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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ

Carlos Eduardo Ramos

A CONSTITUIÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA E O


SURGIMENTO DA PSICOLOGIA

TAUBATÉ – SP
2005
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Carlos Eduardo Ramos

A CONSTITUIÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA E O


SURGIMENTO DA PSICOLOGIA

Trabalho de pesquisa realizado como


exigência para a conclusão do curso
de Formação de Psicólogo do
Departamento de Psicologia da
Universidade de Taubaté sob
Orientação do Professor Ms. Régis
de Toledo Souza.

TAUBATÉ – SP
2005
CARLOS EDUARDO RAMOS
A CONSTITUIÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA E O SURGIMENTO DA
PSICOLOGIA

Trabalho de pesquisa realizado como


exigência para a conclusão do curso
de Formação de Psicólogo do
Departamento de Psicologia da
Universidade de Taubaté sob
Orientação do Professor Ms. Régis
de Toledo Souza.
Data: _________________________

Resultado: _____________________

BANCA EXAMINADORA

Prof. Ms. Régis de Toledo Souza Universidade de Taubaté

Assinatura____________________

Prof .Ms. Benedito Donizeti Goulart Universidade de Taubaté

Assinatura____________________

Profª. Drª. Maria Regina Namura Universidade de Taubaté

Assinatura____________________
Para Maria Inez Nunes Romeiro dos Santos.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a meu orientador Régis de Toledo Souza, por

receber o tema de meu trabalho com entusiasmo e dedicação; a professora Maria

Regina Namura, pelas indicações bibliográficas; a Maria Inez Nunes Romeiro

dos Santos, pelas horas de paciência colocadas à disposição para discussões

sobre epistemologia e filosofia da ciência.


RESUMO

A Ciência Moderna teve início no século XVII, com o advento da filosofia de René Descartes,
considerado precursor do pensamento moderno, e passou por diversas transformações até se
consolidar no modelo Positivista de Augusto Comte. Neste contexto, a Psicologia se
encontrou em uma situação de crise, visto que o modelo de ciência vigente afirmava que esta
não possuía um objeto de estudo observável. A partir deste problema, foi elaborado este
trabalho bibliográfico, que tem por objetivo compreender de que forma a Psicologia surgiu no
processo de constituição da ciência moderna, abarcando os séculos XVII, XVIII e XIX,
considerando quais obstáculos enfrentou para se afirmar enquanto uma ciência independente.
Para isso foram estruturados seis capítulos que possuem dois eixos comuns: a visão de
homem e o modelo de método científico proposto por cada um dos pensadores escolhidos
para a realização deste trabalho – René Descartes, Francis Bacon, Thomas Hobbes, John
Locke, David Hume e Augusto Comte – sempre permeados pelo contexto histórico-social,
fator importante na constituição do pensamento vigente em cada época.
ABSTRACT

Modern Science had its beginnings in century XVII with the advent of the philosophy René
Descartes’s, regarded as the pioneer of the modern thinking, and went through several
transformations until its consolidation in the positivist model of August Comte. In this
scenario, Psychology found itself in a critical situation, since the model of effective science
affirmed that it hadn´t an observable object of study. Hence, this bibliographical revision was
elaborated, and aims to understand how Psychology claimed it stakes in the process of
constitution of modern science, spanning the XVII, XVIII and XIX centuries, considering
which obstacles it had to face to prove itself as an independent science. Thus, six chapters had
been structuralized with two common axes: the vision of man and the model of scientific
method considered by each one of the thinkers chosen for the accomplishment of this work –
René Descartes, Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, David Hume e Augusto Comte
– always interposed by the historical-social context, an important factor in the constitution of
the effective thought of each time.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 8

2. O RACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES (1596 – 1650) ...................................... 12

3. OS EMPIRISTAS INGLESES .......................................................................................... 20

3.1. Francis Bacon (1561 – 1626) ........................................................................................ 21

3.2. Thomas Hobbes (1588 – 1679)...................................................................................... 23

3.3. John Locke (1632 – 1704) ............................................................................................. 25

3.4. David Hume (1711 – 1776) ........................................................................................... 28

4. O POSITIVISMO DE AUGUSTO COMTE (1798 – 1857) ............................................ 33

5. O SURGIMENTO DA PSICOLOGIA NO SÉCULO XIX ............................................ 43

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 50

ANEXO .................................................................................................................................... 55
8

1. INTRODUÇÃO

O pensamento moderno teve seu início numa época de transformações no âmbito da

economia, da mentalidade e da sociedade nos séculos XV e XVI, que ocasionaram e

possibilitaram uma reformulação da visão da sociedade e do homem nela inserido. Ao mesmo

tempo considera-se que a abertura do comércio para o resto do mundo por meio da expansão

marítima, a descoberta de novas terras e o sistema colonial, proporcionaram a abertura para o

sistema econômico denominado capitalista. A consolidação de um sistema econômico como o

capitalismo interfere diretamente na sociedade e, portanto, na cultura e no pensamento vigente

da época. Interfere em todas esses âmbitos porque tal sistema hierarquiza as diversas classes

sociais, o que implica numa luta política entre essas classes. Segundo Pereira & Gioia (1994),

no capitalismo a produção em massa de mercadorias tem êxito pela exploração da força de

trabalho compensada com um salário. Em seus manuscritos econômico-filosóficos, Karl Marx

(2001) elucida que “[...] a lista de salários que abastece o sustento do trabalhador durante o

trabalho é a mais baixa e unicamente necessária, e um complemento apropriado para criar

uma família afim de que a categoria dos trabalhadores não seja extinta” (MARX, 2001, p. 65).

Além disso, expõe como a força de trabalho do assalariado é comparada a qualquer outra

mercadoria, já que a única coisa que ele pode vender é sua própria força de trabalho. “Se a

oferta é muito maior que a procura, então parte dos trabalhadores cai na miséria ou na fome.

Assim, a existência do trabalhador torna-se reduzida às mesmas condições que a existência de

qualquer outra mercadoria” (MARX, 2001, p. 66). Assim, Marx denuncia como o sistema

salarial determinado pelos lucros, domínio e acúmulo do capital, pode conduzir o trabalhador

a uma vida banal, uma “simple humanité” (Smith Apud Marx, 2001, p. 65).

Na sociedade capitalista, as pessoas sobrevivem por meio de um sistema de troca de

produtos, e esses produtos são feitos pelo trabalhador assalariado, que vende sua força de
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trabalho para o capitalista, que é o dono dos meios de produção. Então, como afirmam Pereira

e Gioia (1994), os elementos fundamentais do capitalismo são a propriedade privada, a

divisão social do trabalho e o valor de troca.

Para a consolidação do sistema capitalista, consideram-se diversos fatores que

contribuíram e possibilitaram transformações na sociedade desde o século XVI até o século

XVIII, tais como o fortalecimento da burguesia, o deslocamento dos camponeses para as

cidades e o início da exploração do trabalhador assalariado. Ligado à mudança de sistema

econômico, tivemos a transição do renascimento para a idade moderna, da reforma protestante

para a contra-reforma, e com isso, o rompimento com as idéias do mundo medieval, que

culmina na revolução industrial e na revolução francesa no século XVIII. Em meio a esse

turbilhão de mudanças e incertezas surgiu a ciência moderna, com início no século XVII,

derrubando a visão de mundo proposta por Aristóteles, e formulando uma nova imagem do

universo, do homem e da verdade, sendo necessário para isso, como afirma Pereira & Gioia,

“repensar toda a produção de conhecimento, suas características, suas determinações, seus

caminhos” (1994, p. 173). Essa foi a preocupação de diversos pensadores da época: procurar

um caminho ou método que os conduzissem ao conhecimento verdadeiro, partindo sempre do

princípio de que uma resposta verdadeira apenas pode ser alcançada por meio de um método,

de forma a definir, compreender e encontrar uma resolução para os problemas emergentes na

sociedade. René Descartes, Francis Bacon, John Locke, David Hume, Thomas Hobbes e

Augusto Comte foram alguns dos filósofos que buscaram conhecer a realidade de suas

épocas, cada um a sua maneira, mas a semelhança que marca o pensamento destes é a

tentativa de elaboração de um método científico, cada qual estruturado em seus próprios

fundamentos filosóficos. Descartes fez uso do racionalismo, Bacon, Locke, Hobbes e Hume

se utilizaram do Empirismo e Comte estruturou seu método na filosofia Positivista.


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No século XIX temos o surgimento da Psicologia, mas com um modelo de ciência

positiva já estabelecido, a Psicologia é impelida a se adaptar a ele, encontrando-se desta

maneira, numa situação de crise. Como afirma Figueiredo (2000), para Comte, os temas da

psicologia estavam dispersos entre a filosofia, a biologia, a sociologia e as ciências físicas, de

maneira não integrada, o que não permitia à Psicologia se estabelecer como uma ciência

independente. Comte afirma que o verdadeiro empecilho para a constituição da Psicologia

como ciência era seu objeto de estudo – a Psique – que não se apresentava de maneira

observável e, portanto, não se enquadrava no método positivista de se fazer ciência. Resolve

então a questão dividindo a Psicologia entre a sociologia e a biologia, afirmando, segundo

Huisman e Vergez (1976) que a psicologia pode ser diluída dessa maneira sem nenhum

prejuízo.

Essa crise pode ser considerada o problema principal manifesto neste trabalho, que

tem por objetivo discutir como a Psicologia se constituiu como ciência em meio a essas

profundas transformações, e compreender os determinantes históricos que constituíram as

bases filosóficas que compõe o pensamento moderno e o modelo de ciência que se estabelece

no século XIX, expondo o movimento e as transformações no pensamento dos filósofos de

cada época, do século XVI ao XIX, tomando como eixo central a visão de homem e o

conceito de método de cada um deles, sempre permeado pelo contexto histórico-social.

O método empregado nesta pesquisa foi o bibliográfico, pois segundo Gil, permite a

“cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla” [...] com o objetivo do

“aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições”. (2002, p. 41). Dessa maneira foram

estruturados os três primeiros capítulos, sendo que o primeiro expõe o pensamento de René

Descartes, o segundo se ocupa do pensamento dos Empiristas Bacon, Locke, Hobbes e Hume

e no terceiro é exibido o pensamento de Augusto Comte. Esses filósofos foram escolhidos

pois foram aqueles cujo pensamento são considerados mais importantes na constituição da
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atualmente chamada ciência moderna, visto que estes ofereceram ou uma teoria do

conhecimento relevante para o desenvolvimento científico-tecnológico, ou desenvolveram

uma proposta metodológica para a ciência. No quarto capítulo será exposta a problemática da

constituição da Psicologia como ciência no século XIX, e serão realizadas as últimas

considerações e possíveis conclusões.


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2. O RACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES (1596 – 1650)

Descartes nasceu em 31 de março 1596 em La Haye – um povoado da Touraine,

França – e segundo Rubano & Moroz. (1994) num período em meio a uma contestação das

antigas crenças e atitudes da Idade Média, em que era necessário reviver e repensar o

conhecimento da filosofia grega. Nesta época, como afirma Corvisier (1983), a Europa estava

em uma crise ocasionada por transformações econômicas, sociais, mentais e espirituais. A

mudança na economia alterou profundamente a sociedade, que por sua vez, presenciou uma

crise na religião católica, com a reforma protestante, e no pensamento da época. Descartes

surge como um marco, um ponto de referência para tentar trazer ordem e respostas às

questões emergentes de sua época. Neste capítulo apresentamos um panorama do quadro

econômico e social da época em contigüidade a um pequeno histórico da vida de Descartes,

para melhor compreender as profundas transformações na sociedade da época, e explicaremos

como a constituição do seu pensamento foi permeada pelas determinações histórico-sociais.

No final do século XVI a economia se encontrava em expansão, e procedeu em ritmo

acelerado até o ano de 1620, sendo favorecida principalmente pela expansão marítima. Como

afirma Corvisier (1983), diversos produtos da Índia começaram a ser importados, como seda,

algodão, madeiras raras, porcelana, tapetes e especiarias. Da América eram trazidos o pau-

brasil, cochinilha e índigo. A partir de 1570 é estabelecido o produto que traria maior

importância ao Brasil e às Antilhas: o açúcar. A expansão foi impulsionada também pelos

avanços tecnológicos na produção de maquinários e com isso, progride também a metalurgia

e a siderurgia, “[...] devido, em geral, ao aumento das necessidades em matéria de armas de

fogo, máquinas e objetos vários” (Corvisier, 1983, p. 122). Entretanto, a manufatura, que

fazia uso de maquinários tecnológicos, ainda era uma prática para poucos ousados, a

sociedade rural ainda era a base da constituição econômica da maioria dos países, com
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exceção dos países baixos, principalmente a Holanda. Durante esse período, a expansão

econômica se concentrou na Inglaterra e principalmente na Holanda, país onde Descartes se

engajou no exército de Maurício de Orange, e também onde ocupou-se dos estudos em

matemática e permaneceu grande parte de sua vida. Já no século XVII, período em que

Descartes redigiu o Discurso do Método (1637), as crises econômicas foram de uma outra

ordem, “[...] tais crises já não se registram sobre um fundo de expansão econômica, mas sobre

um fundo de estagnação ou mesmo de sinuosidade” (Corvisier, 1983, p. 124). Unida à crise

econômica surgiram epidemias, guerras e fome, e os países mais atingidos foram justamente

aqueles que tinham conhecido maior expansão no século XVI. A demografia da Europa se

tornou menor do que a de países subdesenvolvidos. É possível levantar a hipótese de que a

interrupção na expansão econômica seja decorrente da queda demográfica ocasionada pelas

guerras, fome e epidemias.

Com a crise econômica, começaram a se desenvolver as crises das mentalidades e a

crise espiritual. Cada vez mais Deus deixou de ser o centro do universo para dar lugar ao

próprio homem, e com a reforma protestante, a Igreja começou a perder espaço. Segundo

Corvisier (1983), com a Reforma Protestante, pelo menos um quinto das terras pertencentes à

Igreja foram secularizadas, e assim fidalgos, burgueses e camponeses ricos se preocupavam

em arrendar terras. “A consideração social estava ligada, sobretudo à propriedade da terra.

Quando havia um feudo, isto permitia realçar o brilho de um patronímico plebeu, viver

nobremente, exercer uma autoridade e situar-se em boa posição para fazer-se enobrecer”

(Corvisier, 1983, p. 125). Isso afetou drasticamente o quadro social deste período histórico. O

reforçamento da aristocracia rural e o arrendamento de terras trouxeram conseqüências cruéis

sobre um grande número de camponeses. Ao mesmo tempo a reforma protestante, retirando as

referências da igreja católica, não foi capaz de substituí-las de maneira adequada de um

instante para o outro. O humanismo e a renascença favoreceram o individualismo, e a reforma


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protestante abriu o domínio da fé à reflexão pessoal. Todos esses fatores ocasionaram uma

perda de referência e de valores da época, acarretando verdadeiras “epidemias” de satanismo

e uma brusca ascensão dos instintos primitivos. Tais valores eram o sustentáculo do raciocínio

e do pensamento da época. Essa perda afetou diretamente o aristotelismo, que estava sendo

abandonado, e não havia quem o substituísse. Figueiredo (2000) afirma que a perda de

referências coletivas como a religião, família ou leis, obrigariam o homem a construir

referências internas para se reorganizar. Esta reorganização se deu nas artes, na filosofia e nas

ciências, e este foi o cenário em que Descartes se encontrava quando deu início a seus

estudos.

Descartes entrou para a escola dos jesuítas de La Flèche em 1604, onde foi encorajado

na imobilidade do corpo e no exercício do espírito, pois segundo os médicos, estava destinado

a uma sepultura precoce devido a um corpo débil. Lá estudou humanidades e matemática, e

segundo Schultz e Schultz (2002), também demonstrou talento para a filosofia, a física e a

fisiologia. Aos dezesseis anos deixou a escola e empreendeu uma vida de jantares, bebidas e

jogatina, e ao descobrir ter um corpo sadio, acabou negligenciando suas atividades mentais

em benefício das atividades físicas. Em 1617 alistou-se no exército do príncipe Maurício de

Orange, nos Países-Baixos. Porém recusou-se a receber o soldo de soldado e destituiu-se do

exército, afirmando que seus “impulsos militares” eram causados por um aquecimento

ocasional do fígado, que passou com o tempo. Já nessa época é possível identificar em

Descartes o princípio do que será a base da metafísica cartesiana: a dicotomia mente/corpo.

Em 1619, após ter uma série de sonhos em que o espírito da Verdade apossava-se de sua

mente, Descartes decidiu se dedicar à investigação da Verdade. Passou 10 anos viajando por

vários países, lendo livros e fazendo anotações. Depois dos 33 anos, recolheu-se à Holanda,

afastando-se do mundo e escrevendo sua primeira obra: Le Monde, mas não o publicou por

medo. O mesmo medo que acometeu Galileu e outros cientistas e filósofos da época. Para
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proteger-se de qualquer tentação de publicar o livro, remeteu-o a um lugar distante do país.

Apenas depois de sua morte o livro sobreveio, e apenas em parte. Tal medo não era exagero,

visto que dado à crise espiritual da época, Descartes foi vítima de perseguições religiosas,

chegando a ser chamado para responder a acusações de ateísmo e libertinagem feitas por

teólogos. Sendo um católico devoto, Descartes percebeu que a sociedade ainda não estava

preparada para algumas de suas obras.

Embora católico, Descartes era cético por natureza e conformista por educação, e

insatisfeito com o pensamento da época, rompeu com a escolástica medieval e desenvolveu

uma nova espécie de filosofia, tendo como ponto de partida a Dúvida. Segundo Figueiredo,

“sua intenção era submeter toda e qualquer idéia, impressão ou crença a uma
dúvida metódica: as idéias erradas seriam descartadas; as incertas seriam
igualmente descartadas, ao menos provisoriamente; somente idéias
absolutamente claras e distintas poderiam ser consideradas verdadeiras e
servir de base para a filosofia e as ciências” (2000, p.29).

Descartes partiu do princípio de que não devemos aceitar nada como verdadeiro. Este

modo de pensar conduz Descartes a sua primeira realidade. O fato de se pensar revela a

existência de algo que pensa. Esse algo é nada mais do que aquele que pensa. Cogito ergo

Sum (Penso, logo existo). A dúvida em si mesma demonstra a existência do duvidador, de

outra maneira, nem a própria dúvida poderia existir. Dessa forma, conduz o ceticismo a uma

certeza: “Eu existo”. E a resposta para a pergunta “quem sou eu” chega logo em seguida: Sou

aquilo que duvida, sou uma coisa pensante, ou um Espírito. O retrato final da humanidade

feito por Descartes mostrou então, um corpo mecânico tendo dentro uma alma e sobre ele o

espírito de Deus guiando-nos e sustentando-nos a todos.

A crise espiritual da época foi um fator determinante na filosofia metafísica de

Descartes, que apresenta a existência de Deus como uma certeza. Sua proposta foi

revolucionária para a época, em que segundo Figueiredo (2000), nesse período o homem

passou a ser mais valorizado, a ser pensado como o centro do mundo. Esse pensamento não
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eliminou a crença em Deus, mas distanciou-o do mundo. Deus colocou a ordem no mundo, e

o mundo como um grande laboratório a serviço do homem, portanto:

“[...] cabe ao Homem admirá-la, conhecendo e controlando a natureza. Assim,


o mundo passou a ser considerado cada vez menos como sagrado e mais como
objeto de uso – movido por forças mecânicas – a serviço dos homens. Essa
transformação é parte essencial da origem da ciência moderna” (Figueiredo,
2000, p. 24)

A metafísica é a raiz da filosofia cartesiana e foi essencial para apresentar sua visão de

homem, cujas características principais são o mecanicismo e a dualidade mente/corpo.

Estabelece-se então um marco no pensamento moderno, que irá influenciar todos os

pensadores das épocas subseqüentes. Descartes acreditava que o corpo humano funcionava

exatamente como uma máquina, “[...] explicando seu funcionamento físico – como a digestão,

a circulação, a sensação e a locomoção – em termos mecânicos” (Schultz & Schultz, 2002, p.

40). Comparava o corpo humano às engrenagens de um relógio, e sugeriu que movimentos

corporais que ocorrem sem a intenção consciente da pessoa poderiam ser ocasionados por

objetos externos. “A partir disso chegou à idéia da unulatio reflexa, um movimento não

supervisionado nem determinado pela vontade de se mover. Por causa dessa proposição,

consideraram-no muitas vezes o autor da teoria da ação reflexa1” (Schultz & Schultz, 2002,

p. 41). Esta idéia é também considerada precursora do Behaviorismo clássico, uma corrente

da psicologia que representa uma resposta involuntária do organismo eliciada por um objeto

externo a partir do paradigma do estímulo-resposta.

Além das influências do mecanicismo em sua visão de homem, Descartes ainda tentou

solucionar a questão da dualidade mente-corpo, apresentando as duas como distintas, mas

capazes de interagir, a mente influenciando o corpo e vice-versa. Ao corpo o caracteriza como

1
Muitos Behavioristas radicais negam influências do Cartesianismo na criação de uma ciência do
comportamento, mas é inegável que, com o mecanicismo, Descartes dá início às idéias de condicionamento
respondente pertencente ao behaviorismo clássico.
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todos os demais corpos existentes no universo: através da extensão e do mecanicismo. Já a

alma é diferente dos corpos, é inextensa e indivisível. Ela é responsável pelo pensar, pelo

entendimento e pela produção do conhecimento. Segundo Rubano e Moroz (1994), Descartes

descreve a interação entre corpo e alma em exemplos como a experimentação de sensações,

emoções e até dos apetites, expondo as emoções humanas de forma mecânica, visto que são

resultantes da união/interação entre corpo e alma.

Além de elaborar uma visão de homem tendo a metafísica como base, Descartes

apresentou uma maneira de guiar seu pensamento metodicamente, disciplinando a própria

razão na busca de verdades indubitáveis. Elaborou em seu Discurso do Método em 1637

quatro preceitos básicos necessários a um método de investigação, e se garantiu de nunca

deixar de observá-los nenhuma só vez.

O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira nenhuma coisa que


eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, em evitar, com todo o
cuidado, a precipitação e a prevenção, só incluindo nos meus juízos o que se
apresente de modo tão claro e distinto ao meu espírito, que eu não tivesse
ocasião alguma para dele duvidar. O segundo, em dividir cada uma das
dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e
necessário para resolvê-las. O terceiro, em conduzir por ordem os meus
pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos
mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de
precedência de uns em relação a outros. E o quarto, em fazer, para cada
caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a
certeza de não ter omitido nada. (Descartes, 2002, p.31).

A partir desses quatro preceitos – evidência, análise, síntese e desmembramento –

Descartes concluiu que um método é necessário para chegar ao conhecimento de todas as

coisas, para o encontro das verdades indubitáveis, visto que sem ele, “(...) o dedicar-se ao

estudo das ciências (...) há de ser mais prejudicial que proveitoso” (Descartes, 2002, p. 81).

Descartes conceitua método como “regras certas e fáceis, graças às quais o que as

observa exatamente nunca tomará o falso pelo verdadeiro e chegará, sem gastar esforço

inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz” (2002, p.81).
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Segundo Japiassu (1986), Descartes declarou que é por meio da intuição – um conhecimento

verdadeiro e imediato – que podemos aceitar algo como verdadeiro. Contudo precisamos

ainda da dedução, ou seja, uma demonstração na qual se possa chegar a uma conclusão

correta a partir de proposições encadeadas em uma determinada ordem. Como afirma

Descartes,

[...] se o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição


intelectual para não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de
encontrar deduções para chegar ao conhecimento de todas as coisas, nada
mais se requer, parece-me, para que seja completo; pois não se pode obter
ciência alguma, como já disse, se não é por intuição ou dedução (2002,
p.81).

Declara ainda que o homem é um animal racional, e sendo essencialmente “cogito”,

ele alça a condição de sujeito, para qual o objeto que pretende estudar pode ser visualizado de

forma completamente separada e independente, rescindindo-se da subjetividade, e

possibilitando o desenvolvimento da neutralidade do sujeito. Este raciocínio o conduz ao

racionalismo: “[...] O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se

denomina o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens [...] e é a razão ou

o senso a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais” (Descartes, 2002,

p.21). Japiassu (1986) afirma que para Descartes, todos os fenômenos da natureza são regidos

pelas leis da extensão e do movimento, e tais fenômenos devem ser interpretados pelos

dispositivos mecânicos, ou seja, reduzir a matéria, o corpo e a vida à extensão. Tudo aquilo

que não for alma ou pensamento é explicado através da extensão e do movimento. A filosofia

de Descartes é então dualista, pois define o corpo e a alma como duas substâncias completas.

Chega-se então a conclusão de que a ciência deve ser realizada por meio da matemática e de

técnicas de mensuração.

Com a proposta de um método científico, somado à sua visão de homem, Descartes

abre um leque imenso de possibilidades para se pensar os rumos que a humanidade poderia

tomar a partir de então. A partir de suas obras, são retomados como temas importantes da
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filosofia os valores éticos, religiosos e morais, bem como a importância do racionalismo, e

são remontadas as noções de mundo e de homem. A idéia aristotélica de que o universo é

“[...] finalista, hierarquizado e que cada coisa tem sua função e seu lugar, onde a terra é o

centro – é destruída por Descartes, que põe em seu lugar a extensão sem limites e sem fim, ou

matéria sem fim nem limites” (Rubano e Moroz, 1994, p. 204). Ou seja, tudo é matéria,

extensão e movimento, uma mudança extremamente radical para a época. Por ter surgido em

momento de tamanha crise, e com um pensamento revolucionário, Descartes é considerado o

pai do pensamento moderno, já que permitiu, com seu pensamento racionalista e lógico, o

desenvolvimento tanto da filosofia da época quanto da ciência moderna. O impacto de sua

filosofia é tanto, que até o século XIX ele será usado como referência, seja para a sustentação

de um pensamento, seja para sua contraposição. Os primeiros a contestarem seu pensamento

foram os empiristas, que serão discutidos no próximo capítulo.


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3. OS EMPIRISTAS INGLESES

Contrapondo-se à corrente racionalista de Descartes, que pretendia atingir o

conhecimento através da intuição e do método dedutivo, a segunda corrente formadora da

filosofia moderna e da ciência moderna – o Empirismo – explica o conhecimento através da

experiência que é adquirida pela percepção do mundo externo pelos órgãos dos sentidos,

contrapondo-se à noção racionalista do inatismo das idéias. O pensamento empirista

influencia diretamente o desenvolvimento da ciência na Inglaterra, que fez uso das

concepções empiristas de método científico. Seus maiores representantes foram Francis

Bacon, Thomas Hobbes, John Locke e David Hume. Para os empiristas, tudo o que está no

intelecto passou antes pelos sentidos, ou seja, é a partir dos dados obtidos por meio de nossos

sentidos, que produzimos as idéias, através de um processo de abstração.

Todas as idéias provém da sensação ou da reflexão. Suponhamos, pois, que


a mente é como dissemos, um papel em branco, vazio de todos os
caracteres, sem quaisquer idéias. Como vem a ser preenchida?Como lhe
vem esse vasto estoque que a ativa e ilimitada fantasia humana pintou nela
com uma variedade quase infinita? Como lhe vem todo o material da razão
e do conhecimento? A isso respondo com uma palavra: pela experiência. É
na experiência que está baseado todo nosso conhecimento, e é dela que, em
última análise, o conhecimento é derivado (LOCKE, apud SOUZA FILHO,
1986, p.100).

Essa maneira de pensar o processo de produção de conhecimento atinge

profundamente a ciência moderna, que passa a utilizar tal argumento para justificar a

necessidade de um método experimental. A seguir comentarei o pensamento de cada um dos

filósofos da corrente empirista acima citados, considerando as diferenças nas teorias de cada

um deles e sua importância para a consolidação de um pensamento que foi decisivo para o

desenvolvimento da ciência moderna como a conhecemos hoje.


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3.1. Francis Bacon (1561 – 1626)

Bacon viveu no período que compreende a segunda metade do século XVI e a

primeira metade do século XVII, em que a Inglaterra se libertou das correntes da igreja

católica consolidando como sua religião oficial o Anglicanismo, proposta por Henrique VIII,

e foi também quando ocorreu uma rápida expansão industrial, como explica Pereira (1994),

transformando a Inglaterra na maior potência protestante da época, adquirindo grande força

política. Nesse contexto, o chanceler Francis Bacon teve uma vida muitas vezes comparada a

um personagem Shakespeariano. Ascendeu na carreira política por meio de adulações, foi

guarda do selo-real e barão de Verulam, e em 1621 foi acusado de corrupção, sendo afastado

de todo e qualquer cargo e privado de seus títulos honoríficos. Mas suas maiores ambições

foram no âmbito da filosofia e da ciência.

Influenciado pelas idéias de sua época, Bacon “[...]defendia a aplicação da ciência à

indústria, a serviço do progresso [...] compreendeu a importância do conhecimento nesses

novos tempos e afirmou repetidamente que ‘saber é poder’” (PEREIRA, 1994, p.190 ). Assim

como Descartes, Bacon dedicou a maior parte de seu tempo a tentar descobrir a melhor forma

de se chegar ao conhecimento e colocá-lo à disposição do homem. Acabou por propor um

método que o conduzisse ao conhecimento correto dos fenômenos.

Bacon entendia que o bem-estar do homem dependia do controle científico


obtido por ele sobre a natureza, o que levaria à facilitação da sua vida.
Assim, julgava imprescindível o domínio do homem sobre a natureza, a
partir do conhecimento de suas leis (PEREIRA, 1994, p.191).

Segundo Souza Filho (1986), Bacon defendeu uma ciência com base no método

experimental, “valorizando a observação e a aplicação prática da ciência. As leis científicas

seriam fundamentalmente resultado de generalizações com base na observação da repetição

de fenômenos com características constantes” (1986, p. 99). Esse procedimento seria


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chamado de indutivo, contrapondo-se à intuição de Descartes, cujo conhecimento é verdadeiro

e imediato.

O que Bacon trouxe de novo e de interessante para a filosofia e a ciência, foi “[...] o

fato de nunca separar o espírito científico do espírito técnico. Por isso ele é singularmente

moderno” (HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 129). Acreditava que a ciência desemboca no

poder, e todo poder verdadeiro passa pela ciência. Esse pensamento, que será constante não

apenas entre os empiristas, mas também no positivismo, determinará a noção de utilidade da

pesquisa científica, e a idéia de progresso posteriormente será explorada exaustivamente por

Augusto Comte. Dessa forma Bacon dá força para o desenvolvimento e o progresso através da

ciência, sendo considerado o precursor do industrialismo contemporâneo, o que é confirmado

pela situação política da Inglaterra, que era considerada a maior potência industrial da época.

A idéia de progresso de Bacon é ilustrada em uma obra quase profética, “A nova Atlântida”,

em que descreve uma sociedade científica muito parecida com a forma em que a ciência se

organiza na atualidade – racionalmente. “Voaremos como os pássaros e teremos navios para

deslocar sob a água” (BACON Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 129). Esse espírito

científico de Bacon certamente foi um fator importante para o início da Revolução Industrial,

que teve início na Inglaterra do século XVIII.

Ainda mais além, Bacon traçou as primeiras idéias do que seria um método científico

experimental inicialmente dando ao conhecimento uma noção de utilidade, sendo aplicável à

vida do homem, mesmo que de forma não imediata. Segundo Pereira (1994), Bacon define

que alguns experimentos trazem frutos e outros trazem luz sobre problemas teóricos que mais

tarde também trarão conseqüências práticas. Depois de explicado o porquê de um método,

define que a primeira coisa a se fazer é acumular as observações,

[...] ‘caçando os fatos’, o que Bacon chama de ‘a caça de Pan’. Uma vez
reunidos os fatos, há que classificá-los segundo tábuas de ‘presença’, de
23

‘ausência’, ou de ‘graus’ que prefiguram o método das concordâncias, das


diferenças e das variações concomitantes. [...] Reconhecer-se-á a existência
de uma lei natural sempre que duas ‘naturezas’ em conexão estiverem
sempre presentes ou ausentes em conjunto ou que crescerem e decrescerem
proporcionalmente. [...] A leitura dessas ‘tábuas’ permite propor a hipótese;
será preciso verificá-la ainda por meio de experiências de controle.
(HUIMAN & VERGEZ, 1976, p. 131).

Bacon terminou por caracterizar seu método como um casamento entre o método

racional e o empírico “cujo infeliz divórcio e deploráveis dissonâncias perturbaram tudo na

família humana” (BACON Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 131). De fato,

encontramos em Descartes a idéia de método e de pesquisa racional, e nos outros filósofos da

corrente empirista inglesa a idéia da experiência sobre o raciocínio. Essa idéia, que será

explorada com maior profundidade por John Locke, conduzirá a ciência a uma busca

incessante de comprovações empíricas, em que um conhecimento só poderá ser chamado de

verdadeiro quando exaustivamente testado e generalizado. O filósofo que dá prosseguimento

às idéias empiristas na Inglaterra foi Thomas Hobbes, que dedicou a maior parte de seu

trabalho à política e ao Estado, mas será mencionado aqui devido à proposição da visão de

homem definida por ele.

3.2. Thomas Hobbes (1588 – 1679)

Thomas Hobbes, assim como Francis Bacon e a maior parte dos empiristas, estava

envolvido com a nobreza, ocupando lugar de destaque na sociedade inglesa da época. Foi

conselheiro de políticos e participante ativo das discussões políticas da época, que giravam

em torno das forças parlamentaristas, defensoras de uma monarquia parlamentarista, e da

nobreza absolutista, que defendiam a idéia de manter o poder absoluto nas mãos de apenas um

homem. A burguesia, que já detinha o poder econômico, se aliou à nobreza contra a

monarquia absoluta, dando início a uma nova ordem política denominada Liberalismo.
24

Hobbes sempre se manteve ao lado dos absolutistas, o que segundo Andery,

Micheletto e Sério (1994) lhe valeu revezes e períodos de exílio. Mas não foi apenas o apoio

ao absolutismo que o compeliria a deixar o país algumas vezes. Com sua obra “Leviatã”, a

igreja anglicana o acusaria de ateísmo, criando uma associação entre sua obra e o grande

incêndio de Londres e a peste. Ainda assim, Hobbes sempre manteve contato com grandes

nomes da época como Francis Bacon, de quem foi secretário, Galileu e até com Descartes

com quem mantinha constantes discordâncias, embora sua filosofia também se mostre

mecanicista. Embora o maior impacto de sua filosofia esteja relacionado à política, Hobbes

escreve consideravelmente sobre a ciência, a origem do conhecimento e principalmente sobre

a extensão do mecanicismo ao pensamento.

Com relação à origem do conhecimento, Hobbes se atém às sensações, afirmando que

o pensamento é:

[...] uma representação ou aparência de alguma qualidade ou outro acidente


de um corpo exterior a nós, o que normalmente se designa um objeto. Esse
objeto atua nos olhos, nos ouvidos e em outras partes do corpo do homem.
Pela forma variada como atua, produz aparências diversas. Todas elas se
originam naquilo que denominamos sensação, já que não há nenhuma
concepção no espírito do homem que não tenha tido origem, total ou
parcial, nos órgãos dos sentidos (HOBBES, 2002, p. 19).

O conhecimento é então possível porque os homens são capazes de ter sensação,

imaginação e entendimento das primeiras. A imaginação nada mais é do que uma sensação

diminuída encontrada tanto nos homens quanto em outros seres vivos, uma ilusão, segundo

Hobbes (2002), da sensação. E quando se quer enfatizar a sensação como algo que se esvaece,

algo passado, então essa imaginação pode ser chamada de memória. Hobbes trilha este

caminho de raciocínio para chegar à explanação do conceito de experiência. “O acúmulo de

memória, ou a memória de muitas coisas chama-se experiência. A imaginação diz respeito

apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação, de uma só vez, ou
25

por partes, em várias vezes” (HOBBES, 2002, p. 22). Definindo a imaginação ou o

pensamento como processos mecânicos dependentes da sensação, Hobbes estendeu a idéia de

movimento mecânico ao conhecimento.

Mesmo sendo mecanicista, Hobbes diverge de Descartes, pois não acredita que a razão

seja inata como a sensação ou a memória, mas adquirida com muito esforço, por meio de um

método. A razão por si só não pode ser uma razão certa e infalível, e por isso afirma que o

propósito da ciência seja “[...] o conhecimento das conseqüências, e da dependência de um

fato em relação a outro, pelo que, a partir daquilo que presentemente sabemos fazer, sabemos

como fazer qualquer outra coisa quando quisermos, ou também em outra ocasião” (HOBBES,

2002, p. 43). Dessa forma Hobbes justifica a necessidade de um método empirista, ou seja,

experimental, para se fazer ciência e conseqüentemente, adquirir uma razão sobre

determinado objeto estudado. John Locke explorará essa idéia não apenas no sentido de um

método científico, mas também no sentido de que a constituição do indivíduo se dá no

acúmulo da experiência adquirida pelos sentidos.

3.3. John Locke (1632 – 1704)

O filósofo John Locke, ao contrário de Hobbes, foi defensor da monarquia

parlamentarista e do liberalismo, fato que pode ser justificado por sua origem burguesa. Foi

estudante de medicina e de ciências naturais, mas demonstrou vocação para a filosofia e para

a política. Tornou-se secretário do Conde de Shaftesbury, e quando este fugiu para a Holanda

por realizar uma conspiração contra Carlos II, Locke o acompanhou, não apenas por também

ser suspeito, mas por ter se tornado seu confidente e amigo. Quando retornou, Locke se

tornou Comissário de Apelações e escreveu diversos tratados sobre educação, religião e

economia.
26

Mas sua obra mais importante é o famoso Ensaio acerca do Entendimento Humano,

obra que Voltaire descreve como o primeiro estudo realista sobre o mecanismo do espírito

humano. “Após tantos raciocinadores que fizeram o romance da alma, veio um sábio que

modestamente fez sua história [...] Locke analisou a razão humana para o homem exatamente

como um excelente anatomista explica as molas do corpo humano” (VOLTAIRE Apud

HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 218). A admiração de Voltaire por Locke mostra que no

século XVIII, o pensamento francês se baseará quase todo no empirismo. Em seu pequeno

conto filosófico intitulado “Micrômegas” (ANEXO 1), Voltaire propõe uma discussão fictícia

sobre a alma entre diversos pensadores do planeta Terra (entre eles um empirista seguidor das

idéias de Locke) e um gigante de oito léguas habitante da estrela Sírio, que bem mostra a

tentativa de Locke de se afastar da metafísica de Descartes, apoiando-se em seus sentidos, e

não no inatismo, para chegar ao conhecimento:

Um minúsculo partidário de Locke estava ali perto; e quando afinal lhe


dirigiram a palavra, respondeu: – eu não sei como é que penso, mas sei que
nunca pude pensar sem a ajuda dos meus sentidos. Não duvido que existam
substâncias imateriais e inteligentes; mas também não nego que Deus possa
transmitir pensamento à matéria. Venero o poder eterno, não me cabe
limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que existem mais coisas
possíveis do que julgamos.
O ser de Sírio sorriu: não considerou aquele o menos sábio; [...] teria
abraçado o seguidor de Locke, se não o impedisse a enorme desproporção
entre os dois (VOLTAIRE, 2002, p. 128).

Realmente, em seu “Ensaio acerca do Entendimento Humano”, Locke se opõe a

Descartes quanto ao inatismo das idéias. “Toma as proposições mais evidentes como A é A

ou faze aos outros aquilo que queres que te façam; elas são tão pouco inatas que nem as

crianças, nem os selvagens e nem os idiotas possuem a menor idéia a seu respeito” (LOCKE

Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 218). Ou seja, Locke alega que os seres humanos não

estão equipados ao nascer com qualquer espécie de conhecimento, e sua afirmação é

suficiente para destruir a anuência universal de que as verdades são inatas. Como afirma
27

Schultz e Schultz (2002), ele admitia que alguns conceitos podem nos parecer inatos, mas isso

se deve ao fato de que durante a infância essas idéias nos foram incutidas. Locke sugere então

que a mente adquire conhecimento apenas por meio da experiência, como já foi citado no

início deste capítulo, ou seja, a constituição do homem se dá a partir das determinações

externas do ambiente, desconsiderando assim o racionalismo de Descartes.

Locke assume a postura empirista principalmente pelo fato de que suas idéias estão

ligadas à sua moral de tolerância. Como afirmam Huisman e Vergez (1976), o inatismo,

segundo Locke, acarreta o fanatismo. “Com efeito, aquele que erradamente crê na existência

de idéias inatas tomará como verdades absolutas e universais suas opiniões que apenas são o

reflexo e os costumes de suas experiências particulares” (HUISMAN & VERGEZ, 1976, p.

219). Neste ponto Locke discorda de Hobbes, que ainda atribuía uma origem natural à idéia

de um governo despotista, justificando assim um poder absoluto do soberano. Locke define

sua visão de homem sustentando a noção de que a mente é uma tábula rasa, alegando que

todas as idéias são obtidas pela experiência, e as experiências podem advir da sensação ou da

reflexão.

Como afirma Huisman e Vergez, “a sensação nos faz conhecer os objetos exteriores,

mas a reflexão nos revela as operações de nossa alma por intermédio do sentido interno [...] A

reflexão é uma experiência original, a experiência de nossa atividade mental” (1976, p. 219).

Ou seja, existem idéias que se constituem a partir de objetos do mundo externo (sensações)

que os sentidos levam até a mente humana, e idéias que dizem respeito às operações da mente

humana (reflexões), como duvidar, crer, raciocinar e conhecer. São essas duas fontes de

conhecimento que preenchem a “tábula rasa” da mente humana.

Com a experiência erigida como base do conhecimento, Locke dirigiu seus estudos

para a busca de soluções práticas, afastando-se dessa forma de uma filosofia metafísica e

especulativa. Segundo Andery, Micheletto e Sério (1994), estabelecendo esse paradigma para
28

o conhecimento, Locke se distancia de Descartes e prepara o terreno para David Hume, que

necessitará da negação da reflexão pura e do inatismo das idéias estabelecida por Descartes

para propor sua filosofia crítica e centrada no conhecimento a partir das experiências do

mundo sensível.

3.4. David Hume (1711 – 1776)

David Hume viveu num período que corresponde o século XVIII, que foi marcado por

uma revolução fundamentalmente econômica chamada Revolução Industrial, que ocorreu

inicialmente na Inglaterra. Como afirma Pereira e Gioia (1994), se as mudanças ocasionadas

nos séculos XVI e XVII permitiram a abertura para o modo de economia capitalista, a

Revolução Industrial afirmou e consolidou o capitalismo como modo de produção dominante.

Com a revolução, são instituídas duas classes básicas, “a burguesia, detentora dos meios de

produção e concentrando grande quantidade de dinheiro; e o proletariado, que, desprovido dos

meios de produção, vende sua força de trabalho para subsistir” (PEREIRA & GIOIA, 1994, p.

255). A grande mudança se deu no processo de trabalho, que saiu do sistema doméstico para

um sistema fabril, em que os produtos eram industrializados.

Diversas foram as condições que permitiram a industrialização, mas segundo Chacon e

Franco Júnior (1986) destaca-se a acumulação de capital gerada pelo comércio, a expansão

demográfica e a revolução agrícola, com novas técnicas para se plantar e cuidar do solo,

aumentando a produtividade. Somado a esses fatores temos as transformações ideológicas na

filosofia do século XVII (os cartesianos e os empiristas), que incentivaram e impulsionaram a

industrialização ao valorizarem o homem como indivíduo, dando grande importância à

iniciativa privada e ao liberalismo, e valorizando o desenvolvimento científico e o progresso.

Pereira e Gioia (1994) apresentam quatro fatores que colocam a Inglaterra em vantagem no

processo de industrialização. O primeiro é a falta de competidores significativos em outras


29

regiões da Europa, sendo que a Inglaterra havia se consolidado como a maior industria

manufatureira têxtil, o que foi fundamental para sua industrialização fabril. O segundo fator

foi político. A Inglaterra do século XVIII já havia realizado a revolução política da burguesia,

adequando o estado político e jurídico às necessidades burguesas, ou seja, “valorizando o

desenvolvimento econômico e o lucro privado” (PEREIRA & GIOIA, 1994, p. 263). O

terceiro fator citado por Pereira e Gioia (1994) é o próprio acúmulo do capital, o modo de

produção capitalista que foi promovido pela Inglaterra, pelo fato dela possuir tanto capital

quanto mercado. O quarto e último fator citado diz respeito à vasta força de trabalho

disponível para a indústria, que pode ser associada à explosão demográfica citada acima.

Essa mão de obra abundante não foi decorrente apenas da explosão demográfica, uma

vez que, como a máquina substituiu o homem, mecanizando o sistema de produção e

limitando a função do trabalhador, ocorreu uma desqualificação do trabalho, permitindo a

introdução de mão-de-obra não qualificada na linha de produção, como mulheres e crianças.

A desqualificação levou a uma redução do valor da força de trabalho (no caso, a única coisa

que o proletariado pode vender), o que aumentou os ganhos do capitalista. Com essa

vantagem, inicia-se o processo de exploração do trabalhador, aumentando as jornadas de

trabalho. Frente a exploração, os trabalhadores reagiram das mais diversas maneiras:

destruindo máquinas, que consideravam as responsáveis pelo seu sofrimento, lutas para

diminuição da jornada de trabalho, aumento de salário, entre outras, formando assim os

sindicatos. Os conflitos deixaram de ser entre a nobreza e a burguesia, e passaram para o

proletariado e a burguesia. No século XIX o socialismo científico surgirá para trazer à mostra

a luta de classes, mas antes disso, David Hume trouxe contribuições para o desenvolvimento

de um pensamento filosófico que contribuiu para a consolidação do capitalismo na Inglaterra.

O filósofo e historiador David Hume nasceu em Edimburgo na Escócia onde se

dedicou a uma carreira comercial, mas insatisfeito, mudou-se para a França, onde trabalhou
30

para o governo inglês e iniciou seus estudos autodidatas. Lá foi reconhecido como importante

pensador e conheceu diversos iluministas, inclusive Rousseau, de quem se tornou amigo.

Retornando à Inglaterra, escreveu a obra “Tratado Sobre a Natureza Humana”, e participou

ativamente de discussões com intelectuais importantes, ao mesmo tempo em que assumia

diversos cargos governamentais importantes.

Hume encontrou um eixo comum com o empirismo no que diz respeito a uma crítica

da origem do conhecimento humano, que segundo Andery e Sério (1994) baseia-se nas

influências de Locke, em que as idéias têm sua origem na experiência, e em Berkeley

(também um empirista inglês), que critica a noção de causalidade física. Hume tentou inserir

o método de raciocínio experimental nas ciências morais, aproveitando-se da brecha aberta

por Locke com a idéia da tábula rasa, mas não apenas se ateve a essas idéias, como também as

superou, defendendo então a idéia de que a fonte do conhecimento humano encontra-se na

percepção. Segundo Andery e Sério, a percepção se divide em impressões e idéias:

As impressões são nossas percepções mais vivas, são irredutíveis a outros


elementos; são as nossas sensações quando experienciamos algo. Podem ser
impressões de sensação (externas), como as cores, os sons, etc., ou
impressões de reflexão (internas), como as emoções, a vontade, etc. As
idéias são cópias das impressões e, como tais, baseiam-se e provém delas,
mas são menos vivas e não se confundem com elas. As idéias são os nossos
pensamentos e, para Hume, não é, portanto, possível supor pensamentos ou
idéias cuja origem não esteja numa ou num conjunto de impressões (1994,
p. 316).

Portanto, para Hume, toda idéia tem seus alicerces numa impressão, “e a liberdade que

se supõe existir no pensamento humano, capaz de criar as mais insólitas imagens, não passa

de uma liberdade aparente” (ANDERY & SÉRIO, 1994, p. 317). Essa noção de liberdade é

aparente exatamente porque Hume acredita que quaisquer dessas idéias são em essência,

fundadas nas suas impressões.


31

Segundo Chauí (1995) David Hume se destaca entre os empiristas por se posicionar de

maneira contrária ao princípio da causalidade, afirmando que este não possui validade

alguma. Este é visto por Hume como “[...] um hábito que nossa mente adquire de estabelecer

relações de causa e efeito entre percepções e impressões sucessivas, chamando as anteriores

de causa e as posteriores de efeito. (CHAUÍ, 1995, p. 231)”. A causalidade então não é uma

propriedade do real, mas “[...] o resultado de nossa forma habitual de perceber fenômenos,

relacionando-os com causa e efeito, a partir de sua repetição constante” (SOUZA FILHO,

1986, p.101). Pode-se concluir então que:

[...] a noção de uma conexão causal entre os fenômenos é baseada não na


observação de uma conexão necessária entre os eventos, mas apenas na
observação da contigüidade entre eles. É a experiência da contigüidade, da
proximidade temporal que, segundo Hume, leva o homem a postular os
fenômenos como numa relação de causa e efeito. A conexão causal entre os
fenômenos é afirmada a partir, sempre, de fenômenos observados; não é
possível postular uma relação de causa e efeito que não parta de eventos
efetivamente observados. Assim a conexão causal [...] parte de fenômenos
observados e refere-se sempre a fenômenos observáveis (ANDERY &
SÉRIO, 1994, p. 327).

Podemos perceber então que a crítica de Hume em relação à concepção clássica de

relação causal gira em torno da idéia de que tal relação não existe na natureza, mas reflete

apenas a nossa forma habitual de perceber as relações entre os fenômenos. Portanto a

causalidade expressa “[...] uma projeção sobre a natureza de nossa forma de perceber o real”

(SOUZA FILHO, 1986, p. 105). Essa idéia será abraçada pelo método científico, e quando a

Psicologia se adequar a esse método através do Behaviorismo Radical, a busca por uma

ciência do homem deixará de ser uma busca pela relação de “causa e efeito”, sendo então

substituídas.

Os termos “causa” e “efeito” já não são usados em larga escala na ciência.


Têm sido associados a tantas teorias da estrutura e do funcionamento do
universo que já significaram mais do que os cientistas querem dizer. Os
32

termos que os substituírem, contudo, referem-se ao mesmo núcleo fatual.


Uma “causa” vem a ser uma “mudança em uma variável independente” e
um “efeito”, uma “mudança em uma variável dependente”. A antiga
“relação entre causa e efeito” transforma-se em uma “relação funcional”
(SKINNER, 2000, p. 24).

Skinner quer dizer que essa nova terminologia não sugere que uma determinada causa

produz um determinado efeito, mas sim que meramente afirmam que eventos diferentes

tendem a ocorrer ao mesmo tempo, em uma certa ordem. Aí se mostra a herança de David

Hume para a elaboração do método científico das ciências naturais.

O empirismo foi um movimento de grande impacto em toda a filosofia, tendo

influenciado grande parte dos pensadores da época, principalmente na França, e teve um

importante papel na Revolução Francesa e na formação do pensamento burguês iluminista.

Todas as contribuições dos empiristas supracitados – A necessidade de um método associado

ao desenvolvimento científico proposto por Bacon; a visão mecanicista do homem e o estudo

das sensações proposta por Hobbes; a radicalização de Locke, ao comparar o homem a uma

tábula rasa; e a negação do inatismo e do conceito de causalidade estabelecido por Hume –

serão absorvidos pelo espírito revolucionário dos séculos XVIII e XIX, para uma tentativa de

reorganização da sociedade em busca da ordem e do progresso.

Com a utilização do método empirista, a própria ciência tenta se distanciar da filosofia,

da metafísica, da especulação e por fim, da subjetividade, já que se agarra à superfície dos

fenômenos, os quais os sentidos atingem. O método torna científico apenas o observável, e

este será um dos fundamentos da ciência moderna. Quando falarmos sobre a constituição da

Psicologia como uma ciência, perceberemos a dificuldade de incluí-la neste modelo, que

descarta a subjetividade – que virá a ser o objeto de estudo não apenas da Psicologia, mas de

outras ciências sociais – e aceita apenas o empírico. Essa maneira de pensar se consolida no

pensamento filosófico do francês Augusto Comte, que determinará as diretrizes para o

chamado “fazer ciência” da Ciência Moderna.


33

4. O POSITIVISMO DE AUGUSTO COMTE (1798 – 1857)

Para melhor contextualizar o pensamento de Augusto Comte na França do século XIX,

faz-se necessário comentar e explicitar a crise política que envolveu também questões sociais

e econômicas da França no século XVIII. Este século foi marcado por duas grandes

revoluções, uma econômica e outra política. A Revolução Industrial que ocorreu inicialmente

na Inglaterra representou uma enorme mudança na economia, e a Revolução Francesa

representou o maior acontecimento político da época, influenciando toda a Europa. Segundo

Pereira e Gioia (1994), o autor Eric J. Hobsbawn afirma que a Revolução Francesa foi um

fenômeno muito mais fundamental do que qualquer outro do século XVIII, atribuindo essa

importância a três fatores fundamentais:

O primeiro fator se refere ao fato da Revolução ter ocorrido no mais


populoso e poderoso Estado da Europa (excetuando-se a Rússia); o segundo
diz respeito a ter sido efetivamente uma revolução “social” de massa,
diferentemente das revoluções que a precederam e seguiram, e muito mais
radical do que qualquer uma delas; o terceiro fator é a qualidade que o autor
lhe confere de ecumênica, pois somente seus exércitos se propuseram,
dentre todas as revoluções contemporâneas, a revolucionar o mundo.
(PEREIRA & GIOIA, 1994, p. 268).

A Revolução Francesa significou a queda de uma monarquia absolutista baseada no

feudalismo, em que 80% da população eram camponeses que viviam em situação precária,

trabalhando na terra, ganhando pouco e pagando impostos ao Estado, à Igreja e aos nobres.

Ainda que se mantendo nos moldes do feudalismo, o país não mantinha uma

incompatibilidade com o surgimento da economia burguesa, já que os lucros do comércio

beneficiavam tanto a burguesia quanto a monarquia. Com o progresso no setor manufatureiro

e comercial, a burguesia se tornou a mais importante categoria econômica da França. O único

problema para os burgueses é que sua situação econômica privilegiada não era acompanhada

por privilégios políticos, o que começou a gerar conflitos entre eles e a monarquia.
34

Além das pressões sofridas pela burguesia, a monarquia começou a sofrer pressões

também da nobreza, que como não podiam se dedicar ao comércio ou a industria, tinham que

explorar os camponeses cada vez mais, e lutar pela retenção de seus privilégios, como o de

exercer cargos de administração do Estado, mantendo os burgueses longe desses cargos. Ao

mesmo tempo, os burgueses forçavam mais sua ascensão na sociedade, utilizando-se dos

pensamentos iluministas, que expressavam diretamente os interesses da burguesia.

A revolução teve início com uma tentativa da nobreza de capturar o Estado, mas

falhou por tentar impor exigências que não condiziam com o contexto social e econômico, em

crise devido ao inverno rigoroso. Dada essa situação, a burguesia, aliada à massa popular

“conseguiu não só aumentar o número de seus deputados, como alterar o sistema de votação

para um outro, onde o voto era por indivíduo (não por ordem), conseguindo transformar a

instituição em Assembléia Constituinte” (PEREIRA & GIOIA, 1994, p. 272). Com isso, tanto

a nobreza quanto a monarquia tentaram fechar a assembléia para impedir tais mudanças, mas

foram impedidos por uma revolução popular, que culminou na queda da Bastilha em 14 de

julho de 1789. Segundo Pereira e Gioia (1994), a burguesia tomou as rédeas da revolução na

tentativa de estabilizar a situação, formando guardas nacionais e decretando o fim do

feudalismo na França, e conduzindo o país para o capitalismo.

Com essa reforma, foi instituída a monarquia constitucional, que visava construir um

Estado que preservasse os interesses burgueses, colocando a nobreza lado a lado com a

burguesia, e esta aliada à monarquia. Esse regime desagradou a nobreza, a monarquia, a Igreja

e principalmente os camponeses e os sans culottes (proletariado urbano, artesãos, assalariados

e desempregados), que continuavam sem direito a participação política, o que os levavam à

revolta. O que reiniciou o movimento revolucionário foi a guerra que a França manteve contra

a Europa. Segundo Pereira e Gioia (1994)a extrema direita (o rei, a nobreza e o clero)

desejava a guerra, pois acreditava que a intervenção de monarquias estrangeiras poderiam


35

trazer de volta o velho regime, e os liberais moderados a desejavam para poder difundir os

ideais franceses a outros povos oprimidos. O fracasso dos exércitos franceses foi atribuído ao

rei, o que se tornou um fator decisivo para sua prisão. A partir disso a monarquia

constitucional foi derrubada e estabeleceu-se a primeira república, em 1792, fundada em

princípios burgueses.

Segundo Pereira e Gioia (1994), a assembléia se constituiu de três posições políticas:

os girondinos à direita (alta burguesia, que não queria a participação política da população),

os jacobinos à esquerda (média e pequena burguesia, que defendiam a igualdade acima de

tudo), e uma posição de centro, que apoiava os girondinos. Os jacobinos, liderados por

Robespierre e apoiados pelos sans culottes, derrubaram os girondinos, estabelecendo um

governo revolucionário de guerra, preservando a revolução e o Estado Nacional. Para isso

fizeram uso do que foi chamado de “o terror”, execuções efetuadas pela população, e

terrorismo contra os traidores. Fatalmente, os jacobinos acabaram caindo, pois eram

constituídos por uma aliança de classes que tinham interesses diferentes, fato que trouxe de

volta ao poder os girondinos. Estes eram mais conservadores e defendiam os direitos da alta

burguesia, o que gerava um contraste entre o luxo destes e a miséria da população. Ao mesmo

tempo o exército ganhava maior importância, mantendo a guerra fora da França. Essa

condição somada a autonomia do exército permitiu a tomada de poder de Napoleão

Bonaparte, marcando assim o fim da Revolução Francesa. Assim como qualquer burguês,

Napoleão tinha interesses na estabilidade, o que o tornava uma pessoa adequada para liderar o

exército, concluir a revolução burguesa e começar o regime do sistema burguês. Como afirma

Karl Marx, em sua obra intitulada “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”:

Napoleão [...], criou na França as condições sem as quais não seria possível
desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida
e utilizar as forças produtivas industriais das nações que tinham sido
libertadas; além das fronteiras da França, ele varreu por toda parte as
instituições feudais, na medida que isso era necessário para dar à sociedade
36

burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu


(MARX Apud PEREIRA & GIOIA, 1994, p. 276)

Como conseqüência de toda a Revolução, a França inspirou diversos povos a

derrubarem a tirania e buscarem a liberdade e igualdade. Após a queda do reinado de

Napoleão, houve uma tendência ao fortalecimento de posições conservadoristas, e prevaleceu

um sentimento de necessidade de ordem, o que permitiu que o pensamento de Comte,

considerado revolucionário, florescesse na França do século XIX.

Comte recebeu influências do pensamento empirista, que influenciou o racionalismo

francês desde o século XVIII, ao se opor a René Descartes, no sentido de que a razão não

tinha como características as idéias inatas e verdades indubitáveis, como afirmava Descartes,

mas sim “[...] para os pensadores franceses ela tinha uma característica de instrumento”

(RUBANO & MOROZ, 1994, p. 333). Essa oposição é bem demonstrada ao retomarmos o

conto “Micrômegas” de Voltaire, onde o gigante da estrela Sírio discute com um cartesiano

sobre a alma e a matéria:

O cartesiano tomou a palavra e disse: – A alma é um espírito puro, que


recebeu no ventre da mãe todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é
obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia e
que não sabe mais!
– Então não valia a pena – retrucou o ser de oito léguas – que a sua alma
fosse tão sábia no ventre de sua mãe, para ser tão ignorante quando tivesse
barba no queixo. Mas que entende por espírito?
– Bela pergunta! – exclamou o raciocinador. – Não tenho a mínima idéia
disso: dizem que não é matéria.
– Mas pelo menos sabe o que é matéria?
– Perfeitamente – respondeu o sábio. – Por exemplo, esta pedra é cinzenta e
possui determinada forma, tem as suas três dimensões, é pesada e divisível.
– Pois bem, disse o Siriano – e essa coisa que lhe parece divisível, pesada e
cinzenta, saberá dizer-me exatamente o que é? Você lhe vê alguns atributos;
mas o fundo da coisa, por acaso o conhece?
– Não – respondeu o outro.
– Então não sabe o que é a matéria. (VOLTAIRE, 2002, p. 127).

Relembrando a apreciação de Voltaire pelo pensamento de Locke, percebemos que o

pensamento francês desse período estrutura-se principalmente na contraposição a Descartes e


37

na aceitação do pensamento empirista de que a experiência é a origem do conhecimento.

Além dessa característica, o pensamento francês ainda possui alguns outros aspectos, tais

como:

[...] a crença no poder da razão como instrumento de obtenção do


conhecimento e de modificação da realidade, a ênfase aos dados obtidos
através da observação e da experimentação, o antidogmatismo (e,
conseqüentemente, a crítica à religião) e a noção de progresso (RUBANO
& MOROZ, 1994, p. 332).

Somando esses aspectos à necessidade de trazer ordem e progresso para a sociedade,

os pensadores deste século irão propor uma reorganização racional dessa sociedade, que,

como será explicado mais adiante, mesmo tentando negar, acaba se aproximando e afirmando

o modelo mecanicista e racionalista do homem e da sociedade estabelecido por Descartes.

Comte nasceu em Montpellier, França, e viveu em Paris. Estudou na escola

Politécnica de Paris e também medicina, mas não terminou seus estudos. Sua filosofia reflete

basicamente dois encontros fundamentais de sua vida. O primeiro é com Saint-Simon, de

quem foi secretário. Esse encontro lhe rendeu as primeiras idéias para uma ciência social e

uma política científica. Tendo elaborado seu sistema, abre um curso de filosofia positiva e

publica diversas obras. Seu segundo encontro é com Clotilde de Vaux, por quem se apaixona

fervorosamente, mas ela oferece apenas sua amizade, e morre dois anos depois. Comte sente

sua razão vacilar, mas entrega-se aos estudos e elabora o Tratado de Sociologia que institui a

religião da humanidade. A partir daí, segundo Huisman e Vergez:

Comte proclamou-se grande sacerdote da religião da humanidade. Instituiu


o calendário positivista (cujos santos são os grandes pensadores da história)
forja divisas ‘Ordem e Progresso’, ‘Viver para o próximo’, O amor por
princípio, a ordem por base e o progresso por fim’, funda numerosas igrejas
positivistas [...] Comte partiu de uma crítica científica da teologia para
terminar como profeta (1976, p. 287).
38

O termo positivo para Augusto Comte, segundo Simon (1986) abarca o sentido do

real, do útil, da certeza e da precisão. Em sua filosofia, definida pelo próprio Comte como um

“sistema geral do conhecimento humano” (SIMON, 1986, p.120), traz uma proposta de

organização moral e intelectual da sociedade. Comte afirmou ter descoberto o que chamou de

lei dos três estados, no qual todas as ciências e o pensamento humano, bem como seu esforço

para explicar o universo, desenvolvem-se atravessando o estado teológico, o estado metafísico

e o estado positivo. Essas leis se aplicam tanto para o desenvolvimento da espécie quanto para

o desenvolvimento de cada indivíduo.

No estado Teológico, o espírito humano, ao dirigir suas pesquisas


essencialmente no sentido da natureza íntima dos seres, das causas
primeiras e finais de todos os efeitos que o impressionam, numa palavra, no
sentido dos conhecimentos absolutos, representa os fenômenos como
produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou
menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias
aparentes do universo.
No estado metafísico, que no fundo é uma simples modificação do primeiro,
os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras
entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do
mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os
fenômenos observados, cuja explicação consiste então em designar para
cada um a entidade que lhe corresponde.
Finalmente, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a
impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem do
destino do universo, assim como a conhecer as causas íntimas dos
fenômenos para se dedicar unicamente a descobrir, pelo uso bem
combinado da razão e da observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações
invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então
a termos reais, não é, desde então, mais do que a ligação estabelecida entre
os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número os
progressos da ciência tendem a diminuir. (COMTE Apud HUISMAN &
VERGEZ, 1976, p.291)

Com este objetivo de reorganização moral e intelectual da sociedade, Comte encontrou

em seu positivismo uma proposta de filosofia e de uma metodologia da ciência. Divide a

ciência em seis ciências fundamentais – Matemáticas, astronomia, física, química, biologia, e

a sociologia – partindo do critério de que deve-se começar pelo estudo dos “fenômenos mais

gerais ou mais simples (...) procedendo em seguida sucessivamente até atingir os fenômenos
39

mais particulares ou mais complicados” (COMTE Apud SIMON, 1986, p. 124). Ou seja, essa

divisão provém da complexidade crescente de cada ciência, e de sua generalidade

decrescente. Seus outros critérios foram a ordem cronológica de seu aparecimento e a

dependência mútua entre elas. A física social, ou sociologia seria então para Comte a ciência

mais complexa, menos geral e a mais recente historicamente, por ser colocada por último,

enquanto a matemática deveria ser considerada mais como a base de toda filosofia natural,

uma lógica geral para todas as outras ciências. Da matemática à sociologia, a ordem é do mais

simples ao mais complexo. Essa conduta não é muito diferente da terceira regra imposta por

Descartes em seu método – conduzir seu pensamento do mais simples para o mais complexo –

o que futuramente influenciará os estudos em Psicologia, principalmente no behaviorismo,

que se interessará em estudar animais como pombos, ratos e porcos (objetos mais simples)

para estabelecer paradigmas conclusivos acerca do comportamento do homem (objeto mais

complexo).

Por ciência Comte compreendia uma forma de conhecimento caracterizada por duas

certezas: a da observação sistemática e de um método circunspecto que garanta o acesso

adequado aos fenômenos observados. A partir disso busca-se suas relações de concomitância

e sucessão, ou seja, suas leis, e com isso ser “capaz de prever e controlar os fenômenos para a

construção da sociedade positiva” (SIMON, 1986, p.130). Comte acreditava que todas as

ciências passavam pelos três estados, e quanto mais simples e geral fosse, mais rapidamente

entraria no estado positivo. Todas as ciências, inclusive a sociologia caminharam por esses

três estados. Seu principal argumento sobre sua crença nos três estados era de que é da

natureza do espírito humano submeter-se a esses estados, ou seja, é da natureza do homem

marchar por esses estados primitivos até alcançar o estágio definitivo, o positivo, e a

sociologia “constituiria o resumo e o coroamento das demais [ciências] que a precedem (...)

porque significa o ponto de partida da moral, da política e da religião” (SIMON, 1986, p.


40

125). Ao considerar a sociologia como uma ciência, Comte decide aplicar a ela a lei dos três

estados, afirmando que ela já passou pelos dois primeiros e está pronta para o estado positivo:

A doutrina dos reis representa o estado teológico da política. É efetivamente


sobre idéias teológicas que está fundada em última análise. Mostra as
relações sociais como se fossem baseadas sobre a idéia sobrenatural do
direito divino [...] A doutrina dos povos exprime o estado metafísico da
política. Está fundada em totalidade na suposição abstrata e metafísica de
um contrato social primitivo, anterior a todo o desenvolvimento das
faculdades humanas pela civilização. [...] Enfim, a doutrina científica da
política considera o estado social, sob o qual a espécie humana foi sempre
considerada pelos observadores como a conseqüência necessária de sua
organização. Ela concebe a finalidade desse estado social como
determinado pela posição que o homem ocupa no sistema natural, tal como
está fixado pelos fatos e sem ser encarado como suscetível de explicação. A
doutrina vê, com efeito, resultar dessa relação fundamental a tendência
constante do homem para agir sobre a natureza, para modificá-la em seu
proveito (COMTE, 2005, p. 47).

É possível interpretar que Comte, ao afirmar a lei dos três estados como intrínseca à

natureza do espírito humano, está constituindo um sujeito a priori, reafirmando a metafísica e,

com isso, aproximando-se de Descartes, que também via o homem com uma tendência natural

para agir sobre a natureza e modificá-la em seu proveito. Outro ponto em que Comte se

aproxima (ou se apropria) do pensamento de Descartes, é o enfoque da relação sujeito-objeto.

Para se captar a realidade, Comte entende que devem ser mantidas uma distância e uma

neutralidade entre o sujeito e o objeto, ignorando assim, a idéia de que o sujeito pode

influenciar o objeto de estudo, e de que pode haver uma interação, mesmo que não

intencional, entre ambos. O Positivismo acredita que é “[...] possível uma manipulação

objetiva do objeto, seja na linha de que ele se impõe ao sujeito que o teria apenas que retratar,

seja na linha de que sua manipulação não precisa deixar no objeto a marca do sujeito e da

sociedade” (DEMO, 1980, p.127). A negação desta interação reside na idéia de que há uma

verdade universal, e só é possível alcançá-la por meio da lógica formal, e isso se constitui

numa busca por uma neutralidade científica e no distanciamento da idéia de que uma pesquisa
41

pode ter um caráter ideológico. DEMO (1980) critica essa posição afirmando que “o sujeito é

incapaz de apenas descrever, retratar o objeto, como se fosse uma câmara fotográfica. Esta

imagem [...] é feliz, porque revela que o retrato totalmente objetivo não existe: depende da

qualidade do filme, da perfeição da máquina, das condições ambientais, etc.” (p. 19).

Como afirma DEMO, para os positivistas, “a experiência não experimenta valor, pois

este não é constatável. Um fato apenas existe ou não existe, é possível ou impossível; valorar

um fato é outra questão, que se deve já a uma propriedade diversa da do conhecimento

observável” (1980, p.126). Este será o ponto de ruptura decisivo futuramente, entre o

Positivismo e os outros métodos que virão a ser utilizados nas ciências sociais, tais como a

fenomenologia, que afirmará a impossibilidade de existência de uma verdade absoluta, tendo,

portanto, segundo Moreira (2002), que reconstruir uma filosofia diferente da positivista para

realmente alcançar uma ciência rigorosa; e as visões dialéticas, que segundo DEMO (1980)

afirmam que para existir a neutralidade nesse sentido, deveria-se antes neutralizar um

contexto vital que nunca é neutro, ou seja, é impossível desconsiderar o contexto social como

um fator influenciador na constituição do indivíduo. Com todas essas restrições – neutralidade

entre sujeito e objeto, crença na unidade do método e da lógica formal, negação da metafísica

e da essência – como Comte vê a Psicologia em seu método?

Considerando o método proposto por Comte, a psicologia não se encaixa na

classificação de suas seis ciências. Segundo Huisman e Vergez (1976), Comte afirma que a

psicologia pode ser diluída sem nenhum prejuízo entre a biologia e a sociologia. No sistema

científico proposto por Comte, o principal empecilho para o desenvolvimento de uma

psicologia como ciência era seu objeto de estudo. Como afirma Figueiredo “[...] a psique,

entendida como ‘mente’, não se apresenta como um objeto observável, não se enquadrando,

por isto, nas exigências do positivismo”. (2000, p. 15). O problema maior para uma psicologia

científica então, segundo Figueiredo, é estar por um lado reivindicando um lugar à parte entre
42

as ciências, e por outro, “não conseguindo se desenvolver sem estabelecer relações cada vez

mais estreitas com as ciências biológicas e com as da sociedade” (2000, p. 16).


43

5. O SURGIMENTO DA PSICOLOGIA NO SÉCULO XIX

Este capítulo tem por objetivo resgatar o surgimento da Psicologia no século XIX, e

colocar em evidência a tentativa de diversos pesquisadores em elaborar um projeto de

Psicologia como uma ciência independente, contrapondo-se ou ajustando-se na medida do

possível ao modelo positivista das ciências naturais. As bases filosóficas expostas nos

capítulos anteriores servirão de base para um diálogo entre as psicologias que foram sendo

desenvolvidas e os métodos considerados científicos.

Considerando os acontecimentos históricos e as condições socioculturais do século

XIX relatados anteriormente, a ciência moderna se consolidou no positivismo de Comte, que

busca eliminar a metafísica afirmando esta ser um estágio primitivo do conhecimento

humano. O estado positivo tem como objetivos finais o alcance do conhecimento verdadeiro,

preciso, objetivo e útil – e são esses os objetivos da ciência moderna, aliados à idéia de que o

homem “é o senhor que tem o poder e o direito de colocar a natureza a seu serviço”

(FIGUEIREDO, 2000, p. 54). Essa idéia é proveniente da filosofia cartesiana e também de

Bacon, que entendem o ambiente como um grande laboratório e permite a dissociação entre o

sujeito observador e o objeto estudado. O positivismo, mesmo tentando negar a metafísica, se

apropriou de princípios cartesianos e empiristas para tentar formular um método definitivo

para a ciência. Como afirma Figueiredo “a metodologia científica que vem se desenvolvendo

nos últimos séculos representa exatamente o esforço de disciplinar o espírito para melhor

obedecer à natureza” (2000, p.55). O positivismo desempenhou então um importante papel no

processo de constituição da Psicologia.

O grande problema encontrado nos estudos psicológicos era de que para obedecer a

essas normas do método científico, era necessário eliminar a subjetividade, para preservar a

objetividade. Em oposição, alguns estudiosos colocam como principal objetivo a valorização


44

do estudo dessa subjetividade, necessitando para isso, de outros métodos e fundamentos.

Desenvolverei aqui um breve histórico da constituição da Psicologia, considerando seus

principais colaboradores e estudiosos.

O pesquisador considerado pioneiro na elaboração da Psicologia como uma ciência

independente é W. Wundt (1832 – 1920), que desenvolveu basicamente dois tipos de

trabalho, um na psicologia experimental, e o outro na psicologia social. Como afirma

Figueiredo (2000), Wundt considerava a psicologia como uma ciência intermediária entre as

ciências da natureza e as ciências da cultura, diferentemente de Comte, que propôs sua

dissolução. O objeto de estudo de Wundt foi denominado por ele de “experiência imediata”,

que segundo Figueiredo “é a experiência tal como o sujeito a vive antes de se pôr a pensar

sobre ela, antes de comunicá-la, antes de conhecê-la. Em outras palavras, é a experiência

como ela se dá (2000, p. 58). Fica claro que Wundt não elimina o processo de subjetividade

presente na condição humana. Em seu primeiro trabalho, Wundt utiliza o método

experimental para compreender os processos elementares da vida mental, o que demonstra

uma inicial influência do empirismo, e com isso fundou o famoso Laboratório de Leipzig,

onde estudantes não apenas da Europa, mas de diversas partes do mundo foram estudar.

Segundo Farr:

Psicologia, para Wundt, era apenas em parte um ramo das ciências naturais.
Ele percebeu que seria possível resolver experimentalmente certos
problemas específicos dentro da filosofia. Esse projeto estritamente
limitado, contudo, necessitava, em sua opinião, ser suplementado por uma
forma de Geisteswissensschaften [Ciência Social] (2004, p. 40).

Com essa percepção, Wundt denuncia a questão ideológica na Psicologia, expondo

com isso, a dificuldade de se estudar o homem por uma visão que se denomina neutra e livre

de caráter ideológico. Wundt expõe a tentativa de inserir a Psicologia como uma ciência

possível dentro do modelo das ciências naturais, quando na verdade, isso não seria possível
45

sem que se ignorasse fatores importantes da vida do homem, como por exemplo o contexto

social e os determinantes históricos na constituição da subjetividade. Na verdade, a própria

subjetividade teria que ser eliminada como objeto de estudo (como aconteceu com o

Behaviorismo). Portanto, Wundt se afasta do positivismo e se interessa mais pelos processos

superiores da vida mental, tais como o pensamento e a imaginação, e com isso aumentando

seu interesse nos fenômenos culturais: a linguagem, a religião, os mitos, a magia, os costumes

e fenômenos semelhantes. Remete-se à importância desses estudos ao perceber que temas

como as línguas e as religiões “foram em sua origem a criação de uma comunidade de

pessoas, embora posteriormente as línguas e religiões tenham ultrapassado os limites de um

único povo, ou comunidade de pessoas que tenham se tornado universais” (FARR, 2004, p.

47). Para isso, se desfez do método experimental e deu início a sua Psicologia Social, ou

“Völkerpsychologie”. Devido às diferenças entre seus dois trabalhos, Wundt decidiu separar a

Völkerpsychologie da sua Psicologia fisiológica experimental. Wundt então funda uma nova

forma de pensamento, valorizando os fenômenos sociais, culturais e subjetivos. Como afirma

Farr:

Os objetos de estudo da Völkerpsychologie de Wundt eram a linguagem, a


religião,os costumes, o mito, a magia e fenômenos semelhantes. Esses
fenômenos coletivos emergem da “recíproca interação de muitos” (Wundt,
1916, p.3) e, segundo Wundt, eles não podem ser explicados em termos de
consciência do indivíduo, que era a base de seu laboratório científico. A
psicologia social de Wundt era, pois uma Geisteswissensschaft.A psicologia
continuava a ser a ciência da mente, mas na Völkerpsychologie Wundt
analisou a mente em suas manifestações externas, isto é, em termos de
cultura. Ela continuava a ser uma ciência, mas um tipo diferente de ciência:
uma ciência humana e social (2004, p. 42).

Wundt tem então duas psicologias: de um lado a Psicologia fisiológica experimental e

do outro, a Völkerpsychologie. Segundo Farr “eles eram dois projetos independentes, embora

relacionados. Um – a psicologia social – não podia ser reduzido ao outro – psicologia

fisiológica. Um se referia a comunidade das pessoas (um volk – povo) enquanto outro se
46

referia ao indivíduo” (2004, p. 46). Com isso, Wundt se desvencilhou do positivismo, o que

gerou enormes conflitos, até entre seus alunos e assistentes. Wundt não apenas caminhou na

direção contrária ao positivismo em relação a Völkerpsychologie, mas também ao tentar

elaborar uma metafísica científica. Os positivistas repudiaram então não apenas sua psicologia

social, que era uma Geisteswissensschaft, mas também sua postura antipositivista. Devemos

nos lembrar que o positivismo considera um retorno à metafísica um retrocesso, como afirma

Farr:

Para um positivista, a ciência substitui a metafísica. A idéia de escrever uma


metafísica científica é, portanto, para um positivista, uma contradição nos
próprios termos. É fazer os ponteiros do relógio andarem para trás. É
interessar-se com a metafísica e não com a ciência. É dar um passo atrás
(2004, p. 56).

A partir daí a Psicologia se dividiria entre aqueles que abraçariam as ciências naturais

e aqueles que buscariam a psicologia nas ciências humanas e sociais. Desde o princípio, os

paradigmas da ciência moderna se mostram um entrave no desenvolvimento da Psicologia

como ciência.

Depois do esforço de Wundt em separar psicologia entre uma ciência social e uma

ciência natural, diversos de seus seguidores ignoraram seu trabalho dentro da

Völkerpsychologie, tentando colocar a psicologia apenas no campo das ciências naturais. Um

deles foi Edward Bradford Titchener (1867 – 1927), fundador da abordagem chamada

“Estruturalismo”. Segundo Schultz e Schultz (2002), Titchener foi aluno de Wundt e principal

divulgador de sua obra nos Estados Unidos – apenas sua psicologia experimental – e toma a

liberdade de alterar o objeto da psicologia, “[...] como sendo a experiência dependente de um

sujeito – sendo este concebido como um puro organismo e, em última análise, como um

sistema nervoso – e não mais a experiência imediata [concebida por Wundt]” (FIGUEIREDO,

2000, p. 61). De fato Wundt acabou sendo historicamente mal interpretado, como coloca Farr:
47

A história não foi benigna com a visão de psicologia de Wundt. Isso deve-
se, em parte, como vimos acima, ao fato de psicólogos experimentais terem
tomado sua disciplina como sendo totalmente um ramo das ciências
naturais; em parte também ao fato de os psicólogos sociais, ao menos no
mundo de fala inglesa, não terem uma percepção clara da psicologia como
uma ciência humana e social (2004, p. 42).

Como afirma Schultz e Schultz (2002) a psicologia estrutural foi proeminente nos

Estados Unidos por muitos anos, mas acabou sendo derrubado por alguns de seus

contemporâneos que veremos mais adiante. Titchener afirmava que a tarefa da psicologia era

descobrir a natureza das experiências conscientes elementares, sua estrutura, e para isso

considerou necessário analisar a consciência em suas partes separadas, para poder

compreendê-la. Fica óbvia sua aproximação com o método de desmembramento de Descartes

e sua doutrina mecanicista, e ainda com o positivismo, no sentido de que para descrever a

experiência psicológica, é necessário emprestar termos das ciências naturais (o sistema

nervoso). Farr afirma que:

[...] a substituição da psique pelo organismo foi um passo preliminar


importante no processo de se considerar a psicologia toda como um ramo
das ciências naturais. Esse fato marca também a transição da filosofia para a
biologia como disciplina mãe para a psicologia (2004, p.41).

Dessa maneira, a psicologia deixa de ser tão independente, como desejava Wundt.

Para fazer sua ciência, que considerava que “[...] o fisiológico explica o mental”

(FIGUEIREDO, 2000, p. 62), Titchener afirma necessitar apenas da observação, introspecção

e experimentação, ferramentas retiradas das ciências naturais, reduzindo as dificuldades

metodológicas, mas reduzindo também o alcance das propostas de pesquisa.

O movimento que se opôs ao Estruturalismo foi chamado de Funcionalismo, ou

Psicologia Funcional, cujos principais autores são John Dewey (1859 – 1952), James

Rowland Angel (1869 – 1949) e Harvey A. Carr (1873 – 1954). Seus principais interesses

eram estudar os processos, operações e atos psíquicos como tentativas de adaptar-se ao


48

ambiente, considerando-os como seu objeto de estudo. Seus pressupostos teóricos derivam da

teoria evolutiva de Darwin, e consideram a psicologia como uma ciência biológica. Como

afirma Figueiredo:

Para os psicólogos funcionalistas, o objeto da psicologia são os processos e


operações mentais, mas o estudo científico desses processos exige uma
diversidade de métodos. Não excluem a auto-observação, embora não
aprovem a introspecção no estilo Titcheneriano, porque esta seria muito
artificial. [...] Em compensação, se os processos e operações mentais se
expressam em comportamentos e estes são facilmente observáveis,
podemos estudar indiretamente a mente a partir dos comportamentos
adaptativos (2002, p. 64).

O funcionalismo, mesmo tendo sido dissolvido, trouxe diversas influências para a

psicologia, no que se refere à psicologia entendida como uma ciência natural. Ela abriu

diversos questionamentos que seriam abordados e trabalhados – contrapondo-se ou fazendo

uso de seus conceitos – pela linha teórica da Psicologia que ainda hoje faz uso do pensamento

Positivista: O Behaviorismo.

O behaviorismo foi um projeto de psicologia científica que teve início com J. B.

Watson (1878 – 1958), que consideravam como objeto de estudo da psicologia o

comportamento e suas interações com o ambiente. Segundo Farr “Watson proclamou que a

psicologia era totalmente um ramo das ciências naturais ao declará-la como a ciência do

comportamento. O comportamento possui uma vantagem sobre a mente por ser diretamente

visível” (2004, p. 41). As ferramentas utilizadas nesse projeto de ciência eram a observação e

a experimentação, descartando a auto-observação. Watson tinha a idéia de solucionar de uma

vez o problema da Psicologia como ciência, isso porque seu projeto se encaixava

perfeitamente no modelo positivista das ciências naturais. Descarta a idéia de corpo e mente

ao considerar o comportamento como objeto. Segundo Figueiredo (2000), desta vez a idéia de

experiência imediata de Wundt e qualquer outra noção de subjetividade foram descartadas

definitivamente. Os argumentos dados para isso são os mesmos de Augusto Comte: eliminam
49

qualquer coisa que não seja acessível aos métodos objetivos da ciência, ou seja, qualquer

coisa que não seja diretamente observável. O homem passa a ser considerado como qualquer

outro animal, o que leva os estudiosos dessa linha a iniciarem estudos com pombos, ratos,

macacos e porcos, já que eles também demonstram comportamento observável.

O objetivo final desses estudos era, assim como o de Comte, de reorganizar a

sociedade por meio da ciência, prevendo e controlando variáveis do comportamento. Críticas

a esse método acabaram surgindo na arte, com obras como Laranja Mecânica, Admirável

Mundo Novo e 1984. Nesses dois últimos principalmente, são mostradas técnicas de controle

da população em larga escala, denunciando as conseqüências do reducionismo deste

pensamento na sociedade humana. O Behaviorismo, a ciência do comportamento, não se

constituiria agora como uma linha da psicologia, mas como uma ciência independente que

tomaria o lugar da psicologia. Burrhus Frederick Skinner (1904 – 1990) viria a desenvolver

no século XX seu Behaviorismo Radical, insatisfeito com as idéias de Watson no campo da

psicologia. Com Skinner, o behaviorismo ganhou enorme destaque dentro das ciências

naturais, mas ainda assim negando a questão da subjetividade.

O behaviorismo de Watson é bem sucedido em sua tarefa de encaixar a psicologia no

método positivista das ciências naturais ao negar a subjetividade, mas isso não significa que

ela deixe de existir. Figueiredo (2000) cita que, mesmo com a crise da psicologia em relação à

ciência, a subjetividade não pode ser simplesmente negada. Dessa forma, surgirão

posteriormente teóricos que tentarão quebrar esses paradigmas, como Freud, que irá propor

um retorno a metafísica ao definir como seu objeto de estudo o inconsciente, Vygotsky e

Leontiev, que estudarão os processos psicológicos superiores do homem e a constituição de

sua subjetividade através de uma perspectiva sócio-histórica, e os Gestaltistas, Existencialistas

e Humanistas, que buscarão na Fenomenologia uma base sólida para a constituição de um

método científico rigoroso.


50

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Psicologia se encontra hoje dividida em diversas linhas teóricas, mas essas divisões

não aconteceram por mero acaso, elas são decorrentes de determinações históricas e culturais

que foram discutidas nos primeiros capítulos deste trabalho, tais como a formação do sistema

político e econômico na Europa, local onde se deu o surgimento da ciência moderna, que

trilhou todo um caminho durante quatro séculos até chegarmos aos dias de hoje. O movimento

que se deu entre o pensamento desenvolvido pelos filósofos deste período e os

acontecimentos históricos acabou por determinar, no que diz respeito à origem do

conhecimento e à visão de homem, uma resposta para as crises ocorridas na época. Crises nas

religiões, nas artes, na política e na sociedade.

O Positivismo, que consolidou o método científico da ciência moderna, não surgiu ao

acaso, ele foi uma tentativa revolucionária de colocar a sociedade da época em um estado de

ordem, e devido às necessidades urgentes da sociedade naquele período, foi imediatamente

aceito. A ciência passou quatro séculos determinando objetos de estudo e dividindo-os para

compreendê-los, mas chegaram a um ponto em que não conseguiam mais visualizar o objeto

como um todo, e quando nos referimos a uma ciência que estuda o homem, como a

psicologia, esse problema torna-se muito sério. Nesse momento nos vemos novamente em

crise, então necessitamos de uma mudança de paradigma. Farr (2004) aponta a base da

filosofia Positivista como principal entrave para uma constituição histórica da Psicologia

como ciência, afirmando que no momento em que se busca passar de um estado para outro

(do teológico ao metafísico, do metafísico ao positivo), torna-se importante definir quando um

determinado campo de estudo deixa de ser metafísico e torna-se ciência.

Uma filosofia positiva de ciência produz uma ruptura com o passado. Os


positivistas foram vitoriosos, e dessa maneira foram eles que escreveram as
51

histórias. Uma vez que um campo de estudo tenha-se tornado ciência, os


positivistas também pressupõe que a pesquisa seja cumulativa. Existem aqui
importantes implicações para quem escreve a história (FARR, 2004, p.
193).

Ao romper com o passado, perde-se a noção da constituição histórica e da importância

do contexto da época para a definição e aceitação do que é a verdade, ou do que é o homem.

Descartes precisou afirmar que o homem é um aglomerado de sistemas – cardiovascular,

respiratório, digestivo – e que o corpo é apenas o receptáculo da alma, para que a ciência

pudesse se desenvolver dentro daquele período – onde a Igreja proibia a dissecação de corpos

para estudos e pouco se conhecia sobre a anatomia humana. Tomar os pressupostos de

Descartes como lei após todos esses séculos de desenvolvimento significa dar as costas para o

passado e para todos os objetivos que foram estudados ao longo desse tempo.

Como afirma Farr (2004), o paradigma estabelecido por Descartes dificulta o

desenvolvimento da Psicologia enquanto uma ciência social, e a noção de positivismo na

Psicologia impede que os estudos sobre a psicologia alcancem a dimensão histórica e social,

bem como a presença da subjetividade no indivíduo. É complicado afirmar que se chegou a

uma verdade em relação à compreensão do homem, se esta se dá a partir da negação de

diversas esferas da vida humana. Faz-se então necessário perceber que o conhecimento da

constituição histórica do desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência é importante para a

compreensão de que a subjetividade do homem é um objeto de estudo essencial e devemos

estudá-lo para compreender o homem como sujeito da ação, determinante e determinado pelo

social. Atualmente temos diversas posições epistemológicas diferentes do Positivismo, mas

que às vezes ainda são vistas com desconfiança, como se não tivessem caráter científico. A

origem desse preconceito pode residir nessa desinformação que existe acerca da constituição

das ciências e da noção de verdade, que às vezes são vistas como naturais, como se sempre

estivessem ali, quando na realidade são frutos de uma relação dialética entre o homem e seu

contexto histórico. Também não se pode perder de vista a constituição da Psicologia enquanto
52

uma ciência social, como denuncia Farr (2004) quando afirma que a história perdeu de vista

alguns aspectos fundamentais de seus ancestrais, tais como Wundt, pois a história da

Psicologia é contada a partir de um modelo positivista que às vezes pode ignorar fatores

importantes como a metafísica na constituição da ciência, ocasionando uma ruptura entre

passado e presente na constituição da história, bem como uma separação entre a filosofia e a

ciência.
53

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55

ANEXO
56

ANEXO 1

MICRÔMEGAS – HISTÓRIA FILOSÓFICA

CAPÍTULO PRIMEIRO
Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno
Num desses planetas que giram em torno da estrela chamada Sírio, havia um jovem de
muito espírito a quem tive a honra de conhecer durante a última viagem que fez a este nosso
pequeno formigueiro: chamava-se Micrômegas, nome bastante adequado a todos os grandes.
Tinha oito léguas de altura: entendo, por oito léguas, vinte e quatro mil passos geométricos de
cinco pés cada um.
Alguns algebristas, gente sempre útil ao público, tomarão logo da pena e, tendo em
vista que o senhor Micrômegas, habitante do país de Sírio, tem da cabeça aos pés vinte e
quatro mil passos, ou sejam vinte mil pés, e que nós outros, cidadãos da terra, não medimos
mais que cinco pés de altura e o nosso globo nove mil léguas de circunferência, esses
algebristas, dizia, eu, calcularão que é preciso, absolutamente, que o globo que o produziu
seja exatamente vinte e um milhões e seiscentas mil vezes maior que a nossa minúscula terra.
Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os Estados de alguns soberanos da
Alemanha ou da Itália, cuja volta se pode fazer em meia hora, comparados ao império da
Turquia, de Moscóvia ou da China, não são mais que uma débil imagem das prodigiosas
diferenças que a natureza colocou em todos os seres.
Sendo Sua Excelência da altura que eu disse, todo, os nossos escultores e pintores
convirão sem dificuldade em que a sua cintura pode medir cinqüenta mil pés, o que constitui
uma bela proporção.
Quanto a seu espírito, é um dos mais cultivados que existem; sabe muitas coisas e
inventou algumas outras: não tinha ainda duzentos e cinqüenta anos e estudava, segundo o
costume, no colégio dos jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pela força de seu
espírito, mais de cinqüenta proposições de Euclides – isto é, dezoito mais que Blaise Pascal, o
qual depois de ter adivinhado trinta e duas, por brincadeira, pelo que diz a sua irmã, tornou-se
mais tarde um geômetra bastante medíocre e um péssimo metafísico. Lá pelos seus
quatrocentos e cinqüenta anos, ao sair da infância, dissecou muitos desses pequenos insetos
que têm apenas cem pés de diâmetro e que se furtam aos microscópios ordinários; compôs
sobre a matéria um livro bastante curioso, mas que lhe valeu algumas contrariedades. O mufti
de seu país, sujeito esmiuçador e ignorantíssimo, achou no seu livro proposições suspeitas,
malsoantes, temerárias heréticas, que cheiravam a heresia, e o perseguiu sem tréguas: tratava-
se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a mesma que a dos caracóis.
Micrômegas defendeu-se com espírito; pôs as mulheres a seu favor; o processo durou
duzentos e vinte anos. Afinal o mufti fez com que o livro fosse condenado por jurisconsultos
que não o haviam lido, e o autor teve ordem de não aparecer na Corte durante oitocentos anos.
Pouco se afligiu ele de ser banido de uma Corte onde só havia intrigas e
mesquinharias. Compôs uma canção muito divertida contra o mufti, a que este não deu
importância; e pôs-se a viajar de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o
coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e berlinda ficarão decerto
espantados com as equipagens de lá; pois nós, em nossa pequena bola de lama, nada
concebemos além de nossos usos. O nosso viajante conhecia às maravilhas as leis da
gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas. Utilizava-as tão a propósito que, ou por
intermédio de um raio de sol, ou graças à comodidade de um cometa, ia de globo em globo,
ele e os seus, como um pássaro voeja de ramo em ramo. Em pouco percorreu a Via Láctea; e
sou obrigado a confessar que nunca viu, em meio às estrelas de que é semeada, esse belo céu
empíreo que o ilustre vigário Derham se gaba de ter enxergado na ponta de sua luneta. Não
57

que eu pretenda alegar que o senhor Derham tenha visto mal, Deus me livre! mas Micrômegas
esteve no local, é um bom observador, e eu não quero contradizer ninguém. Micrômegas
depois da muitas voltas chegou ao globo de Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver
coisas novas, não pôde, ante a pequenez do globo e de seus habitantes, evitar esse sorriso de
superioridade que às vezes escapa aos mais sábios. Pois afinal Saturno não é mais que
novecentas vezes maior que a terra, e os seus cidadãos não passam de anões que têm apenas
umas mil toesas de altura. A principio, zombou ele um pouco com a sua gente, mais ou menos
como um músico italiano se põe a rir de música de Lulli, quando chega em França. Mas o
siriano, que tinha o espírito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem
não ser ridícula só por ter seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos, depois
de os haver espantado. Ligou-se de estreita amizade com o secretário da Academia de
Saturno, homem de muito espírito, que na verdade nada inventara, mas prestava excelente
conta das invenções dos outros, e fazia passavelmente pequenos versos e grandes cálculos.
Transcreverei aqui, para satisfação dos leitores, uma singular conversação que Micrômegas
teve um dia com o senhor secretário.

CAPÍTULO SEGUNDO
Conversação do habitante do Sírio com o de Saturno
Depois que sua Excelência se deitou o secretário aproximou-se de seu rosto:
— Tem-se de confessar – disse Micrômegas – que a natureza é bastante variada.
— Sim – disse o saturniano – a natureza é como um canteiro cujas flores...
—.Ah! – exclama o outro. – Deixe o canteiro em paz.
— Ela é – tornou o secretário – como uma assembléia de loiras e morenas cujos adornos...
— Que tenho eu a ver com as suas morenas?
— É então como uma galeria de pinturas cujos traços.
— Ora! – atalha o viajante. – De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que
buscar-lhe comparações?
— Para ser agradável ao senhor – respondeu o secretário.
— Eu não quero que me agradem – retrucou o viajante.
Quero que me instruam. Comece por me dizer quantos sentidos têm os homens do seu globo.
— Temos setenta e dois – disse o acadêmico. – E todos os dias nos queixamos de tão pouco.
A nossa imaginação vai além de nossas necessidades; achamos que, com os nossos setenta e
dois sentidos, o nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, apesar de toda a
nossa curiosidade e do considerável número de paixões que resultam dos nossos setenta e dois
sentidos, ainda temos tempo de sobra para nos aborrecermos.
— Não duvido – disse Micrômegas, – pois no nosso globo temos cerca de mil sentidos, e
resta-nos ainda não sei que vago desejo, não sei que inquietação, que incessantemente nos
adverte do pouco que nós somos e de que existem seres muito mais perfeitos. Tenho viajado
um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi-os muito superiores; mas a nenhum vi que não
tivesse mais desejos que verdadeiras necessidades, e mais necessidades que satisfação. Talvez
chegue um dia ao país onde não falta nada; mas desse pais até agora ninguém me deu notícias.
O saturniano e o siriano alongaram-se então em conjeturas; mas, depois de muitos
raciocínios tão engenhosos quão incertos foi preciso voltar aos fatos.
— Quanto tempo vivem vocês? – Indagou o siriano.
— Ah! pouquíssimo – replicou o homenzinho de Saturno.
— Exatamente como entre nós – disse o siriano, vivemos sempre a nos queixar do pouco.
Deve ser uma lei universal da natureza.
— Ai! – suspirou o saturniano. – Vivemos apenas quinhentas grandes revoluções do sol. (O
que, pela nossa maneira de contar, dá aproximadamente uns quinze mil anos). Bem vê que é
quase o mesmo que morrer no momento em que se nasce; a nossa existência é um ponte, a
58

nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Apenas começa a gente a instruir-se um
pouco, quando chega a morte, antes que se tenha adquirido experiência. Quanto a mim, não
ouso fazer projeto algum; sou como uma gota d’água em um oceano imenso. sinto-me
envergonhado, principalmente diante do senhor, da figura ridícula que faço neste mundo.
— Se o amigo não fosse filósofo – respondeu Micrômegas, – eu temeria afligi-lo dizendo-lhe
que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a, sua. Mas bem sabe que, quando nos
cumpre devolver o corpo aos elementos e reanimar a natureza sob outra forma (que é o que se
chama morrer), quando é chegado esse instante de metamorfose, ter vivido eternidade, ou um
dia, é precisamente a mesma coisa. Estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo do
que no meu, e vi que ainda se queixavam. Mas há por toda parte gente de bom senso, que sabe
tomar o seu partido e agradecer ao autor da natureza. Expandiu Ele por este universo uma
profusão infinita de variedades, com uma admirável espécie de uniformidade. Por exemplo,
todos os seres pensantes são diferentes, e todos se assemelham no fundo, pelo dom do
pensamento e dos desejos. A matéria está por toda parte, mas tem em cada globo propriedades
diversas. Quantas dessas propriedades contam os senhores na sua matéria?
— Se se refere – disse o saturniano – a essas propriedades sem as quais julgamos que este
globo não poderia subsistir tal como é, contamos trezentas, como a extensão, a
penetrabilidade, a mobilidade, a gravitação, a divisibilidade, e o resto.
— Aparentemente – replicou o viajante – basta esse pequeno número para os objetivos do
Criador quanto à vossa pequena habitação. Em tudo admiro a sua sabedoria; vejo por toda
parte diferenças; mas também proporções por toda parte. Pequeno é o vosso globo, vossos
habitantes também o são; tendes poucas sensações; vossa matéria tem poucas propriedades:
tudo isto é obra da Providência. De que cor é verdadeiramente o vosso sol?
— De um branco bastante amarelado – disse o saturniano. – E quando dividimos um de seus
raios, vemos que contém sete cores.
— O nosso sol tende para o vermelho – disse o siriano e temos trinta e nove cores primitivas.
Dentre os sóis de que me aproximei, não há dois que se assemelhem, como não há entre vós
um rosto que não seja diferente de todos os outros.
Após várias perguntas dessa natureza, indagou quantas substâncias essencialmente
diferentes se contavam em Saturno. Soube que não havia mais que umas trinta, como Deus, o
espaço, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que não têm
extensão, os que se penetram, os que não se penetram, e o resto. O siriano, em cuja pátria se
contavam trezentas, e que descobrira três mil outras em suas viagens, deixou o filósofo de
Saturno prodigiosamente espantado. Afinal, depois de haverem comunicado um ao outro um
pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de haverem trocado idéias durante
uma revolução do sol, resolveram fazer juntos uma pequena viagem filosófica.

CAPÍTULO TERCEIRO
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno
Estavam os nossos dois filósofos prestes a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma bela
provisão de instrumentos matemáticos, quando a amante do saturniano, ao saber disso, veio
queixar-se em pranto. Era uma linda moreninha que tinha apenas seiscentas toesas, mas que
compensava com vários encantos a pequenez de seu talhe.
— Ah, cruel! – clamava ela. – Depois de te haver resistido durante mil e quinhentos anos,
quando enfim começava a render-me, quando apenas passei cem anos em teus braços, tu me
deixas para ir viajar com um gigante de um outro mundo! Vai, não passas de um curioso,
nunca tiveste amor; se fosses um verdadeiro saturniano, serias fiel. Por onde vais correr? Que
queres? As nossas cinco luas são menos errantes que tu, o nosso anel é menos mutável.
Pronto! Nunca mais amarei a ninguém.
59

O filósofo, por mais que o fosse, beijou-a, chorou com ela, e a dama, depois de haver
desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país. Os nossos dois curiosos partiram;
saltaram primeiro sobre o anel, que acharam bastante chato, como bem o adivinhou um ilustre
habitante do nosso pequeno globo; seguiram, depois, de lua em lua. Como um cometa viesse a
passar muito próximo da última, lançaram-se sobre ele, com todos os seus criados e
instrumentos. Depois de terem coberto cerca de cento e cinqüenta milhões de léguas, toparam
com os satélites de Júpiter. Nesse planeta demoraram-se um ano inteiro, durante o qual
descobriram belos segredos, que estariam agora em vias de publicação se não fossem os
senhores inquisidores, que acharam algumas proposições um pouco fortes. Mas li o
manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de ***, que me deixou examinar seus livros,
com uma generosidade e benevolência nunca assaz louvada.
Mas voltemos aos nossos viajantes. Deixando Júpiter, atravessaram um espaço de
cerca de cem milhões de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco
vezes menor que o nosso pequeno globo; viram as duas luas que servem a esse planeta e que
escaparam às vistas de nossos astrônomos. Bem sei que o padre Castel escreverá, e até com
muito espírito, contra a existência dessas duas luas; mas reporto-me àqueles que raciocinam
por analogia. Sabem esses bons filósofos o quanto seria difícil ao planeta Marte, que fica tão
longe do sol, não dispor ao menos de um par de luas. Seja como for, o caso é que os nossos
camaradas o acharam tão pequeno, que recearam não encontrar pousada, e seguiram adiante,
como dois viajantes que desdenham um mau albergue de aldeia e prosseguem até a cidade
vizinha. Mas o siriano e o companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito
tempo, sem encontrar coisa alguma. Afinal divisaram um pequeno clarão; era a terra; coisa de
causar piedade a gente que vinha de Júpiter. No entanto, com medo de se arrependerem
segunda vez, resolveram desembarcar aqui mesmo. Passaram para a cauda do cometa e,
achando uma aurora boreal adrede, nela se meteram, e chegaram à terra pelo norte do mar
Báltico, a 5 de julho de 1737.

CAPÍTULO QUARTO
Do que lhes sucede sobre a face da terra
Depois de terem repousado um pouco, almoçaram duas montanhas, que os criados lhes
prepararam a capricho. Desejaram em seguida fazer um reconhecimento pelo pequeno país
onde se achavam. Caminharam a princípio de norte a sul. Os passos ordinários do siriano e do
seu pessoal eram de trinta mil pés aproximadamente; o anão de Saturno seguia de longe,
arquejando; ora, era preciso que ele corresse uns dose passos enquanto o outro dava uma
pernada: imaginai (se é permitido tal comparação) um pequeno cãozinho fraldiqueiro que
acompanhasse um capitão da guarda do rei da Prússia.
Como os dois estrangeiros andassem muito depressa, deram a volta ao mundo em
trinta e seis horas; o sol, na verdade, ou antes, a terra, faz igual viagem num dia; mas cumpre
levar em conta que é mais cômodo girar sobre o próprio eixo do que andar com um pé depois
do outro. Ei-los pois de volta ao ponto de partida, depois de terem visto esse pântano, quase
imperceptível para eles, que se chama o Mediterrâneo, e esse outro pequeno charco que, sob o
nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A água nunca passara além das canelas do
anão, ao passo que o outro apenas molhara os calcanhares. Fizeram tudo o que puderam,
andando em todas as direções, para descobrir se este globo era habitado ou não. Agacharam-
se, deitaram-se, apalparam por toda parte; mas, como os seus olhos e mãos não eram
proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arrastam, não receberam a mínima
sensação que lhes fizesse suspeitar que nós, e os nossos demais confrades habitantes deste
globo, tivéssemos a honra de existir.
60

O anão, que as vezes raciocinava muito apressadamente, concluiu a princípio que não
havia habitantes na terra. Seu primeiro argumento era de que não vira, ninguém. Micrômegas,
polidamente, fez-lhe sentir que ele não raciocinava muito bem:
— Como não distingues com os teus pequenos olhos, certas estrelas de qüinquagésima
grandeza que eu percebo distintamente; concluiu daí que essas estrelas não existem?
— Mas – replicou o anão eu apalpei bem.
— Mas sentiste mal – respondeu o outro.
— Mas este globo é tão mal construído – objetou o anão, – é tudo tão irregular e de uma
forma que me parece tão ridícula! Tudo parece aqui um pleno caos: não vês estes pequenos
arroios que jamais correm em linha reta, esses charcos que não são nem redondos, nem
quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; e todos esses grãozinhos pontiagudos
de que está eriçado este globo e que me arranharam os pés? (Queria referir-se às montanhas).
Repara ainda a forma de todo o globo, como é achatado nos pólos, e a sua maneira
inadequada de girar em torno do sol, de modo que a região dos pólos fica necessariamente
estéril? Em verdade, o que me faz pensar que não haja aqui ninguém, é que gente de bom
senso não moraria em um lugar como este.
— Pois bem – disse Micrômegas, – talvez os que o habitam não sejam gente de bom senso.
Mas há probabilidades de que isto não tenha sido feito inutilmente. Tudo aqui te parece
irregular porque em Saturno e Júpiter é tudo feito a régua e compasso. Exatamente por esse
motivo é que há aqui um pouco de confusão. Não te disse eu que nas minhas viagens sempre
encontrei variedade?
O saturniano replicou a todas essas razões. E a questão jamais terminaria se, por
felicidade, Micrômegas no calor da discussão, não tivesse rompido o seu colar de diamantes.
Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, tendo as mais volumosas
quatrocentas libras de peso, e as menores cinqüenta. O anão apanhou algumas; ao aproximá-
las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, constituíam excelentes
microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de cento e sessenta pés de diâmetro que
aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelentes;
mas no princípio. nada perceberam com o seu auxílio: era preciso adaptarem-se. Afinal o
habitante de Saturno viu qualquer coisa quase imperceptível que se movia à superfície do mar
Báltico: era uma baleia. Pegou-a habilmente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha
do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que se pôs a rir da excessiva pequenez dos habitantes do
nosso globo. O saturniano, convencido de que o nosso mundo é habitado, imaginou logo que
só o era por baleias; e, como era um grande logicista, quis logo adivinhar de onde um átomo
tão pequeno tirava o seu movimento, e se tinha idéias, vontade, e liberdade. Micrômegas
sentiu-se muito embaraçado: examinou o animal com infinita paciência, e o resultado da
análise foi que era impossível acreditar que ali se alojasse uma alma. Estavam, pois, os dois
viajantes inclinados a pensar que não há espírito em nosso mundo, quando, com o auxílio do
microscópio, perceberam algo de mais grosso que uma baleia e que flutuava sobre as águas.
Sabe-se que, por aquela época, um bando de filósofos regressava do círculo polar, onde
tinham ido fazer observações que a ninguém ocorreram até então. Disseram as gazetas que o
seu navio naufragou nas costas de Botnia e que tiveram grande dificuldade em salvar-se; mas
neste mundo nunca se sabe o reverso das cartas. Vou contar ingenuamente como se passaram
as coisas, sem nada acrescentar por conta própria, o que não é pequeno esforço para um
historiador.

CAPÍTULO QUINTO
Experiências e raciocínios dos dois viajantes
Micrômegas estendeu cuidadosamente a mão para o local onde se achava o objeto e,
avançando dois dedos e retirando-os por medo de enganar-se e depois abrindo-os e fechando-
61

os, apanhou com todo o jeito o navio que carregava os tais senhores, e colocou-o sobre a
unha, sem o apertar muito, para não esmagá-lo. “Eis um animal bem diferente do primeiro” –
observou o anão de Saturno; o siriano pôs o pretenso animal na palma da mão. Os passageiros
e o pessoal da equipagem, que se supunham erguidos por um furacão, e que. se julgavam
sobre uma espécie de rochedo, põem-se todos em movimento; os marinheiros apanham pipas
de vinho, lançam-nas sobre a mão de Micrômegas, e precipitam-se em seguida. Apanham os
geômetras seus esquadros seus sectores, e nativas da Lapônia, e saltam para os dedos de
Micrômegas. Tanto fizerem, que este sentiu enfim mover-se qualquer coisa que lhe
comichava os dedos: era um bastão ferrado que lhe fincavam no índice; julgou, por aquilo,
que saíra qualquer coisa do pequeno animal que ele segurava. Mas não desconfiou de mais
nada. O microscópio, que mal fazia discernir uma baleia e um navio, não alcançava seres tão
imperceptíveis como os homens. Não pretendo chocar a vaidade de ninguém, mas sou
obrigado a pedir às pessoas importantes que façam uma pequena observação comigo: é que,
considerando a homens de cerca de cinco pés de altura, não fazemos, à face da terra, maior
figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a
seiscentésima milésima parte de uma polegada. Imaginai uma substância que pudesse
sustentar a terra na mão, e que tivesse órgãos em proporção com os nossos; e bem pode
acontecer que haja grande número dessas substâncias: concebei, então, o que não haveriam de
pensar dessas batalhas que nos valeram duas aldeias que foi preciso restituir.
Se algum capitão de granadeiros ler algum dia esta obra, não duvido que mande
aumentar, pelo menos dois pés, os capacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais
que faça, nunca passarão, ele e os seus, de infinitamente pequenos.
Que maravilhosa habilidade não foi preciso ao nosso filósofo de Sírio para perceber os
átomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou
julgaram ver, a semente de que nos formamos, não fizeram tão espantosa descoberta. Que
prazer não sentiu Micrômegas ao ver moverem-se aquelas pequenas máquinas, examinando-
lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operações! Que de exclamações! Com
que alegria pôs um de seus microscópios nas mãos do companheiro de viagem! “Vejo-os! –
diziam ambos ao mesmo tempo. – Repara como carregam fardos, como se erguem, como se
abaixam!” Assim falando, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de ver objetos tão novos e pelo
receio de os perder. O saturniano, passando de um excesso de desconfiança a um excesso de
credulidade, julgou perceber que eles trabalhavam na propagação da espécie. Ah! – dizia ele,
– peguei a natureza em flagrante. – Mas enganava-se pelas aparências, o que muita vez
sucede, quer a gente se sirva ou não de microscópios.

CAPÍTULO SEXTO
Do que lhes aconteceu com os homens
Micrômegas, melhor observador que o anão, viu claramente que os átomos se falavam;
e fê-lo notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano quanto à geração, não quis
acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Tinha o dom das línguas, como o siriano; não
ouvia os nossos átomos falarem, e supunha que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas
criaturas imperceptíveis possuir os órgãos da voz, e que teriam a dizer-se? Para falar, é
preciso pensar, ou quase; mas, se pensavam, tinham então o equivalente de uma alma. Ora,
atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas, parecia-lhe absurdo. — Mas –
observou Micrômegas – ainda há pouco supunhas que eles praticavam o amor. Será que julgas
que se possa praticar o amor sem pensar e sem preferir alguma palavra, ou pelo menos sem
fazer-se compreender? Acha, aliás, que seja mais difícil fazer um raciocínio. que fazer um
filho? Quanto a mim, um e outro me parecem grandes mistérios.
— Já não ouso nem crer nem negar – disse o homúnculo, – não tenho mais opinião. Tratemos
primeiro de examinar esses insetos, arrazoaremos depois.
62

— Muito bem dito – retrucou Micrômegas. Em seguida tirou do bolso uma tesourinha, com
que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar fabricou uma espécie de trompa
acústica, que era como um vasto funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o
navio e a toda a equipagem. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de
modo que, graças à sua indústria, pôde o filósofo lá do alto ouvir perfeitamente o zumbido
dos insetos cá de baixo. Em poucas horas, conseguiu distinguir as palavras, e afinal
compreender o francês. O anão fez o mesmo, embora com mais dificuldade. O pasmo dos
viajantes redobrava a cada momento. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse
capricho da natureza afigurava-se-lhes inexplicável Bem podeis imaginar como Micrômegas e
o seu anão ardiam de impaciência por travar conversa com os átomos.
Temiam que a sua voz de trovão, e sobretudo a de Micrômegas, ensurdecesse os
insetos, sem ser ouvida. Cumpria diminuir-lhe a força. Puseram na boca umas espécies de
palitos cujas pontas afiladas vinham dar perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os
joelhos, e o navio com a equipagem sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho.
Afinal, por meio destas e de outras precauções, começou assim o seu discurso:
“Insetos invisíveis, que a mão do Criador se comprouve em fazer brotar no abismo do
infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me segredos que
pareciam impenetráveis. Na minha Corte, talvez não se dignem olhar-vos; mas eu não
desprezo ninguém, e ofereço-vos a minha proteção”.
Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram
tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos,
os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais
sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava. O anão de Saturno, que tinha a
voz mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam tratando.
Contou-lhes a partida de. Saturno, disse-lhes quem era o senhor Micrômegas, e, depois de os
ter lamentado por serem tão pequenos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela
miserável condição tão vizinha do aniquilamento, o que faziam num globo que parecia
pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham uma alma, e mil outras
questões dessa natureza.
Um sábio do grupo, mais audaz que os outros e chocado de que duvidassem da sua
alma, observou o interlocutor por intermédio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez
duas miras e, na terceira, assim lhe falou:
— Julga então, senhor, só porque tem mil toesas da cabeça aos pés, que é um...
— Mil toesas! – exclamou o anão. – Meu Deus! Como pode ele saber a minha altura? Mil
toesas! Não se engana por uma polegada. Como! Esse átomo mediu-me! É geômetra, conhece
as minhas dimensões; e eu, que o vejo através de um microscópio, ainda não conheço as suas.
— Sim, medi-o – disse o físico – e medirei também o seu grande companheiro.
Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se se pusesse de pé, ficaria
com a cabeça muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-lhe uma grande árvore
num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que me guardo de chamar pelo nome, devido a
meu grande respeito ás damas. Depois, por uma seqüência de triângulos, concluíram que
aquilo que eles viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de altura.
Micrômegas pronunciou então estas palavras: “Reconheço, mais do que nunca, que
nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a
substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como
o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes,
podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé
bastaria para cobrir o globo a que desci”.
Respondeu-lhe um dos filósofos que ele poderia com toda a segurança acreditar que há
de fato seres inteligentes muito menores que o homem. Contou-lhe, não tudo o que Virgílio
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diz de fabuloso sobre as abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur
dissecou. Disse-lhe, enfim, – que há animais que estão para as abelhas como as abelhas estão
para os homens, e como Micrômegas estava para aqueles imensos animais a que se referira, e
como aqueles estão para outras substâncias, diante das quais não passam de átomos. Pouco a
pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou.

CAPÍTULO SÉTIMO
Conversação com os homens
— Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se comprazeu em manifestar seu engenho e
poderio, deveis sem dúvida gozar das mais puras alegrias sobre o vosso globo; pois, tende tão
pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, que é o que
constitui a verdadeira vida dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte
nenhuma, com certeza é aqui que existe.
A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco que os
outros, confessou de boa fé que, excetuando um pequeno número de habitantes muito pouco
considerados, o resto é tudo uma assembléia de loucos, de maus e de infelizes.
— Nós temos mais matéria do que é necessário – disse ele – para fazer muito mal, se o mal
vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito. Não sabeis, por
exemplo que, no instante em que vos falo, há cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de
chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados
por estes e que, quase por toda a terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais?
O siriano estremeceu e perguntou qual poderia ser o motivo dessas terríveis querelas
entre tão mesquinhos animais.
— Trata-se – disse o filósofo – de uma porção de lama do tamanho de vosso calcanhar. Não
que algum desses milhões de homens que se exterminam pretenda um palmo que seja dessa
lama. Trata-se apenas de saber se pertencerá a certo homem a que chamam Sultão, ou a outro
homem a que chamam César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, ou jamais verá, o
pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam
já viu algum dia o animal pelo qual se degolam.
— Infelizes! – exclamou o siriano indignado. – Pode-se acaso conceber mais furiosa loucura?
Vem-me até vontade de dar três passos e esmagar com três patadas esse formigueiro de
ridículos assassinos.
— Não vos deis a esse incômodo; eles já trabalham bastante para a sua própria ruína. Ficai
sabendo que, passados dez anos, já não resta nem a centésima parte desses miseráveis, e,
mesmo que não tivessem puxado da espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam ,a
quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários
que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de
homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.
O viajante sentia-se apiedado da pequena raça humana, na qual descobria tão
espantosos contrastes.
— Já que pertenceis ao pequeno número dos sábios – disse-lhes ele – e aparentemente não
matais a ninguém por dinheiro, dizei-me em que vos ocupam então.
— Dissecamos moscas – respondeu o filósofo, – medimos linhas, encordoamos números,
pomo-nos de acordo acerca de dois ou três pontos que entendemos, e disputamos sobre dois
ou três mil que não entendemos.
Ocorreu então ao siriano e ao companheiro a fantasia de interrogar aqueles átomos pensantes
sobre coisas que ambos conheciam.
— Quanto contais – Indagou Micrômegas – da estrela da Canícula à grande estrela dos
Gêmeos?
— Trinta e dois graus e meio – responderam todos ao mesmo tempo.
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— Quanto contais daqui até a lua?


— Sessenta semidiâmetros da terra, em números redondos.
— Quanto pesa o vosso ar?
Supunha confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de
novecentas vezes menos que igual volume d’água e dezenove mil vezes menos que o ouro.
O anãozinho, de Saturno, atônito das suas respostas, sentiu-se tentado a tomar como
feiticeiros àqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Afinal lhes
disse Micrômegas:
— Já que sabeis tão bem o que se acha fora de vós, decerto sabeis ainda melhor o que tendes
por dentro. Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as vossas idéias. Os filósofos
falaram todos ao mesmo tempo, como antes, mas foram de diferentes opiniões. O mais velho
citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o
de Leibnitz, aqueloutros o de Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a
segurança: A alma é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que
declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre: “entelequia esti” etc.
Não entendo muito bem o grego – disse o gigante.
Nem eu tampouco – replicou o inseto filosófico.
— Por que então – tornou o siriano – citais um certo Aristóteles em grego?
É que – replicou o sábio – cumpre citar aquilo de que não se compreende nada na
língua que menos se entende.
O cartesiano tomou a palavra e disse:
— A alma é um espírito puro, que recebeu no ventre da mãe todas as idéias metafísicas, e que,
ao sair de lá, é obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia é que
não mais saberá!
— Então não valia a pena – retrucou o animal de oito léguas – que a tua alma fosse tão sábia
no ventre de tua mãe, para ser tão ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que
entendes por espírito?
— Bela pergunta! – exclamou o raciocinante. – Não tenho disso a mínima idéia: dizem que
não é matéria.
— Mas sabes ao menos o que é a matéria?
— Perfeitamente – respondeu o homem. – Por exemplo, esta pedra é cinzenta, e de
determinada forma, tem as suas – três dimensões, é pesada e divisível.
— Pois bem – disse o siriano – e essa coisa que te parece divisível, pesada e cinzenta, saberás
dizer-me exatamente o que seja? Tu lhe vês alguns atributos; mas o fundo da coisa, acaso o
conheces?
— Não – disse o outro.
— Não sabes, pois, o que é a matéria.
Então o senhor Micrômegas, dirigindo a palavra a outro sábio, a quem equilibrava sobre o
polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.
— Absolutamente nada – respondeu o filósofo malebranchiste, – é Deus que faz tudo por
mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.
— É o mesmo que se não existisses – tornou o sábio de Sírio. – E tu, meu amigo – disse a um
leibnitziano que ali – se achava, – que vem a ser a tua alma?
— É – respondeu o leibnitziano – um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca
o carrilhão; ou, se quiserdes, é ela quem carrilhona, enquanto o meu corpo marca a hora; ou
então, é minh’alma o espelho do universo, e meu corpo a moldura do espelho: isso é bem
claro.
Um minúsculo partidário de Locke achava-se ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a
palavra:
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— Eu não sei como é que penso – respondeu, – mas sei que nunca pude pensar senão com o
auxilio de meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, eu não duvido; mas
também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno,
não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do
que se pensa.
O animal de Sírio sorriu: não achou que fosse aquele o menos sábio; e o anão de
Saturno teria abraçado o sectário de Locke, se não fora a extrema desproporção entre ambos.
Mas, por desgraça, havia ali um animalículo de capelo que cortou a palavra a todos os
animalículos filosofantes: disse que sabia o segredo de tudo, o qual se achava na Suma de
Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; sustentou-lhes que as suas
pessoas, os seus mundos, sois e estrelas, tudo era feito unicamente para o homem. A isto, os
nossos dois viajantes tombaram um nos braços do outro, sufocados de riso, esse riso
inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se
e, nessas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso das calças do
saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; afinal encontraram e reajustaram tudo
convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita
bondade, embora no íntimo se achasse um tanto agastado de ver que os infinitamente
pequenos tivessem um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que redigiria um
belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o
fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a
Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em
branco. – Ah! bem que eu desconfiava... – disse ele.

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