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Pensamento
Filosófico
Moderno
UnisulVirtual
Palhoça, 2016
Créditos
Pensamento
Filosófico
Moderno
Livro didático
2 ª edição
Designer instrucional
Carmelita Schulze
UnisulVirtual
Palhoça, 2016
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2016 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.
Livro Didático
Professora conteudista
Carmelita Schulze
Designer instrucional
Isabel Zoldan da Veiga Rambo (1ª edição)
Carmelita Schulze (2ª edição)
Diagramador(a)
Frederico Trilha
Revisor
Jaqueline Tartari
ISBN
978-85-506-0041-3
e-ISBN
978-85-506-0027-7
S41
Schulze, Carmelita
Pensamento filosófico moderno : livro didático / Carmelita
Schulze ; design instrucional [Isabel Zoldan da Veiga Rambo],
Carmelita Schulze. – 2. ed. – Palhoça : UnisulVirtual, 2016.
109 p. : il. ; 28 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-506-0041-3
e-ISBN 978-85-506-0027-7
Introdução | 7
Capítulo 1
Os constitucionalismos de Montesquieu e de
Madison | 9
Capítulo 2
Democracia rousseauniana: a vontade geral como
fundamento para a felicidade do indivíduo | 33
Capítulo 3
Conhecimento, política e ética na teoria kantiana | 61
Capítulo 4
Hegel: a tentativa de conciliar racionalmente o
indivíduo à sua época histórica | 83
Considerações Finais | 105
Referências | 107
Prezado(a) Aluno(a),
Pelo período histórico referido, você já pôde compreender que tratar-se-á aqui
das questões do surgimento do Estado, da soberania, da questão da igualdade
entre os homens, da liberdade do indivíduo, da importância da relação do
indivíduo com o Estado. Pois, inclusive, no final do século XVIII, ocorreu a
Revolução Francesa, um marco na história da humanidade no que diz respeito à
questão da política e que, portanto, colocou em evidência todas essas questões.
E como a Filosofia é produto da existência humana, a Filosofia dessa época não
pôde ficar omissa em relação às questões que tomaram a pauta nessa revolução,
quer para possibilitá-las, analisá-las ou criticá-las.
A Revolução Francesa tem seus fundamentos ainda no século XV, quando a razão
passa a ser o fundamento último para justificar quais devem ser as ações humanas
nos campos da política, da ética e do conhecimento. E as teorias filosóficas
abordadas neste livro também são uma continuação dessa posição filosófica adotada
ainda no século XV. Isto é, as teorias de Kant, de Montesquieu, dos Federalistas,
de Rousseau e Hegel, as quais são abordadas neste livro, são uma continuação do
projeto da modernidade, a realização do indivíduo enquanto ser racional.
Conforme veremos aqui, embora tais teorias concordem sobre a razão ser
o critério último de justificativa para, por exemplo, como deve ser a vida em
sociedade, a ética e o conhecimento divergem sobre como se realiza a razão,
sobre a maneira pela qual o indivíduo realiza-se enquanto ser racional.
Por último, trataremos da teoria hegeliana, a qual compreende a razão como uma
realização na história. Se as teorias anteriores pressupõem a razão como o cerne
de seus sistemas, veremos por que podemos dizer que a teoria de Hegel é o auge
desse movimento. Ocorre que a teoria hegeliana possui uma base metafísica que
entende a história universal como um movimento da razão para sua consciência
de si mesma. Um pouco de paciência com os termos técnicos dessa teoria
possibilitam verificar a sua grandeza.
Mesmo que tenhamos nos esforçado muito para fazer este livro didático abranger
aspectos gerais das teorias aqui mencionadas, isso não substitui a riqueza dos
textos filosóficos dos autores mencionados. É sempre muito importante, para
os estudos da Filosofia, a leitura dos textos nos quais os autores dessas teorias
expressaram-nas.
Um bom estudo!
Carmelita Schulze
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Capítulo 1
Os constitucionalismos de
Montesquieu e de Madison
Introdução
Este capítulo apresenta o constitucionalismo moderno na versão de duas
importantes correntes filosóficas sobre esse assunto: Montesquieu e os
Federalistas, destes, mais especificamente o de James Madison.
Essa versão é importante, conforme nos aponta Pinzani (2009, p. 99), por ter
influenciado quase todas as constituições modernas e contemporâneas. Para
demonstrar o que é esse constitucionalismo, apresentar-se-á aqui por que o
exercício do poder deve ser realizado por meio de instituições para possibilitar a
liberdade, bem como quais devem ser essas na visão desses autores.
Esperamos que ao final deste capítulo você compreenda muitos dos pressupostos
filosóficos presentes no constitucionalismo como movimento político.
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Capítulo 1
Seção 1
A defesa da república
Como nos apresenta Noberto Bobbio (1987, p. 75), “não há teoria política que não
parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de ‘poder’ e
de uma análise do ‘fenômeno do poder’.”
Assim, cabe-nos compreender o que é poder para cada uma das teorias
que estudaremos: a de Montesquieu e a dos Federalistas. Por uma questão
metodológica e também conceitual 1, trataremos aqui primeiro da de Montesquieu.
Segundo essa teoria, “Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a
liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado
a fazer o que não se tem o direito de querer” (MONTESQUIEU, 1997, p. 166). Assim,
para se exercer a liberdade, o poder deve estar ligado às leis ditadas pelo Estado.
Mas será que todo o Estado permite o exercício da liberdade, será que todas as leis
determinam ações que são conforme um querer que está de acordo com a liberdade?
O espírito que move um tipo de governo pode ser melhor entendido por meio do
exemplo do espírito da honra na monarquia. Se é capaz de ordenar e obedecer –
de se exercer o poder – na monarquia porque nesse tipo de governo quem ordena
se considera detentor de honra suficiente para ordenar e quem obedece reconhece
essa honra, de modo que sente necessidade de obedecer a tais ordens.
1 Veremos aqui que o Constitucionalismo de Montesquieu influenciou muito o proposto pelos Federalistas, principalmente,
Madison. Logo, será mais fácil compreender esse último se estudarmos primeiro a sua principal influência.
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Pensamento Filosófico Moderno
O exercício correto do poder conta, portanto, com a fragmentação dele, fato que
não ocorre num governo despótico, daí a uniformidade atrelada ao exercício do
poder nessa forma de governo, conforme nos mostra essa última citação.
Montesquieu (1997, p. 200) não apenas não concorda com um governo despótico,
como o apresenta como a pior forma de governo, pois há, nessa forma de governo,
o império das paixões, mais precisamente o império do medo. Conforme também
nos mostra a última citação, qualquer um pode se tornar déspota, afinal possui em
si as paixões, a mola propulsora desse tipo de Estado: exercer o poder acima de
tudo. Quando só as paixões movem o poder, esse não possui limites, e o homem
que o possui é tentado a abusar dele (MONTESQUIEU, 1997, p. 74).
11
Capítulo 1
Já sabemos que o não abusar do poder conta com o freio do poder pelo próprio
poder, mas o que significa isso? Com base no que foi estudado até aqui, você pode
ter respondido: fragmentando o poder de modo que cada fragmento limite o outro, a
ponto do despotismo não ser realizado por nenhum desses. Isso é verdade, mas essa
fragmentação e o exercício dessa lógica de poder não são nada simples. Logo, cabe-
nos esclarecer cada um desses itens.
Essa origem do poder atrela-o à condição de existir em uma sociedade que se organiza
para exercê-lo, não ao indivíduo que pertence a essa sociedade. Isto é, o poder
não está atrelado ao indivíduo, mas à condição de o indivíduo agir de acordo com a
configuração do Estado ao qual pertence, e poder esperar deste a imposição das suas
leis. Isso faz o Estado defendido por Montesquieu tratar-se de uma república.
2 A compreensão montesquiana da origem do poder contribui para classificar sua teoria política em republicana
e não em democrática que se baseia na vontade geral. É importante destacar aqui que nem todos os autores
concordam com a origem do poder proposta por Montesquieu, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau.
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Pensamento Filosófico Moderno
Quando o exercício do poder por parte dos cidadãos é realizado de acordo com a
virtude? Quando há o exercício do poder numa república, segundo Montesquieu?
Quando o amor é maior pelo interesse público que pelo próprio interesse.
O amor pelo interesse público se traduz pelo respeito à lei e pelo amor à pátria
(MONTESQUIEU, 1997, p. 46). Nas repúblicas democráticas, por exemplo, como o
poder é confiado a todos os cidadãos, esses têm que apresentar tal virtude para não
corromper tal forma de governo. O poder, por ser uma paixão, deve ser realizados de
acordo com a virtude em nível social, para se ter um exercício saudável desse poder.
3 Direitos negativos: direitos que algumas teorias políticas defendem pertencer ao indivíduo, antes mesmo
da fundação de qualquer Estado. Esse surge, justamente, para resguardar tais direitos, de acordo com essa
concepção. Para saber mais sobre isso, você pode consultar: LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Direito Civil.
13
Capítulo 1
No entanto, mesmo com a fragmentação do poder pode haver o seu exercício de modo
que o interesse particular sobreponha-se ao da sociedade. Esse fato trata da corrupção,
pois na posição de exercício do poder, o cidadão pode usá-lo a seu favor, em detrimento
do interesse da sociedade. Nesse momento, falta-lhe a virtude política e ele corrompe-se.
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Pensamento Filosófico Moderno
Com base nisso, podemos entender o porquê de Habermas (1995, p. 51) afirmar
que: “as leis presentes numa república não são aquelas que os indivíduos
possuem em relação ao Estado porque formaram o Estado para resguardá-las,
mas as leis que surgiram a partir do Estado.”
15
Capítulo 1
varia, então, de uma sociedade para a outra. Cada povo é um povo único -
constatação que Montesquieu deve ter tido em virtude de suas diversas viagens
pelo mundo, comparando diferentes costumes e modos de vida. Defende, então,
que cada povo deve formar suas próprias leis.
Mas, considerando o que já estudamos aqui, isso não significa que o projeto
republicano montesquiano se autodemonstre inviável? Afinal, apesar de contar
com a fragmentação do poder para o seu exercício correto, como impedir que
a corrupção atinja os fragmentos desse poder? Isto é, apesar de contar com a
distribuição do poder, não consegue impedir que quem o exerça assim o faça
apenas de acordo com os seus interesses particulares? Sim, a virtude pode faltar
aos cidadãos, o que coloca em cheque o projeto da república.
Diante disso, Montesquieu propõe outros mecanismos para tentar impedir que o
interesse privado sobreponha-se sobre o público: a separação dos poderes em
Judiciário, Legislativo e Executivo, bem como o que defende a função de cada
um deles, são as suas maiores ferramentas propostas para o exercício adequado
do poder.
Seção 2
A separação dos poderes e as instituições
A separação do poder político em executivo, judiciário e legislativo se faz em
virtude das paixões existirem no ser humano. Elas são as responsáveis pelo
indivíduo sobrepor seu interesse sobre o interesse social. Assim, para não deixá-
lo tão suscetível às paixões no exercício do poder, é conveniente dividi-lo nos três
poderes mencionados:
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Pensamento Filosófico Moderno
Para refletir: os programas sociais de ação afirmativa de nossa política, nos últimos
quinze anos, não vão ao encontro do que seria um projeto comum, de interesse
público, de nossa sociedade?
Mas deixemos essa questão apenas para sua reflexão. Sigamos para mais uma
formulação da justificativa para a necessidade de dividir o poder em três para
ação da comunidade política se tornar efetiva e correta. Essa justificativa é muito
simples: segundo Montesquieu, “para que não se possa abusar do poder é
preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU,
1997, p. 156).
17
Capítulo 1
É interesse recordar aqui que a vontade do povo, nos moldes de Rousseau 4, nem
sempre leva a bons resultados. Pense, por exemplo, que a vontade do povo pode
levá-lo a votar pelo direito de não mais votar. Afinal, logicamente, considerando o
sistema legislativo proposto por Rousseau, apenas enquanto instituição, pode-se
optar por não mais votar, basta esse conteúdo ser obtido em assembleia geral.
A saída de Montesquieu frente a esse problema é preservar as diferenças de
interesses particulares existentes numa sociedade. Afinal, essa pluralidade permite
que os indivíduos de cada grupo de interesses possam mudar de interesses, fazer
parte de outro grupo de interesse, além de permitir que cada um deles se realize.
Nesse sentido, afirma Abreu (2008, p. 124): “O papel das leis não é exprimir o
interesse geral, mas sim delimitar a liberdade, garantindo a liberdade de todos.”
4 Alguns comentadores de Rousseau defendem que isso não é possível na teoria desse autor. Já que esse
identifica a vontade geral com o que é próprio da natureza humana e é essência dessa última a capacidade de
autodeterminar-se. Mas, considerando que nem todos os homens podem ser educados pela pedagogia que
esse autor propõe, é, então, difícil saber impedir consensos em assembleia geral que vão contra essa natureza,
consensos como o de não mais votar.
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Pensamento Filosófico Moderno
E quanto ao executivo, como evitar que, mesmo com a separação dos poderes,
quem o ocupe deixe-se dominar pelas paixões? Quem deve ser o executivo? A
solução aqui, em Montesquieu, segundo Teles (2010, p. 49), é a alternação de
quem ocupa o executivo: “Montesquieu aponta mais um mecanismo para limitar e
direcionar o poder, a saber, o de não permitir a permanência longa de um detentor
no poder. É preciso mutabilidade no poder para que não se disponha de tempo
para corromper o governante.” Se eleito ou não pelo povo, o importante é que
o executivo seja alternado para que o poder que tem disponível não seja
corrompido pelas paixões 6.
5 Em nosso país, esses diferentes grupos de interesses poderiam ser os diferentes partidos políticos. O
problema é que estes, muitas vezes, corrompem seus interesses partidários em troca da obtenção de poder
para satisfazer seus interesses particulares.
6 Nesse sentido, a reeleição em nosso país não seria um grande mal? Afinal, ela possibilita que o governante do
executivo permaneça bastante tempo no poder e ainda use a chamada “máquina pública” para se reeleger.
19
Capítulo 1
E quanto a esse poder, o judiciário? Como esse deve ser disposto para as
paixões não imperarem em quem o compõe? A resposta a essa questão é bem
expressa na seguinte passagem da obra montesquiana:
Assim, temos que a aplicação da lei por parte do judiciário não pode ser arbitrária,
precisa seguir exatamente as leis provindas do legislativo, o que inclui seguir os
ritos do processo legal, não aplicar algumas leis e não outras.
Portanto, faz parte da natureza do poder que ele seja exercido pela sociedade
e não por indivíduos que pertencem a ela. Embora as instituições propostas por
Montesquieu ajam por meio dos indivíduos – por exemplo, o senado é formado de
indivíduos – a natureza delas as dispõe de modo tal que esses indivíduos, por meio
delas, obtenham conteúdo que atendam ao interesse social e não ao particular.
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Pensamento Filosófico Moderno
Seção 3
A fragilidade da república e o comércio como
solução
Mesmo diante da separação do poder político em três poderes – os quais se
freiam entre si – e as instituições propostas para o exercício de cada um deles,
ainda há a constatação de que o interesse geral pode ser preterido em relação
ao interesse particular. Surgem, então, outras condições que também precisam
ser atendidas para ocorrer o exercício da liberdade no Estado. Nesse sentido,
há a necessidade do território da república não ser muito grande. Pois, segundo
Montesquieu (1997, p. 132):
21
Capítulo 1
Essa usurpação do poder do Estado feita pelo indivíduo é bem mais difícil de
ocorrer quando o território da república é pequeno 7, porque nesta: “[...] o
bem público é mais bem sentido, mais bem conhecido, mais próximo de cada
cidadão; os abusos são menores e, consequentemente, menos protegidos”.
(MONTESQUIEU, 1997, p. 132).
A resposta seria sim, se nosso autor não tivesse interpretado o comércio do modo
como interpretou:
7 Essa questão da necessidade do território ser pequeno impede um Estado republicado nos moldes propostos
por Montesquie para o Brasil? Mais adiante, quando tratarmos da importância da questão do comércio para
esse autor, você verá que seria possível uma tal república mesmo com o tamanho de nosso país.
8 Esse vício diz respeito ao fato de as paixões imperarem nas ações dos cidadãos, quando há no Estado
muitas fortunas, conforme apresentado aqui anteriormente.
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Pensamento Filosófico Moderno
Acompanhemos, agora, as justificativas dadas por essa autora para entender por
que o comércio é capaz de substituir a virtude numa república.
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Capítulo 1
Porque ele contribui para a moderação dos costumes, para a tolerância e, inclusive,
para a limitação da paixão dos governos, sem que seja necessária a exigência da
virtude republicana (HIRSCHMAN, 1978, p. 92). Ou seja, com o comércio, é mais
fácil a uma república sobreviver, por que com ele aquela não precisa contar com a
virtude dos cidadãos, além de ele contribuir para a interdependência das nações, o
que, por sua vez, contribui para a paz entre elas.
No entanto, uma república consegue manter-se diante dos demais países graças
ao comércio, não só porque por meio dele as relações entre aqueles se tornam
menos bárbaras, já que o comércio abranda os costumes pelas razões já vistas
aqui, mas também pelo fato de que possibilita a uma república ser extensa,
abrigar, portanto, várias fortunas. Pois, se o espaço público trazido pelo comércio
abriga a possibilidade de realização de diversos interesses, grupos que prezam
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Pensamento Filosófico Moderno
por esse espaço, inclusive os que possuem grande fortuna, são capazes de
juntarem-se e defender o Estado, o qual possibilita tal espaço. São capazes
de unirem-se em torno de um projeto comum. Acompanhe as duas citações
seguintes que sustentam essas ideias.
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Capítulo 1
9 Pense, em nosso país, em instituições como a polícia federal e o ministério público para o poder do
judiciário, e a câmara de deputados e o senado para o exercício do poder legislativo, como exemplo dessas
instituições.
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Pensamento Filosófico Moderno
Seção 4
Os Federalistas e a proposta constitucional de
Madison
A separação de poderes de Montesquieu vai além do simples balanço entre
executivo, legislativo e judiciário, abre espaço, ainda que o autor não
exatamente o defenda, para o balanço do poder entre facções em competição no
interior de uma república comercial.
27
Capítulo 1
Conforme podemos ver por esse breve histórico, o problema que precisava ser
resolvido pelos representantes dos trezes estados que, em 1787, formavam os
Estados Unidos da América não era muito diferente do que Montesquieu buscará
resolver, possibilitar um projeto comum para a nação sem desvincular esse
projeto dos seus integrantes – os estados – e possibilitar que essa nação seja
forte para manter-se enquanto Estado.
O principal problema dos Federalistas era obter um poder central, que unisse os
estados em torno de um projeto comum, mas que não se mostrasse como projeto
de uma facção. Entenderemos aqui por esse termo, facção, o proposto por um
dos Federalistas, Madison:
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Pensamento Filosófico Moderno
Essa condição, para os Federalistas, segundo Pinzani (2009, p. 109), “só é obtida
quando o bem supremo para cuja defesa é necessária a existência do Estado é a
liberdade individual, garantida por direitos intocáveis 10”.
Como fazer isso? Como construir uma constituição que possibilita a liberdade individual?
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Capítulo 1
11 Abreviação para a obra: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os Federalistas. Para ver
referência bibliográfica completa, consultar o itens “Referência”, presentes ao final desta unidade. Observação:
essa obra é composta de artigos que são numerados entre si por algarismos romanos.
12 Inspirado por Locke porque o Estado, segundo a constituição norte-americana, existe para garantir os
direitos individuais. Inspirado por Montesquieu em virtude das ferramentas que essa constituição defende para
o Estado conseguir atingir seu objetivo, ou seja, realizar tais direitos.
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Pensamento Filosófico Moderno
É um trunfo uma república ser extensa: afinal, quanto maior a república, mais facções
existentes nela e maior a dificuldade de uma delas ser tão numerosa em relação à
soma das demais, a ponto de conseguir aprovar suas pretensões no parlamento.
31
Capítulo 1
Assim, podemos dizer que os federalistas possuem muito mais uma proposta no
sentido do exercício do interesse público garantir os interesses particulares, que
a proposta política de Montesquieu. Afinal, em nenhum momento da sua teoria,
Montesquieu defende que o Estado deve garantir os direitos individuais acima de
tudo, o que, no entanto, faz parte do cerne da constituição norte-americana, algo
defendido e ressaltado pelos federalistas.
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Capítulo 2
A razão é usada, nessa teoria, como o instrumento por meio do qual é possível
uma vida de acordo com o que é próprio da alma humana, do que é do homem
por natureza. A razão é um instrumento para a essência humana ser realizada.
Rousseau é, então, um romântico, já que defende o uso da razão, da objetividade,
para possibilitar que a subjetividade seja exercida e que crê que esta é boa.
Teremos, no entanto, de ter claro o que esse autor compreende como típico da
natureza humana para, a partir disso, verificar as suas propostas sobre como
deve ser a sociedade que possibilita a realização dessa natureza.
33
Capítulo 2
Seção 1
Breve biografia de Rousseau e aspectos gerais
da obra desse autor
Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. Sua
família pertencia à burguesia média, a mãe morrera em seu parto, mas mesmo
assim nosso autor viveu com o pai e com relativa estabilidade familiar e conforto
material, até os sete anos de idade. Essa estabilidade começou a ruir quando seu
pai teve que fugir da acusação de ter desembainhado a espada para um certo
capitão Gauthier, dentro da cidade de Genebra. Para fugir, o pai expatriou-se, mas
Rousseau ficou em Genebra, sob a guarda de um tio. Esse encaminhou nosso
filósofo a Bossey para estudar. Mas, aos 12 anos, teve de retornar a Genebra, já
que os recursos financeiros deixados pela mãe não lhe permitiam mais continuar
com os estudos.
Depois disso, seus tios buscaram lhe garantir alguma profissão que lhe
possibilitasse a sobrevivência. Nesse sentido, enviaram-no com a idade de
12 anos à casa de um importante notário da cidade de Genebra, para que aí
aprendesse o ofício de moço de recados. Mas não prosperou nessa investida. O
tabelião considerava-o preguiçoso e idiota. Começava aí a trajetória de Rousseau
em garantir por si mesmo seu sustento material.
34
Pensamento Filosófico Moderno
Em 1745, liga-se a Thérese Levasseaur, com a qual teria cinco filhos, todos
entregues a orfanatos, porque achava que não poderia cuidar deles sendo pobre
e doente. O remorso por isso foi seu companheiro para o resto da vida; para
livrar-se dele preocupou-se sempre em encontrar justificativas para esses atos.
Em 1749, visita quase todos os dias seu amigo Diderot na cadeia, esse havia sido
preso por publicar um artigo em que expressava claramente posições ateístas.
Numa dessas tardes de visita, enquanto estava a caminho da prisão em que se
encontrava seu amigo Diderot, depara-se com a notícia de que a academia de
Dijon estava realizando um concurso sobre o seguinte tema: “o progresso das
ciências e das artes contribui para corromper ou apurar os costumes?”.
Consta na bibliografia oficial desse autor que essa notícia deixa-o subitamente
transtornado. Toma-se de um entusiasmo que jamais sentira. Ele participa desse
concurso defendendo a ideia de que o progresso das ciências e das artes,
pelo menos os que trouxeram a humanidade até aquela condição social que
constatava em sua época, não tinha contribuído para aprimorar os costumes, se
entendermos esses como aquilo que possibilita a liberdade. As justificativas para
essa resposta vão tornar nosso autor um romântico, já que fomentam a ideia do
bom selvagem. Ganhou o primeiro prêmio nesse concurso.
Desse momento em diante, Rousseau passa a publicar várias obras, inclusive de ópera.
Com a publicação dessas duas obras, conforme aponta-nos Chauí (1997, p. 10),
inicia-se o período mais negro da vida do nosso autor. Os problemas a partir de
então não são mais com os amigos e as amantes, mas com as autoridades e a
opinião pública. Teve que refugiar-se até em outro país para fugir da prisão, em
virtude das ideias presentes nessas obras. Tentou refúgio em alguns países que
se recusaram a abrigá-lo. Conseguiu abrigo na Inglaterra, junto a seu amigo David
Hume, em 1765.
35
Capítulo 2
Apesar de as obras Contrato Social e Emílio serem as que mais lhes trouxeram
problemas com as autoridades e a opinião pública durante a vida, com certeza, as
raízes dos pensamentos delas já estão contidas na sua primeira obra de renome.
Sim, essa consiste no trabalho que elaborou para o concurso realizado pela
academia de Dijon, na França, em 1749. Nesse momento, expõe a necessidade
da preservação do que julga ser a natureza humana genuína, bem como as suas
justificativas para essa preservação.
36
Pensamento Filosófico Moderno
Seção 2
A natureza humana para Rousseau
Com o objetivo de responder qual a origem da desigualdade entre os homens, e
se é autorizada pela lei natural, tema do concurso da academia de Dijon do qual
Rousseau participou, ele busca determinar como era a vida do homem natural,
do que, em filosofia, se passou a chamar de “homem no estado de natureza”.
O conhecimento do que é esse homem mostrará se a referida desigualdade
citada no tema do concurso é permitida pela lei da natureza. Afinal, nesse
estado, o homem ainda não vive em sociedade, encontra-se antes da política, da
convivência social organizada, da necessidade de seguir regras para a existência
de uma ordem social.
Aqui é importante destacar que vários filósofos iluministas, por exemplo, Locke,
Hobbes, construíram suas teorias políticas pressupondo o que compreendiam por
homem no estado de natureza. A tese de que cada homem possui racionalidade,
que podemos entender como a capacidade de autodeterminação, trazida pelo
iluminismo, contém a necessidade de que a ordem social seja justa para cada
indivíduo. E, para isso, esses filósofos recorreram ao que é o homem no estado
de natureza para determinar como o estado civil, a vida do homem em sociedade,
deveria ser para preservar ou repudiar o que, respectivamente, julgavam como
correto ou incorreto no estado de natureza.
37
Capítulo 2
1 Thomas Hobbes viveu no século XVI e desenvolveu uma teoria contratualista que toma o estado de natureza como
uma condição da qual o homem precisou sair em virtude de precisar de segurança. Defendeu que nesse estado
todos temem por suas vidas, pois não há aí nenhuma condição impedindo um indivíduo tirar a vida do outro.
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Pensamento Filosófico Moderno
O homem podia viver isolado em relação aos demais de sua espécie porque
a natureza o provia suficientemente bem com alimentos, água, e com uma
condição de saúde adequada. Na natureza, a enfermidade não existe em tão
grande escala quanto na sociedade (ROUSSEAU, 2000, p. 61). Rousseau (2000,
p. 62) argumenta que os caçadores atestam isso quando afirmam encontrar
poucos animais doentes na natureza. Esse homem era frágil, já que não possuía
nenhum instinto que o tornasse mais poderoso que qualquer outro animal em
algum aspecto. Mas, diferentemente dos demais animais, tinha a seu favor a
possibilidade de não agir apenas por seus instintos 2.
Essa possibilidade de ação traz à tona outro lado da natureza humana: o metafísico
e moral. Trata-se de outro lado não no sentido de que esse está em contradição
com o lado do homem ligado à natureza, mas apenas de outro lado do humano no
mesmo sentido em que, na moeda, o lado da cara é o outro lado da coroa.
2 Isso não significa, porém, que o homem, seguindo algo que não apenas seus instintos, necessariamente, está
indo contra a natureza. Há, em Rousseau, um agir de acordo com a razão que permite o respeito à natureza.
Veremos, na sequência, até o final dessa seção, o que é esse agir.
39
Capítulo 2
Mas, apesar do homem ter, geralmente, usado mal sua liberdade, é a existência
dessa que confere a bondade ou a maldade às ações humanas. E ela não
pode ser explicada pela ciência mecanicista, pois a liberdade está ligada à
espiritualidade, à alma humana:
Sua teoria, para demonstrar o homem selvagem como bom, como alguém que
usa adequadamente as paixões, precisa comprovar que as paixões que vigem
nesse período não possibilitam a imbecilidade humana. Sua saída para isso é
demonstrar que o homem, nesse período, age unicamente por seus instintos, de
acordo com sua natureza.
40
Pensamento Filosófico Moderno
universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme
são a dor 4 e a fome” (2000, p. 65).
Essas paixões não têm a capacidade de tirar do homem a liberdade, já que ele nem
consegue desfazer-se delas. Portanto, não conferem nem bondade nem maldade
às suas ações. Afinal, por meio delas, não se tem a noção de correto e falso, não
se pode escolher em relação às mesmas, age-se apenas movido por paixões que
estão vinculadas unicamente aos seus instintos (ROUSSEAU, 2000, p. 76).
Conta com pressuposições históricas para sustentar que não há maldade no estado
de natureza, pois considera, entre outras coisas: que os homens desse período
buscavam viver isolados e eram fracos, quando dependentes de suas mães; antes
mesmo de serem robustos, precisavam se tornar independentes, isso os impedia
de se submeterem uns aos outros. Por uma questão de sua própria sobrevivência,
nesse estado, uma mãe abandonava seu filho assim que esse era capaz de se
autoprover, o que contribuía muito para o isolamento entre os indivíduos.
Talvez não contente com essas justificativas para distinguir sua compreensão do
homem selvagem da desenhada por Hobbes, já que para esse último o homem
selvagem era mau, Rousseau afirma que o sentimento de piedade se faz presente
na raça humana já nos primórdios de sua história.
O homem selvagem não é bom nem mal, pois não pode escolher. Suas ações são
realizadas meramente por seus instintos. Logo, o homem selvagem de Rousseau,
quer pelos pressupostos históricos do estado de natureza de que parte, quer por
sua explicação do sentimento de piedade, demonstra que as necessidades que
movem o homem nesse período não são capazes de torná-lo imbecil, de tirar-lhe
a liberdade. Afinal, o homem não pode nem escolher nesse período.
Explica que a descrição do homem feita por Hobbes trata-se de uma confusão
desse autor entre o homem selvagem e o de seu tempo. Esse autor tomou as
paixões que o homem de seu tempo precisa satisfazer para tornar-se alguém
4 Afirma ser a dor, e não a morte, porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e
dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal.
41
Capítulo 2
Mas, o que tirou o homem do seu estado de natureza, se ele proporcionava tanta
satisfação? Acasos. Acasos que serviram de objeto para o desenvolvimento cognitivo
e social do homem e que, conforme veremos aqui, em alguns momentos da história
humana, desenvolveram paixões as quais levaram os homens a se submeterem entre
si, isto é, negarem a liberdade, a qual lhes é própria por natureza.
E a nós, resta seguir o caminho que nosso autor apresenta como aquele que
levou ao homem à sociedade europeia do século XVIII. Sigamos, então, com
as justificativas rousseauniana para o desenvolvimento de a razão humana ter
possibilitado a existência da falta da liberdade vigente na Europa do século XVIII.
42
Pensamento Filosófico Moderno
43
Capítulo 2
E fora o acaso que dera origem à propriedade privada, porque ela deve ter
começado com um homem construindo uma choupana para abrigar a sua família
e tendo os demais respeitando-a como sua. Afinal, Rousseau (2000, p. 90) afirma:
44
Pensamento Filosófico Moderno
Mas a divisão de tarefas entre os dois sexos, possibilitada pela vida em família,
trouxe o gozo do lazer, principalmente por parte do sexo masculino. E a falta
desse se torna mais onerosa que o prazer que se obtém com seu gozo. O
homem já começava aí a sentir necessidade que só a convivência em sociedade
possibilita. Além disso, a convivência possibilitou-lhes fazer comparações entre
os objetos que possuíam; nesse período, ainda muito ligado a ornamentos, mas
reinava a liberdade (ROUSSEAU, 2000, p. 92).
45
Capítulo 2
46
Pensamento Filosófico Moderno
47
Capítulo 2
situação. Para esses, era melhor abrir mão de certos conteúdos em prol de ter
outros assegurados. Tinham a ideia de que assim que adquirissem algum
bem conseguiriam usar esses mesmos regulamentos para defender suas
propriedades. Viram que era preciso sacrificar uma parte de sua liberdade
para a conservação de outra maior 5, como um ferido deixa que lhe cortem um
braço para salvar o resto do corpo.
Seção 3
Como foi impossibilitada a liberdade
O direito civil vige em detrimento do direito natural, essa é a condição que
prevalece na Europa do século XVIII. Porém, o direito civil não prevalece entre
as nações; “por isso, as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos [...] as
pessoas matam num só dia nesses conflitos mais que matou-se no estado de
natureza todo”. (ROUSSEAU, 2000, p. 101). Cada estado quer afirmar seu próprio
direito civil e, por isso, existem as guerras nacionais.
5 Aqui encontramos uma alusão ao contrato social defendido por Locke, já que esse autor defende que o
homem deve abrir mão da liberdade total – liberdade natural- em prol de uma liberdade assegurada pelo
Estado. Esse autor defende que essa traz vantagens, já que sempre poderá ser realizada, ao passo que a
liberdade natural não consegue viger devido à falta de normas para resolver os conflitos entre os indivíduos.
48
Pensamento Filosófico Moderno
Para Rousseau, qualquer direito civil quando não está de acordo com o direito
natural, não resolverá a miséria e a escravidão do homem. Por definição, na teoria
desse autor, como já vimos aqui, o direito civil quando longe da lei natural, cultiva
as paixões que levam a tais vicissitudes.
Mas quando o povo fez essa transferência de poder, acreditava que ela resolveria
os males vigentes na sua sociedade. Nas gerações que sucederam essa
transferência, já não se sabia o que era o poder para se sentir falta dele, pois não
se pode sentir falta de algo que nunca se conheceu (ROUSSEAU, 2000, p. 103).
6 Contemporaneamente, você pode refletir e perceber que essas futilidades também existem: vemos isso
quando o ter - seja o carro do ano, a roupa de grife ou a coleção completa de álbuns dessa ou daquela banda -
é mais importante que o ser.
49
Capítulo 2
Seguindo nessa esteira, nosso autor irá inferir que o reconhecimento pelo poder
adequadamente exercido é um dever de quem recebeu esse benefício, não um
direito para quem o exerceu reclamar (ROUSSEAU, 2000, p. 105). Aqui nos
deparamos com a ideia de que o poder não pode ser imposto, independente
de quem o exerça, mas que ele é reconhecido quando exercido
adequadamente. Portanto, encontramos aqui mais uma evidência das críticas
rousseaunianas ao poder absolutista, o que lhe rendia problemas, porque esse
poder era vigente na França de seu tempo e em muitos outros lugares da Europa.
Nem o estado que se sustenta sobre a transferência do poder do povo aos seus
chefes, por meio de uma constituição, escapa das críticas de Rousseau. Ele
mostra-nos que mesmo havendo obrigações nesse contrato, para ambas as
partes que o firmaram, não há nada que efetivamente obrigue os chefes a segui-
la. Pois o povo não consegue punir os chefes, caso eles não cumpram com sua
parte nesse contrato, já que é jogado à falta de ordem pública quando destitui
seus chefes (ROUSSEAU, 2000, p. 109).
Assim, mesmo que os chefes legislem a seu favor e em detrimento do povo, não
cumpram com alguma cláusula da constituição, o povo que não sabe exercer
sua liberdade prefere manter essa ordem pública a não ficar com nenhuma.
Acompanhemos algumas palavras de Rousseau nesse sentido: “o povo, já
acostumado com a dependência, com a calma e as comodidades da vida, e já
incapaz de quebrar seus grilhões, consentiu em deixar aumentar sua servidão
para assegurar sua tranquilidade” (ROUSSEAU, 2000, p. 109).
Rousseau (2000, p. 110), então, como uma última pá de terra sobre um corpo
já totalmente enterrado, sintetiza o processo político da humanidade até seu
tempo como: o desenvolvimento do processo da desigualdade nas diferentes
revoluções políticas que ocorreram desde o estabelecimento da propriedade
privada. Se no estado de natureza o homem não exercia a liberdade, era
7 Rousseau acabará as pesquisas que iniciou aqui, na Origem das desigualdades entre os homens, na sua obra
Contrato Social, em que o povo é o “corpo político”: ou seja, o “Estado”, quando passivo, ou o “Soberano”,
quando ativo.
50
Pensamento Filosófico Moderno
porque não tinha desenvolvido a razão, apenas a possui latente em si; mas,
na Europa do século XVIII, ele não exercia a liberdade porque acabou durante
a história do desenvolvimento da razão até ali, a qual coincide com a história
do desenvolvimento social da espécie humana, dando atenção à satisfação de
necessidades que surgiram em virtude da convivência social mas que não estão
de acordo com a natureza humana.
E diante de tudo o que foi exposto até aqui, podemos concordar que o processo de
desenvolvimento da política, aos olhos de Rousseau, pode ser dividido em três fases:
51
Capítulo 2
Seção 4
O Emílio e Do Contrato Social
As obras Emílio e Do Contrato Social, ambas publicadas em 1762, visam a
reformular a sociedade vigente em seu tempo, a qual nosso autor demonstrou
estar corrompida na sua obra Sobre a Origem das Desigualdades, publicada
em 1755. Rousseau, por meio dessas duas primeiras obras, mostra como viver
de acordo com a natureza, como fugir da corrupção da natureza vigente em seu
tempo. Mostra-nos como é possível viver feliz mesmo depois de a humanidade
sair do que denomina de época de ouro, a qual viveu logo após a saída do
homem do estado de natureza.
Na sua obra de 1755, apresentou suas razões para defender que antes da
fundação da propriedade privada e a transferência de poder do povo a um
magistrado, a vida ocorreria de acordo com a natureza, isso concedia felicidade
ao homem.
No entanto, com as obras de 1762, ele não busca demonstrar um caminho para
o homem voltar àquele estado de natureza. Não crê que a vida, de acordo com
a natureza, regenere-se pela destruição do estado social. Sobre isso, podemos
seguir as palavras de Chauí (1997, p. 13), em sua apresentação da teoria de
Rousseau na coleção Os Pensadores:
52
Pensamento Filosófico Moderno
Diante disso, podemos concluir que o tutor, de acordo com essa proposta
pedagógica, não é alguém que impõe sua vontade ao seu discípulo, mas alguém
que instrui esse último. Isso se deve ao fato de que uma criança jamais aceitará
53
Capítulo 2
uma proibição, mas aceita o fato de que o estado de coisas em que está inserido
impede que ela tenha sua vontade atendida. Por exemplo, segundo Frangiotti
(2001, p. 37), a atitude de um tutor rousseauniano para evitar que uma criança
coma mais doce não é dizer “não coma mais doce”, mas sim dizer “o doce
acabou” e providenciar para que o doce não esteja à vista da criança.
Se for negado algo à criança, ela não entenderá que aquilo não lhe é conveniente,
mas que aquilo lhe foi negado. A paixão que moveu seu desejo por tal objeto
continuará existindo. Além disso, quando adulta, ela poderá usar do fato de negar
a paixão de outros indivíduos a seu favor, de modo a conseguir realizar as suas
próprias paixões com isso.
Repetindo, a ideia é tornar a realização das paixões dependente das coisas, não
do uso de outros indivíduos para obter essas últimas. Assim, temos que a criança
deve ser educada de modo a contar apenas consigo próprio para a satisfação
de suas necessidades. Um exemplo disso, dado por Rousseau, e que Frangiotti
(2001, p. 39) muito bem resume, é o seguinte:
54
Pensamento Filosófico Moderno
Essa dupla face da liberdade dá-se, justamente, porque ela provém da natureza.
Se por um lado o indivíduo tem o direito de reclamar sua liberdade, por outro tem
o dever de exercê-la. Essa natureza também torna todos os indivíduos iguais em
relação ao exercício do poder. Em outras palavras, faz parte do humano a liberdade
e como essa é a essência da natureza humana, todos em essência são iguais.
A liberdade como um dever é o que difere o Contrato social proposto por Rousseau
do proposto por Locke. Embora esse último autor também concorde que a natureza
possibilita as condições da liberdade e da igualdade, entende que aquela, ou, pelo
menos, parte dela, pode ser transferida a outrem. Entende a liberdade muito mais
como um direito que como um dever. E o fato da realização da liberdade pertencer à
essência humana, exclui a teoria rousseauniana do individualismo. Afinal, a liberdade
não pode ser realizada por cada indivíduo de modo diferente, mas do mesmo modo
por todos, já que é justamente a natureza humana que a possibilita, não algo que foi
desenvolvido pelo indivíduo por meio de seu intelecto.
55
Capítulo 2
Esse pacto é descrito por Rousseau (1999, p. 69) na sua obra Do Contrato
Social. Apresenta-o como: “uma forma de associação que defenda e proteja a
pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada
um, unindo-se a todos, só obedece a si mesmo, permanecendo, assim, tão livre
quanto antes”. Trata-se de uma total alienação de cada associado, com todos
os seus direitos, em benefício da comunidade. Assim, é uma alienação do
indivíduo apenas enquanto individualista.
Precisamos, então, ter mais detalhes do que é essa alienação. Trata-se da alienação
do que no cidadão é peculiar de sua individualidade e que vai de encontro ao
que é entendido pela coletividade como correto. Quando essa alienação faz-se
presente, surge “um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos
são os votos da assembleia e que, por esse mesmo ato [a alienação citada], ganha
unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade” (ROUSSEAU, 1999, p. 71). Logo,
o que é decidido nessa coletividade não vai contra ao súdito, pois também proveio
desse. À vontade dessa coletividade, Rousseau deu o nome de vontade geral.
Conceito extremamente famoso até hoje.
56
Pensamento Filosófico Moderno
Aqui é importante ter bem claro que as decisões obtidas na coletividade a la Rousseau
não são obtidas pela soma da vontade dos indivíduos que a compõem, mas pela
vontade da comunidade que esses juntos formam.
Mas, como chegar a decisões com base na vontade geral? Não, não é por
meio de debates em assembleias, nesses, segundo Rousseau (1999, p. 203), só
se demonstra a defesa de interesses particulares. Se existir divergências entre
dois indivíduos, significa que a natureza própria do homem não está prevalecendo
sobre os interesses (paixões) particulares de algum deles.
57
Capítulo 2
Temos o povo, que se reúne numa assembleia popular, como o soberano. É ele que,
em última instância, legisla, apesar de a proposta dos conteúdos que são votados pelo
mesmo não provir dele, mas dos magistrados. Mas quem executa essas leis? Não, não
pode ser o próprio povo, porque no trabalho de executá-las poderia fazê-lo de modo a
atender aos seus interesses individuais. Precisa eleger um governo, indivíduos que as
exerçam, um executivo. Esse estaria ligado ao soberano (povo/vontade geral) como o
corpo está ligado ao cérebro: o primeiro deles é comandado pelo segundo. Assim, o
governo não agiria de acordo com os interesses individuais de quem o compõe, já que
o soberano tem sobre ele plenos poderes, pode, inclusive, portanto, destituí-lo, assim
que achar conveniente.
O povo escolhe seu governo para executar as leis que obteve em assembleia
popular e, caso esse último não cumpra com o que aquele lhe solicita, esse
mesmo o destitui. Isso, no entanto, não resulta em uma falta de ordem social,
porque basta ao soberano escolher outro governo. Como esse último não pode
legislar, a liberdade do povo não está enfraquecida, a ponto de não conseguir
escolher outro governo. O exercício constante do poder, por parte do povo,
impede que o usurpem de suas mãos.
58
Pensamento Filosófico Moderno
Há ainda toda uma proporcionalidade que deve existir entre o governo e o número
de cidadãos, isto é, entre o governo e o soberano: “o governo, para ser bom,
deve ser relativamente mais forte, na medida em que o povo for mais numeroso”
(ROUSSEAU, 1999, p. 139). Não entraremos aqui nas explicações das regras que
devem ser observadas para efetivar essa proporcionalidade, limitaremo-nos a
afirmar aqui que, segundo nosso autor, “em geral o governo democrático convém
aos estados pequenos, o aristocrático aos médios e o monárquico aos grandes”
(ROUSSEAU, 1999, p.148).
59
Capítulo 3
A teoria de Immanuel Kant é, com certeza, uma das teorias que você mais
estudará em qualquer curso de Filosofia. Sua obra é um grande marco da
Filosofia e abriga respostas a muitas das questões gerais dessa área.
Porém, nem sempre o estilo textual de nosso autor é apreciado por muitos
leitores, haja vista suas frases muito longas, formadas por várias orações
intercaladas dentro de uma principal, e os termos técnicos que este vai cunhando
no decorrer de sua obra.
Gostos literários à parte, é necessário conhecer essa filosofia, pela sua grandeza
e para compreender muitas obras posteriores que lhe fazem referência, ou apenas
para entender mais profundamente os problemas filosóficos de que trata.
61
Capítulo 3
Seção 1
Como podemos conhecer o mundo
Crítica ao empirismo
A metafísica, compreendida como a ciência que determina como é possível
o conhecimento, segundo Kant, até sua época, século XVIII, não obtivera
progressos, já que entendia que ela não conseguia dar uma resposta definitiva
sobre como é possível o conhecimento (KANT, 2002, p. 15).
Assim, seguindo esse viés teórico, o uso da razão torna-se mais complexo e
mais claro com a posse de ideias gerais. Os usos da razão e da palavra, esta
última enquanto nomeação geral, crescem juntos, pois essas nomeações já são o
desenvolvimento da razão sobre as sensações trazidas pela experiência empírica.
Kant (2002) é um desses críticos. Pega carona na crítica que Hume faz a
Locke, pois foi Hume quem afirmou que do simples fato de percebermos pela
experiência empírica que um evento antecede a outro, não se pode deduzir que
aquele seja a causa deste último.
62
Pensamento Filosófico Moderno
O principal objetivo deste capítulo é entender essa crítica da razão: entender o que é
esse tribunal e o que ele solicita da sua ré, a razão, para obter da mesma a verdade – o
modo como conhecemos as coisas.
Tal crítica não começa a investigar como a razão é usada em relação a uma
experiência empírica. Se assim o fizesse, já se estaria tomando alguns conteúdos
como corretos, independentemente da investigação do que é a razão, o que é
um equívoco quando se pretende entender as bases do conhecimento. Afinal,
estaria pressupondo-se que a experiência empírica é realizada de um determinado
modo, o que, por sua vez, já pressuporia um modo de usar a razão. Antes disso, é
necessário verificar o que é a razão para depois, sim, determinar como ela pode ser
usada para conhecer objetos empíricos. O objetivo, então, é demonstrar o que é a
faculdade da razão em geral e não como ela pode ser usada para obtenção de um
determinado conteúdo. Logo, cabe realizar a crítica da faculdade da razão pura.
E nosso autor afirma no prefácio da primeira edição de sua obra Crítica da razão
pura ter conseguido conhecer a faculdade da razão pura. E adianta-nos que esse
conhecimento consiste em saber o que e até onde podem o entendimento e a
razão conhecer (KANT, 2002).
63
Capítulo 3
E para iniciar a compreensão desses dois pontos, nada melhor do que saber o
que são os juízos para Kant.
Tipos de juízos
O caminho trilhado por Kant para a demonstração dos limites da razão inicia-se
com as diferenças que existem entre dois tipos de conteúdo do conhecimento:
empírico e puro.
A origem do conhecimento está na experiência, mas isso não significa que todo
conhecimento dependa da experiência empírica para existir, pois existem os
conteúdos puros, como os matemáticos, por exemplo. Atenhamo-nos a uma
passagem kantiana que dá base para a compreensão de que existem esses dois
tipos de conteúdo:
64
Pensamento Filosófico Moderno
Segundo as próprias palavras de Kant (2002, p. 46): “se um juízo é pensado com
rigorosa universalidade, ou seja, de tal modo que, nenhuma exceção seja admitida, não
é derivado da experiência, mas é válido totalmente a priori”.
65
Capítulo 3
ideias puras, juízos a priori, mas não ter um ponto de apoio sobre o qual poderia
sustentá-las a ponto de demonstrar por que elas eram corretas em relação à
experiência empírica, inclusive. Cabe, então, à teoria kantiana demonstrar que
não sucumbe ao que a teoria do conhecimento platônica sucumbiu.
Essa empreitada kantiana inicia-se com uma maior especificação dos juízos. Ocorre
que, além de juízos a priori e a posteriori, Kant considerou também que existe uma
maior especificação desses juízos, pois, para ele, os juízos a priori podem ser sintéticos
ou analíticos, enquanto os a posteriori sempre são sintéticos.
Sigamos para compreender o que são juízos sintéticos e o que são juízos
analíticos. Para isso, leia com atenção a citação a seguir lembrando que sempre
faz parte de um juízo, o qual podemos tomar como sinônimo ao que temos como
“oração”, um sujeito e um predicado.
É importante a compreensão adequada desses juízos porque é por meio deles que
podemos demonstrar como podemos conhecer os conteúdos que dependem apenas
da racionalidade e os conteúdos que estão ligados à experiência empírica. Essa
distinção de juízos é o ponto de apoio por meio do qual nosso autor não possui apenas
uma teoria das ideias, mas também do conhecimento, que explica como conhecemos
as coisas ligadas à empiria. Essa distinção, como já visto aqui anteriormente, busca
livrar Kant de ser um platônico.
Logo, temos que os juízos da experiência empírica são todos sintéticos, além
de a posteriori. Pois, seria um absurdo fundar, com base nela, um juízo analítico,
uma vez que não preciso sair do sujeito para formular esse último juízo e, por
66
Pensamento Filosófico Moderno
Assim, entra em cena outro tipo de juízo, os juízos sintéticos a priori (KANT,
2002). São juízos em que o predicado não está contido no sujeito e que a
ligação entre esses elementos, minha intuição da síntese entre eles, não se dá,
no entanto, por meio da experiência empírica, mas unicamente pela razão. Um
exemplo de um juízo sintético a priori é “Tudo o que acontece tem uma causa”.
Esses juízos, os juízos sintéticos a priori, são muito importantes por que
representam conteúdos válidos universalmente, dependem da razão para serem
válidos, e não de condições empíricas como os juízos que são sintéticos a
posteriori. Afinal, nada garante que as condições empíricas simplesmente por
existirem agora irão continuar a existir: logo, enquanto os juízos sintéticos a
posteriori são contingentes, os sintéticos a priori são universais.
Lembrando o que já afirmamos aqui antes, os juízos sobre como a razão deve
ser usada para conhecer o mundo são sintéticos a priori, pois são válidos
universalmente, afinal, não dizem respeito sobre como devo conhecer esse ou
aquele objeto, mas sobre como posso conhecer em geral.
1 Kant também apresenta juízos sintéticos a priori como existentes nas ciências da natureza. Por exemplo,
“Todo movimento tem uma causa”. (2002, p. 54).
67
Capítulo 3
Porém, essa forma seria totalmente inútil se não existisse a massa do pão. No caso
da nossa analogia, a capacidade da razão (a forma) seria inútil se não existisse a
experiência empírica (a massa do pão) sobre a qual aquela, então, realiza-se.
2 Uma analogia que valerá só até uma certa medida nessa teoria. Avisaremos quando isso ocorrer, bem como o
porquê disso quando for necessário.
68
Pensamento Filosófico Moderno
forma (mais adiante veremos por que não de toda a forma, pois temos também o
entendimento); já experiência, por exemplo, tem a ver com a percepção empírica
de um objeto, trata-se de um conteúdo que já está na forma.
Logo, como nenhuma outra forma do mundo pode ser autorreflexiva, deve cessar
aqui a analogia da razão com uma forma de pão.
3 Há também a imaginação em Kant. A imaginação é entendida como uma faculdade intermediária entre a
sensibilização e o entendimento e se refere à capacidade de representar o objeto mesmo quando ele não está́
presente. É a capacidade de representação de um objeto intuído, mediante um conceito, o que significa que,
pela imaginação, é possível fazer uma síntese da multiplicidade das coisas percebidas, ou dadas pela intuição.
69
Capítulo 3
os referidos juízos. Essa ordem entre essas partes é necessária, afinal, “as
condições, pelas quais unicamente nos são dados os objetos do conhecimento
humano, precedem as condições segundo as quais esses mesmos objetos são
pensados” (KANT, 2002, p. 58).
Importante
Assim, a capacidade de receber representações – receptividade dos objetos, a
maneira como somos afetados pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Todavia, é o
entendimento que pensa esses objetos e é do entendimento que provém os conceitos.
Quando somos afetados pelo objeto por meio de sua sensação, temos a sua
intuição empírica. Consequentemente, podemos dizer que nosso entendimento
pode realizar juízos sintéticos a posteriori em relação a esse objeto. Já quando
somos afetados por um objeto exclusivamente por meio da razão, sem a sensação
empírica em relação a ele, nossa intuição, sensação, dele é pura e nosso
entendimento só pode ter juízos sintéticos a priori em relação a esse objeto.
Kant (2002) apura, na sua investigação dessa estética, que há duas formas puras
da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori: o espaço e o
tempo, pois não há como pensar nada que esteja fora de um espaço ou de um
tempo. Kant chama essas regras formais de sensibilidade de transcendental, as
quais pertencem à capacidade da razão em geral.
70
Pensamento Filosófico Moderno
Temos, aqui, portanto, um juízo sintético a priori sobre a razão enquanto capacidade de
conhecer: que qualquer conhecimento ocorre dentro de um espaço e um tempo.
Mas, além das intuições puras (espaço e tempo) – que determinam nossa
capacidade de receptividade de impressões empíricas, − nosso conhecimento
depende de mais um componente geral: a capacidade de conhecer um objeto
mediante as impressões lógicas dele, captadas por nosso entendimento, também
conhecido como a capacidade de formar conceito a partir das representações
obtidas mediante nossas intuições. “Assim, intuição e conceito constituem os
elementos de todo o nosso conhecimento, de tal sorte que nem conceitos sem
intuição, nem uma intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento”.
(KANT, 2002, p. 89).
Por sua vez, temos que essa lógica é dividida em duas partes na teoria desse
autor: a lógica do uso geral do entendimento e a lógica do seu uso particular.
Acompanhemos as próprias palavras de Kant (2002, p.90) para a compreensão de
cada uma dessas lógicas:
71
Capítulo 3
Lógica geral é, então, pura lógica aplicada. Nela, separamos de todas as condições
empíricas nosso pensamento, pois elas exercem grande influência sobre o
pensamento. Assim, da lógica geral temos que retirar as influências dos sentidos,
do jogo da imaginação, das leis da memória, do poder do hábito, da inclinação etc.,
portanto, também as fontes dos preconceitos. Uma lógica geral, conquanto pura,
ocupa-se, então, “de princípios puros a priori e é um cânone do entendimento e da
razão”. (KANT, 2002, p. 91).
Essa lógica geral decompõe nos seus elementos todo o trabalho formal do
entendimento e apresenta-os como princípios de toda a apreciação lógica
do nosso conhecimento. Essa parte da lógica é chamada analítica. Segundo
Kant (2002), representa a pedra de toque da verdade na medida em que,
primeiramente, comprova e avalia, com base nessas regras, todo o conhecimento
quanto à sua forma, antes de investigar seu conteúdo.
De acordo com essas categorias podemos ter pensamentos, segundo Kant. Elas são
condições de acordo com as quais podemos pensar os objetos.
Tais categorias podem ser dispostas em quatro grupos, como apresentado a seguir.
72
Pensamento Filosófico Moderno
Esse, para tal autor, é o sumário de todos os conceitos gerais que pertencem
ao entendimento, é o resultado do entendimento sobre as sínteses
realizadas em relação às intuições puras. Graças a esses conceitos é que um
conhecimento é possível.
Nesse sentido, temos aqui, portanto, mais um juízo sintético a priori sobre a nossa
capacidade de conhecer, sobre o que é a forma razão: o de que o conhecimento só é
possível de acordo com essas categorias que pertencem ao entendimento.
Portanto, as categorias lógicas relacionam-se, necessariamente, a priori com os
objetos da experiência, já que só por intermédio delas é possível pensar qualquer
objeto da experiência (KANT, 2012).
Diante de toda essa exposição, podemos ver que não conhecemos o mundo como
ele realmente é, mas apenas por meio da nossa capacidade de conhecer, por meio
da nossa intuição e do nosso entendimento que resultam no pensamento. Não
conhecemos o mundo em si, apenas o modo como ele nos aparece, apenas o
seu fenômeno para nós, apenas como o conseguimos pensar corretamente.
No entanto, ainda que Kant conclua que não conhecemos jamais o mundo, senão
por meio das regras formais de nosso entendimento e nossa sensibilidade (as
categorias e as intuições, respectivamente), nem por isso devemos admitir a
teoria desse autor como um idealismo fundado no pensamento, nem a rejeitar
em nome de um empirismo. Afinal, é necessário admitir, também, que há coisas
fora de nós, o que nosso autor faz, já que considera que a experiência empírica
73
Capítulo 3
provém de objetos que existem fora de nós; porém, como ele também nos
mostra, não podemos considerar que essa experiência não é determinada por
nossa capacidade racional de apreendê-la. Assim, a teoria de Kant não é nem
platônica e nem lockeana.
Podemos dizer que, agora, sabemos por que Kant afirmou no primeiro prefácio da
sua obra Crítica da Razão Pura, que para conhecer como conhecemos o mundo
era necessário colocar a razão na qualidade de uma ré e agir em relação a ela
como o tribunal que deseja saber da mesma como conhecemos o mundo.
Seção 2
Como devemos agir eticamente
A resposta kantiana para a questão “como devemos agir eticamente?” é uma das
mais fecundas da história da Filosofia. Essa resposta é dada por Kant em seu livro
Fundamentação da metafísica dos costumes, cujo objetivo central é encontrar e
estabelecer o princípio supremo da moralidade, o qual Kant chama de Imperativo
Categórico. Este é, certamente, um dos textos clássicos no estudo dos temas éticos.
74
Pensamento Filosófico Moderno
75
Capítulo 3
Inicia essa obra demonstrando que a nada nesse mundo exceto uma vontade boa 4
pode ser atrelado ao predicado bom. Nesse sentido, critica uma ética baseada
exclusivamente nas virtudes, por exemplo, a ética aristotélica, e também critica a
ética utilitarista.
As justificativas kantianas para não considerar como correta uma proposta ética
do tipo proposto por Aristóteles consistem no fato de que muitas dessas virtudes
em algumas situações são más. Por exemplo, a coragem é uma das virtudes, mas
quando existente em um assassino só potencializa o poder desse para realizar o mal.
Já a crítica kantiana à ética utilitarista dá-se em virtude do fim último dessa ética ser
o bem-estar, e este varia de pessoa para pessoa. Contudo, a moralidade não pode
variar de pessoa para pessoa, já que consiste no que é bom para todas as pessoas.
Seguindo Dall’Agnoll (2009, p. 58), temos que Kant também argumenta contra o
utilitarismo de Hutcheson e Hume. A crítica kantiana aqui pode ser resumida na
afirmação de que uma ação não pode ser absolutamente considerada boa a partir
de seus resultados, por exemplo, por trazer o maior prazer ao maior número de
pessoas. Ao contrário, muitas ações imorais podem ter esse caráter, por exemplo,
a exploração sexual de mulheres até pode trazer prazer para um grande número
de indivíduos, mas ela é imoral, má em si mesma.
O valor moral da ação está, portanto, em seu cumprimento por dever (e não
meramente em conformidade com o dever). Por exemplo, se respeitar o sinal
vermelho no trânsito é moralmente correto em virtude dessa ação ser a expressão
do respeito à vida dos indivíduos que estão no trânsito, meu ato de parar diante do
sinal vermelho só é moralmente correto se eu assim o fizer em respeito à vida dos
demais indivíduos que estão no trânsito. Então, se eu paro diante desse sinal para
não ser multado, xingado ou por qualquer outro motivo que não o respeito à vida dos
demais indivíduos que estão no trânsito, esse meu ato não é moralmente correto,
está conforme o que o dever ordena, mas não ocorre por dever, isto é, não ocorre
em virtude do meu respeito ao dever.
4 Por “vontade boa”, Kant entende o cumprimento das exigências do dever moral por uma pessoa motivada
única e exclusivamente pelo próprio dever, e não uma vontade que é benevolente ou generosa (DALL’AGNOLL,
2009, p. 57).
76
Pensamento Filosófico Moderno
Assim, temos que há duas formas de cumprir o dever, mas só aquela que ocorre
por respeito ao dever é correta, e que a lei moral que se funde sobre a boa
vontade é universal, não depende dessa ou daquela situação para fazer valer os
conteúdos morais que possibilita. Diante de tudo isso, fica fácil, então, entender
o princípio (lei geral) da moralidade kantiana, o qual é o seguinte: “devo sempre
proceder de maneira que eu possa querer também que a minha máxima torne-se
uma lei universal”. (KANT, 1980, p. 17).
É importante ter bem claro o significado desse princípio. Tenha claro que as regras
que se obtêm por meio dele não são a mesma coisa que as máximas que movem
essas regras. Uma máxima, nesse sentido, é aquilo que move uma ação minha de
acordo com o princípio. No nosso exemplo de parar diante do sinal vermelho no
trânsito, a máxima dessa regra era o respeito à vida, e a regra é, então, justamente
esta: “deve-se parar diante do sinal vermelho no trânsito”. Logo, quando realizo
uma ação em que a máxima que a moveu pode ser universalizada, isto é, qualquer
ser racional deve querer essa máxima, tal regra, na teoria kantiana, é moralmente
válida, está de acordo com o princípio categórico kantiano.
Podemos dizer que o valor moral de uma ação, de uma prática, de uma virtude
comporta três momentos decisivos, os quais seguem a ordem em que estão
dispostos a seguir.
Temos, então, que o Imperativo Categórico não consiste em uma regra moral,
mas a forma a que todas as regras morais respeitam. Kant apresentou uma
formulação geral do Imperativo Categórico na obra Fundamentação da
metafísica dos costumes, fórmula que já foi apresentada aqui, e uma série de
elaborações secundárias que procuravam torná-lo intuitivo, isto é, compreensível
em seus pressupostos básicos.
77
Capítulo 3
Seção 3
A proposta política kantiana
Segundo Pinzani (2009, p. 139), o pensamento político kantiano é fortemente
inspirado por Rousseau e apresenta traços característicos do republicanismo deste
autor, além de outros que remetem ao liberalismo de Locke. Todavia, é preciso
cuidado para, além de enxergar as semelhanças entre as teorias políticas de Kant e
de Rousseau, também perceber as grandes diferenças que existem entre elas.
78
Pensamento Filosófico Moderno
Ocorre que Kant, com base no que considera por moralidade, defende a
necessidade de uma ordem jurídica que possibilite o exercício dessa moralidade
e, além disso, a segurança pública. Assim, a república que propõe deve seguir
os preceitos dessa ordem. No entanto, isso não quer dizer que essa república
contenha em si uma série de preceitos morais que devam ser seguidos por seus
cidadãos, afinal, preceitos morais só o indivíduo pode dar-se (são internos).
Contudo, quer dizer que os cidadãos podem realizar suas atividades na
sociedade e de modo a procurar desenvolverem por si próprios a moralidade.
79
Capítulo 3
De qualquer modo, aqui, nessa característica geral de sua república, Kant parece-
se muito com Locke, no que esse defende por liberdade. Já que concorda que é
justamente da necessidade de coordenar as diversas liberdades individuais, os arbítrios
particulares, que nasce o direito, que Kant define como “a soma das condições sob as
quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem, de acordo com uma lei
universal de liberdade.” (KANT, 2003, p. 76).
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Pensamento Filosófico Moderno
Kant considera que cada um pode ser capaz de desenvolver seus talentos e
ser capaz de tornar-se independente financeiramente de outros, condição essa
necessária para um indivíduo fazer parte da política de seu Estado, no caso, ser
capaz de votar, escolher os seus representantes políticos.
Kant preocupa-se pouco com os riscos que podem derivar do egoísmo dos
cidadãos – preocupação típica da tradição republicana, principalmente de
Rousseau e Montesquieu, pois considera que se cada cidadão politicamente
ativo persegue somente seu interesse particular, esses interesses – considerados
singularmente – seriam demasiado fracos para prevalecer sobre os dos outros
indivíduos. Além disso, cada cidadão, buscando realizar seus interesses
individuais, não permitiria que o Estado encampasse os interesses particulares
desse ou daquele indivíduo.
5 Mais tarde, na Filosofia, seja na teoria de Karl Marx ou na escola de Frankfurt, realizar-se-á intensas críticas
ao pensamento kantiano, em virtude do princípio de liberdade civil que apregoa.
81
Capítulo 4
Esse patrocínio, no entanto, não era estabelecido por uma relação de troca entre
o patrocinador e o aluno, mas na influência por parte do patrocinador em relação
ao que era ensinado nas instituições de ensino. Porém, Hegel, como muitos
outros alunos das instituições de ensino da Alemanha nesse período, não se
limitou a ler os livros disponíveis nas bibliotecas de onde estudou. Pelo contrário,
buscou também ler as obras que tinham ou vinham influenciando grandes
acontecimentos políticos e intelectuais que ocorriam em alguns outros pontos
da Europa, naquele período histórico. Afinal, a Revolução Francesa ocorreu
em 1789 e as obras de Kant e de outros dos primeiros autores contratualistas,
especialmente Rousseau, tornavam-se grandes referências intelectuais para a
organização política e jurídica dos Estados que estavam estabelecendo-se. Além
disso, as obras de Kant já representavam, naquela época, um marco na teoria do
conhecimento. Logo, a leitura das obras desses autores era indispensável a esses
alunos, apesar de serem obras proibidas naquela época na Alemanha.
83
Capítulo 4
Assim, mesmo que Hegel tenha vivido em uma sociedade política que era mais
parecida com a estrutura feudal, teve contato, por meio dessas obras e desses
acontecimentos históricos, com os ideais da modernidade para a organização da
sociedade e em relação ao conhecimento.
Este capítulo busca apresentar algumas das ideias presentes em todos esses
ciclos, como, por exemplo, a filosofia da história, a liberdade, o papel da
Filosofia, a relação entre indivíduo e universal. Isto é, veremos as principais
características daquilo que Hegel chama de, já que esse é o responsável pelo
desenvolvimento da razão na história.
Boa leitura!
Seção 1
A Filosofia da história e a história da Filosofia
Começamos a apresentação da filosofia da história de Hegel, com uma
importante afirmação, que encontramos na obra de Assmann (2009, p. 15): “para
Hegel, o Ser não tem história, mas é história”.
Ocorre que, em diversas passagens de sua obra, Hegel concebe a racionalidade como
aquilo que é o expresso na história universal. Acompanhe uma dessas passagens:
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Pensamento Filosófico Moderno
No entanto, não se deve tomar o fato da história ser racional como sinônimo de
que todo o real é racional. Na sua obra “Enciclopédia”, Hegel apresenta que seus
opositores tomaram essas duas palavras como sinônimas em sua filosofia, o que
é um equívoco. Afinal, se nosso autor defender que todo o real é racional, sua
filosofia justificaria qualquer realidade, por mais injusta que fosse. O que, porém,
ele compreende é que o que é efetivo é racional.
85
Capítulo 4
E a liberdade acaba sendo – Hegel não a nega e nem se preocupa em fazê-lo − fazer
o que se deve: a liberdade do homem consiste em ser servo do espírito, ou, o que
é o mesmo, em saber simplesmente que é servo do espírito do mundo e do povo.
Quem não sabe que é escravo − repita-se − é escravo; quem o sabe, liberta-se, ou
seja, passa a colaborar conscientemente com o que o espírito universal obriga a fazer.
(ASSMANN; DUTRA; HEBECHE, 2009).
86
Pensamento Filosófico Moderno
Uma boa figura utilizada para expressar a teoria hegeliana sobre a história é a
espiral, apresentada a seguir na Figura 4.1.
87
Capítulo 4
Assim, pressupondo todo o dito até aqui sobre o que significa a história para
Hegel e considerando a espiral como representativa desse conteúdo, afirmamos
que o Espírito Absoluto (a razão que se expressa na história da humanidade) é o
fio que forma a espiral, que cada anel dela é uma determinação de si do Espírito
Absoluto, é o tempo do espírito − isto é, um período histórico (história do oriente
antes de Cristo, história greco-romana, modernidade). E essas determinações
formam um percurso no que tange à humanidade (a história humana), o qual tem
uma direção, há o progresso, a realização da liberdade.
Temos, dessa maneira, um ordenamento racional do mundo, por isso, afirma-se que,
na teoria hegeliana, a compreensão da história depende do que seu autor defende
por ontologia. Conta-se, portanto, com um ordenamento racional do mundo. Todavia,
como explicar as injustiças que ocorrem ou ocorreram em vários dos períodos
históricos? Estas ocorreram em relação a indivíduos, não representam a realização
do espírito nesses períodos. Por mais distantes que os fatos históricos possam estar
entre si em um período histórico, guardam uma ordem, uma relação de necessidade.
O que nos aparece como um mal, segundo uma perspectiva individual, é algo
necessário, se vislumbrado pela ótica do regramento total do mundo.
88
Pensamento Filosófico Moderno
Os indivíduos que se dão conta do espírito do povo de que fazem parte e passam
a agir de acordo com esse espírito, são os grandes homens de um povo. São os
que guiam o povo de acordo com o espírito universal (HEGEL, 1985, p. 66).
Aqui, é importante ter claro de que esses indivíduos não criam nada para além
do que as condições históricas possibilitam-lhes, isto é, apenas encarnam de um
bom modo o Espírito Absoluto na fase de desenvolvimento de seu tempo.
Porém, do mesmo modo que muitos indivíduos não se dão conta do espírito
do povo de que fazem parte, muitos povos também não se dão conta de
que pertencem ao absoluto e, consequentemente, não são determinantes
para o desenvolvimento desse absoluto. Para um povo fazer parte desse
desenvolvimento, precisa organizar-se politicamente em um Estado.
Povos “sem Estado” podem desenvolver-se, mas nem por isso têm história:
são − declara Hegel − o passado que “cai fora da história” (ASSMANN, 2009, p.
137). Portanto, “na história universal só pode-se falar dos povos que formam um
Estado”. (ASSMANN, 2009, p. 102). Nesse sentido, na África, onde a sociedade
organiza-se em tribos, “o homem não vale nada” (ASSMANN, 2009, p. 188).
89
Capítulo 4
Contudo, não basta um Estado para que haja automaticamente o início da história.
“Assim como o indivíduo, sem a relação com outras pessoas, não é pessoa real,
assim o Estado, sem a relação com outros Estados, não é um indivíduo real”.
(HEGEL, 1976, p. 331). Também aqui desponta a necessidade do outro como
negativo para o desenvolvimento do espírito universal concreto, para que haja um
reconhecimento. Afinal, para haver desenvolvimento é necessário movimento, e
esse só é possível quando há contraposição entre diferentes elementos.
Dado que o espírito desenvolve-se, nenhum “espírito do povo” que existe como
saber (povo que se apreende mediante o pensamento, isto é, organiza-se por
meio do Estado) é definitivo. Todo povo, nasce, desenvolve-se, decai e serve
como pressuposto para o legado de outro, que continua a marcha do espírito
universal. Conforme já assinalou-se a respeito da Fenomenologia: “a morte do
espírito de um povo é trânsito para a vida; mas não como na natureza, onde a
morte de uma coisa dá existência à outra igual” (HEGEL, 1992, p. 75).
Assim como a semente que não dá vida à planta que lhe deu origem, mas a
uma nova planta, ocorre que um povo não pode encarnar o Espírito Absoluto
em mais de uma de suas determinações. Isto é, um mesmo povo não pode
ser responsável por mais de um dos anéis na espiral do desenvolvimento do
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Pensamento Filosófico Moderno
Portanto, é na prática que a liberdade faz-se presente, pois, com isso, ocorre a
ação, mas a prática não modifica o Espírito Absoluto. A liberdade é, portanto,
ahistórica, embora seu desenvolvimento seja histórico. Isso porque a liberdade, o
Espírito Absoluto, não se modifica no seu desenvolvimento, traz em si toda a sua
potencialidade, apenas torna-se para si o que já está em si quando realiza com
plenitude a liberdade, o que ocorre com plenitude no final do século XVIII. Como
já vimos, esse período trazia as conquistas da reforma protestante e contava com
as mudanças ocorridas com a Revolução Francesa, consequentemente, com a
liberdade do indivíduo assegurada pelo Estado.
91
Capítulo 4
Seção 2
A Revolução Francesa e o tomar para si do
Espírito Absoluto do seu em si
A Revolução Francesa é determinante para a filosofia hegeliana. Tanto é assim
que Hegel plantou no pátio da universidade de Tübingen, em 1790, uma árvore,
a “árvore da liberdade”, em virtude da Revolução, que ocorreu em l789. Esse
movimento sociopolítico era, para esse autor, o apogeu do movimento da razão
como fundamento último para as ações humanas, do projeto da modernidade,
que já iniciara no século XV.
A França desse período exala uma nova ordem para a política. Uma ordem que,
como podemos lembrar em nossas aulas de História do Ensino Médio, rompe a
política dos laços da monarquia. Essa nova ordem conta com a emancipação do
indivíduo: este tem valor, é detentor do poder de autodeterminar-se, já que se dá
conta de que a razão deve organizar a vida política.
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Pensamento Filosófico Moderno
Segundo Hegel, quais são as características que o governo de tal Estado deve possuir?
1 Dessa determinação do indivíduo, cuida o direito abstrato na teoria do direito hegeliana. Trata-se do conteúdo
mais geral que caracteriza o indivíduo no Estado; portanto, é aquele conteúdo que possibilitou o contrato social
entre os indivíduos.
93
Capítulo 4
Agora, acompanhemos mais uma vez Rosenfield (2002) para entender cada uma
dessas figuras − esferas − da ética na Modernidade, segundo Hegel.
2 Aufheben é o termo alemão citado por Hegel para expressar essa atividade. Trata-se da negação do momento
anterior, porém, de uma negação que traz do momento anterior o que este tem de racional.
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Pensamento Filosófico Moderno
A dialética hegeliana
95
Capítulo 4
Todavia, essa mediação não é realizada por todos os indivíduos que fazem parte do
Estado, mas pelos processos e pelas instituições representativos desse todo − ou
seja, nosso autor defende a representatividade política. Ainda, em outras palavras,
nem todos os indivíduos desse Estado executam diretamente o poder político,
apesar de indiretamente o fazerem por ser expressão do Espírito Absoluto.
Ocorre que Hegel não entende que o todo – toda sociedade − deva submeter-se
a resolver os problemas no que diz respeito ao indivíduo, portanto, não admite
que se deve representar os interesses dos indivíduos, mas os interesses que
estes possuem enquanto componentes de uma corporação ou da família, de
instituições. Para compreender como as corporações representam a sociedade
no exercício do poder político, acompanhe o seguinte trecho dos comentários de
Rosenfield a essa questão na obra hegeliana:
96
Pensamento Filosófico Moderno
Hegel (1998) considera que o poder deve ser dividido em poder legislativo,
governamental e monárquico.
Hegel (2000) defende que o poder legislativo deve ser constituído por uma câmera
de deputados, divididos em Câmera baixa e Câmera baixa: o Parlamento. A
primeira representa a nobreza, grande proprietária de terras (SC 203, 39); a segunda
representa a burguesia, profissionais liberais e as corporações dos artesãos.
Já a função do monarca não é só ajudar na aplicação das leis, mas também decidir
as questões polêmicas e manter a coesão entre os indivíduos no Estado. Nesse
sistema político, o monarca exerce o poder não como um indivíduo, mas como
encarnação do Espírito Absoluto. Essa condição dá ao monarca a condição de ele
pôr os “pingos nos is” – dar a última palavra − em qualquer situação.
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Capítulo 4
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Pensamento Filosófico Moderno
3 Tanto na moralidade (imperativo categórico) quanto no Estado propostos por Kant (república kantiana), os
princípios que devem reger a ação são mais importantes do que o modo como deve-se considerar os cidadãos
na história para a solução dos conflitos. Em Hegel, princípios universais de ação e condição histórica estão
intimamente ligados.
99
Capítulo 4
Seção 3
O papel da Filosofia e o fim da história
Não há nenhuma possibilidade de a filosofia ter papel mais abrangente no sentido
de constatação da realidade do que o proposto na teoria hegeliana.
Mais do que realizar um retrato do que ocorre no período histórico em que vive,
o filósofo realiza esse retrato dando a ele uma dimensão que vai além dos fatos
históricos relevantes de sua época, embora os pressuponha 4, pois confere a
esse período a sua expressão em conceitos.
4 A filosofia, em sua atividade, conta com a historiografia embora não restrinja-se a esta.
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Pensamento Filosófico Moderno
Assim, o filósofo, justamente por ser um pensador, embora seja finito − trata-se
de um indivíduo porque pertence sempre a uma condição histórica − alcança o
infinito porque é expressão do mesmo e consegue, a partir de sua finitude, dar-se
conta de que faz parte de um universal, ao qual, porém, só tem acesso pelo modo
como essa universalidade apresenta-se em sua época. Afinal, o indivíduo nunca
pode deixar sua condição histórica.
Podemos fazer uma analogia aqui do filósofo com o médico da medicina curativa
(não da preventiva, portanto). Como o médico, o trabalho do filósofo depende de
uma situação que já está posta para seu trabalho começar. A partir dos sintomas
do paciente, o médico, atrelado ao seu conhecimento da medicina, realiza o
diagnóstico do mal que aflige aquele. O filósofo, também, a partir da situação
histórica em que vive atrelada à sua capacidade racional, consegue expressar, em
conceitos gerais, a racionalidade de sua época.
101
Capítulo 4
Entretanto, claro, temos também uma grande diferença nessa analogia: enquanto
o médico cuida de doenças, de algo ruim, para negá-las (livrar o paciente das
mesmas), o filósofo cuida da realização do Espírito Absoluto, portanto, da razão,
em seu período histórico. E mais, o filósofo ajuda a realizar, na maior medida
possível, aquilo que constata, já que expressa, em conceitos, o racional presente
na realidade histórica a que ele pertence. A Filosofia contribui, assim, para a
autorrealização do Espírito Absoluto, para a tomada de consciência do Espírito
Absoluto do seu em si.
102
Pensamento Filosófico Moderno
Outra coisa que nos evidencia que a filosofia hegeliana não considera a
modernidade como fim da história, diz respeito ao papel que ela considera ser
própria da atividade filosófica: a filosofia, recordando, chega ao final de um
período histórico para apresentar em conceitos o que é característico deste. E
a filosofia chegou à modernidade, ela, a filosofia hegeliana, é a representação disso.
103
Capítulo 4
Contudo, a Revolução Francesa deixou marcas que não poderão ser mais apagadas,
pois, se antes dela os privilégios concedidos aos governantes absolutistas eram tidos
como naturais, depois, eles passaram a ser tidos como artificiais, isto é, estipulados à
força por esses governantes. As transformações revolucionárias vieram para ficar.
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Considerações Finais
Esperamos ter deixado clara essa teoria do conhecimento a ponto de você poder
justificar que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas o
modo como elas podem ser percebidas por nós.
105
Estudamos aqui porque e como Hegel buscou demonstrar a história da
humanidade como racional. Estudamos, então, a sua filosofia da história. Assim,
demonstrou-se porque, segundo esse autor, os demais autores estudados aqui
contribuíram para a realização do Espírito Absoluto enquanto contribuíram para
a justificativa do Estado moderno, mas não se deram conta de que há o Espírito
Absoluto e que este autorrealiza-se em tal Estado porque só nessa condição
histórica toma consciência de si.
Bobbio, Noberto. (1987). Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da
política. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Trad., int. e notas
de V. Soromenho Marques e J.C.S. Duarte. Lisboa: Colibri, 2003 (em alternativa: O
Federalista. Trad. De M L. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993).
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia dello spirito. 2 voll. Trad. it.
di Enrico De Negri. Firenze: La Nuova Italia, 1979. (Trad. port.: Fenomenologia do
Espírito. Partes I e II. Trad. port. de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992).
_______. A paz perpétua: um projeto filosófico. 2008 Tradutor: Artur Morão. Textos
Clássicos de Filosofia. Editora: Universidade da Beira Interior. Covilhã. Portugal.
107
_______. A metafísica dos costumes. Bauru (SP): Edipro, 2003 (= MC). (Seção da
Doutrina do Direito dedicada ao Direito público (§§ 43-62) (em KANT 2003).
ROSENFIELD, Denis L. Hegel. Passo a Passo. Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 2002.
108
Sobre a Professora Conteudista
Carmelita Schulze
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