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Introdução
Compete se atentar para o fato de que o relato bíblico não faz menção sobre o
período de cento e cinquenta dia em que Noé, seus filhos, sua mulher e as mulheres
de seus filhos estiveram dentro da arca. No capítulo 7, eles entram na arca, já no
capítulo 8, estão realizando os preparativos para a saída.
Machado atento a esse detalhe, insere sua narrativa entre os capítulos 7 e 8.
Nota-se a forma abrupta como Machado inicia sua narrativa:
1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: - "Vamos sair da arca,
segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A
arca tem de parai no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.
1.2. A sintaxe
O autor assume um estilo narrativo que os escritores bíblicos usam para narrar suas
histórias. Há a ausência e/ou poucos elos entre as orações e períodos. Inclusive, a
mudança de locutor de forma abrupta, a mudança de cena também inesperada,
como se pode observar neste trecho:
2. Da Intertextualidade e da Interdiscursividade
Nenhum discurso é totalmente novo, ou também, não há discurso neutro. Isso nos
leva a creditar que, o que pensamos e/ou falamos, fazemos sob uma perspectiva de
conhecimento de mundo. A teoria científica, o Determinismo Cultural, baseia-se no
relativismo cultural — a noção de que crescer em uma sociedade é tão diferente de
crescer em outra que não podem ser adequadamente comparadas. É como se um
residente de um país atuasse em uma realidade diferente de um residente de outra,
porque falam uma língua diferente, acreditam em uma religião diferente, e assim por
diante. O homem é inserido arbitrariamente em uma cultura, em um determinado
tempo, em um determinado meio e uma determinada raça, logo, ao chegar a este
mundo já há conceitos pré-estabelecidos a serem aprendidos, ideias a serem
abstraídas, podendo ser reformuladas, negadas e/ou transformadas, evoluídas.
Diante desse quadro, a linguagem, manifestação do pensamento, opera segundo o
conhecimento de mundo adquirido. Portanto, ainda que um ser levante novas teses,
pressupõe-se que é a partir de um ponto inicial essencialmente já conhecido que se
constrói novos conceitos. E, é nesse dialogismo entre o pensamento adquirido e a
reformulação de um novo conceito que se estabelece a intertextualidade e o
interdiscurso.
[...] “O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que
a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a
intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o
contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se
manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não intertextualidade. No
entanto, é preciso verificar que nem todas as relações dialógicas mostradas
no texto devem ser consideradas intertextuais”. (Fiorin, 2006, p. 181)
O que se verifica é que um texto mantém uma relação com outro/outros textos, seja
consciente ou inconscientemente. A intertextualidade é a incorporação de um texto
dentro de outro, seja para afirmá-lo, negá-lo ou transformá-lo. Já a
interdiscursividade é o processo de incorporação de discursos não materializados
diretamente em fontes
conhecidas. É “o processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou
figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. (Fiorin, 2006, p. 32)
Em “Na arca” o autor estabelece uma relação intertextual com o texto do Gênesis
sobre o relato tão conhecido – O dilúvio, prefigurado na pessoa do personagem Noé,
que constrói uma arca a pedido da divindade, para que ele e sua família sejam
salvos da destruição iminente da raça humana.
O interdiscurso se manifesta através de discursos ainda em relevância em nossa
sociedade contemporânea, discursos esses que vararam séculos e continuam ainda
tão pertinentes por serem atemporais e universais. Machado, como um bom leitor,
percebe que discursos como: a família patriarcal (família tradicional), a degeneração
da raça humana, seja biológica, ética ou “espiritual”, a violência, a ganância
materialista – representada pelo capitalismo, assim como o discurso de poder, ainda
se fazem presentes nos discursos atuais.
Dessa forma, o escritor busca discursos de sua época – século XIX, para através de
uma narrativa bíblica – intertextualidade, criar um discurso que dialoga com o
discurso de um outro escritor, Moisés, segundo a tradição judaico-cristã, com o
intuito de trazer luz a temas imprescindíveis na construção de uma sociedade justa e
humana.
3. Do sentido sociocultural
3.1. Da geopolítica
Se, como mencionado no item anterior, Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé, e,
que segundo a tradição atribui-se a Jafé a paternidade dos povos caucasianos indo-
europeus, a Sem a dos semitas médio-orientais e a Cam, a dos africanos, o autor se
vale desse conhecimento para dar veracidade à narrativa.
Ao finalizar o conto, Machado acrescenta a fala do pai:
26. - "Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos
limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?"
Cabe ressaltar aqui, que há a menção da guerra da Crimeia – disputa territorial entre
Rússia e Turquia, no século XIX – que de forma sutil Machado insere esse conflito
em sua narrativa. A dissenção entre Jafé, representante do povo europeu, e Sem,
dos povos semitas médio-orientais, à Russia e Turquia, respectivamente é, porém,
representativa desse conflito e funciona como uma espécie de narração do destino
dos indivíduos, consequentemente das nações por eles representadas.
O autor mostra-se comprometido com questões de seu tempo, busca fundamentar a
origem do conflito – a guerra da Crimeia – a tempos imemoriais. Traz luz ao embate,
de forma que qualquer justificativa ou razões que possam parecer plausíveis, nada
mais são que desejos humanos de domínio, poder e ganância.
4. Um olhar teológico
Em toda sua obra, Machado de Assis faz referências a conteúdos religiosos, são
inúmeras alusões a textos bíblicos de origem judaico-cristão e até outras menções a
determinados textos considerados sagrados, como em O Alienista em que há uma
referência ao Corão, livro sagrado islâmico.
Se o Ocidente tem em sua origem uma formação judaico-cristã, nada é mais
intrigante que manifestar através da literatura sua contribuição e incongruências
relativas ao desenvolvimento desse povo.
O autor começa sua narrativa esclarecendo ao leitor a razão pela qual eles estão
naquela arca:
1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: - "Vamos sair da arca,
segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A
arca tem de parai no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.
2. - "Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: Resolvi dar
cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens.
Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.
3. - "E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.
4. - "Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor. e todos os homens
pereceram, e fecharam-se as cataratas dó céu; tornaremos a descer à terra, e
a viver no seio da paz e da concórdia."
Eis a razão no verso 2: “Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra,
[...]”, o mal havia proliferado sobre a Terra. É possível, por inferência, supor que de
todas as famílias, a de Noé era a mais justa, com valores e princípios mais éticos
e/ou morais, já que foi a única família a ser preservada.
O que Machado revela é surpreendente, pois o que em princípio revela-se uma
família piedosa:
Enquanto os irmãos estão em guerra pelas terras que ainda nem as possuem, o
lobo e o cordeiro, considerados rivais no reino animal, estão na “mais doce
concórdia”. Ao que parece a incorporação de uma fábula na narrativa, os animais
estão espreitando o acontecimento, não somente isso, mas vigiam um ao outro, são
eles os racionais no conto machadiano.
Assim, Machado se despede do conto em tom melancólico:
O autor fecha sua narrativa mostrando toda sua desesperança em relação ao futuro
da humanidade. Com uma ironia que lhe é próprio, faz do conto um triste retrato da
condição humana e revelando ao final todo seu pessimismo quanto à mudança de
paradigma do ser humano, pois assim ele se despede:
Considerações finais
Para Antonio Candido, “a função histórica ou social de uma obra depende da sua
estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de certas
representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita”.
(Candido, Literatura e Sociedade, 2006, p. 174). Diante dessa concepção de Antonio
Candido, o conto “Na arca” cumpre sua função histórica e social, pois tanto sua
organização formal, quando suas representações sociais estão deveras
condicionadas a seu tempo e a sociedade de sua época.
É possível notar, que nem mesmo o universo sagrado escapa de ser usado pelo
autor, para a realização de uma reflexão. Há de se observar que não há uma crítica
direta à religião, todavia sua narrativa é usada como arquétipo, a fim de exemplificar
o homem com suas contradições e desnudar sua alma, revelada através de suas
ações – egoístas e gananciosas.
Referências Bibliográficas