Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tendência
A vida imortal de Henrietta Lacks - esse livro, escrito por Rebecca Skoot,
chegará às livrarias dos EUA em 2007. Nele, a autora conta a história da primei-
ra linhagem de células humanas criada em laboratório, e seu objetivo é discutir
o uso que a medicina e os pesquisadores em medicina fazem de tecidos retira-
dos de todos nós em exames clínicos. De acordo com ela, o único relatório so-
bre o assunto, feito pela Rand Corporation, conclui haver, em 1999, 307 mi-
lhões de amostras de sangue e células diversas humanas estocadas nos Estados
Unidos, retiradas de 178 milhões de pessoas. Um dos aspectos da questão é que,
em muitos casos, essas amostras resultam em descobertas que enriquecem pes-
quisadores e laboratórios. Outro aspecto é: a quem pertencem esses tecidos? As
pessoas de quem foram retirados têm direito sobre eles, e sobre o uso que será
feito deles? Skoot relatou, na revista do New York Times, que pesquisas qualita-
tivas j á mostram um sentimento crescente de o p o s i ç ã o à l i b e r d a d e atual dos
cientistas. Estes já se preocupam: células são uma espécie de matéria-prima da
pesquisa - e se, agora, os doadores de tecidos decidem dizer: "minhas células
p o d e m ser usadas para investigar isto, mas não aquilo"? A pesquisa pode pa-
rar... e é ela, crê a cultura ocidental, que sustenta a esperança no " a v a n ç o " per-
manente da medicina, aquele que - supostamente - vai afastar para mais longe
dos humanos a certeza da morte.
Cultura, e n v e l h e c i m e n t o e m o r t e
O t e m p o cíclico e o envelhecimento
O t e m p o contínuo e a idade
A depressão m o d e r n a
D e a c o r d o c o m A l e x o p o u l o s ( 1 9 9 9 , 2 0 0 1 ) , 2 2 % da p o p u l a ç ã o i d o s a
apresenta sintomas depressivos, sendo que destes, 1% teria depressão "maior" e
4 % transtornos de ajustamento com depressão. Huntley et al. (1986, apud Blazer,
1995) encontraram 15% de depressivos na população de N e w Haven maior de 65
a n o s . N a I n g l a t e r r a , C o p e l a n d ( 1 9 9 0 , a p u d B l a z e r , 1995) a c h o u 1 1 , 5 % em
Liverpool, sendo 8,5% considerados neuróticos e 3 % psicóticos. De acordo com
Hassed (2000), na Austrália, 2 0 % dos adultos estão propensos a apresentar um
quadro depressivo "maior" em suas vidas, e 16% dos maiores de 65 anos mostram
sintomas persistentes. Van Marwijk et al. (1994) estimam em 17% os quadros
d e p r e s s i v o s e em até 2 9 % a p r e s e n ç a de s i n t o m a s d e p r e s s i v o s . N o s E s t a d o s
U n i d o s , c e r c a de 11 m i l h õ e s de p e s s o a s (1 em 2 0 , ou 5%) são a l e t a d a s por
d e p r e s s ã o " m a i o r " a c a d a a n o . C e r c a de 5 % a 6 % de a m e r i c a n o s a d u l t o s
e x p e r i m e n t a r a m um t r a n s t o r n o d e p r e s s i v o m a i o r d u r a n t e um p e r í o d o de seis
meses. Até 12% de todos os indivíduos podem requerer tratamento para depressão
durante suas vidas. A prevalência do transtorno depressivo maior vai de 10% a
2 5 % para as mulheres e de 5 % a 12% para os homens (Weissman et al., 1978;
Myers et al., 1984; Regier et al., 1984, US Dep. of Health, 1993).
Mas essa insidiosa "doença" depressiva, encarada como uma estranha
epidemia que atinge números enormes de pessoas hoje em dia (Zung, 1993), não
deixa de ser uma criação bastante recente, ligada ideologicamente:
a. C o m o c o n s t r u c t o cultural, ao culto individualista do s u c e s s o , q u e tende a
transformar automaticamente em loosers todos aqueles que não o alcançam.
b. Ao conceito moralista, puritano e fundamentalista do trabalho, que o encara
c o m o atividade sagrada, excluindo socialmente de forma automática todos os
que não o cultuam, seja por falta de desejo ou de capacidade. O estar doente
"de verdade" torna-se a única justificativa aceitável para o não-trabalhar.
c. C o m o forma de sofrimento psíquico, ao vazio existencial, à perda dos nexos
afetivos c o m o grupo familiar e à perda dos vínculos c o m a terra, com as
tradições e com o próprio sentido do trabalho.
d. C o m o e n t i d a d e n o s o l ó g i c a , ao c i e n t i f i c i s m o b i o l o g i z a n t e e à t e n d ê n c i a à
m e d i c a l i z a ç ã o de t o d o s os p r o b l e m a s da e x i s t ê n c i a h u m a n a , q u e a s s i m
"explica" neurofisiologicamente todas as três situações anteriores, propondo-
Ihes a u t o m a t i c a m e n t e u m a s o l u ç ã o p s i c o f a r m a c o l ó g i c a ou b e h a v i o r i s t a ,
recondicionadora do comportamento.
D r o g a s e s t i m u l a n t e s c o m o as a n f e t a m i n a s j á e r a m c o n h e c i d a s d e s d e a
década de 1930 - e a cocaína desde o século XIX - , mas j a m a i s foram usadas
no t r a t a m e n t o da d e p r e s s ã o , pois era fato c o n h e c i d o q u e t e n d i a m a piorar os
quadros depressivos, favorecendo m e s m o um aumento no risco de suicídio. Até
a d é c a d a de 1 9 6 0 , a e l e t r o c o n v u l s o t e r a p i a (ECT) e r a p r a t i c a m e n t e a ú n i c a
terapêutica eficaz para a depressão. No entanto, até essa época, o que se entendia
por " d e p r e s s ã o " e r a m apenas os c h a m a d o s q u a d r o s " e n d ó g e n o s " ou p s i c o s e s
afetivas, cuja prevalência nunca passou de aproximadamente 1%. As depressões
reativas e as neuróticas ou distímicas eram mais frequentes, mas o tratamento
recomendado era principalmente psicoterápico.
Os antidepressivos tricíclicos foram descobertos no fim da década de 1950
e até hoje não foram desbancados no tratamento dos quadros depressivos ditos
"endógenos" ou "processuais". Nenhum antidepressivo mais recente se lhes iguala
em eficácia quando essa diferenciação nosológica é feita com rigor, ou m e s m o
q u a n d o a g r a v i d a d e do q u a d r o e n t r a em q u e s t ã o . E s t a i m p r e s s ã o clínica dos
psiquiatras foi confirmada em diversos estudos europeus (e m e s m o americanos),
especialmente quando os quadros eram aqueles que exigiam internação, e para os
quais não se encontrava qualquer relação de causa e efeito entre as manifestações
psicopatológicas e os eventos externos ou história de vida do paciente. Quando
a classificação b e h a v i o r i s t a e q u a n t i t a t i v a dos DSMs substituiu a o b s e r v a ç ã o
f e n o m e n o l ó g i c a , as diversas formas de depressão p e r d e r a m q u a l q u e r aspecto
diferencial entre si, exceto o número e a duração dos sintomas: assim hoje temos
a depressão "maior" e a depressão "menor". U m a avaliação rigorosa reduziria a
prevalência das atuais depressões maiores a níveis próximos dos 1% das antigas
depressões endógenas, mas os critérios meramente quantitativos sempre permitem
uma abrangência muito maior. Além disso, essa categorização permite a confusão
entre sintomas de doenças orgânicas e de perda cognitiva. C o m o ressalta Blazer
(1995): "DSM IV ... poorly differentiates psychiatric symptoms from those that
signify the presence of physical illness and impaired cognition". Por causa dessa
s a l a d a p s e u d o - o b j e t i v a q u e são os DSMs, m a i s v o l t a d o s p a r a fins j u r í d i c o s ,
a d m i n i s t r a t i v o s e c o m e r c i a i s do q u e c i e n t í f i c o s , até m e s m o p s i q u i a t r a s de
o r i e n t a ç ã o f o r t e m e n t e b i o l o g i z a n t e , c o m o van P r a a g ( 1 9 9 8 ) , os c r i t i c a m :
"Psychiatric taxonomy is currently based on invalid nosological premises..."
Essa abrangência exagerada permite que um número enorme de problemas,
psiquiátricos ou não, acabe entrando no pacote da "depressão maior". Além disso,
por e x e m p l o , a clínica nos m o s t r a que os q u a d r o s d e p r e s s i v o s p o d e m cursar,
eventualmente, com manifestações paranoides, o que dificilmente permite a sua
detecção pelos critérios do DSM IV, do CID-10 ou pelas escalas psicométricas
c o m o a de H a m i l t o n ou CES-D. Isto o c o r r e p o r q u e e s t a s s e m p r e t e n d e m a
privilegiar o sintoma da culpa e a desprezar o da paranóia (Nikelly, 1988; Bastos,
1996).
Vemos que hoje em dia, porém, os estimulantes - incluindo até m e s m o as
próprias anfetaminas - têm largo uso na terapêutica de algo que também se chama
"depressão". A explicação mais simples para esta aparente incongruência parece
ser o fato de que o diagnóstico da depressão foi m u d a n d o c o m p l e t a m e n t e com
os DSMs, tendo perdido toda a sua essência fenomenológica e psicodinâmica.
A t é a d é c a d a de 1970, os e s t a d o s d e p r e s s i v o s ou d e p r e s s i v o - a n s i o s o s
d e c o r r e n t e s de e v e n t o s da vida - tais c o m o luto, a p o s e n t a d o r i a , s e p a r a ç õ e s ,
desemprego, incapacidade, menopausa, doença ou abandono - eram classificados
c o m o depressões secundárias ou reativas e o uso de antidepressivos para esses
c a s o s n ã o era r e c o m e n d a d o em n e n h u m texto de t e r a p ê u t i c a p s i q u i á t r i c a . A
menopausa é um bom exemplo disso (Robinson, 1996).
A partir da d é c a d a de 1980, s u r g i r a m n o v o s a n t i d e p r e s s i v o s , cuja ação
estimulante sobre esses quadros essencialmente reativos parecia ser mais eficaz
e produzir menos efeitos colaterais. Criou-se então um enorme boom comercial
e a c a d é m i c o na psiquiatria em torno dessas drogas, e assim, p a r a l e l a m e n t e , o
d i a g n ó s t i c o de d e p r e s s ã o foi p e r d e n d o t o d o o seu c a r á t e r q u a l i t a t i v o ,
f e n o m e n o l ó g i c o ( d i s t i n g u i n d o d e p r e s s õ e s p r o c e s s u a i s , d e p r e s s õ e s de
p e r s o n a l i d a d e e depressões reativas), para se tornar m e r a m e n t e quantitativo e
c o m p o r t a m e n t a l (depressão maior ou menor, baseando-se na simples soma de
s i n t o m a s ) . A s s i m , os n o v o s e s t i m u l a n t e s , c h a m a d o s de a n t i d e p r e s s i v o s ,
e n c o n t r a r a m um i m e n s o c a m p o de aplicação na sociedade globalizada. Para a
indústria farmacêutica, a década de 1990 foi a década da depressão. Entre 1991
e 2 0 0 1 , as vendas de drogas anti depressivas multiplicaram-se por dez, atingindo
os o n z e b i l h õ e s de d ó l a r e s e t o r n a n d o esse setor o m a i s l u c r a t i v o de toda a
indústria farmacêutica. U m a ilustração é o fato do m e s m o laboratório lançar a
m e s m a droga sob dois nomes de fantasia diferentes, por exemplo: um para tratar
da depressão, outro, dos sintomas da c h a m a d a TPM e da m e n o p a u s a , ou ainda
um para tratar da depressão e outro do tabagismo.
Tanto a sua relativa ineficácia nas depressões processuais, a sua tendência
a produzir estados de euforia com indiferença afetiva, c o m o a sua propensão a
induzir o suicídio foram escamoteadas das pesquisas, seja pelo fato de que tais
c a s o s de f r a c a s s o ( g e r a l m e n t e nas " v e l h a s " d e p r e s s õ e s ) e r a m m u i t o m e n o s
frequentes do que as " n o v a s " depressões, seja pelo mascaramento das amostras
através de alguns "truques" de pesquisa. Vários trabalhos, geralmente europeus,
d e m o n s t r a r a m u m a g r a n d e d i f e r e n ç a de e f i c á c i a q u a n d o o grau (ou o t i p o ,
d e p e n d e n d o de se usar critérios quantitativos ou qualitativos) da depressão era
1
levado em conta.
A i n d a n ã o c o n t e n t e s em c o n s i d e r a r d o e n t e u m a p a r c e l a significativa da
p o p u l a ç ã o , m u i t o s a i n d a p r o c u r a m t o r n a r p a t o l ó g i c a a p r e s e n ç a de a l g u n s
sintomas isolados de depressão, produzindo a c h a m a d a "depressão subclínica",
que, evidentemente, exige o m e s m o tratamento (Lyness et al., 1999).
Todo esse movimento visava ampliar enormemente o escopo do tratamento
psiquiátrico, criando uma ilusão de controle sobre os problemas da relação entre
os indivíduos e a sociedade (Laplantine, 1991, Kleinman, 1985). Especialmente
no que se refere aos psicofármacos, banalizou-se enormemente o seu uso, o que
tornou os n o v o s a n t i d e p r e s s i v o s c a m p e õ e s de v e n d a s . D e a c o r d o c o m D a v i d
Healy (1997), ex-secretário da British Association for Psychopharmacology, "a
ideia de que a infelicidade possa ser categorizada como doença e possa ser tratada
A p e r d a da v i n c u l a ç ã o a u m a f a m í l i a , a u m a t e r r a e a u m o f í c i o , e o
e s t a b e l e c i m e n t o de u m a p r o g r a m a ç ã o i n d i v i d u a l i z a d a , e x t e r n a , de f o r m a
extrínseca, não natural e voltada apenas para os interesses da produção, deixa a
cada ser h u m a n o u m a única c h a n c e de ter um e n v e l h e c i m e n t o m e n o s sofrido:
n a q u e l e s c a s o s e m q u e o i d o s o c o n s i g a d e s f r u t a r de s u c e s s o , b e n s e p o d e r
(George, 1995; Gall, 2001). C o m o tais casos são raros, evidentemente, só resta
para grande parte da população idosa uma existência esvaziada de sentido, uma
lenta e penosa espera da morte, na qual as velhas Moiras se vêem substituídas
pelos burocratas, pelo managed care e finalmente pela eutanásia. Em mais um
m i l a g r e da t e c n o l o g i a , as n o v a s L a c h e s i s j á p o d e m m e d i r o fio da vida pelo
telefone: " I n f e l i z m e n t e , j á se e s g o t a r a m os direitos do seu p l a n o " , o q u e é o
m e s m o que dizer: "Seus dias estão contados". E n q u a n t o isso, as técnicas mais
m o d e r n a s de se pôr termo à existência vão sendo difundidas em livros e pela
internet, e milhares de piedosos Drs. Kevorkians assumem pelo m u n d o o papel
da ultrapassada Átropos. De acordo com Ingebretsen e Solem (1998), 60 a 8 0 %
do público nos países ocidentais são favoráveis à eutanásia voluntária, se bem que
esta opção seja menor entre os idosos (Waller, 1986, cit. ibid.). Encerrar uma vida
sem perspectivas parece ser vista como uma boa alternativa para o paciente e para
a família, além de ser, sem dúvida, uma excelente decisão do ponto de vista dos
acionistas das seguradoras de saúde.
C o m o seria i m p e n s á v e l q u e o n o v o way of life p r o p o s t o pela s o c i e d a d e
globalizada pudesse jamais estar errado, concluiu-se forçosamente que o número
crescente de pessoas desestimuladas e angustiadas deveria estar relacionado a
alguma grave doença cerebral, que atingia proporções de epidemia, sendo chamada
de "depressão". C o m o os neurotransmissores apresentavam-se alterados - aliás,
c o m o sempre se apresentam em todas as atividades mentais específicas - pela
lógica do post hoc ergo propter hoc, decidiu-se que se tratava de uma disorder
2. O Dr. David Healy havia sido convidado para professor na Universidade de Toronto. Ousou
fazer uma conferência crítica à indústria farmacêutica e logo foi "desconvidado". Houve grande
celeuma no Canadá e a conferência foi posta à disposição do público interessado pela revista
Nature (David Healy Lecture http://www.nature.com/nm/voting/intro.html). Agradeço a
lembrança ao Dr. Walmor Piccinini.
indubitavelmente originada por algum desequilíbrio de neurotransmissores. O fato
de que n u n c a se conseguiu formular u m a hipótese consistente para explicá-la,
a s s i m c o m o a p a t e n t e i n e s p e c i f i c i d a d e d o s p s i c o f á r m a c o s e dos
neurotransmissores envolvidos em seu tratamento, não foi e m p e c i l h o para que
essa " t e o r i a " fosse e c o n t i n u e sendo apresentada c o m o científica em todas as
instâncias. Transformou-se assim a mera infelicidade em u m a d o e n ç a médica,
c o m o bem disse Healy (1997).
Referências
Resumos