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TAUBATÉ – SP
2005
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Carlos Eduardo Ramos
TAUBATÉ – SP
2005
CARLOS EDUARDO RAMOS
A CONSTITUIÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA E O SURGIMENTO DA
PSICOLOGIA
Resultado: _____________________
BANCA EXAMINADORA
Assinatura____________________
Assinatura____________________
Assinatura____________________
Para Maria Inez Nunes Romeiro dos Santos.
AGRADECIMENTOS
A Ciência Moderna teve início no século XVII, com o advento da filosofia de René Descartes,
considerado precursor do pensamento moderno, e passou por diversas transformações até se
consolidar no modelo Positivista de Augusto Comte. Neste contexto, a Psicologia se
encontrou em uma situação de crise, visto que o modelo de ciência vigente afirmava que esta
não possuía um objeto de estudo observável. A partir deste problema, foi elaborado este
trabalho bibliográfico, que tem por objetivo compreender de que forma a Psicologia surgiu no
processo de constituição da ciência moderna, abarcando os séculos XVII, XVIII e XIX,
considerando quais obstáculos enfrentou para se afirmar enquanto uma ciência independente.
Para isso foram estruturados seis capítulos que possuem dois eixos comuns: a visão de
homem e o modelo de método científico proposto por cada um dos pensadores escolhidos
para a realização deste trabalho – René Descartes, Francis Bacon, Thomas Hobbes, John
Locke, David Hume e Augusto Comte – sempre permeados pelo contexto histórico-social,
fator importante na constituição do pensamento vigente em cada época.
ABSTRACT
Modern Science had its beginnings in century XVII with the advent of the philosophy René
Descartes’s, regarded as the pioneer of the modern thinking, and went through several
transformations until its consolidation in the positivist model of August Comte. In this
scenario, Psychology found itself in a critical situation, since the model of effective science
affirmed that it hadn´t an observable object of study. Hence, this bibliographical revision was
elaborated, and aims to understand how Psychology claimed it stakes in the process of
constitution of modern science, spanning the XVII, XVIII and XIX centuries, considering
which obstacles it had to face to prove itself as an independent science. Thus, six chapters had
been structuralized with two common axes: the vision of man and the model of scientific
method considered by each one of the thinkers chosen for the accomplishment of this work –
René Descartes, Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, David Hume e Augusto Comte
– always interposed by the historical-social context, an important factor in the constitution of
the effective thought of each time.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 8
ANEXO .................................................................................................................................... 55
8
1. INTRODUÇÃO
tempo considera-se que a abertura do comércio para o resto do mundo por meio da expansão
da época. Interfere em todas esses âmbitos porque tal sistema hierarquiza as diversas classes
sociais, o que implica numa luta política entre essas classes. Segundo Pereira & Gioia (1994),
(2001) elucida que “[...] a lista de salários que abastece o sustento do trabalhador durante o
uma família afim de que a categoria dos trabalhadores não seja extinta” (MARX, 2001, p. 65).
Além disso, expõe como a força de trabalho do assalariado é comparada a qualquer outra
mercadoria, já que a única coisa que ele pode vender é sua própria força de trabalho. “Se a
oferta é muito maior que a procura, então parte dos trabalhadores cai na miséria ou na fome.
qualquer outra mercadoria” (MARX, 2001, p. 66). Assim, Marx denuncia como o sistema
salarial determinado pelos lucros, domínio e acúmulo do capital, pode conduzir o trabalhador
a uma vida banal, uma “simple humanité” (Smith Apud Marx, 2001, p. 65).
produtos, e esses produtos são feitos pelo trabalhador assalariado, que vende sua força de
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trabalho para o capitalista, que é o dono dos meios de produção. Então, como afirmam Pereira
para a contra-reforma, e com isso, o rompimento com as idéias do mundo medieval, que
turbilhão de mudanças e incertezas surgiu a ciência moderna, com início no século XVII,
derrubando a visão de mundo proposta por Aristóteles, e formulando uma nova imagem do
universo, do homem e da verdade, sendo necessário para isso, como afirma Pereira & Gioia,
caminhos” (1994, p. 173). Essa foi a preocupação de diversos pensadores da época: procurar
princípio de que uma resposta verdadeira apenas pode ser alcançada por meio de um método,
sociedade. René Descartes, Francis Bacon, John Locke, David Hume, Thomas Hobbes e
Augusto Comte foram alguns dos filósofos que buscaram conhecer a realidade de suas
épocas, cada um a sua maneira, mas a semelhança que marca o pensamento destes é a
fundamentos filosóficos. Descartes fez uso do racionalismo, Bacon, Locke, Hobbes e Hume
maneira, numa situação de crise. Como afirma Figueiredo (2000), para Comte, os temas da
maneira não integrada, o que não permitia à Psicologia se estabelecer como uma ciência
como ciência era seu objeto de estudo – a Psique – que não se apresentava de maneira
Huisman e Vergez (1976) que a psicologia pode ser diluída dessa maneira sem nenhum
prejuízo.
Essa crise pode ser considerada o problema principal manifesto neste trabalho, que
tem por objetivo discutir como a Psicologia se constituiu como ciência em meio a essas
bases filosóficas que compõe o pensamento moderno e o modelo de ciência que se estabelece
cada época, do século XVI ao XIX, tomando como eixo central a visão de homem e o
O método empregado nesta pesquisa foi o bibliográfico, pois segundo Gil, permite a
“cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla” [...] com o objetivo do
estruturados os três primeiros capítulos, sendo que o primeiro expõe o pensamento de René
Descartes, o segundo se ocupa do pensamento dos Empiristas Bacon, Locke, Hobbes e Hume
pois foram aqueles cujo pensamento são considerados mais importantes na constituição da
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atualmente chamada ciência moderna, visto que estes ofereceram ou uma teoria do
uma proposta metodológica para a ciência. No quarto capítulo será exposta a problemática da
França – e segundo Rubano & Moroz. (1994) num período em meio a uma contestação das
antigas crenças e atitudes da Idade Média, em que era necessário reviver e repensar o
conhecimento da filosofia grega. Nesta época, como afirma Corvisier (1983), a Europa estava
mudança na economia alterou profundamente a sociedade, que por sua vez, presenciou uma
surge como um marco, um ponto de referência para tentar trazer ordem e respostas às
acelerado até o ano de 1620, sendo favorecida principalmente pela expansão marítima. Como
afirma Corvisier (1983), diversos produtos da Índia começaram a ser importados, como seda,
algodão, madeiras raras, porcelana, tapetes e especiarias. Da América eram trazidos o pau-
brasil, cochinilha e índigo. A partir de 1570 é estabelecido o produto que traria maior
fogo, máquinas e objetos vários” (Corvisier, 1983, p. 122). Entretanto, a manufatura, que
fazia uso de maquinários tecnológicos, ainda era uma prática para poucos ousados, a
sociedade rural ainda era a base da constituição econômica da maioria dos países, com
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exceção dos países baixos, principalmente a Holanda. Durante esse período, a expansão
matemática e permaneceu grande parte de sua vida. Já no século XVII, período em que
Descartes redigiu o Discurso do Método (1637), as crises econômicas foram de uma outra
ordem, “[...] tais crises já não se registram sobre um fundo de expansão econômica, mas sobre
econômica surgiram epidemias, guerras e fome, e os países mais atingidos foram justamente
aqueles que tinham conhecido maior expansão no século XVI. A demografia da Europa se
crise espiritual. Cada vez mais Deus deixou de ser o centro do universo para dar lugar ao
próprio homem, e com a reforma protestante, a Igreja começou a perder espaço. Segundo
Corvisier (1983), com a Reforma Protestante, pelo menos um quinto das terras pertencentes à
Quando havia um feudo, isto permitia realçar o brilho de um patronímico plebeu, viver
nobremente, exercer uma autoridade e situar-se em boa posição para fazer-se enobrecer”
(Corvisier, 1983, p. 125). Isso afetou drasticamente o quadro social deste período histórico. O
protestante abriu o domínio da fé à reflexão pessoal. Todos esses fatores ocasionaram uma
e uma brusca ascensão dos instintos primitivos. Tais valores eram o sustentáculo do raciocínio
e do pensamento da época. Essa perda afetou diretamente o aristotelismo, que estava sendo
abandonado, e não havia quem o substituísse. Figueiredo (2000) afirma que a perda de
referências internas para se reorganizar. Esta reorganização se deu nas artes, na filosofia e nas
ciências, e este foi o cenário em que Descartes se encontrava quando deu início a seus
estudos.
Descartes entrou para a escola dos jesuítas de La Flèche em 1604, onde foi encorajado
segundo Schultz e Schultz (2002), também demonstrou talento para a filosofia, a física e a
fisiologia. Aos dezesseis anos deixou a escola e empreendeu uma vida de jantares, bebidas e
jogatina, e ao descobrir ter um corpo sadio, acabou negligenciando suas atividades mentais
exército, afirmando que seus “impulsos militares” eram causados por um aquecimento
ocasional do fígado, que passou com o tempo. Já nessa época é possível identificar em
Em 1619, após ter uma série de sonhos em que o espírito da Verdade apossava-se de sua
mente, Descartes decidiu se dedicar à investigação da Verdade. Passou 10 anos viajando por
vários países, lendo livros e fazendo anotações. Depois dos 33 anos, recolheu-se à Holanda,
afastando-se do mundo e escrevendo sua primeira obra: Le Monde, mas não o publicou por
medo. O mesmo medo que acometeu Galileu e outros cientistas e filósofos da época. Para
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Apenas depois de sua morte o livro sobreveio, e apenas em parte. Tal medo não era exagero,
visto que dado à crise espiritual da época, Descartes foi vítima de perseguições religiosas,
chegando a ser chamado para responder a acusações de ateísmo e libertinagem feitas por
teólogos. Sendo um católico devoto, Descartes percebeu que a sociedade ainda não estava
Embora católico, Descartes era cético por natureza e conformista por educação, e
uma nova espécie de filosofia, tendo como ponto de partida a Dúvida. Segundo Figueiredo,
“sua intenção era submeter toda e qualquer idéia, impressão ou crença a uma
dúvida metódica: as idéias erradas seriam descartadas; as incertas seriam
igualmente descartadas, ao menos provisoriamente; somente idéias
absolutamente claras e distintas poderiam ser consideradas verdadeiras e
servir de base para a filosofia e as ciências” (2000, p.29).
Descartes partiu do princípio de que não devemos aceitar nada como verdadeiro. Este
modo de pensar conduz Descartes a sua primeira realidade. O fato de se pensar revela a
existência de algo que pensa. Esse algo é nada mais do que aquele que pensa. Cogito ergo
outra maneira, nem a própria dúvida poderia existir. Dessa forma, conduz o ceticismo a uma
certeza: “Eu existo”. E a resposta para a pergunta “quem sou eu” chega logo em seguida: Sou
aquilo que duvida, sou uma coisa pensante, ou um Espírito. O retrato final da humanidade
feito por Descartes mostrou então, um corpo mecânico tendo dentro uma alma e sobre ele o
Descartes, que apresenta a existência de Deus como uma certeza. Sua proposta foi
revolucionária para a época, em que segundo Figueiredo (2000), nesse período o homem
passou a ser mais valorizado, a ser pensado como o centro do mundo. Esse pensamento não
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eliminou a crença em Deus, mas distanciou-o do mundo. Deus colocou a ordem no mundo, e
A metafísica é a raiz da filosofia cartesiana e foi essencial para apresentar sua visão de
pensadores das épocas subseqüentes. Descartes acreditava que o corpo humano funcionava
exatamente como uma máquina, “[...] explicando seu funcionamento físico – como a digestão,
corporais que ocorrem sem a intenção consciente da pessoa poderiam ser ocasionados por
objetos externos. “A partir disso chegou à idéia da unulatio reflexa, um movimento não
supervisionado nem determinado pela vontade de se mover. Por causa dessa proposição,
consideraram-no muitas vezes o autor da teoria da ação reflexa1” (Schultz & Schultz, 2002,
p. 41). Esta idéia é também considerada precursora do Behaviorismo clássico, uma corrente
da psicologia que representa uma resposta involuntária do organismo eliciada por um objeto
Além das influências do mecanicismo em sua visão de homem, Descartes ainda tentou
1
Muitos Behavioristas radicais negam influências do Cartesianismo na criação de uma ciência do
comportamento, mas é inegável que, com o mecanicismo, Descartes dá início às idéias de condicionamento
respondente pertencente ao behaviorismo clássico.
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alma é diferente dos corpos, é inextensa e indivisível. Ela é responsável pelo pensar, pelo
emoções e até dos apetites, expondo as emoções humanas de forma mecânica, visto que são
Além de elaborar uma visão de homem tendo a metafísica como base, Descartes
coisas, para o encontro das verdades indubitáveis, visto que sem ele, “(...) o dedicar-se ao
estudo das ciências (...) há de ser mais prejudicial que proveitoso” (Descartes, 2002, p. 81).
Descartes conceitua método como “regras certas e fáceis, graças às quais o que as
observa exatamente nunca tomará o falso pelo verdadeiro e chegará, sem gastar esforço
inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz” (2002, p.81).
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Segundo Japiassu (1986), Descartes declarou que é por meio da intuição – um conhecimento
verdadeiro e imediato – que podemos aceitar algo como verdadeiro. Contudo precisamos
ainda da dedução, ou seja, uma demonstração na qual se possa chegar a uma conclusão
Descartes,
ele alça a condição de sujeito, para qual o objeto que pretende estudar pode ser visualizado de
racionalismo: “[...] O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se
denomina o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens [...] e é a razão ou
o senso a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais” (Descartes, 2002,
p.21). Japiassu (1986) afirma que para Descartes, todos os fenômenos da natureza são regidos
pelas leis da extensão e do movimento, e tais fenômenos devem ser interpretados pelos
dispositivos mecânicos, ou seja, reduzir a matéria, o corpo e a vida à extensão. Tudo aquilo
que não for alma ou pensamento é explicado através da extensão e do movimento. A filosofia
de Descartes é então dualista, pois define o corpo e a alma como duas substâncias completas.
Chega-se então a conclusão de que a ciência deve ser realizada por meio da matemática e de
técnicas de mensuração.
abre um leque imenso de possibilidades para se pensar os rumos que a humanidade poderia
tomar a partir de então. A partir de suas obras, são retomados como temas importantes da
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“[...] finalista, hierarquizado e que cada coisa tem sua função e seu lugar, onde a terra é o
centro – é destruída por Descartes, que põe em seu lugar a extensão sem limites e sem fim, ou
matéria sem fim nem limites” (Rubano e Moroz, 1994, p. 204). Ou seja, tudo é matéria,
extensão e movimento, uma mudança extremamente radical para a época. Por ter surgido em
pai do pensamento moderno, já que permitiu, com seu pensamento racionalista e lógico, o
filosofia é tanto, que até o século XIX ele será usado como referência, seja para a sustentação
3. OS EMPIRISTAS INGLESES
experiência que é adquirida pela percepção do mundo externo pelos órgãos dos sentidos,
Bacon, Thomas Hobbes, John Locke e David Hume. Para os empiristas, tudo o que está no
intelecto passou antes pelos sentidos, ou seja, é a partir dos dados obtidos por meio de nossos
profundamente a ciência moderna, que passa a utilizar tal argumento para justificar a
filósofos da corrente empirista acima citados, considerando as diferenças nas teorias de cada
um deles e sua importância para a consolidação de um pensamento que foi decisivo para o
primeira metade do século XVII, em que a Inglaterra se libertou das correntes da igreja
católica consolidando como sua religião oficial o Anglicanismo, proposta por Henrique VIII,
e foi também quando ocorreu uma rápida expansão industrial, como explica Pereira (1994),
política. Nesse contexto, o chanceler Francis Bacon teve uma vida muitas vezes comparada a
guarda do selo-real e barão de Verulam, e em 1621 foi acusado de corrupção, sendo afastado
de todo e qualquer cargo e privado de seus títulos honoríficos. Mas suas maiores ambições
novos tempos e afirmou repetidamente que ‘saber é poder’” (PEREIRA, 1994, p.190 ). Assim
como Descartes, Bacon dedicou a maior parte de seu tempo a tentar descobrir a melhor forma
Segundo Souza Filho (1986), Bacon defendeu uma ciência com base no método
e imediato.
O que Bacon trouxe de novo e de interessante para a filosofia e a ciência, foi “[...] o
fato de nunca separar o espírito científico do espírito técnico. Por isso ele é singularmente
moderno” (HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 129). Acreditava que a ciência desemboca no
poder, e todo poder verdadeiro passa pela ciência. Esse pensamento, que será constante não
Augusto Comte. Dessa forma Bacon dá força para o desenvolvimento e o progresso através da
pela situação política da Inglaterra, que era considerada a maior potência industrial da época.
A idéia de progresso de Bacon é ilustrada em uma obra quase profética, “A nova Atlântida”,
em que descreve uma sociedade científica muito parecida com a forma em que a ciência se
deslocar sob a água” (BACON Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 129). Esse espírito
científico de Bacon certamente foi um fator importante para o início da Revolução Industrial,
Ainda mais além, Bacon traçou as primeiras idéias do que seria um método científico
vida do homem, mesmo que de forma não imediata. Segundo Pereira (1994), Bacon define
que alguns experimentos trazem frutos e outros trazem luz sobre problemas teóricos que mais
[...] ‘caçando os fatos’, o que Bacon chama de ‘a caça de Pan’. Uma vez
reunidos os fatos, há que classificá-los segundo tábuas de ‘presença’, de
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Bacon terminou por caracterizar seu método como um casamento entre o método
família humana” (BACON Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 131). De fato,
corrente empirista inglesa a idéia da experiência sobre o raciocínio. Essa idéia, que será
explorada com maior profundidade por John Locke, conduzirá a ciência a uma busca
às idéias empiristas na Inglaterra foi Thomas Hobbes, que dedicou a maior parte de seu
trabalho à política e ao Estado, mas será mencionado aqui devido à proposição da visão de
Thomas Hobbes, assim como Francis Bacon e a maior parte dos empiristas, estava
envolvido com a nobreza, ocupando lugar de destaque na sociedade inglesa da época. Foi
conselheiro de políticos e participante ativo das discussões políticas da época, que giravam
nobreza absolutista, que defendiam a idéia de manter o poder absoluto nas mãos de apenas um
monarquia absoluta, dando início a uma nova ordem política denominada Liberalismo.
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Micheletto e Sério (1994) lhe valeu revezes e períodos de exílio. Mas não foi apenas o apoio
ao absolutismo que o compeliria a deixar o país algumas vezes. Com sua obra “Leviatã”, a
igreja anglicana o acusaria de ateísmo, criando uma associação entre sua obra e o grande
incêndio de Londres e a peste. Ainda assim, Hobbes sempre manteve contato com grandes
nomes da época como Francis Bacon, de quem foi secretário, Galileu e até com Descartes
com quem mantinha constantes discordâncias, embora sua filosofia também se mostre
mecanicista. Embora o maior impacto de sua filosofia esteja relacionado à política, Hobbes
o pensamento é:
imaginação e entendimento das primeiras. A imaginação nada mais é do que uma sensação
diminuída encontrada tanto nos homens quanto em outros seres vivos, uma ilusão, segundo
Hobbes (2002), da sensação. E quando se quer enfatizar a sensação como algo que se esvaece,
algo passado, então essa imaginação pode ser chamada de memória. Hobbes trilha este
apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação, de uma só vez, ou
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Mesmo sendo mecanicista, Hobbes diverge de Descartes, pois não acredita que a razão
seja inata como a sensação ou a memória, mas adquirida com muito esforço, por meio de um
método. A razão por si só não pode ser uma razão certa e infalível, e por isso afirma que o
fato em relação a outro, pelo que, a partir daquilo que presentemente sabemos fazer, sabemos
como fazer qualquer outra coisa quando quisermos, ou também em outra ocasião” (HOBBES,
2002, p. 43). Dessa forma Hobbes justifica a necessidade de um método empirista, ou seja,
determinado objeto estudado. John Locke explorará essa idéia não apenas no sentido de um
parlamentarista e do liberalismo, fato que pode ser justificado por sua origem burguesa. Foi
estudante de medicina e de ciências naturais, mas demonstrou vocação para a filosofia e para
a política. Tornou-se secretário do Conde de Shaftesbury, e quando este fugiu para a Holanda
por realizar uma conspiração contra Carlos II, Locke o acompanhou, não apenas por também
ser suspeito, mas por ter se tornado seu confidente e amigo. Quando retornou, Locke se
economia.
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Mas sua obra mais importante é o famoso Ensaio acerca do Entendimento Humano,
obra que Voltaire descreve como o primeiro estudo realista sobre o mecanismo do espírito
humano. “Após tantos raciocinadores que fizeram o romance da alma, veio um sábio que
modestamente fez sua história [...] Locke analisou a razão humana para o homem exatamente
HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 218). A admiração de Voltaire por Locke mostra que no
século XVIII, o pensamento francês se baseará quase todo no empirismo. Em seu pequeno
conto filosófico intitulado “Micrômegas” (ANEXO 1), Voltaire propõe uma discussão fictícia
sobre a alma entre diversos pensadores do planeta Terra (entre eles um empirista seguidor das
idéias de Locke) e um gigante de oito léguas habitante da estrela Sírio, que bem mostra a
Descartes quanto ao inatismo das idéias. “Toma as proposições mais evidentes como A é A
ou faze aos outros aquilo que queres que te façam; elas são tão pouco inatas que nem as
crianças, nem os selvagens e nem os idiotas possuem a menor idéia a seu respeito” (LOCKE
Apud HUISMAN & VERGEZ, 1976, p. 218). Ou seja, Locke alega que os seres humanos não
suficiente para destruir a anuência universal de que as verdades são inatas. Como afirma
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Schultz e Schultz (2002), ele admitia que alguns conceitos podem nos parecer inatos, mas isso
se deve ao fato de que durante a infância essas idéias nos foram incutidas. Locke sugere então
que a mente adquire conhecimento apenas por meio da experiência, como já foi citado no
Locke assume a postura empirista principalmente pelo fato de que suas idéias estão
ligadas à sua moral de tolerância. Como afirmam Huisman e Vergez (1976), o inatismo,
segundo Locke, acarreta o fanatismo. “Com efeito, aquele que erradamente crê na existência
de idéias inatas tomará como verdades absolutas e universais suas opiniões que apenas são o
219). Neste ponto Locke discorda de Hobbes, que ainda atribuía uma origem natural à idéia
sua visão de homem sustentando a noção de que a mente é uma tábula rasa, alegando que
todas as idéias são obtidas pela experiência, e as experiências podem advir da sensação ou da
reflexão.
Como afirma Huisman e Vergez, “a sensação nos faz conhecer os objetos exteriores,
mas a reflexão nos revela as operações de nossa alma por intermédio do sentido interno [...] A
reflexão é uma experiência original, a experiência de nossa atividade mental” (1976, p. 219).
Ou seja, existem idéias que se constituem a partir de objetos do mundo externo (sensações)
que os sentidos levam até a mente humana, e idéias que dizem respeito às operações da mente
humana (reflexões), como duvidar, crer, raciocinar e conhecer. São essas duas fontes de
Com a experiência erigida como base do conhecimento, Locke dirigiu seus estudos
para a busca de soluções práticas, afastando-se dessa forma de uma filosofia metafísica e
especulativa. Segundo Andery, Micheletto e Sério (1994), estabelecendo esse paradigma para
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o conhecimento, Locke se distancia de Descartes e prepara o terreno para David Hume, que
necessitará da negação da reflexão pura e do inatismo das idéias estabelecida por Descartes
para propor sua filosofia crítica e centrada no conhecimento a partir das experiências do
mundo sensível.
David Hume viveu num período que corresponde o século XVIII, que foi marcado por
nos séculos XVI e XVII permitiram a abertura para o modo de economia capitalista, a
Com a revolução, são instituídas duas classes básicas, “a burguesia, detentora dos meios de
meios de produção, vende sua força de trabalho para subsistir” (PEREIRA & GIOIA, 1994, p.
255). A grande mudança se deu no processo de trabalho, que saiu do sistema doméstico para
Franco Júnior (1986) destaca-se a acumulação de capital gerada pelo comércio, a expansão
demográfica e a revolução agrícola, com novas técnicas para se plantar e cuidar do solo,
Pereira e Gioia (1994) apresentam quatro fatores que colocam a Inglaterra em vantagem no
regiões da Europa, sendo que a Inglaterra havia se consolidado como a maior industria
manufatureira têxtil, o que foi fundamental para sua industrialização fabril. O segundo fator
foi político. A Inglaterra do século XVIII já havia realizado a revolução política da burguesia,
terceiro fator citado por Pereira e Gioia (1994) é o próprio acúmulo do capital, o modo de
produção capitalista que foi promovido pela Inglaterra, pelo fato dela possuir tanto capital
quanto mercado. O quarto e último fator citado diz respeito à vasta força de trabalho
disponível para a indústria, que pode ser associada à explosão demográfica citada acima.
Essa mão de obra abundante não foi decorrente apenas da explosão demográfica, uma
A desqualificação levou a uma redução do valor da força de trabalho (no caso, a única coisa
que o proletariado pode vender), o que aumentou os ganhos do capitalista. Com essa
destruindo máquinas, que consideravam as responsáveis pelo seu sofrimento, lutas para
proletariado e a burguesia. No século XIX o socialismo científico surgirá para trazer à mostra
a luta de classes, mas antes disso, David Hume trouxe contribuições para o desenvolvimento
dedicou a uma carreira comercial, mas insatisfeito, mudou-se para a França, onde trabalhou
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para o governo inglês e iniciou seus estudos autodidatas. Lá foi reconhecido como importante
Hume encontrou um eixo comum com o empirismo no que diz respeito a uma crítica
da origem do conhecimento humano, que segundo Andery e Sério (1994) baseia-se nas
(também um empirista inglês), que critica a noção de causalidade física. Hume tentou inserir
por Locke com a idéia da tábula rasa, mas não apenas se ateve a essas idéias, como também as
Portanto, para Hume, toda idéia tem seus alicerces numa impressão, “e a liberdade que
se supõe existir no pensamento humano, capaz de criar as mais insólitas imagens, não passa
de uma liberdade aparente” (ANDERY & SÉRIO, 1994, p. 317). Essa noção de liberdade é
aparente exatamente porque Hume acredita que quaisquer dessas idéias são em essência,
Segundo Chauí (1995) David Hume se destaca entre os empiristas por se posicionar de
maneira contrária ao princípio da causalidade, afirmando que este não possui validade
alguma. Este é visto por Hume como “[...] um hábito que nossa mente adquire de estabelecer
de causa e as posteriores de efeito. (CHAUÍ, 1995, p. 231)”. A causalidade então não é uma
propriedade do real, mas “[...] o resultado de nossa forma habitual de perceber fenômenos,
relacionando-os com causa e efeito, a partir de sua repetição constante” (SOUZA FILHO,
relação causal gira em torno da idéia de que tal relação não existe na natureza, mas reflete
causalidade expressa “[...] uma projeção sobre a natureza de nossa forma de perceber o real”
(SOUZA FILHO, 1986, p. 105). Essa idéia será abraçada pelo método científico, e quando a
Psicologia se adequar a esse método através do Behaviorismo Radical, a busca por uma
ciência do homem deixará de ser uma busca pela relação de “causa e efeito”, sendo então
substituídas.
Skinner quer dizer que essa nova terminologia não sugere que uma determinada causa
produz um determinado efeito, mas sim que meramente afirmam que eventos diferentes
tendem a ocorrer ao mesmo tempo, em uma certa ordem. Aí se mostra a herança de David
das sensações proposta por Hobbes; a radicalização de Locke, ao comparar o homem a uma
serão absorvidos pelo espírito revolucionário dos séculos XVIII e XIX, para uma tentativa de
este será um dos fundamentos da ciência moderna. Quando falarmos sobre a constituição da
Psicologia como uma ciência, perceberemos a dificuldade de incluí-la neste modelo, que
descarta a subjetividade – que virá a ser o objeto de estudo não apenas da Psicologia, mas de
outras ciências sociais – e aceita apenas o empírico. Essa maneira de pensar se consolida no
faz-se necessário comentar e explicitar a crise política que envolveu também questões sociais
e econômicas da França no século XVIII. Este século foi marcado por duas grandes
revoluções, uma econômica e outra política. A Revolução Industrial que ocorreu inicialmente
Pereira e Gioia (1994), o autor Eric J. Hobsbawn afirma que a Revolução Francesa foi um
fenômeno muito mais fundamental do que qualquer outro do século XVIII, atribuindo essa
feudalismo, em que 80% da população eram camponeses que viviam em situação precária,
trabalhando na terra, ganhando pouco e pagando impostos ao Estado, à Igreja e aos nobres.
Ainda que se mantendo nos moldes do feudalismo, o país não mantinha uma
problema para os burgueses é que sua situação econômica privilegiada não era acompanhada
por privilégios políticos, o que começou a gerar conflitos entre eles e a monarquia.
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Além das pressões sofridas pela burguesia, a monarquia começou a sofrer pressões
também da nobreza, que como não podiam se dedicar ao comércio ou a industria, tinham que
explorar os camponeses cada vez mais, e lutar pela retenção de seus privilégios, como o de
mesmo tempo, os burgueses forçavam mais sua ascensão na sociedade, utilizando-se dos
A revolução teve início com uma tentativa da nobreza de capturar o Estado, mas
falhou por tentar impor exigências que não condiziam com o contexto social e econômico, em
crise devido ao inverno rigoroso. Dada essa situação, a burguesia, aliada à massa popular
“conseguiu não só aumentar o número de seus deputados, como alterar o sistema de votação
para um outro, onde o voto era por indivíduo (não por ordem), conseguindo transformar a
instituição em Assembléia Constituinte” (PEREIRA & GIOIA, 1994, p. 272). Com isso, tanto
a nobreza quanto a monarquia tentaram fechar a assembléia para impedir tais mudanças, mas
foram impedidos por uma revolução popular, que culminou na queda da Bastilha em 14 de
julho de 1789. Segundo Pereira e Gioia (1994), a burguesia tomou as rédeas da revolução na
Com essa reforma, foi instituída a monarquia constitucional, que visava construir um
Estado que preservasse os interesses burgueses, colocando a nobreza lado a lado com a
burguesia, e esta aliada à monarquia. Esse regime desagradou a nobreza, a monarquia, a Igreja
revolta. O que reiniciou o movimento revolucionário foi a guerra que a França manteve contra
a Europa. Segundo Pereira e Gioia (1994)a extrema direita (o rei, a nobreza e o clero)
trazer de volta o velho regime, e os liberais moderados a desejavam para poder difundir os
ideais franceses a outros povos oprimidos. O fracasso dos exércitos franceses foi atribuído ao
rei, o que se tornou um fator decisivo para sua prisão. A partir disso a monarquia
princípios burgueses.
os girondinos à direita (alta burguesia, que não queria a participação política da população),
tudo), e uma posição de centro, que apoiava os girondinos. Os jacobinos, liderados por
fizeram uso do que foi chamado de “o terror”, execuções efetuadas pela população, e
constituídos por uma aliança de classes que tinham interesses diferentes, fato que trouxe de
volta ao poder os girondinos. Estes eram mais conservadores e defendiam os direitos da alta
burguesia, o que gerava um contraste entre o luxo destes e a miséria da população. Ao mesmo
tempo o exército ganhava maior importância, mantendo a guerra fora da França. Essa
Bonaparte, marcando assim o fim da Revolução Francesa. Assim como qualquer burguês,
Napoleão tinha interesses na estabilidade, o que o tornava uma pessoa adequada para liderar o
exército, concluir a revolução burguesa e começar o regime do sistema burguês. Como afirma
Napoleão [...], criou na França as condições sem as quais não seria possível
desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida
e utilizar as forças produtivas industriais das nações que tinham sido
libertadas; além das fronteiras da França, ele varreu por toda parte as
instituições feudais, na medida que isso era necessário para dar à sociedade
36
francês desde o século XVIII, ao se opor a René Descartes, no sentido de que a razão não
tinha como características as idéias inatas e verdades indubitáveis, como afirmava Descartes,
mas sim “[...] para os pensadores franceses ela tinha uma característica de instrumento”
(RUBANO & MOROZ, 1994, p. 333). Essa oposição é bem demonstrada ao retomarmos o
conto “Micrômegas” de Voltaire, onde o gigante da estrela Sírio discute com um cartesiano
Além dessa característica, o pensamento francês ainda possui alguns outros aspectos, tais
como:
os pensadores deste século irão propor uma reorganização racional dessa sociedade, que,
como será explicado mais adiante, mesmo tentando negar, acaba se aproximando e afirmando
Politécnica de Paris e também medicina, mas não terminou seus estudos. Sua filosofia reflete
quem foi secretário. Esse encontro lhe rendeu as primeiras idéias para uma ciência social e
uma política científica. Tendo elaborado seu sistema, abre um curso de filosofia positiva e
publica diversas obras. Seu segundo encontro é com Clotilde de Vaux, por quem se apaixona
fervorosamente, mas ela oferece apenas sua amizade, e morre dois anos depois. Comte sente
sua razão vacilar, mas entrega-se aos estudos e elabora o Tratado de Sociologia que institui a
O termo positivo para Augusto Comte, segundo Simon (1986) abarca o sentido do
real, do útil, da certeza e da precisão. Em sua filosofia, definida pelo próprio Comte como um
“sistema geral do conhecimento humano” (SIMON, 1986, p.120), traz uma proposta de
organização moral e intelectual da sociedade. Comte afirmou ter descoberto o que chamou de
lei dos três estados, no qual todas as ciências e o pensamento humano, bem como seu esforço
e o estado positivo. Essas leis se aplicam tanto para o desenvolvimento da espécie quanto para
a sociologia – partindo do critério de que deve-se começar pelo estudo dos “fenômenos mais
gerais ou mais simples (...) procedendo em seguida sucessivamente até atingir os fenômenos
39
mais particulares ou mais complicados” (COMTE Apud SIMON, 1986, p. 124). Ou seja, essa
dependência mútua entre elas. A física social, ou sociologia seria então para Comte a ciência
mais complexa, menos geral e a mais recente historicamente, por ser colocada por último,
enquanto a matemática deveria ser considerada mais como a base de toda filosofia natural,
uma lógica geral para todas as outras ciências. Da matemática à sociologia, a ordem é do mais
simples ao mais complexo. Essa conduta não é muito diferente da terceira regra imposta por
Descartes em seu método – conduzir seu pensamento do mais simples para o mais complexo –
que se interessará em estudar animais como pombos, ratos e porcos (objetos mais simples)
complexo).
Por ciência Comte compreendia uma forma de conhecimento caracterizada por duas
adequado aos fenômenos observados. A partir disso busca-se suas relações de concomitância
e sucessão, ou seja, suas leis, e com isso ser “capaz de prever e controlar os fenômenos para a
construção da sociedade positiva” (SIMON, 1986, p.130). Comte acreditava que todas as
ciências passavam pelos três estados, e quanto mais simples e geral fosse, mais rapidamente
entraria no estado positivo. Todas as ciências, inclusive a sociologia caminharam por esses
três estados. Seu principal argumento sobre sua crença nos três estados era de que é da
marchar por esses estados primitivos até alcançar o estágio definitivo, o positivo, e a
sociologia “constituiria o resumo e o coroamento das demais [ciências] que a precedem (...)
125). Ao considerar a sociologia como uma ciência, Comte decide aplicar a ela a lei dos três
estados, afirmando que ela já passou pelos dois primeiros e está pronta para o estado positivo:
É possível interpretar que Comte, ao afirmar a lei dos três estados como intrínseca à
com isso, aproximando-se de Descartes, que também via o homem com uma tendência natural
para agir sobre a natureza e modificá-la em seu proveito. Outro ponto em que Comte se
Para se captar a realidade, Comte entende que devem ser mantidas uma distância e uma
neutralidade entre o sujeito e o objeto, ignorando assim, a idéia de que o sujeito pode
influenciar o objeto de estudo, e de que pode haver uma interação, mesmo que não
intencional, entre ambos. O Positivismo acredita que é “[...] possível uma manipulação
objetiva do objeto, seja na linha de que ele se impõe ao sujeito que o teria apenas que retratar,
seja na linha de que sua manipulação não precisa deixar no objeto a marca do sujeito e da
sociedade” (DEMO, 1980, p.127). A negação desta interação reside na idéia de que há uma
verdade universal, e só é possível alcançá-la por meio da lógica formal, e isso se constitui
numa busca por uma neutralidade científica e no distanciamento da idéia de que uma pesquisa
41
pode ter um caráter ideológico. DEMO (1980) critica essa posição afirmando que “o sujeito é
incapaz de apenas descrever, retratar o objeto, como se fosse uma câmara fotográfica. Esta
imagem [...] é feliz, porque revela que o retrato totalmente objetivo não existe: depende da
qualidade do filme, da perfeição da máquina, das condições ambientais, etc.” (p. 19).
Como afirma DEMO, para os positivistas, “a experiência não experimenta valor, pois
este não é constatável. Um fato apenas existe ou não existe, é possível ou impossível; valorar
observável” (1980, p.126). Este será o ponto de ruptura decisivo futuramente, entre o
Positivismo e os outros métodos que virão a ser utilizados nas ciências sociais, tais como a
portanto, segundo Moreira (2002), que reconstruir uma filosofia diferente da positivista para
realmente alcançar uma ciência rigorosa; e as visões dialéticas, que segundo DEMO (1980)
afirmam que para existir a neutralidade nesse sentido, deveria-se antes neutralizar um
contexto vital que nunca é neutro, ou seja, é impossível desconsiderar o contexto social como
entre sujeito e objeto, crença na unidade do método e da lógica formal, negação da metafísica
classificação de suas seis ciências. Segundo Huisman e Vergez (1976), Comte afirma que a
psicologia pode ser diluída sem nenhum prejuízo entre a biologia e a sociologia. No sistema
psicologia como ciência era seu objeto de estudo. Como afirma Figueiredo “[...] a psique,
entendida como ‘mente’, não se apresenta como um objeto observável, não se enquadrando,
por isto, nas exigências do positivismo”. (2000, p. 15). O problema maior para uma psicologia
científica então, segundo Figueiredo, é estar por um lado reivindicando um lugar à parte entre
42
as ciências, e por outro, “não conseguindo se desenvolver sem estabelecer relações cada vez
Este capítulo tem por objetivo resgatar o surgimento da Psicologia no século XIX, e
possível ao modelo positivista das ciências naturais. As bases filosóficas expostas nos
capítulos anteriores servirão de base para um diálogo entre as psicologias que foram sendo
humano. O estado positivo tem como objetivos finais o alcance do conhecimento verdadeiro,
preciso, objetivo e útil – e são esses os objetivos da ciência moderna, aliados à idéia de que o
homem “é o senhor que tem o poder e o direito de colocar a natureza a seu serviço”
Bacon, que entendem o ambiente como um grande laboratório e permite a dissociação entre o
para a ciência. Como afirma Figueiredo “a metodologia científica que vem se desenvolvendo
nos últimos séculos representa exatamente o esforço de disciplinar o espírito para melhor
O grande problema encontrado nos estudos psicológicos era de que para obedecer a
essas normas do método científico, era necessário eliminar a subjetividade, para preservar a
Figueiredo (2000), Wundt considerava a psicologia como uma ciência intermediária entre as
dissolução. O objeto de estudo de Wundt foi denominado por ele de “experiência imediata”,
que segundo Figueiredo “é a experiência tal como o sujeito a vive antes de se pôr a pensar
como ela se dá (2000, p. 58). Fica claro que Wundt não elimina o processo de subjetividade
uma inicial influência do empirismo, e com isso fundou o famoso Laboratório de Leipzig,
onde estudantes não apenas da Europa, mas de diversas partes do mundo foram estudar.
Segundo Farr:
Psicologia, para Wundt, era apenas em parte um ramo das ciências naturais.
Ele percebeu que seria possível resolver experimentalmente certos
problemas específicos dentro da filosofia. Esse projeto estritamente
limitado, contudo, necessitava, em sua opinião, ser suplementado por uma
forma de Geisteswissensschaften [Ciência Social] (2004, p. 40).
com isso, a dificuldade de se estudar o homem por uma visão que se denomina neutra e livre
de caráter ideológico. Wundt expõe a tentativa de inserir a Psicologia como uma ciência
possível dentro do modelo das ciências naturais, quando na verdade, isso não seria possível
45
sem que se ignorasse fatores importantes da vida do homem, como por exemplo o contexto
subjetividade teria que ser eliminada como objeto de estudo (como aconteceu com o
superiores da vida mental, tais como o pensamento e a imaginação, e com isso aumentando
seu interesse nos fenômenos culturais: a linguagem, a religião, os mitos, a magia, os costumes
único povo, ou comunidade de pessoas que tenham se tornado universais” (FARR, 2004, p.
47). Para isso, se desfez do método experimental e deu início a sua Psicologia Social, ou
“Völkerpsychologie”. Devido às diferenças entre seus dois trabalhos, Wundt decidiu separar a
Völkerpsychologie da sua Psicologia fisiológica experimental. Wundt então funda uma nova
Farr:
do outro, a Völkerpsychologie. Segundo Farr “eles eram dois projetos independentes, embora
fisiológica. Um se referia a comunidade das pessoas (um volk – povo) enquanto outro se
46
referia ao indivíduo” (2004, p. 46). Com isso, Wundt se desvencilhou do positivismo, o que
gerou enormes conflitos, até entre seus alunos e assistentes. Wundt não apenas caminhou na
elaborar uma metafísica científica. Os positivistas repudiaram então não apenas sua psicologia
social, que era uma Geisteswissensschaft, mas também sua postura antipositivista. Devemos
nos lembrar que o positivismo considera um retorno à metafísica um retrocesso, como afirma
Farr:
A partir daí a Psicologia se dividiria entre aqueles que abraçariam as ciências naturais
e aqueles que buscariam a psicologia nas ciências humanas e sociais. Desde o princípio, os
como ciência.
Depois do esforço de Wundt em separar psicologia entre uma ciência social e uma
deles foi Edward Bradford Titchener (1867 – 1927), fundador da abordagem chamada
“Estruturalismo”. Segundo Schultz e Schultz (2002), Titchener foi aluno de Wundt e principal
divulgador de sua obra nos Estados Unidos – apenas sua psicologia experimental – e toma a
sujeito – sendo este concebido como um puro organismo e, em última análise, como um
sistema nervoso – e não mais a experiência imediata [concebida por Wundt]” (FIGUEIREDO,
2000, p. 61). De fato Wundt acabou sendo historicamente mal interpretado, como coloca Farr:
47
A história não foi benigna com a visão de psicologia de Wundt. Isso deve-
se, em parte, como vimos acima, ao fato de psicólogos experimentais terem
tomado sua disciplina como sendo totalmente um ramo das ciências
naturais; em parte também ao fato de os psicólogos sociais, ao menos no
mundo de fala inglesa, não terem uma percepção clara da psicologia como
uma ciência humana e social (2004, p. 42).
Como afirma Schultz e Schultz (2002) a psicologia estrutural foi proeminente nos
Estados Unidos por muitos anos, mas acabou sendo derrubado por alguns de seus
contemporâneos que veremos mais adiante. Titchener afirmava que a tarefa da psicologia era
descobrir a natureza das experiências conscientes elementares, sua estrutura, e para isso
e sua doutrina mecanicista, e ainda com o positivismo, no sentido de que para descrever a
Dessa maneira, a psicologia deixa de ser tão independente, como desejava Wundt.
Para fazer sua ciência, que considerava que “[...] o fisiológico explica o mental”
Psicologia Funcional, cujos principais autores são John Dewey (1859 – 1952), James
Rowland Angel (1869 – 1949) e Harvey A. Carr (1873 – 1954). Seus principais interesses
ambiente, considerando-os como seu objeto de estudo. Seus pressupostos teóricos derivam da
teoria evolutiva de Darwin, e consideram a psicologia como uma ciência biológica. Como
afirma Figueiredo:
psicologia, no que se refere à psicologia entendida como uma ciência natural. Ela abriu
uso de seus conceitos – pela linha teórica da Psicologia que ainda hoje faz uso do pensamento
Positivista: O Behaviorismo.
comportamento e suas interações com o ambiente. Segundo Farr “Watson proclamou que a
psicologia era totalmente um ramo das ciências naturais ao declará-la como a ciência do
comportamento. O comportamento possui uma vantagem sobre a mente por ser diretamente
visível” (2004, p. 41). As ferramentas utilizadas nesse projeto de ciência eram a observação e
vez o problema da Psicologia como ciência, isso porque seu projeto se encaixava
perfeitamente no modelo positivista das ciências naturais. Descarta a idéia de corpo e mente
ao considerar o comportamento como objeto. Segundo Figueiredo (2000), desta vez a idéia de
definitivamente. Os argumentos dados para isso são os mesmos de Augusto Comte: eliminam
49
qualquer coisa que não seja acessível aos métodos objetivos da ciência, ou seja, qualquer
coisa que não seja diretamente observável. O homem passa a ser considerado como qualquer
outro animal, o que leva os estudiosos dessa linha a iniciarem estudos com pombos, ratos,
a esse método acabaram surgindo na arte, com obras como Laranja Mecânica, Admirável
Mundo Novo e 1984. Nesses dois últimos principalmente, são mostradas técnicas de controle
constituiria agora como uma linha da psicologia, mas como uma ciência independente que
tomaria o lugar da psicologia. Burrhus Frederick Skinner (1904 – 1990) viria a desenvolver
psicologia. Com Skinner, o behaviorismo ganhou enorme destaque dentro das ciências
método positivista das ciências naturais ao negar a subjetividade, mas isso não significa que
ela deixe de existir. Figueiredo (2000) cita que, mesmo com a crise da psicologia em relação à
ciência, a subjetividade não pode ser simplesmente negada. Dessa forma, surgirão
posteriormente teóricos que tentarão quebrar esses paradigmas, como Freud, que irá propor
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Psicologia se encontra hoje dividida em diversas linhas teóricas, mas essas divisões
não aconteceram por mero acaso, elas são decorrentes de determinações históricas e culturais
que foram discutidas nos primeiros capítulos deste trabalho, tais como a formação do sistema
político e econômico na Europa, local onde se deu o surgimento da ciência moderna, que
trilhou todo um caminho durante quatro séculos até chegarmos aos dias de hoje. O movimento
conhecimento e à visão de homem, uma resposta para as crises ocorridas na época. Crises nas
acaso, ele foi uma tentativa revolucionária de colocar a sociedade da época em um estado de
aceito. A ciência passou quatro séculos determinando objetos de estudo e dividindo-os para
compreendê-los, mas chegaram a um ponto em que não conseguiam mais visualizar o objeto
como um todo, e quando nos referimos a uma ciência que estuda o homem, como a
psicologia, esse problema torna-se muito sério. Nesse momento nos vemos novamente em
crise, então necessitamos de uma mudança de paradigma. Farr (2004) aponta a base da
filosofia Positivista como principal entrave para uma constituição histórica da Psicologia
como ciência, afirmando que no momento em que se busca passar de um estado para outro
respiratório, digestivo – e que o corpo é apenas o receptáculo da alma, para que a ciência
pudesse se desenvolver dentro daquele período – onde a Igreja proibia a dissecação de corpos
Descartes como lei após todos esses séculos de desenvolvimento significa dar as costas para o
passado e para todos os objetivos que foram estudados ao longo desse tempo.
Psicologia impede que os estudos sobre a psicologia alcancem a dimensão histórica e social,
diversas esferas da vida humana. Faz-se então necessário perceber que o conhecimento da
estudá-lo para compreender o homem como sujeito da ação, determinante e determinado pelo
que às vezes ainda são vistas com desconfiança, como se não tivessem caráter científico. A
origem desse preconceito pode residir nessa desinformação que existe acerca da constituição
das ciências e da noção de verdade, que às vezes são vistas como naturais, como se sempre
estivessem ali, quando na realidade são frutos de uma relação dialética entre o homem e seu
contexto histórico. Também não se pode perder de vista a constituição da Psicologia enquanto
52
uma ciência social, como denuncia Farr (2004) quando afirma que a história perdeu de vista
alguns aspectos fundamentais de seus ancestrais, tais como Wundt, pois a história da
Psicologia é contada a partir de um modelo positivista que às vezes pode ignorar fatores
passado e presente na constituição da história, bem como uma separação entre a filosofia e a
ciência.
53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHACON, P. P., FRANCO JUNIOR, H. História Econômica Geral. São Paulo: Atlas, 5.
ed., 1992.
DESCARTES, R. Regras Para a Direção do Espírito. São Paulo: Martin Claret, 2002.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4° ed. São Paulo: Atlas, 2002.
HUISMAN, D. VERGEZ, A. História dos Filósofos ilustrada pelos textos. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 3. ed., 1976.
RUBANO, D. R., MOROZ, M. A dúvida como recurso e a geometria como modelo: René
Descartes. In Para compreender a Ciência – Uma perspectiva Histórica. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo. 5. ed., 1994
VOLTAIRE. Micrômegas – História Filosófica. In Contos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
55
ANEXO
56
ANEXO 1
CAPÍTULO PRIMEIRO
Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno
Num desses planetas que giram em torno da estrela chamada Sírio, havia um jovem de
muito espírito a quem tive a honra de conhecer durante a última viagem que fez a este nosso
pequeno formigueiro: chamava-se Micrômegas, nome bastante adequado a todos os grandes.
Tinha oito léguas de altura: entendo, por oito léguas, vinte e quatro mil passos geométricos de
cinco pés cada um.
Alguns algebristas, gente sempre útil ao público, tomarão logo da pena e, tendo em
vista que o senhor Micrômegas, habitante do país de Sírio, tem da cabeça aos pés vinte e
quatro mil passos, ou sejam vinte mil pés, e que nós outros, cidadãos da terra, não medimos
mais que cinco pés de altura e o nosso globo nove mil léguas de circunferência, esses
algebristas, dizia, eu, calcularão que é preciso, absolutamente, que o globo que o produziu
seja exatamente vinte e um milhões e seiscentas mil vezes maior que a nossa minúscula terra.
Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os Estados de alguns soberanos da
Alemanha ou da Itália, cuja volta se pode fazer em meia hora, comparados ao império da
Turquia, de Moscóvia ou da China, não são mais que uma débil imagem das prodigiosas
diferenças que a natureza colocou em todos os seres.
Sendo Sua Excelência da altura que eu disse, todo, os nossos escultores e pintores
convirão sem dificuldade em que a sua cintura pode medir cinqüenta mil pés, o que constitui
uma bela proporção.
Quanto a seu espírito, é um dos mais cultivados que existem; sabe muitas coisas e
inventou algumas outras: não tinha ainda duzentos e cinqüenta anos e estudava, segundo o
costume, no colégio dos jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pela força de seu
espírito, mais de cinqüenta proposições de Euclides – isto é, dezoito mais que Blaise Pascal, o
qual depois de ter adivinhado trinta e duas, por brincadeira, pelo que diz a sua irmã, tornou-se
mais tarde um geômetra bastante medíocre e um péssimo metafísico. Lá pelos seus
quatrocentos e cinqüenta anos, ao sair da infância, dissecou muitos desses pequenos insetos
que têm apenas cem pés de diâmetro e que se furtam aos microscópios ordinários; compôs
sobre a matéria um livro bastante curioso, mas que lhe valeu algumas contrariedades. O mufti
de seu país, sujeito esmiuçador e ignorantíssimo, achou no seu livro proposições suspeitas,
malsoantes, temerárias heréticas, que cheiravam a heresia, e o perseguiu sem tréguas: tratava-
se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a mesma que a dos caracóis.
Micrômegas defendeu-se com espírito; pôs as mulheres a seu favor; o processo durou
duzentos e vinte anos. Afinal o mufti fez com que o livro fosse condenado por jurisconsultos
que não o haviam lido, e o autor teve ordem de não aparecer na Corte durante oitocentos anos.
Pouco se afligiu ele de ser banido de uma Corte onde só havia intrigas e
mesquinharias. Compôs uma canção muito divertida contra o mufti, a que este não deu
importância; e pôs-se a viajar de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o
coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e berlinda ficarão decerto
espantados com as equipagens de lá; pois nós, em nossa pequena bola de lama, nada
concebemos além de nossos usos. O nosso viajante conhecia às maravilhas as leis da
gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas. Utilizava-as tão a propósito que, ou por
intermédio de um raio de sol, ou graças à comodidade de um cometa, ia de globo em globo,
ele e os seus, como um pássaro voeja de ramo em ramo. Em pouco percorreu a Via Láctea; e
sou obrigado a confessar que nunca viu, em meio às estrelas de que é semeada, esse belo céu
empíreo que o ilustre vigário Derham se gaba de ter enxergado na ponta de sua luneta. Não
57
que eu pretenda alegar que o senhor Derham tenha visto mal, Deus me livre! mas Micrômegas
esteve no local, é um bom observador, e eu não quero contradizer ninguém. Micrômegas
depois da muitas voltas chegou ao globo de Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver
coisas novas, não pôde, ante a pequenez do globo e de seus habitantes, evitar esse sorriso de
superioridade que às vezes escapa aos mais sábios. Pois afinal Saturno não é mais que
novecentas vezes maior que a terra, e os seus cidadãos não passam de anões que têm apenas
umas mil toesas de altura. A principio, zombou ele um pouco com a sua gente, mais ou menos
como um músico italiano se põe a rir de música de Lulli, quando chega em França. Mas o
siriano, que tinha o espírito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem
não ser ridícula só por ter seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos, depois
de os haver espantado. Ligou-se de estreita amizade com o secretário da Academia de
Saturno, homem de muito espírito, que na verdade nada inventara, mas prestava excelente
conta das invenções dos outros, e fazia passavelmente pequenos versos e grandes cálculos.
Transcreverei aqui, para satisfação dos leitores, uma singular conversação que Micrômegas
teve um dia com o senhor secretário.
CAPÍTULO SEGUNDO
Conversação do habitante do Sírio com o de Saturno
Depois que sua Excelência se deitou o secretário aproximou-se de seu rosto:
— Tem-se de confessar – disse Micrômegas – que a natureza é bastante variada.
— Sim – disse o saturniano – a natureza é como um canteiro cujas flores...
—.Ah! – exclama o outro. – Deixe o canteiro em paz.
— Ela é – tornou o secretário – como uma assembléia de loiras e morenas cujos adornos...
— Que tenho eu a ver com as suas morenas?
— É então como uma galeria de pinturas cujos traços.
— Ora! – atalha o viajante. – De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que
buscar-lhe comparações?
— Para ser agradável ao senhor – respondeu o secretário.
— Eu não quero que me agradem – retrucou o viajante.
Quero que me instruam. Comece por me dizer quantos sentidos têm os homens do seu globo.
— Temos setenta e dois – disse o acadêmico. – E todos os dias nos queixamos de tão pouco.
A nossa imaginação vai além de nossas necessidades; achamos que, com os nossos setenta e
dois sentidos, o nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, apesar de toda a
nossa curiosidade e do considerável número de paixões que resultam dos nossos setenta e dois
sentidos, ainda temos tempo de sobra para nos aborrecermos.
— Não duvido – disse Micrômegas, – pois no nosso globo temos cerca de mil sentidos, e
resta-nos ainda não sei que vago desejo, não sei que inquietação, que incessantemente nos
adverte do pouco que nós somos e de que existem seres muito mais perfeitos. Tenho viajado
um pouco; vi mortais muito abaixo de nós; vi-os muito superiores; mas a nenhum vi que não
tivesse mais desejos que verdadeiras necessidades, e mais necessidades que satisfação. Talvez
chegue um dia ao país onde não falta nada; mas desse pais até agora ninguém me deu notícias.
O saturniano e o siriano alongaram-se então em conjeturas; mas, depois de muitos
raciocínios tão engenhosos quão incertos foi preciso voltar aos fatos.
— Quanto tempo vivem vocês? – Indagou o siriano.
— Ah! pouquíssimo – replicou o homenzinho de Saturno.
— Exatamente como entre nós – disse o siriano, vivemos sempre a nos queixar do pouco.
Deve ser uma lei universal da natureza.
— Ai! – suspirou o saturniano. – Vivemos apenas quinhentas grandes revoluções do sol. (O
que, pela nossa maneira de contar, dá aproximadamente uns quinze mil anos). Bem vê que é
quase o mesmo que morrer no momento em que se nasce; a nossa existência é um ponte, a
58
nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Apenas começa a gente a instruir-se um
pouco, quando chega a morte, antes que se tenha adquirido experiência. Quanto a mim, não
ouso fazer projeto algum; sou como uma gota d’água em um oceano imenso. sinto-me
envergonhado, principalmente diante do senhor, da figura ridícula que faço neste mundo.
— Se o amigo não fosse filósofo – respondeu Micrômegas, – eu temeria afligi-lo dizendo-lhe
que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a, sua. Mas bem sabe que, quando nos
cumpre devolver o corpo aos elementos e reanimar a natureza sob outra forma (que é o que se
chama morrer), quando é chegado esse instante de metamorfose, ter vivido eternidade, ou um
dia, é precisamente a mesma coisa. Estive em países onde se vivia mil vezes mais tempo do
que no meu, e vi que ainda se queixavam. Mas há por toda parte gente de bom senso, que sabe
tomar o seu partido e agradecer ao autor da natureza. Expandiu Ele por este universo uma
profusão infinita de variedades, com uma admirável espécie de uniformidade. Por exemplo,
todos os seres pensantes são diferentes, e todos se assemelham no fundo, pelo dom do
pensamento e dos desejos. A matéria está por toda parte, mas tem em cada globo propriedades
diversas. Quantas dessas propriedades contam os senhores na sua matéria?
— Se se refere – disse o saturniano – a essas propriedades sem as quais julgamos que este
globo não poderia subsistir tal como é, contamos trezentas, como a extensão, a
penetrabilidade, a mobilidade, a gravitação, a divisibilidade, e o resto.
— Aparentemente – replicou o viajante – basta esse pequeno número para os objetivos do
Criador quanto à vossa pequena habitação. Em tudo admiro a sua sabedoria; vejo por toda
parte diferenças; mas também proporções por toda parte. Pequeno é o vosso globo, vossos
habitantes também o são; tendes poucas sensações; vossa matéria tem poucas propriedades:
tudo isto é obra da Providência. De que cor é verdadeiramente o vosso sol?
— De um branco bastante amarelado – disse o saturniano. – E quando dividimos um de seus
raios, vemos que contém sete cores.
— O nosso sol tende para o vermelho – disse o siriano e temos trinta e nove cores primitivas.
Dentre os sóis de que me aproximei, não há dois que se assemelhem, como não há entre vós
um rosto que não seja diferente de todos os outros.
Após várias perguntas dessa natureza, indagou quantas substâncias essencialmente
diferentes se contavam em Saturno. Soube que não havia mais que umas trinta, como Deus, o
espaço, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que não têm
extensão, os que se penetram, os que não se penetram, e o resto. O siriano, em cuja pátria se
contavam trezentas, e que descobrira três mil outras em suas viagens, deixou o filósofo de
Saturno prodigiosamente espantado. Afinal, depois de haverem comunicado um ao outro um
pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de haverem trocado idéias durante
uma revolução do sol, resolveram fazer juntos uma pequena viagem filosófica.
CAPÍTULO TERCEIRO
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno
Estavam os nossos dois filósofos prestes a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma bela
provisão de instrumentos matemáticos, quando a amante do saturniano, ao saber disso, veio
queixar-se em pranto. Era uma linda moreninha que tinha apenas seiscentas toesas, mas que
compensava com vários encantos a pequenez de seu talhe.
— Ah, cruel! – clamava ela. – Depois de te haver resistido durante mil e quinhentos anos,
quando enfim começava a render-me, quando apenas passei cem anos em teus braços, tu me
deixas para ir viajar com um gigante de um outro mundo! Vai, não passas de um curioso,
nunca tiveste amor; se fosses um verdadeiro saturniano, serias fiel. Por onde vais correr? Que
queres? As nossas cinco luas são menos errantes que tu, o nosso anel é menos mutável.
Pronto! Nunca mais amarei a ninguém.
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O filósofo, por mais que o fosse, beijou-a, chorou com ela, e a dama, depois de haver
desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país. Os nossos dois curiosos partiram;
saltaram primeiro sobre o anel, que acharam bastante chato, como bem o adivinhou um ilustre
habitante do nosso pequeno globo; seguiram, depois, de lua em lua. Como um cometa viesse a
passar muito próximo da última, lançaram-se sobre ele, com todos os seus criados e
instrumentos. Depois de terem coberto cerca de cento e cinqüenta milhões de léguas, toparam
com os satélites de Júpiter. Nesse planeta demoraram-se um ano inteiro, durante o qual
descobriram belos segredos, que estariam agora em vias de publicação se não fossem os
senhores inquisidores, que acharam algumas proposições um pouco fortes. Mas li o
manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de ***, que me deixou examinar seus livros,
com uma generosidade e benevolência nunca assaz louvada.
Mas voltemos aos nossos viajantes. Deixando Júpiter, atravessaram um espaço de
cerca de cem milhões de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco
vezes menor que o nosso pequeno globo; viram as duas luas que servem a esse planeta e que
escaparam às vistas de nossos astrônomos. Bem sei que o padre Castel escreverá, e até com
muito espírito, contra a existência dessas duas luas; mas reporto-me àqueles que raciocinam
por analogia. Sabem esses bons filósofos o quanto seria difícil ao planeta Marte, que fica tão
longe do sol, não dispor ao menos de um par de luas. Seja como for, o caso é que os nossos
camaradas o acharam tão pequeno, que recearam não encontrar pousada, e seguiram adiante,
como dois viajantes que desdenham um mau albergue de aldeia e prosseguem até a cidade
vizinha. Mas o siriano e o companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito
tempo, sem encontrar coisa alguma. Afinal divisaram um pequeno clarão; era a terra; coisa de
causar piedade a gente que vinha de Júpiter. No entanto, com medo de se arrependerem
segunda vez, resolveram desembarcar aqui mesmo. Passaram para a cauda do cometa e,
achando uma aurora boreal adrede, nela se meteram, e chegaram à terra pelo norte do mar
Báltico, a 5 de julho de 1737.
CAPÍTULO QUARTO
Do que lhes sucede sobre a face da terra
Depois de terem repousado um pouco, almoçaram duas montanhas, que os criados lhes
prepararam a capricho. Desejaram em seguida fazer um reconhecimento pelo pequeno país
onde se achavam. Caminharam a princípio de norte a sul. Os passos ordinários do siriano e do
seu pessoal eram de trinta mil pés aproximadamente; o anão de Saturno seguia de longe,
arquejando; ora, era preciso que ele corresse uns dose passos enquanto o outro dava uma
pernada: imaginai (se é permitido tal comparação) um pequeno cãozinho fraldiqueiro que
acompanhasse um capitão da guarda do rei da Prússia.
Como os dois estrangeiros andassem muito depressa, deram a volta ao mundo em
trinta e seis horas; o sol, na verdade, ou antes, a terra, faz igual viagem num dia; mas cumpre
levar em conta que é mais cômodo girar sobre o próprio eixo do que andar com um pé depois
do outro. Ei-los pois de volta ao ponto de partida, depois de terem visto esse pântano, quase
imperceptível para eles, que se chama o Mediterrâneo, e esse outro pequeno charco que, sob o
nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A água nunca passara além das canelas do
anão, ao passo que o outro apenas molhara os calcanhares. Fizeram tudo o que puderam,
andando em todas as direções, para descobrir se este globo era habitado ou não. Agacharam-
se, deitaram-se, apalparam por toda parte; mas, como os seus olhos e mãos não eram
proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arrastam, não receberam a mínima
sensação que lhes fizesse suspeitar que nós, e os nossos demais confrades habitantes deste
globo, tivéssemos a honra de existir.
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O anão, que as vezes raciocinava muito apressadamente, concluiu a princípio que não
havia habitantes na terra. Seu primeiro argumento era de que não vira, ninguém. Micrômegas,
polidamente, fez-lhe sentir que ele não raciocinava muito bem:
— Como não distingues com os teus pequenos olhos, certas estrelas de qüinquagésima
grandeza que eu percebo distintamente; concluiu daí que essas estrelas não existem?
— Mas – replicou o anão eu apalpei bem.
— Mas sentiste mal – respondeu o outro.
— Mas este globo é tão mal construído – objetou o anão, – é tudo tão irregular e de uma
forma que me parece tão ridícula! Tudo parece aqui um pleno caos: não vês estes pequenos
arroios que jamais correm em linha reta, esses charcos que não são nem redondos, nem
quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; e todos esses grãozinhos pontiagudos
de que está eriçado este globo e que me arranharam os pés? (Queria referir-se às montanhas).
Repara ainda a forma de todo o globo, como é achatado nos pólos, e a sua maneira
inadequada de girar em torno do sol, de modo que a região dos pólos fica necessariamente
estéril? Em verdade, o que me faz pensar que não haja aqui ninguém, é que gente de bom
senso não moraria em um lugar como este.
— Pois bem – disse Micrômegas, – talvez os que o habitam não sejam gente de bom senso.
Mas há probabilidades de que isto não tenha sido feito inutilmente. Tudo aqui te parece
irregular porque em Saturno e Júpiter é tudo feito a régua e compasso. Exatamente por esse
motivo é que há aqui um pouco de confusão. Não te disse eu que nas minhas viagens sempre
encontrei variedade?
O saturniano replicou a todas essas razões. E a questão jamais terminaria se, por
felicidade, Micrômegas no calor da discussão, não tivesse rompido o seu colar de diamantes.
Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, tendo as mais volumosas
quatrocentas libras de peso, e as menores cinqüenta. O anão apanhou algumas; ao aproximá-
las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, constituíam excelentes
microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de cento e sessenta pés de diâmetro que
aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelentes;
mas no princípio. nada perceberam com o seu auxílio: era preciso adaptarem-se. Afinal o
habitante de Saturno viu qualquer coisa quase imperceptível que se movia à superfície do mar
Báltico: era uma baleia. Pegou-a habilmente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha
do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que se pôs a rir da excessiva pequenez dos habitantes do
nosso globo. O saturniano, convencido de que o nosso mundo é habitado, imaginou logo que
só o era por baleias; e, como era um grande logicista, quis logo adivinhar de onde um átomo
tão pequeno tirava o seu movimento, e se tinha idéias, vontade, e liberdade. Micrômegas
sentiu-se muito embaraçado: examinou o animal com infinita paciência, e o resultado da
análise foi que era impossível acreditar que ali se alojasse uma alma. Estavam, pois, os dois
viajantes inclinados a pensar que não há espírito em nosso mundo, quando, com o auxílio do
microscópio, perceberam algo de mais grosso que uma baleia e que flutuava sobre as águas.
Sabe-se que, por aquela época, um bando de filósofos regressava do círculo polar, onde
tinham ido fazer observações que a ninguém ocorreram até então. Disseram as gazetas que o
seu navio naufragou nas costas de Botnia e que tiveram grande dificuldade em salvar-se; mas
neste mundo nunca se sabe o reverso das cartas. Vou contar ingenuamente como se passaram
as coisas, sem nada acrescentar por conta própria, o que não é pequeno esforço para um
historiador.
CAPÍTULO QUINTO
Experiências e raciocínios dos dois viajantes
Micrômegas estendeu cuidadosamente a mão para o local onde se achava o objeto e,
avançando dois dedos e retirando-os por medo de enganar-se e depois abrindo-os e fechando-
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os, apanhou com todo o jeito o navio que carregava os tais senhores, e colocou-o sobre a
unha, sem o apertar muito, para não esmagá-lo. “Eis um animal bem diferente do primeiro” –
observou o anão de Saturno; o siriano pôs o pretenso animal na palma da mão. Os passageiros
e o pessoal da equipagem, que se supunham erguidos por um furacão, e que. se julgavam
sobre uma espécie de rochedo, põem-se todos em movimento; os marinheiros apanham pipas
de vinho, lançam-nas sobre a mão de Micrômegas, e precipitam-se em seguida. Apanham os
geômetras seus esquadros seus sectores, e nativas da Lapônia, e saltam para os dedos de
Micrômegas. Tanto fizerem, que este sentiu enfim mover-se qualquer coisa que lhe
comichava os dedos: era um bastão ferrado que lhe fincavam no índice; julgou, por aquilo,
que saíra qualquer coisa do pequeno animal que ele segurava. Mas não desconfiou de mais
nada. O microscópio, que mal fazia discernir uma baleia e um navio, não alcançava seres tão
imperceptíveis como os homens. Não pretendo chocar a vaidade de ninguém, mas sou
obrigado a pedir às pessoas importantes que façam uma pequena observação comigo: é que,
considerando a homens de cerca de cinco pés de altura, não fazemos, à face da terra, maior
figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a
seiscentésima milésima parte de uma polegada. Imaginai uma substância que pudesse
sustentar a terra na mão, e que tivesse órgãos em proporção com os nossos; e bem pode
acontecer que haja grande número dessas substâncias: concebei, então, o que não haveriam de
pensar dessas batalhas que nos valeram duas aldeias que foi preciso restituir.
Se algum capitão de granadeiros ler algum dia esta obra, não duvido que mande
aumentar, pelo menos dois pés, os capacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais
que faça, nunca passarão, ele e os seus, de infinitamente pequenos.
Que maravilhosa habilidade não foi preciso ao nosso filósofo de Sírio para perceber os
átomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou
julgaram ver, a semente de que nos formamos, não fizeram tão espantosa descoberta. Que
prazer não sentiu Micrômegas ao ver moverem-se aquelas pequenas máquinas, examinando-
lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operações! Que de exclamações! Com
que alegria pôs um de seus microscópios nas mãos do companheiro de viagem! “Vejo-os! –
diziam ambos ao mesmo tempo. – Repara como carregam fardos, como se erguem, como se
abaixam!” Assim falando, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de ver objetos tão novos e pelo
receio de os perder. O saturniano, passando de um excesso de desconfiança a um excesso de
credulidade, julgou perceber que eles trabalhavam na propagação da espécie. Ah! – dizia ele,
– peguei a natureza em flagrante. – Mas enganava-se pelas aparências, o que muita vez
sucede, quer a gente se sirva ou não de microscópios.
CAPÍTULO SEXTO
Do que lhes aconteceu com os homens
Micrômegas, melhor observador que o anão, viu claramente que os átomos se falavam;
e fê-lo notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano quanto à geração, não quis
acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Tinha o dom das línguas, como o siriano; não
ouvia os nossos átomos falarem, e supunha que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas
criaturas imperceptíveis possuir os órgãos da voz, e que teriam a dizer-se? Para falar, é
preciso pensar, ou quase; mas, se pensavam, tinham então o equivalente de uma alma. Ora,
atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas, parecia-lhe absurdo. — Mas –
observou Micrômegas – ainda há pouco supunhas que eles praticavam o amor. Será que julgas
que se possa praticar o amor sem pensar e sem preferir alguma palavra, ou pelo menos sem
fazer-se compreender? Acha, aliás, que seja mais difícil fazer um raciocínio. que fazer um
filho? Quanto a mim, um e outro me parecem grandes mistérios.
— Já não ouso nem crer nem negar – disse o homúnculo, – não tenho mais opinião. Tratemos
primeiro de examinar esses insetos, arrazoaremos depois.
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— Muito bem dito – retrucou Micrômegas. Em seguida tirou do bolso uma tesourinha, com
que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar fabricou uma espécie de trompa
acústica, que era como um vasto funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o
navio e a toda a equipagem. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de
modo que, graças à sua indústria, pôde o filósofo lá do alto ouvir perfeitamente o zumbido
dos insetos cá de baixo. Em poucas horas, conseguiu distinguir as palavras, e afinal
compreender o francês. O anão fez o mesmo, embora com mais dificuldade. O pasmo dos
viajantes redobrava a cada momento. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse
capricho da natureza afigurava-se-lhes inexplicável Bem podeis imaginar como Micrômegas e
o seu anão ardiam de impaciência por travar conversa com os átomos.
Temiam que a sua voz de trovão, e sobretudo a de Micrômegas, ensurdecesse os
insetos, sem ser ouvida. Cumpria diminuir-lhe a força. Puseram na boca umas espécies de
palitos cujas pontas afiladas vinham dar perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os
joelhos, e o navio com a equipagem sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho.
Afinal, por meio destas e de outras precauções, começou assim o seu discurso:
“Insetos invisíveis, que a mão do Criador se comprouve em fazer brotar no abismo do
infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me segredos que
pareciam impenetráveis. Na minha Corte, talvez não se dignem olhar-vos; mas eu não
desprezo ninguém, e ofereço-vos a minha proteção”.
Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram
tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos,
os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais
sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava. O anão de Saturno, que tinha a
voz mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam tratando.
Contou-lhes a partida de. Saturno, disse-lhes quem era o senhor Micrômegas, e, depois de os
ter lamentado por serem tão pequenos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela
miserável condição tão vizinha do aniquilamento, o que faziam num globo que parecia
pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham uma alma, e mil outras
questões dessa natureza.
Um sábio do grupo, mais audaz que os outros e chocado de que duvidassem da sua
alma, observou o interlocutor por intermédio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez
duas miras e, na terceira, assim lhe falou:
— Julga então, senhor, só porque tem mil toesas da cabeça aos pés, que é um...
— Mil toesas! – exclamou o anão. – Meu Deus! Como pode ele saber a minha altura? Mil
toesas! Não se engana por uma polegada. Como! Esse átomo mediu-me! É geômetra, conhece
as minhas dimensões; e eu, que o vejo através de um microscópio, ainda não conheço as suas.
— Sim, medi-o – disse o físico – e medirei também o seu grande companheiro.
Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se se pusesse de pé, ficaria
com a cabeça muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-lhe uma grande árvore
num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que me guardo de chamar pelo nome, devido a
meu grande respeito ás damas. Depois, por uma seqüência de triângulos, concluíram que
aquilo que eles viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de altura.
Micrômegas pronunciou então estas palavras: “Reconheço, mais do que nunca, que
nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a
substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como
o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes,
podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé
bastaria para cobrir o globo a que desci”.
Respondeu-lhe um dos filósofos que ele poderia com toda a segurança acreditar que há
de fato seres inteligentes muito menores que o homem. Contou-lhe, não tudo o que Virgílio
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diz de fabuloso sobre as abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur
dissecou. Disse-lhe, enfim, – que há animais que estão para as abelhas como as abelhas estão
para os homens, e como Micrômegas estava para aqueles imensos animais a que se referira, e
como aqueles estão para outras substâncias, diante das quais não passam de átomos. Pouco a
pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou.
CAPÍTULO SÉTIMO
Conversação com os homens
— Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se comprazeu em manifestar seu engenho e
poderio, deveis sem dúvida gozar das mais puras alegrias sobre o vosso globo; pois, tende tão
pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, que é o que
constitui a verdadeira vida dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte
nenhuma, com certeza é aqui que existe.
A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco que os
outros, confessou de boa fé que, excetuando um pequeno número de habitantes muito pouco
considerados, o resto é tudo uma assembléia de loucos, de maus e de infelizes.
— Nós temos mais matéria do que é necessário – disse ele – para fazer muito mal, se o mal
vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito. Não sabeis, por
exemplo que, no instante em que vos falo, há cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de
chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados
por estes e que, quase por toda a terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais?
O siriano estremeceu e perguntou qual poderia ser o motivo dessas terríveis querelas
entre tão mesquinhos animais.
— Trata-se – disse o filósofo – de uma porção de lama do tamanho de vosso calcanhar. Não
que algum desses milhões de homens que se exterminam pretenda um palmo que seja dessa
lama. Trata-se apenas de saber se pertencerá a certo homem a que chamam Sultão, ou a outro
homem a que chamam César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, ou jamais verá, o
pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam
já viu algum dia o animal pelo qual se degolam.
— Infelizes! – exclamou o siriano indignado. – Pode-se acaso conceber mais furiosa loucura?
Vem-me até vontade de dar três passos e esmagar com três patadas esse formigueiro de
ridículos assassinos.
— Não vos deis a esse incômodo; eles já trabalham bastante para a sua própria ruína. Ficai
sabendo que, passados dez anos, já não resta nem a centésima parte desses miseráveis, e,
mesmo que não tivessem puxado da espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam ,a
quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários
que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de
homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.
O viajante sentia-se apiedado da pequena raça humana, na qual descobria tão
espantosos contrastes.
— Já que pertenceis ao pequeno número dos sábios – disse-lhes ele – e aparentemente não
matais a ninguém por dinheiro, dizei-me em que vos ocupam então.
— Dissecamos moscas – respondeu o filósofo, – medimos linhas, encordoamos números,
pomo-nos de acordo acerca de dois ou três pontos que entendemos, e disputamos sobre dois
ou três mil que não entendemos.
Ocorreu então ao siriano e ao companheiro a fantasia de interrogar aqueles átomos pensantes
sobre coisas que ambos conheciam.
— Quanto contais – Indagou Micrômegas – da estrela da Canícula à grande estrela dos
Gêmeos?
— Trinta e dois graus e meio – responderam todos ao mesmo tempo.
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— Eu não sei como é que penso – respondeu, – mas sei que nunca pude pensar senão com o
auxilio de meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, eu não duvido; mas
também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno,
não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do
que se pensa.
O animal de Sírio sorriu: não achou que fosse aquele o menos sábio; e o anão de
Saturno teria abraçado o sectário de Locke, se não fora a extrema desproporção entre ambos.
Mas, por desgraça, havia ali um animalículo de capelo que cortou a palavra a todos os
animalículos filosofantes: disse que sabia o segredo de tudo, o qual se achava na Suma de
Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; sustentou-lhes que as suas
pessoas, os seus mundos, sois e estrelas, tudo era feito unicamente para o homem. A isto, os
nossos dois viajantes tombaram um nos braços do outro, sufocados de riso, esse riso
inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se
e, nessas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso das calças do
saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; afinal encontraram e reajustaram tudo
convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita
bondade, embora no íntimo se achasse um tanto agastado de ver que os infinitamente
pequenos tivessem um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que redigiria um
belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o
fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a
Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em
branco. – Ah! bem que eu desconfiava... – disse ele.