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Sabores&

LEMBRANÇAS
Memórias afetivas direto da cozinha de chefs refugiados

Sabores & Lembranças 1


Sabores &
LEMBRANÇAS
Apoio

Realização
Sumário

1
4 Introdução
5 Um novo começo na cozinha
6 Sobre o Adus

Evodie Mwepu

2
7
Bacalhau com banana-da-terra 14
Rocher de coco 16

Gema Soto

3
19
25 Hallaca
28 Buñuelos de yuca

Mohamad Alghuorani

4
32
Sheikh de coalhada 38
Knéf com queijo 40

44 Sorab Kohkan
50 Kabuli pulai
52 Firnee
Introdução

Sabores & Lembranças


Esperamos que, nas próximas páginas, você adentre as vivências
gastronômicas da congolesa Evodi Mwepu, da venezuelana Gema Soto,
do sírio Mohamad Alghuorani e do afegão Sorab Kohkan. Eles abriram
a cozinha para as chefs brasileiras Bel Coelho, Bela Gil, Ieda de Matos e
Helena Rizzo. Integração de culturas e sabores: uma mistura que a culinária
sabe fazer melhor que ninguém. E, depois de passear pelas histórias dos
chefs, torcemos para que você se sinta à vontade para vestir um avental,
separar seus utensílios e deleitar-se na riqueza culinária dos países de
origem desses chefs refugiados, que estão trilhando belos caminhos
gastronômicos no Brasil.

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Introdução

Um novo começo na cozinha


Todos os dias, milhares de pessoas são forçadas a deixar suas casas de-
vido a perseguições, conflitos armados, violências e violações de direi-
tos humanos. Uma vez em um novo país, refugiados enfrentam diversas
barreiras na hora de reconstruir suas vidas, de se integrar. É preciso,
sobretudo, aprender um novo idioma, adaptar-se a uma nova cultura,
enfrentar preconceitos e estereótipos e se recolocar no mercado de tra-
balho. Muitas dessas pessoas encontraram, nos temperos de sua terra
natal e no empreendedorismo, uma forma de matar a saudade de tudo
que tiveram que abandonar e de gerar renda em solo brasileiro.
O projeto Sabores & Lembranças está inserido nesse contexto e serve
a esse propósito. Buscamos, por meio de workshops de gastronomia mi-
nistrados por refugiados, dar visibilidade e potencializar o trabalho que
realizam, ampliar as suas redes de relacionamento e gerar momentos de
interação e integração entre refugiados e a população local.
Poder participar desses momentos nos traz muita alegria, responsa-
bilidades e gratidão a todos que contribuíram para o lançamento deste
livro. Nosso muito obrigado a toda a equipe envolvida, aos chefs Bel
Coelho, Bela Gil, Evodi Mwepu, Gema Soto, Helena Rizzo, Ieda de Ma-
tos, Mohamad Alghuorani e Sorab Kohkan, à JSL, nossa patrocinadora,
e ao Governo do Estado de São Paulo.

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Introdução

Sobre o Adus
O Adus atua desde 2010 na integração de refugiados e outros estrangeiros
vítimas de migrações forçadas em São Paulo, oferecendo todo suporte
para obtenção de documentação, aulas de português, capacitação pro-
fissional e inclusão no mercado de trabalho. Desde 2013, trabalhamos
a culinária como forma de inclusão e sustento das famílias por meio da
promoção de feiras étnicas e workshops de gastronomia.
É muito gratificante acompanhar o caminho trilhado por muitos refu-
giados que têm na gastronomia uma forma de empreender e gerar ren-
da, ou mesmo de matar as saudades de suas famílias, de suas histórias. A
gastronomia reúne pessoas, agrega famílias, suaviza os traumas vividos,
estreita vínculos, explora trocas e gera novas oportunidades.

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Parte 1

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Evodie Mwepu
República Democrática do Congo

A
cozinha profissional chegou de forma inesperada à vida de
Evodie Kanyeba Mwepu. Nascida em Kinshasa, capital e maior
cidade da República Democrática do Congo, ela é a oitava filha
de dez irmãos e aprendeu a lidar com ingredientes e sabores com a
mãe. Falante de francês, suaíli, lingala, tshiluba e português e formada
em Literatura, Evodie veio ao Brasil em 2015 para encontrar seu marido
e aqui fincou raízes.
Naquela época, a culinária ainda era uma obrigação doméstica,
não um prazer – e muito menos uma profissão. Com o tempo, ela foi
aprimorando suas habilidades cozinhando para amigos e a família, até
que foi convidada a participar de um evento gastronômico promovido
por uma ONG. Apesar do medo, ela aceitou preparar uma iguaria da
cozinha congolesa e foi surpreendida pelo sucesso que o prato fez.

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Evodie

Desde então, vem descobrindo-se cozinheira a cada dia e abraçou o


amor pelo ofício.
Em 2017, apareceu um concurso gastronômico. O prêmio incluía
um curso de culinária, e o marido logo incentivou que ela participasse,
novamente preparando um prato típico de seu país. O escolhido foi o
pondu, uma das mais icônicas receitas congolesas, que é passada por
gerações. Na maioria das vezes, o prato é acompanhado de peixe ou
carne, além de arroz, pão, banana-da-terra frita ou até inhame cozido.
Evodie o preparou como costumava fazer em casa, com bacalhau e
molho de berinjela. E é claro que foi um sucesso.
Vieram outros concursos e cursos e, finalmente, ela começou a
vender seus pratos por meio de um aplicativo, ao mesmo tempo que
continuava participando de eventos e a atendendo encomendas. Uma
mulher para a qual não há tempo ruim – até uma barraca na feira da

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Evodie

Vila Madalena ela já administrou, lá em 2018. E se você pergunta se ela


teve problemas para encontrar os ingredientes congoleses no Brasil, a
resposta enche o coração: “O Brasil é África”.
De lá para cá, Evodie participou de um programa de TV em que
apresentou o liboke, prato que traz filés de tilápia cozidos com tomate e
cebola em uma folha de bananeira, e se dedicou ao crescimento de seu
negócio de comida por encomenda. Após sofrer a perda de seu filho, ela
encontrou algum conforto no trabalho, e se tornou reconhecida como
uma chef criativa e admirada. Foi no Brasil que ela, de fato, investiu em
sua carreira e pôde acreditar que a cozinha seria seu projeto de vida.
Além do makemba na makayabu ya aubergines (bacalhau ao molho
de berinjela com banana-da-terra), Evodie ensina a receita do famoso
rocher du coco, sobremesa à base de coco ralado, ovos e açúcar,
daquelas que derretem na boca. Para ela, que fez de um país em outro

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Evodie

continente o seu lar, a grande chave para o sucesso é a determinação.


“Nunca desistir. Nunca se subestimar. Tenha um projeto na cabeça e
tente. Não deu certo? Tente outro.”

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Evodie

Bacalhau com
banana-da-terra
RENDE 5 A 6 PORÇÕES

1 kg de bacalhau
Óleo
1/2 kg de berinjela em cubos grandes
2  cebolas grandes picadas
3 dentes de alho picados
3 pimentões (1 verde, 1 vermelho e 1 amarelo) picados
1/2 maço de coentro
1  pedaço pequeno de gengibre ralado (cerca de 10 g)
1 maço de cebolinha
3 folhas de louro
1/2 colher (sopa) de sal
1 kg de banana-da-terra cozida

Modo de preparo
Em uma tigela com tampa, deixe o bacalhau de molho em água na
noite anterior ao preparo para dessalgar. No dia seguinte, reserve 1 e
½ xícara da água do dessalgue e escorra o restante. Passe o bacalhau
em água fria e enxugue-o com papel absorvente. Leve uma frigideira
grande ao fogo médio-baixo e regue com um fio de óleo. Doure o
bacalhau dos dois lados e reserve. Na mesma frigideira, refogue a
cebola e o alho. Acrescente a berinjela e os pimentões aos poucos
para que dourem por igual. No liquidificador, bata o coentro, o
gengibre e a cebolinha até formar uma pasta e adicione ao refogado.
Deixe cozinhar por 5 minutos. Acrescente 1 e 1/2 xícara da água
reservada, as folhas de louro e o bacalhau e cozinhe por 10 a 15
minutos. Antes de servir, finalize com as bananas em rodelas.

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Evodie

Rocher de coco
RENDE 5 A 6 PORÇÕES

6 claras de ovo
1/2 colher (café) de sal
1 ½ xíc. de açúcar (300 g)
2 xíc. de coco ralado (380 g)
Manteiga para untar

Modo de preparo
Preaqueça o forno a 180 ºC. Na batedeira, bata as claras em neve
até dobrarem de volume, adicione o sal e bata para incorporar.
Aos poucos, acrescente o açúcar. Por fim, com uma espátula,
incorpore o coco ralado. Faça bolinhas com a massa e disponha-as
em uma assadeira untada com manteiga, deixando uma distância
entre elas. Asse por cerca de 20 minutos ou até que estejam
douradas. Tire as bolinhas ainda quentes da assadeira e sirva.

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A troca e a riqueza cultural são enriquecedoras, não apenas
na cozinha. No Maní, já recebemos trabalhadores refugiados
de várias nacionalidades, entre eles venezuelanos e haitianos.
Todo movimento público ou civil é extremamente importante
no acolhimento a refugiados, necessário.”
Helena Rizzo
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Helena Rizzo Gaúcha de Porto Alegre, Helena Rizzo cresceu
em uma família cheia de comida e arte. A mãe, artista plástica,
incentivava os filhos a desenhar e a explorar seu lado criativo enquanto
preparava biscoitos amanteigados para eles; ao mesmo tempo, o
pai, engenheiro, encarregava-se do tradicional churrasco gaúcho.
Passagens por cozinhas em São Paulo, na Itália e na Espanha lhe
renderam muitos aprendizados. De volta ao Brasil, Helena inaugurou o
Maní, em 2006, reconhecido no mundo todo por sua cozinha autoral
e focada em ingredientes representativos da cozinha brasileira.
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Parte 2

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Gema Soto
Venezuela

G
ema de Los Angeles Soto transborda força e alegria. Seus três
filhos – Eliezka, Eliane e o caçula, Leinner – foram sua motivação
para lutar contra as adversidades e encontrar na gastronomia a
expressão de sua cultura, suas raízes e sua própria história. Sua relação com
o Brasil começou em 2017, quando passou a fazer viagens intermitentes ao
país. Vinha de Puerto Ordaz, uma cidade no estado de Bolívar, no nordeste
da Venezuela, para vender seu artesanato. Sem condições de manter os filhos,
estabeleceu-se aqui, definitivamente, depois de seis meses de vindas e idas.
Desde sua saída do país de origem, Gema teve inúmeras ocupações.
Trabalhou como supervisora em uma rede de supermercados, como artesã
e com turismo. Também já foi vendedora e faxineira. Em um momento
que define como “mágico”, alguém lhe falou sobre cozinha e, um tempo
depois, surgiu um curso de empreendedorismo gastronômico. O caminho

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Gema

estava se abrindo: ela se via fazendo aquilo que sabia fazer.


O salto na carreira foi inesperado. Gema conquistou uma vaga de
ajudante de cozinha em uma creche e, um mês depois de ter iniciado
o trabalho, o cozinheiro foi embora e coube a ela assumir a função.
Apavorada diante da responsabilidade de cuidar da alimentação das
crianças, ela sofria por não conhecer o nome dos legumes, das verduras
e dos temperos. Nunca havia preparado refeições em quantidades tão
grandes. Mas “a cozinha era, nesses momentos da vida, o passado, o
presente e o futuro”, ela lembra.
De posse dessa força ancestral, Gema encarou o desafio. Ela
levou para os pratos as reuniões familiares na Venezuela, nas quais
o cômodo mais concorrido da casa era a cozinha – uma espécie de
confessionário, quase um consultório psicológico onde as conversas
e desabafos corriam soltos.

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Em suas recordações culinárias, ela descreve o pastijo (semelhante a
uma lasanha) e o sancocho (sopa venezuelana que inclui costela bovina
ou frango picado, acompanhada de legumes e tubérculos típicos da
região, como mandioca, inhame e ocumo). Lembra também que os pratos
dos encontros familiares variavam de acordo com o período do ano: na
Semana Santa, pescados; no Natal, hallacas (massa de milho recheada
com ensopado de carne, às vezes enrolada em folhas de bananeira).
Cozinhar para as crianças lhe abriu portas para uma bolsa de estudos
em uma escola de gastronomia, onde pôde aprimorar suas técnicas e
conhecer mais sobre a cozinha brasileira. Isso a ajudou a adaptar suas
receitas aos ingredientes oferecidos no Brasil.
Para partilhar a mesa com você, Gema selecionou dois de seus pratos
preferidos. O primeiro é a hallaca, que consiste em uma massa de milho
branco recheada com um guisado de cogumelos e banana e cozida
na folha de bananeira. O segundo prato, por sua vez, é a definição do
encantamento de sua infância.
Gema diz que era comum, em sua cidade, reunirem todas as crianças
em um sítio. As mães precisavam fazer uma guloseima para saciar os
pequenos, mas que não fosse cara – ou seja, que não levasse farinha de
trigo, ovos, fermento ou leite. Assim, criaram um doce feito de mandioca
e rapadura, o buñuelo de yuca. Um doce que, ressalta Gema, “representa
a grandeza da mãe venezuelana”.

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Gema

Hallaca
RENDE 7 PORÇÕES

Para a massa
1 kg de folha de bananeira
1 kg de farinha de milho branco
Sal a gosto
3 colheres (sopa) de colorau
100 ml de óleo
Barbante culinário

Para o recheio
Óleo
2 cebolas médias picadas (250 g)
15 dentes de alho picados (60 g)
1/2  xíc. de alho-poró (100 g)
em rodelas finas
1,5 kg de banana em rodelas
Sal, pimenta-do-reino e cominho
a gosto
2 xíc. de cogumelos sortidos
picados (400 g)
1 pimentão vermelho em tiras
100 g de azeitonas
100 g de alcaparras
100 g de uvas-passas

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Gema

Modo de preparo
Limpe as folhas de bananeira e passe-as na chama do fogão para
queimar um pouco. Prepare a massa: em uma tigela, misture a farinha,
o sal, o colorau e o óleo até ficar homogêneo. Reserve. Em uma panela
grande, aqueça um fio de óleo e refogue a cebola até ficar transparente.
Acrescente o alho e o alho-poró. Depois, as rodelas de banana. Tempere
com sal, pimenta-do-reino e cominho. Em outra frigideira, aqueça um
fio de óleo e grelhe os cogumelos. Junte-os à panela do refogado e
misture. Para a montagem, corte as folhas de bananeira em quadrados
de aproximadamente 15 cm e espalhe uma camada da massa. Coloque
uma porção de recheio por cima e distribua azeitonas, alcaparras, uvas-
passas e uma tira de pimentão em cada. Dobre a massa sobre o recheio,
com a ajuda da folha de bananeira, e amarre com uma tira da folha
ou com um pedaço de barbante culinário. Cozinhe em água fervente,
no fogo médio, por uma hora. Sirva ainda quente.

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Gema

Buñuelos de yuca
RENDE 20 UNIDADES

Para a massa
1 kg de mandioca
250 g de queijo minas do tipo firme
1 kg de beiju de mandioca
1 litro de óleo

Para a calda de rapadura


250 g de rapadura picada ou ralada
2 colheres (sopa) de canela em pó
2 colheres (sopa) de cravo em grão

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Gema

Modo de preparo
Em uma panela grande, adicione a
mandioca, cubra com água e deixe ferver.
Escorra a água e adicione novamente
água suficiente para cobrir a mandioca.
Cozinhe até que esteja macia e escorra
em uma peneira. A mandioca deve ficar
sem nenhum vestígio de líquido, caso
contrário, ao fritar o bolinho, o óleo pode
saltar da frigideira. Prepare um purê com
a mandioca: amasse com um garfo ou
com um espremedor de batatas. Esfarele
o queijo e incorpore-o ao purê. Misture
até ficar homogêneo. Com as mãos, faça
bolinhas com a massa. Para facilitar,
umedeça um pouco as mãos. Empane os
bolinhos de mandioca no beiju. Em uma
panela ou frigideira alta, aqueça o óleo.
Quando o óleo estiver quente, mas sem
soltar fumaça, adicione os bolinhos de
mandioca aos poucos, entre 4 e 6
unidades por vez. Frite os bolinhos por 2
a 4 minutos, virando na metade do tempo
para dourar o outro lado. Deixe que
escorram em um prato forrado com papel
absorvente. Prepare a calda: em uma
panela no fogo médio, derreta a
rapadura. Acrescente a canela e o cravo
para aromatizar e desligue o fogo.
Sirva os bolinhos em uma travessa
com a calda por cima.

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Torço muito para que mais mulheres ocupem lugares de
liderança nas cozinhas profissionais. Eu nem sempre soube
cozinhar, e compartilho a minha trajetória de aprendizado
para que mais meninas e mulheres se inspirem e saibam
que podemos e devemos ocupar cozinhas profissionais
recebendo o devido reconhecimento por isso.”
Bela Gil
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Bela Gil Ativista da alimentação justa e sustentável, Bela Gil
transita por diversas áreas da culinária. Além de comandar
as panelas do Camélia Òdòdó, seu restaurante em São Paulo,
a chef é uma das apresentadoras do programa Saia Justa, no GNT,
e vice-presidente do Instituto Brasil Orgânico (IBO). Com mestrado
em Ciências Gastronômicas pela Universidade de Ciências
Gastronômicas da Itália (UNISG) e formação em Nutrição pela
Hunter College, em Nova York, Bela defende que todas as pessoas
devem ter acesso à comida e a produtos sustentáveis, e desenvolve
diversos projetos com ênfase em agroecologia.
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Parte 3

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Mohamad Alghuorani
Síria

A
dedicação com que Mohamad Alghuorani trata a gastronomia
emociona. Sua história de persistência e amor à culinária começou
em seu país de origem, a Síria, quando ele tinha 13 anos. Na
época, foi ajudante de cozinha, e tomou tanto gosto pelas panelas que,
aos 22, abriu seu próprio restaurante no centro de Damasco, cidade
conhecida como a mais antiga do mundo.
Em 2012, foi obrigado a sair da Síria e chegou ao Brasil dois anos
mais tarde. Aqui, Mohamad trabalhou por conta própria em inúmeras
feiras, preparando lanches e pratos sírios, e seguiu passando por outras
cozinhas. Foi sócio de um restaurante em Osasco e montou uma fábrica
de doces sírios em São Paulo, mas a pandemia de Covid-19 prejudicou os
negócios e a fábrica foi fechada. Em um momento de clareza, Mohamad
soube que esse era mais um exercício de resiliência e construção que a
vida lhe impunha. Uma vida dedicada à culinária.

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Mohamad

Durante aquele período, decidiu divulgar seu trabalho no prédio onde


morava e continuou cozinhando. E a reconstrução veio um ano após
o fechamento da fábrica de doces. Incansável, Mohamad alugou uma
casa e reconstruiu sua cozinha. Hoje, ele e a esposa atendem juntos às
encomendas, principalmente de famílias árabes que, como ele ressalta
orgulhoso, “sabem que Mohamad é o melhor cozinheiro aqui”.
A carreira no Brasil teve muitos desafios. No negócio de doces sírios,
a complexidade das receitas e o constante rodízio de funcionários – que,
depois de bem treinados, acabavam alçando outros voos – dificultaram
a manutenção da fábrica. Além disso, Mohamad é rigoroso com a
autenticidade de suas receitas. Para ele, é preciso respeitar os ingredientes
originais e mais adequados para os doces. Nada de excesso de açúcar,
por exemplo, ou farinha de castanha-de-caju e amendoim no lugar do
pistache, como muitos fazem. Qualidade e sabor sempre lhe foram cruciais.

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Mohamad

Sua filosofia é que ninguém se torna um chef após um curso de alguns


meses. Ele aprendeu, na Síria, que são necessários muitos anos para se
tornar um profissional competente na cozinha. “Cozinhar bem é uma coisa.
Trabalhar com cozinha é outra história”, diz. E o principal ingrediente é
o amor pelo ofício.
Depois de passar por seis países diferentes, Mohamad defende que
o importante é manter o “sabor árabe”. Em 2007, trabalhou em dois
grandes hotéis no Qatar e viu de perto como é fundamental seguir
um alto padrão na cozinha. Talvez por isso, Mohamad tenha escolhido
compartilhar duas receitas bastante tradicionais em seu país. O sheikh de
coalhada, que consiste em abobrinhas recheadas com carne e servidas
com coalhada, é uma delas. E para a sobremesa, o delicioso e popular
knéf (também conhecido como kunafah ou knafeh) de queijo.
Com a voz de quem já viveu um pouco de tudo na cozinha, Mohamad
dá um conselho aos apaixonados pela gastronomia, algo para refletir
antes de testar qualquer técnica ou nova receita: “Precisa ter o gosto em
seu coração. Precisa ter força, precisa ter tempo”.

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Mohamad

Sheikh de coalhada
RENDE 20 UNIDADES

20 miniabobrinhas (cerca de 1 kg)


3 colheres (sopa) de manteiga (50 g)
600 g de coxão mole moído
½ xícara de castanha-de-caju (100 g)
Sal e pimenta-do-reino a gosto
500 g de coalhada
1 ovo
3 colheres (sopa) de amido de milho
½ maço de folhas de hortelã

Modo de preparo
Corte as abobrinhas ao meio no sentido do comprimento e retire
os miolos. Leve uma panela ao fogo médio, adicione metade da
manteiga e refogue a carne por 15 minutos ou até ficar ao ponto.
Acrescente a castanha e tempere com sal e pimenta-do-reino.
Reserve. Em uma panela grande, cubra as abobrinhas com água
e cozinhe por 20 minutos. Retire e deixe que repousem em um
escorredor para retirar o excesso de água. Reserve 1 xícara da água
do cozimento para usar na coalhada. Recheie as abobrinhas com a
carne. Em uma frigideira no fogo alto, derreta o restante da manteiga
e frite a base das abobrinhas recheadas até dourar. Reserve. No
liquidificador, bata a coalhada, a água reservada, o ovo, o amido de
milho e uma pitada de sal. Coloque o creme em uma panela e cozinhe
em fogo baixo até engrossar, mexendo sempre com um fouet para
não empelotar. Para servir, faça uma cama de coalhada e disponha
as abobrinhas recheadas por cima. Finalize com as folhas de hortelã.

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Mohamad

Knéf com queijo


RENDE 20 PORÇÕES PEQUENAS

Para a massa
1/2 xícara + 1 colher (sopa) de manteiga (150 g)
500 g massa knafi
500 g de muçarela ralada
300 g de quejo branco ralado
100 g de pistache

Para a calda
2 xícaras de açúcar (500 g)
1 colher (chá) de água de rosa
5 gotas de limão

Modo de preparo
Prepare a calda. Em uma panela, adicione 300 ml de água, o açúcar
e a água de rosa. Deixe ferver em fogo alto, desligue e acrescente
as gotas de limão. Reserve. Em uma frigideira grande, distribua a
manteiga e espalhe a massa knafi até a borda atingir 1 cm de altura.
Em um bowl, misture os queijos e coloque por cima da massa. Leve a
frigideira ao fogo baixo e mexa sempre, com movimentos de vai e vém
ou rotacionais para não queimar. Quando a base estiver dourada, vire
levemente a frigideira sobre um bowl para retirar o excesso de gordura.
Depois, vire o knafi em um prato de servir, para que o queijo fique
embaixo. Finalize com o pistache e a calda.

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Ter a oportunidade de acreditar que é possível, a chance de
viver uma vida normal e ter sonhos que possam se tornar
reais. Precisamos de oportunidade, e digo isso porque sou uma
migrante nordestina. Se para nós brasileiros é difícil, imagine
como deve ser para uma pessoa refugiada.”
Ieda de Matos
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Ieda de Matos Vinda da Bahia, a chef Ieda de Matos sempre
acompanhou a rotina da família na cozinha. Chegou a São Paulo junto
com uma tia que a adotou e, na capital paulista, trabalhou em diversas
áreas até decidir realizar o antigo sonho de viver entre panelas.
Profissionalizou-se, fez estágios na Bélgica e, na volta ao Brasil,
resolveu investir em comida de rua. Deu vida ao Bocapiu, em que
serviu receitas nordestinas por três anos. Depois, decidiu abrir a Casa
de Ieda, restaurante destinado a servir os sabores de sua terra natal,
a Chapada Diamantina. Ali, traduz o sabor da sua memória em
receitas pensadas com afeto e carinho.
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Parte 4

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Sorab Kohkan
Afeganistão

O
pequeno restaurante no centro de São Paulo, chamado
Koh-i-Baba, reflete a saudade e o orgulho que Sorab Kohkan
tem de sua terra natal. A começar pela escolha do nome, cuja
tradução do persa seria “montanhas do pai”, em referência aos montes
Baba, uma extensão da cordilheira Indocuche onde habita o povo hazara
– minoria étnica à qual pertencem Sorab e sua família.
O ambiente do Koh-i-Baba reúne, ainda, pinturas e fotos do Afeganistão,
tornando o restaurante um oásis para Sorab e a esposa, Raihana Ebrahemi,
que vivem no Brasil desde 2012. O casal tem cinco filhos que permaneceram
no país de origem até 2021, quando Sorab conseguiu voltar para resgatá-los
do regime fundamentalista afegão. Lá, Sorab era professor universitário, mas
em seu refúgio – tendo passado também pela Alemanha e pela Espanha –
chegou a trabalhar como tradutor, pintor e, só depois, como cozinheiro.
Ele conta que aprendeu a cozinhar com uma tia aos 14 anos – a mesma

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Sorab

que bordou a camisa e o pano de copa usados por Sorab (acima). A proposta
da tia para as aulas foi convincente: “Assim, comerás sempre bem”. No Brasil, os
segredos da cozinha saíram do ambiente caseiro e ganharam novos contornos.
Num primeiro momento, com o intuito de ganhar dinheiro e sobreviver no
país, Sorab vendia todo tipo de comida – pastéis, pizzas e lanches diversos.
Depois de um tempo, percebeu que se dedicar à culinária de seu país de
origem o destacaria no ramo. Foi assim que fez do Koh-i-Baba o primeiro – e,
por enquanto, único – restaurante afegão do Brasil.
Embora a cozinha afegã seja uma fusão de diferentes culturas,
principalmente da Ásia Central e da Índia, um elemento bastante comum
aos brasileiros aparece em diversos pratos: o arroz. É ingrediente de
diversos preparos salgados, mas também pode ser a base de muitas
sobremesas. O kabuli pulai (também conhecido como qabili palau ou
simplesmente palau), compartilhado por Sorab neste livro, é considerado

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Sorab

o prato nacional do Afeganistão. Leva arroz basmati, costela, pistache,


cenoura, uva-passa e cardamomo – a principal especiaria afegã.
Com o reencontro da família, todos agora trabalham no restaurante,
preparando a comida e servindo as mesas. E mesmo que ainda tenham
um pouco de dificuldade com o idioma, Sorab e Raihana recebem pedidos
pelo celular e enviam a comida por meio de aplicativos de entrega.
A sobremesa mais pedida no restaurante, cuja receita Sorab também
compartilhou, é o firnee, uma espécie de pudim de leite coberto com nozes e
pistaches. O diferencial está no equilíbrio da especiaria aromática, o cardamomo.
A união e a coragem da família tornam o dia a dia mais leve e
permitem que os sonhos de Sorab floresçam. Os planos para o futuro
incluem estudar o mercado gastronômico brasileiro e divulgar ainda mais
a culinária afegã. “Saber usar os temperos no momento certo”, como
ele aconselha, parece ser o segredo para a explosão de sabores que é
a sua comida, com tempero caseiro e muito frescor.
Sabores & Lembranças 48
Sabores & Lembranças 49
Sorab

Kabuli pulai
RENDE 6 PORÇÕES

Para o arroz
500 g de arroz basmati
500 ml de óleo de gergelim
2 cebolas grandes cortadas em tiras finas
1,2 kg de costela de boi sem muita gordura
Sal
3 cenouras cortadas em tiras (180 g)
100 g de uvas-passas pretas
100 g de pistaches descascados
100 g de amêndoas laminadas

Para o vinagrete
1 cebola roxa picada
3 tomates picados
1 pepino picado
2 maços pequenos de hortelã

Modo de preparo
Deixe o arroz hidratando em água quente por duas horas. Em
uma panela grande, aqueça o óleo de gergelim e frite as cebolas.
Acrescente a carne, selando dos dois lados, e deixe cozinhar até que
esteja bem macia, adicionando um pouco de água se necessário.
Tempere com sal. Junte o arroz e cozinhe até secar o caldo. Misture os
ingredientes do vinagrete e reserve. Em uma frigideira antiaderente,
toste as uvas-passas, as cenouras, os pistaches e as amêndoas e sirva
por cima do arroz. O vinagrete acompanha.

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Sorab

Firnee
RENDE 10 PORÇÕES

1 litro de leite
1 colher (sopa) de cardamomo em pó
1 xíc. de açúcar (200 g)
1 xíc. de amido de milho (200 g)
3 colheres (chá) de pistaches picados
1 colher (sopa) de nozes picadas

Modo de preparo
Em uma panela no fogo médio, ferva o leite com o cardamomo e o
açúcar. Em uma tigela, misture o amido de milho com um pouco de
água, suficiente para dissolvê-lo por completo. Adicione a pasta à
panela com leite, mexendo sempre para não formar grumos. Abaixe
o fogo e continue cozinhando por mais 5 minutos. Despeje o creme
em uma travessa e deixe esfriar. Quando a superfície estiver fria, leve a
travessa para a geladeira por no mínimo 1 hora. Sirva com os pistaches
e as nozes por cima.

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O refúgio é uma questão humanitária que merece muita
atenção. Criar novos espaços para acolher refugiados
e imigrantes é fundamental em qualquer sociedade
que pretende ser democrática e humanista.”
Bel Coelho

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Bel Coelho Há 25 anos, a chef e ativista paulistana Bel Coelho leva
para a sua cozinha os propósitos que defende com firmeza. Suas criações
privilegiam ingredientes nativos e valorizam as culturas alimentares do
Brasil. Formada no Culinary Institute of America, em Nova York, adquiriu
técnicas contemporâneas em algumas das mais premiadas cozinhas do
mundo. É responsável pelo Cuia Café, dentro da Livraria Megafauna,
no edifício Copan, em São Paulo. A chef ainda apresenta o programa
Food Connection, no canal Sabor & Arte. Seu restaurante itinerante,
o Clandestino, tem retorno programado para 2023.

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Expediente
Direção geral e fotografia Assistentes de produção
Raphael Criscuolo Vic Almeida
Priscilla Paciello
1º assistente de fotografia Débora de Camargo Cavalheiro
Iago Fundaro Rodrigo Santos
Coordenação geral
Produção executiva Food styling do projeto (adus)
Junior Perini José Bernardo Ferber Marcelo Haydu

Direção de arte e design Assistente de culinária Financeiro


Lorena Baroni Bósio Weverson Oliveira Odette Rahal

Produção de objetos Produção de set Auxiliar administrativo


Florise Oliveira Ricardo Crepardi Paula Lucena da Silveira
Giva Simão
Coordenação editorial Gilson Thopson
e edição de texto
Lorena Tabosa Beleza Chefs
Nane Lopes Bel Coelho
Pesquisa Bela Gil
Giselda Pereira Figurino Evodie Mwepu
Yumi Mandu Gema Soto
Revisão Helena Rizzo
Vivi Rowe (Lupa Texto) Making of Ieda de Matos
Alek Ribet Mohamad Alghuorani
Estúdio Sorab Kohkan
Estúdio Erê Elétrica
Eduardo Donizete
Direção de produção
Jesus Ramos Motoristas
Alex Ap Oliveira
Zacarias Lopes
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Objetos
Amoreira Olaria Paulistana
@amoreiraloja @olariapaulistana

Biasá Home O Velhão Demolições


@biasahome @ovelhaodemolicoes

Casa Teo Quintal das Artes


@casateo_ @quintaldasartes

Dpot Objeto TA Surfaces


@dpotobjeto @ta_surfaces

Fato Ceramics Tok Stok


@fatoceramics_ @tokstok

Natural Gifts Villa Pano


@naturalgifts_homedecor @villapano

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