ultrapassam os limites territoriais e temporais. Daí a necessidade
de olhar para a obra com o auxílio da Sociologia e da Antropologia, a fim de
compreender qual dialogismo foi estabelecido pelo autor.
Para Candido, “O primeiro cuidado em nossos dias é, portanto, delimitar os campos
e fazer sentir que a sociologia não passa, neste caso, de disciplina auxiliar; não
pretende
explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns dos seus
aspectos” (Candido, Literatura e Sociedade, 2006, p. 28).
O conto discute uma possível divisão de terras pelos irmãos Sem e Jafé. Os irmãos
não se entendem a respeito da divisão e partem para agressão física, não obstante
a intervenção do irmão mais novo, do pai e das mulheres, a desavença continua e
termina a narrativa sem chegarem a um acordo e o pai lamentando as condições
éticas e morais dos filhos.
Vale ressaltar que Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé, que segundo a tradição
atribui-se a Jafé a paternidade dos povos caucasianos indo-europeus, a Sem a dos
semitas médio-orientais e a Cam, a dos africanos.
Segundo Antonio Candido, “O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples
foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o
seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque
ele combina e cria ao devolver à realidade" (Candido, Literatura e Sociedade, 2006,
p. 28), percebe-se, então, que Machado busca na narrativa bíblica uma nova
concepção da realidade por ele vivenciada, como diz Candido ele transforma,
combina e devolve à realidade. Nesse ponto do conto há entrecruzamentos de três
aspectos culturais, o primeiro a sociedade patriarcal descrita pelo relato bíblico como
uma sociedade corrompida em suas mazelas, com práticas perversas e total
desrespeito aos direitos humanos, a segunda, a sociedade que segundo a tradição
se formou a partir dos filhos de Nóe, já a terceira, Machado traz para sua realidade
contemporânea. Compreende-se a realidade social antediluviana, a sociedade pós-
dilúvio e a contemporânea, nisso o autor leva o leitor a compreender o presente pelo
viés da tradição histórica, e chegar a suas conclusões da origem dos grandes
conflitos não apenas externos, como a guerra por ele mencionada, como também os
conflitos internos, uma vez que todo e qualquer mal surge primeiramente nas
maquinações do pensamento – aqui, poderia acionar outra área do conhecimento
para dar conta.

3.1. Da geopolítica

Se, como mencionado no item anterior, Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé, e,
que segundo a tradição atribui-se a Jafé a paternidade dos povos caucasianos indo-
europeus, a Sem a dos semitas médio-orientais e a Cam, a dos africanos, o autor se
vale desse conhecimento para dar veracidade à narrativa.
Ao finalizar o conto, Machado acrescenta a fala do pai:

26. - "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos
limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?"

Cabe ressaltar aqui, que há a menção da guerra da Crimeia – disputa territorial entre
Rússia e Turquia, no século XIX – que de forma sutil Machado insere esse conflito
em sua narrativa. A dissenção entre Jafé, representante do povo europeu, e Sem,
dos povos semitas médio-orientais, à Russia e Turquia, respectivamente é, porém,
representativa desse conflito e funciona como uma espécie de narração do destino
dos indivíduos, consequentemente das nações por eles representadas.
O autor mostra-se comprometido com questões de seu tempo, busca fundamentar a
origem do conflito – a guerra da Crimeia – a tempos imemoriais. Traz luz ao embate,
de forma que qualquer justificativa ou razões que possam parecer plausíveis, nada
mais são que desejos humanos de domínio, poder e ganância.

4. Um olhar teológico
Em toda sua obra, Machado de Assis faz referências a conteúdos religiosos, são
inúmeras alusões a textos bíblicos de origem judaico-cristão e até outras menções a
determinados textos considerados sagrados, como em O Alienista em que há uma
referência ao Corão, livro sagrado islâmico.
Se o Ocidente tem em sua origem uma formação judaico-cristã, nada é mais
intrigante que manifestar através da literatura sua contribuição e incongruências
relativas ao desenvolvimento desse povo.
O autor começa sua narrativa esclarecendo ao leitor a razão pela qual eles estão
naquela arca:

1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: - "Vamos sair da arca,
segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A
arca tem de parai no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.
2. - "Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi dar
cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens.
Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.
3. - "E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.
4. - "Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor. e todos os homens
pereceram, e fecharam-se as cataratas dó céu; tornaremos a descer à terra, e
a viver no seio da paz e da concórdia."

Eis a razão no verso 2: “Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra,
[...]”, o mal havia proliferado sobre a Terra. É possível, por inferência, supor que de
todas as famílias, a de Noé era a mais justa, com valores e princípios mais éticos
e/ou morais, já que foi a única família a ser preservada.
O que Machado revela é surpreendente, pois o que em princípio revela-se uma
família piedosa:

4. - "[...] tornaremos a descer à terra, e a viver no seio da paz e da concórdia."

Revela-se, na verdade, tão quanto igual ao restante da população de sua época.


Nota-se que no verso 4 Noé expressa que ao descerem da arca, viveriam no seio da
paz e da concórdia, todavia ainda dentro da arca essas previsões não se
concretizam e a discórdia se apresenta, a guerra triunfa.
Assim, se a motivação pra o extermínio da raça humana estava no mal que se
avolumava e se espalhava pela Terra, se manifestando por diversas formas, ele
adentrou às portas da arca. A ganância evidenciada por diversas configurações
como disputa territoriais, a sede de poder, o subjugar do outro, das riquezas
desmedidas em detrimento do sofrimento alheio ou exploração e tantas outras
manifestações da maldade, segundo Machado, as águas não foram capazes de
afogá-las.
Machado é tão detalhista que no verso 10 do capítulo B, ele relata:
10. - Enquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do dilúvio, tinham vivido
na mais doce concórdia, ouvindo o rumor das vozes, vieram espreitar a briga
dos dois irmãos, e começaram a vigiar-se um ao outro.

Enquanto os irmãos estão em guerra pelas terras que ainda nem as possuem, o
lobo e o cordeiro, considerados rivais no reino animal, estão na “mais doce
concórdia”. Ao que parece a incorporação de uma fábula na narrativa, os animais
estão espreitando o acontecimento, não somente isso, mas vigiam um ao outro, são
eles os racionais no conto machadiano.
Assim, Machado se despede do conto em tom melancólico:

24. - Depois ficou meditabundo.


25. - E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava levantada,
bradou com tristeza:
26. - "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos
limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?"

O autor fecha sua narrativa mostrando toda sua desesperança em relação ao futuro
da humanidade. Com uma ironia que lhe é próprio, faz do conto um triste retrato da
condição humana e revelando ao final todo seu pessimismo quanto à mudança de
paradigma do ser humano, pois assim ele se despede:

28. - A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.


Se nos outros dois capítulos, Machado termina com este verso:

25. - A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.

No último capítulo ele acrescenta o verbo de ligação – ‘continuar’ à frase. Talvez,


seja importante atribuir metaforicamente a arca como o mundo, a família de Noé,
aos povos, dessa forma a crítica machadiana está estabelecida: assim foi no
passado, da mesma forma continua o mundo.

Considerações finais

Para Antonio Candido, “a função histórica ou social de uma obra depende da sua
estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de certas
representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita”.
(Candido, Literatura e Sociedade, 2006, p. 174). Diante dessa concepção de Antonio
Candido, o conto “Na arca” cumpre sua função histórica e social, pois tanto sua
organização formal, quando suas representações sociais estão deveras
condicionadas a seu tempo e a sociedade de sua época.
É possível notar, que nem mesmo o universo sagrado escapa de ser usado pelo
autor, para a realização de uma reflexão. Há de se observar que não há uma crítica
direta à religião, todavia sua narrativa é usada como arquétipo, a fim de exemplificar
o homem com suas contradições e desnudar sua alma, revelada através de suas
ações – egoístas e gananciosas.
Referências Bibliográficas

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre


Azul, 2006.

DE ASSIS, Machado. Na arca: Três capítulos inéditos do Gênesis. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1994. v. 2.

FULLERTON MACARTHUR, John. Bíblia Sagrada: Almeida Revista e Atualizada. 2.


ed. rev. e atual. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

LUIZ FIORIN, José. Intertextualidade e Interdiscursividade: in Bakhtin - Outros


Conceitos-Chave. [S. l.]: Contexto, 2005.

CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

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