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Universidade Sul de Santa Catarina

Pensamento
Filosófico
Moderno

UnisulVirtual
Palhoça, 2016
Créditos

Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul


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Carmelita Schulze

Pensamento
Filosófico
Moderno

Livro didático

2 ª edição

Designer instrucional
Carmelita Schulze

UnisulVirtual
Palhoça, 2016
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2016 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Livro Didático

Professora conteudista
Carmelita Schulze

Designer instrucional
Isabel Zoldan da Veiga Rambo (1ª edição)
Carmelita Schulze (2ª edição)

Projeto gráfico e capa


Equipe UnisulVirtual

Diagramador(a)
Frederico Trilha

Revisor
Jaqueline Tartari

ISBN
978-85-506-0041-3

e-ISBN
978-85-506-0027-7

S41
Schulze, Carmelita
Pensamento filosófico moderno : livro didático / Carmelita
Schulze ; design instrucional [Isabel Zoldan da Veiga Rambo],
Carmelita Schulze. – 2. ed. – Palhoça : UnisulVirtual, 2016.
109 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-506-0041-3
e-ISBN 978-85-506-0027-7

1. Filosofia. I. Rambo, Isabel Zoldan da Veiga. II. Título.


CDD (21. ed.) 100

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Introdução  | 7

Capítulo 1
Os constitucionalismos de Montesquieu e de
Madison  | 9

Capítulo 2
Democracia rousseauniana: a vontade geral como
fundamento para a felicidade do indivíduo | 33

Capítulo 3
Conhecimento, política e ética na teoria kantiana | 61

Capítulo 4
Hegel: a tentativa de conciliar racionalmente o
indivíduo à sua época histórica | 83

Considerações Finais | 105

Referências | 107

Sobre a Professora Conteudista | 109


Introdução

Prezado(a) Aluno(a),

Esta Unidade de Aprendizagem trata de importantes teorias filosóficas que


surgiram entre os séculos XVIII e XIX.

Pelo período histórico referido, você já pôde compreender que tratar-se-á aqui
das questões do surgimento do Estado, da soberania, da questão da igualdade
entre os homens, da liberdade do indivíduo, da importância da relação do
indivíduo com o Estado. Pois, inclusive, no final do século XVIII, ocorreu a
Revolução Francesa, um marco na história da humanidade no que diz respeito à
questão da política e que, portanto, colocou em evidência todas essas questões.
E como a Filosofia é produto da existência humana, a Filosofia dessa época não
pôde ficar omissa em relação às questões que tomaram a pauta nessa revolução,
quer para possibilitá-las, analisá-las ou criticá-las.

A Revolução Francesa tem seus fundamentos ainda no século XV, quando a razão
passa a ser o fundamento último para justificar quais devem ser as ações humanas
nos campos da política, da ética e do conhecimento. E as teorias filosóficas
abordadas neste livro também são uma continuação dessa posição filosófica adotada
ainda no século XV. Isto é, as teorias de Kant, de Montesquieu, dos Federalistas,
de Rousseau e Hegel, as quais são abordadas neste livro, são uma continuação do
projeto da modernidade, a realização do indivíduo enquanto ser racional.

Conforme veremos aqui, embora tais teorias concordem sobre a razão ser
o critério último de justificativa para, por exemplo, como deve ser a vida em
sociedade, a ética e o conhecimento divergem sobre como se realiza a razão,
sobre a maneira pela qual o indivíduo realiza-se enquanto ser racional.

Montesquieu e os Federalistas apostam em instituições e, consequentemente, em


uma Constituição, pressupondo, assim, um Estado de direito, para assegurar o
uso da razão na sociedade. Entendem, portanto, que por meio da separação e do
balanceamento entre os poderes nas instituições, os interesses individuais podem ser
preservados na sociedade sem, no entanto, permitir que interesses egoístas, próprios
da natureza humana, segundo esses autores, impeçam a sociedade de realizar
um projeto coletivo na seara da solidariedade social, de realizar uma existência
racional em sociedade. Estudaremos, então, as justificativas de Montesquieu e dos
Federalistas para todas essas ideias, bem como apresentaremos, em linhas gerais,
as tênues diferenças entre essas duas correntes filosóficas.
Já Rousseau, entende que a natureza humana, em essência, é justa e que a
razão é capaz de tornar essa natureza efetiva, por meio da soberania popular,
mais precisamente, do que ele chama de expressão da vontade geral. Esse autor,
como Montesquieu, também defende a Constituição e o Estado, porém, não
compreende que instituições possam contribuir muito para a expressão do que
chama de natureza humana. Logo, estudaremos o que Rousseau compreende
por natureza humana e como ela pode ser expressa, o que, respectivamente,
compreende o estudo da proposta política e da pedagogia propostas por esse
autor. Estudaremos, portanto, também o que é a democracia rousseauniana −
com isso, o que significa o termo “vontade geral”, em sua teoria − e qual é a sua
proposta para a educação.

Já Kant, centra-se mais no indivíduo, diferentemente desses outros autores. Este


entende que o indivíduo, enquanto ser racional, é o cerne para responder todas
as questões relevantes. Entende, por exemplo, que o conhecimento, a ética e
a vida em sociedade devem pautar-se sobre a razão e que essa só o indivíduo,
enquanto ser racional, é capaz de realizar. Mesmo sua teoria do direito, por
meio do Estado que propõe, conta com a compreensão do indivíduo do que é
a razão. Esse Estado deve ter, de acordo com Kant, um princípio ético que é de
conhecimento do indivíduo em virtude da racionalidade que ele mesmo possui.
Estudaremos, então, esses princípios, os aspectos gerais do Estado kantiano,
bem como, mais detalhadamente, a teoria do conhecimento proposta por Kant.

Por último, trataremos da teoria hegeliana, a qual compreende a razão como uma
realização na história. Se as teorias anteriores pressupõem a razão como o cerne
de seus sistemas, veremos por que podemos dizer que a teoria de Hegel é o auge
desse movimento. Ocorre que a teoria hegeliana possui uma base metafísica que
entende a história universal como um movimento da razão para sua consciência
de si mesma. Um pouco de paciência com os termos técnicos dessa teoria
possibilitam verificar a sua grandeza.

Mesmo que tenhamos nos esforçado muito para fazer este livro didático abranger
aspectos gerais das teorias aqui mencionadas, isso não substitui a riqueza dos
textos filosóficos dos autores mencionados. É sempre muito importante, para
os estudos da Filosofia, a leitura dos textos nos quais os autores dessas teorias
expressaram-nas.

Um bom estudo!
Carmelita Schulze

8
Capítulo 1

Os constitucionalismos de
Montesquieu e de Madison

Introdução
Este capítulo apresenta o constitucionalismo moderno na versão de duas
importantes correntes filosóficas sobre esse assunto: Montesquieu e os
Federalistas, destes, mais especificamente o de James Madison.

Essa versão é importante, conforme nos aponta Pinzani (2009, p. 99), por ter
influenciado quase todas as constituições modernas e contemporâneas. Para
demonstrar o que é esse constitucionalismo, apresentar-se-á aqui por que o
exercício do poder deve ser realizado por meio de instituições para possibilitar a
liberdade, bem como quais devem ser essas na visão desses autores.

As instituições propostas por Montesquieu dependem da divisão do poder defendida


por ele. Assim, será foco deste capítulo descrever essa divisão e apresentar os
pressupostos filosóficos que a justificam. Você acompanhará, então, que esse autor
demonstra ser o espírito das leis presente em uma república aquele compatível
com a realização da liberdade. As suas justificativas para isso demonstrarão que o
constitucionalismo proposto é típico de uma república, a proposta por ele, em que,
portanto, o exercício do poder é dividido em três poderes. Nesse sentido, você terá
claro qual espírito dá vida às leis de uma república a la Montesquieu.

Mais para o final, acompanharemos outra proposta de constitucionalismo, ou


seja, a dos Federalistas, mais detalhadamente, a proposta de Madison, um dos
mais importantes constitucionalistas norte-americanos. Essa outra proposta de
constitucionalismo possui fortes influências de Montesquieu, mas, com certeza,
não é a mesma, já que possui em seu bojo a defesa dos direitos individuais como
pressuposto base de qualquer Estado.

Esperamos que ao final deste capítulo você compreenda muitos dos pressupostos
filosóficos presentes no constitucionalismo como movimento político.

9
Capítulo 1

Seção 1
A defesa da república
Como nos apresenta Noberto Bobbio (1987, p. 75), “não há teoria política que não
parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de ‘poder’ e
de uma análise do ‘fenômeno do poder’.”

Assim, cabe-nos compreender o que é poder para cada uma das teorias
que estudaremos: a de Montesquieu e a dos Federalistas. Por uma questão
metodológica e também conceitual 1, trataremos aqui primeiro da de Montesquieu.

Segundo essa teoria, “Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a
liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado
a fazer o que não se tem o direito de querer” (MONTESQUIEU, 1997, p. 166). Assim,
para se exercer a liberdade, o poder deve estar ligado às leis ditadas pelo Estado.
Mas será que todo o Estado permite o exercício da liberdade, será que todas as leis
determinam ações que são conforme um querer que está de acordo com a liberdade?

A prova de que a liberdade só pode ser exercida de acordo com as leis de um


Estado republicano consiste na temática da principal obra de Montesquieu, O
Espírito das Leis, publicado em 1747, e que levou cerca de vinte anos para ser
feito. Nessa obra, não há a busca por comparar diferentes ordenamentos jurídicos,
mas em verificar qual a essência das leis nos diferentes tipos de Estado, qual o
espírito que as move em cada um deles, para determinar em qual a liberdade se
faz presente. Verifica-se aí que o espírito das leis modifica-se de acordo com o
tipo de Estado em que se encontra. E esse autor concebe que existem três tipos
de Estado: a monarquia, a república e o despotismo, e conclui que o tipo que
possibilita a liberdade é o Estado republicano, conforme veremos aqui.

Os tipos de Estado dependem, portanto, do tipo de governo, isto é, do modo


como o poder é exercido em cada um deles. Montesquieu (1997, p. 31) interessa-
se menos em relação ao que é cada um desses governos e mais sobre como
cada um deles se move, isto é, interessa-se menos sobre quem exerce o governo
e mais em como o poder é exercido por ele. Nesse sentido, constata que o
espírito da monarquia é a honra e que o do despotismo é o medo, mas que o
espírito da república é a virtude; no entanto, não há virtude moral, mas cívica –
aquela que é expressão do amor à pátria.

O espírito que move um tipo de governo pode ser melhor entendido por meio do
exemplo do espírito da honra na monarquia. Se é capaz de ordenar e obedecer –
de se exercer o poder – na monarquia porque nesse tipo de governo quem ordena
se considera detentor de honra suficiente para ordenar e quem obedece reconhece
essa honra, de modo que sente necessidade de obedecer a tais ordens.

1 Veremos aqui que o Constitucionalismo de Montesquieu influenciou muito o proposto pelos Federalistas, principalmente,
Madison. Logo, será mais fácil compreender esse último se estudarmos primeiro a sua principal influência.

10
Pensamento Filosófico Moderno

Porém, Montesquieu é ciente de que o poder é pernicioso quando incorretamente


disposto. Há, portanto, a necessidade de que o poder seja exercido corretamente,
para que a liberdade se faça presente:

Para formar um governo moderado, devem-se combinar os


poderes, regulá-los, temperá-los, fazê-los agir, dar, por assim dizer,
maior peso a um deles, para colocá-lo em condições de resistir ao
outro; é uma obra prima da legislação que o acaso cria raramente
e que raramente se deixa à prudência. Um governo despótico, pelo
contrário, salta, por assim dizer aos olhos; é uniforme por toda a
parte: como só precisamos de paixões para estabelecê-lo, todos
são bons para isso. (MONTESQUIEU, 1997, p. 74)

O exercício correto do poder conta, portanto, com a fragmentação dele, fato que
não ocorre num governo despótico, daí a uniformidade atrelada ao exercício do
poder nessa forma de governo, conforme nos mostra essa última citação.

Montesquieu (1997, p. 200) não apenas não concorda com um governo despótico,
como o apresenta como a pior forma de governo, pois há, nessa forma de governo,
o império das paixões, mais precisamente o império do medo. Conforme também
nos mostra a última citação, qualquer um pode se tornar déspota, afinal possui em
si as paixões, a mola propulsora desse tipo de Estado: exercer o poder acima de
tudo. Quando só as paixões movem o poder, esse não possui limites, e o homem
que o possui é tentado a abusar dele (MONTESQUIEU, 1997, p. 74).

A forma moderada do exercício do poder é quem garante a liberdade


política: “a liberdade política só se encontra nos governos moderados. Para que
não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder
limite o poder” (MONTESQUIEU, 1997, p. 166).

Assim, conforme já apresentamos no início dessa seção de estudos, se a liberdade


em um Estado, isto é, numa sociedade em que existem leis jurídicas, consiste em
poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que se tem o
direito de não querer, o conteúdo da liberdade não é definido pelo Estado, mas
esse apenas deve legislar de modo a estar de acordo com a liberdade. Funciona
como se o Estado fosse aquilo que é possível de ser usado para realizar a
liberdade, embora ela, em essência, anteceda ao conceito de Estado.

Cabe-nos, então, verificar como o Estado realiza a liberdade. Em outras palavras,


cabe-nos verificar o que é o exercício moderado do poder. Consequentemente,
isso trará à tona o que é a essência da liberdade. Esse exercício consiste no uso
do poder sem se abusar dele.

11
Capítulo 1

Já sabemos que o não abusar do poder conta com o freio do poder pelo próprio
poder, mas o que significa isso? Com base no que foi estudado até aqui, você pode
ter respondido: fragmentando o poder de modo que cada fragmento limite o outro, a
ponto do despotismo não ser realizado por nenhum desses. Isso é verdade, mas essa
fragmentação e o exercício dessa lógica de poder não são nada simples. Logo, cabe-
nos esclarecer cada um desses itens.

Comecemos, então, a tarefa de explicitar como ocorre o exercício do poder


moderado na teoria de Montesquieu, o que conta com a compreensão do que
este entende por origem do poder 2. Trata-se de uma questão de princípio:
para exercer bem uma atividade é necessário conhecê-la e para conhecê-la é
necessário ter captado sua essência, a qual se faz presente desde a origem da
atividade. O poder passou a existir, segundo esse autor, no momento em que o
homem passou a ter “motivos para atacar e defender-se mutuamente”, ou seja,
quando se constituiu o Estado (MONTESQUIEU, 1997, p. 40).

Essa origem do poder atrela-o à condição de existir em uma sociedade que se organiza
para exercê-lo, não ao indivíduo que pertence a essa sociedade. Isto é, o poder
não está atrelado ao indivíduo, mas à condição de o indivíduo agir de acordo com a
configuração do Estado ao qual pertence, e poder esperar deste a imposição das suas
leis. Isso faz o Estado defendido por Montesquieu tratar-se de uma república.

No entanto, conforme poderemos verificar, o conteúdo da liberdade não é,


necessariamente, o mesmo entre os Estados em que o poder é exercido
corretamente. Cada Estado possui sua própria identidade, por isso, esse autor
defende a existência de uma virtude cívica e que define cada república como única.

Cabe-nos entender como a função da política é exercida nessa república. Já


vimos que o poder aí não deve ser exercido pelo indivíduo em virtude de sua
vontade, mas de acordo com o que as leis do Estado permitem e determinam
que ele seja realizado. O poder é atrelado a essa condição em virtude de que
só o Estado pode garantir a observância a essas leis, pode garantir aos seus
integrantes que esses terão preservado seu direito de agir de acordo com elas.
Fora do Estado não há lei porque fora dele não há garantias de que a lei seja
preservada: “a liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito
que cada um tem sobre sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é
preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão”
(MONTESQUIEU, 1997, p. 168). O Estado possui, portanto, uma força que o
indivíduo por si só não possui em relação ao cumprimento da lei.

Assim, diferentemente dos liberais, o indivíduo não possui direitos frente ao


Estado na república, pois nela é o Estado que confere o que são os direitos e
só ele pode garanti-los. Esse exercício da política por parte dos cidadãos conta

2 A compreensão montesquiana da origem do poder contribui para classificar sua teoria política em republicana
e não em democrática que se baseia na vontade geral. É importante destacar aqui que nem todos os autores
concordam com a origem do poder proposta por Montesquieu, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau.

12
Pensamento Filosófico Moderno

com algumas características de ação, mas, em nenhum momento, Montesquieu


(1997, p. 252) afirma quais são os conteúdos, as leis, que devem fazer parte de
uma república: “Há casos em que o poder deve agir em toda a sua extensão; há
outros em que deve agir por seus limites. O sublime da administração é saber
exatamente qual é a parte do poder, grande ou pequena, que se deve empregar
nas diferentes circunstâncias.”

O que confere a saúde do Estado é o exercício saudável do poder, o qual conta


não só com a fragmentação do poder e que esses fragmentos sejam exercidos
de modo a cada um deles limitar os demais, mas também com o exercício do
poder de acordo com as virtudes. Na república, portanto, as leis são constitutivas
da forma de viver dos seus cidadãos. Precisam ter uma vida virtuosa, enquanto
sociedade para o Estado ter saúde.

Quando o exercício do poder por parte dos cidadãos é realizado de acordo com a
virtude? Quando há o exercício do poder numa república, segundo Montesquieu?

Quando o amor é maior pelo interesse público que pelo próprio interesse.
O amor pelo interesse público se traduz pelo respeito à lei e pelo amor à pátria
(MONTESQUIEU, 1997, p. 46). Nas repúblicas democráticas, por exemplo, como o
poder é confiado a todos os cidadãos, esses têm que apresentar tal virtude para não
corromper tal forma de governo. O poder, por ser uma paixão, deve ser realizados de
acordo com a virtude em nível social, para se ter um exercício saudável desse poder.

A justificativa para o interesse público ter que se sobressair ao privado, de acordo


com essa corrente filosófica, consiste na saída do homem do estado de natureza,
isto é, de sua compreensão de que a vida em sociedade de modo organizado
é melhor que essa outra condição. Isto é, ao perceber-se um ser social que
institui um pacto social com os demais indivíduos, de modo a estabelecer uma
ordem social entre eles, que é sustentada por leis, o indivíduo sobrepõe os
interesses sociais sobre o individual, pois entende que essa forma de vida é
melhor que o estado de natureza, em que tudo é de todos e, justamente por isso,
ninguém pode contar com a garantia de possuir algo sem que o esteja usando
no momento, nem ser respeitado em alguma outra medida. Conforme afirma
Krause (2000, p. 240 Apud. ABREU, 2008, p. 113), na teoria de Montesquieu,
liberdade, moderação e segurança estão estreitamente ligados.

Porém, a segurança obtida com o Estado de Montesquieu não consiste na


defesa dos direitos negativos 3, como temos no liberalismo, mas na defesa de
direitos que os cidadãos estipulam para si, porque prezam pelo Estado e não
concebem direitos para si em relação ao Estado. (HABERMAS, 1995)

3 Direitos negativos: direitos que algumas teorias políticas defendem pertencer ao indivíduo, antes mesmo
da fundação de qualquer Estado. Esse surge, justamente, para resguardar tais direitos, de acordo com essa
concepção. Para saber mais sobre isso, você pode consultar: LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Direito Civil.

13
Capítulo 1

Montesquieu é um apaixonado defensor da vida pública e da vida política. Mas


essas não são própria da essência do ser humano, é preciso decidir estar na
vida pública e na vida política. Não é só necessário que os homens participem
do contrato social, mas que tomem para si o orgulho dessa participação e,
consequentemente, exerçam a virtude política. Essa que permite o exercício
adequado do poder, pois o fragmenta. Do contrário, o poder fica concentrado
na mão de um único indivíduo, o rei. O qual, justamente por concentrar o poder,
deixar-se-á dominar por ele, pelas paixões associadas ao poder, conforme já
explicado aqui. Só fragmentando o poder para dominá-lo.

No entanto, mesmo com a fragmentação do poder pode haver o seu exercício de modo
que o interesse particular sobreponha-se ao da sociedade. Esse fato trata da corrupção,
pois na posição de exercício do poder, o cidadão pode usá-lo a seu favor, em detrimento
do interesse da sociedade. Nesse momento, falta-lhe a virtude política e ele corrompe-se.

Como bem pontua Teles (2010, p. 12), a corrupção diagnosticada por


Montesquieu vai para além da corrupção que nós, em nosso dia a dia,
entendemos em nossa política, pois a corrupção diagnosticada por esse
pensador consiste na posição política do corrompido, na corrupção do exercício
do poder que lhes foi concedido. Enquanto que a nossa restringe-se ao suborno
financeiro de algum cidadão que exerce o poder em favor de algum interesse
particular. Ou, no máximo, à troca de favores entre os envolvidos na corrupção.

Acompanhemos as palavras de Teles sobre essa diferenciação da corrupção:

[...] a corrupção a que imediatamente nos remetemos atualmente


ao pensar em política é de natureza diferente daquela pensada
por Maquiavel e Montesquieu. Hoje, pensamos a corrupção na
política apenas em termos financeiros e/ou interesses, como, por
exemplo, “troca de favores políticos”, enquanto que para nossos
autores esse termo estava bem mais carregado de significado.
A corrupção na política, conforme caracterizada por ambos,
abarcava valores do cidadão e da própria política. A corrupção
se dava na forma de governo e no “agente político”. Portanto, a
implicação da corrupção para o Estado era muito mais ampla e
significativa, visto que abalava tanto o Estado enquanto estrutura
social quanto o ser político. A degradação de valores políticos
e humanos era um mal terrível que precisava ser evitado. Na
sociedade contemporânea, essa dimensão do ser humano
degradado e dos valores políticos jogados na lama se tornou algo
natural e deixou de ser importante ou visada. Tudo com o que
nos preocupamos quando pensamos em corrupção na política é
com nosso dinheiro que algum político corrupto está “passando
a mão”. Os bens públicos tomaram para si toda a dimensão da
corrupção. (TELES, 2010, p. 12).

14
Pensamento Filosófico Moderno

Seguindo esse viés, tal mudança de compreensão da corrupção é um diagnóstico


do empobrecimento da política em nosso tempo. Afinal, atualmente, só nos
sentimos traídos pelos políticos se esses saqueiam nosso dinheiro, não em virtude
desses não preservarem o interesse da sociedade sobre os interesses individuais.

Segundo Ribeiro (2001, p. 43), isso é degradante:

Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão


simplifica demais as coisas. É sinal de que não se entende o que
é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar
dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de
um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação
hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício
enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”).

Talvez nos importemos apenas com os recursos financeiros na política porque


pretendemos que esses sejam usados para ofertar melhores condições para a
população realizar interesses particulares. Desse modo, falta-nos, atualmente, a
necessidade de construirmos, em nossa sociedade, um projeto comum, ou seja,
falta-nos o que nos possibilita que sejamos uma república.

Desse projeto comum, na teoria de Montesquieu, depende a liberdade, pois crê


que: “No estado de natureza, os homens nascem realmente na igualdade, mas
não poderiam nela permanecer. A sociedade faz com que a percam, e eles só
voltam a ser iguais graças às leis” (MONTESQUIEU, 1997, p. 123, grifo nosso).

O fato de Montesquieu afirmar que o homem perde a liberdade no estado de


natureza e que a recupera quando da estipulação de um Estado adequado,
distingue sua teoria das teorias de autores liberais. Estes defendem que existem
direitos universalmente válidos, os que o homem já possuía no estado de natureza.
Enquanto Montesquieu defende que não há essa universalidade e que cada Estado
deve possuir as leis que representam seu povo e que possibilitam a liberdade.

Com base nisso, podemos entender o porquê de Habermas (1995, p. 51) afirmar
que: “as leis presentes numa república não são aquelas que os indivíduos
possuem em relação ao Estado porque formaram o Estado para resguardá-las,
mas as leis que surgiram a partir do Estado.”

Portanto, de acordo com os republicanos, do simples fato de se viver em


sociedade, não se depreendem qualquer direito, apenas do pacto social formado
pelos indivíduos dessa sociedade pode provir leis que, por sua vez, organizam
essa sociedade. Como cada sociedade é composta de diferentes indivíduos, cada
uma desenvolverá um projeto para si, terá suas próprias leis. O bem comum

15
Capítulo 1

varia, então, de uma sociedade para a outra. Cada povo é um povo único -
constatação que Montesquieu deve ter tido em virtude de suas diversas viagens
pelo mundo, comparando diferentes costumes e modos de vida. Defende, então,
que cada povo deve formar suas próprias leis.

Mas, qualquer exercício de poder na república é capaz de obter leis de modo


a realizar a liberdade? Como já vimos neste texto, segundo Montesquieu, não.
Só aquele em que o projeto da sociedade como um todo, o interesse social se
sobrepõe sobre o interesse individual no exercício do poder político.

Mas, considerando o que já estudamos aqui, isso não significa que o projeto
republicano montesquiano se autodemonstre inviável? Afinal, apesar de contar
com a fragmentação do poder para o seu exercício correto, como impedir que
a corrupção atinja os fragmentos desse poder? Isto é, apesar de contar com a
distribuição do poder, não consegue impedir que quem o exerça assim o faça
apenas de acordo com os seus interesses particulares? Sim, a virtude pode faltar
aos cidadãos, o que coloca em cheque o projeto da república.

Diante disso, Montesquieu propõe outros mecanismos para tentar impedir que o
interesse privado sobreponha-se sobre o público: a separação dos poderes em
Judiciário, Legislativo e Executivo, bem como o que defende a função de cada
um deles, são as suas maiores ferramentas propostas para o exercício adequado
do poder.

Seção 2
A separação dos poderes e as instituições
A separação do poder político em executivo, judiciário e legislativo se faz em
virtude das paixões existirem no ser humano. Elas são as responsáveis pelo
indivíduo sobrepor seu interesse sobre o interesse social. Assim, para não deixá-
lo tão suscetível às paixões no exercício do poder, é conveniente dividi-lo nos três
poderes mencionados:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura,


o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe
liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o
mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado
do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria
arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder

16
Pensamento Filosófico Moderno

executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria


perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou
dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as
leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou
as querelas entre os particulares. (MONTESQUIEU, 1997, p. 168).

As instituições geradas por essa separação do poder político são capazes de


viabilizar a liberdade na sociedade republicana, segundo Montesquieu (1997, p.
40), pois a comunidade política, por meio dessas instituições, deve manifestar-se
e ter, assim, um papel de promotora da vida pública. Entende-se, portanto, que
a vida pública não vai surgir pura e simplesmente das ações dos indivíduos. É
necessário que haja uma identidade coletiva nas ações das pessoas que ocupam
esses poderes. Essa identidade é o que possibilita que se dê prioridade para o
interesse social.

Para refletir: os programas sociais de ação afirmativa de nossa política, nos últimos
quinze anos, não vão ao encontro do que seria um projeto comum, de interesse
público, de nossa sociedade?

Mas deixemos essa questão apenas para sua reflexão. Sigamos para mais uma
formulação da justificativa para a necessidade de dividir o poder em três para
ação da comunidade política se tornar efetiva e correta. Essa justificativa é muito
simples: segundo Montesquieu, “para que não se possa abusar do poder é
preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU,
1997, p. 156).

De acordo com essa teoria, esses poderes freiam-se entre si porque se


autorregulam. Como isso ocorre? Para responder a essa questão, primeiro
vejamos o que cabe especificamente a cada um desses poderes realizar e, em
seguida, as relações entre eles.

Funções dos três poderes:

•• Ao executivo cabe executar, tornar real, as leis advindas do legislativo.


•• Ao legislativo cabe a formação das leis. Esse poder, segundo
Montesquieu (1997, p. 125), deve ser formado por representantes do
povo e da aristocracia (as duas principais facções daquele período),
para que não haja prevalência de um interesse particular de uma
parte da sociedade.
•• Ao judiciário cabe investigar as ações para verificar se há o
cumprimento da lei e, se não há, punir seus infratores.

17
Capítulo 1

Relações entre esses três poderes:

•• O judiciário deve punir o executivo quando esse recusar-se a


executar as leis vindas do legislativo, ou se legislar. Pode ainda
punir o próprio legislativo quando esse não legislar de acordo com o
interesse público.
•• Já o legislativo também investiga o executivo, mas esse último pode
não se empenhar ao máximo em executar as leis se não acredita
que elas são corretas, o que, por sua vez, obriga o legislativo a
considerar no seu trabalho quais as pretensões do executivo.
•• No judiciário, nenhum poder o freia, é nulo na questão de ser freado
por outro poder. (MONTESQUIEU, 1997, p. 172).

Quem deve compor cada um desses poderes, ou órgãos do poder (considerando


que todos eles são o poder político)? Por exemplo, será que o Legislativo deve
ser todo o povo, considerando a unidade de pensamento existente entre a
população para imperar no Estado o interesse social?
Não, diferentemente de Rousseau, esse autor não defende que o interesse
social seja a unanimidade de interesse do povo em relação a um conteúdo.
Essa posição é explicada por Abreu (2008, p. 127) do seguinte modo:

Acreditamos, com maior clareza, que o que coloca Montesquieu


e Rousseau em terrenos opostos é o fato de este último postular
uma unidade de interesse para o estabelecimento do interesse
público no interior da república, enquanto para o primeiro a
pluralidade de interesses particulares coincide com o próprio
interesse público.

É interesse recordar aqui que a vontade do povo, nos moldes de Rousseau 4, nem
sempre leva a bons resultados. Pense, por exemplo, que a vontade do povo pode
levá-lo a votar pelo direito de não mais votar. Afinal, logicamente, considerando o
sistema legislativo proposto por Rousseau, apenas enquanto instituição, pode-se
optar por não mais votar, basta esse conteúdo ser obtido em assembleia geral.
A saída de Montesquieu frente a esse problema é preservar as diferenças de
interesses particulares existentes numa sociedade. Afinal, essa pluralidade permite
que os indivíduos de cada grupo de interesses possam mudar de interesses, fazer
parte de outro grupo de interesse, além de permitir que cada um deles se realize.
Nesse sentido, afirma Abreu (2008, p. 124): “O papel das leis não é exprimir o
interesse geral, mas sim delimitar a liberdade, garantindo a liberdade de todos.”

4 Alguns comentadores de Rousseau defendem que isso não é possível na teoria desse autor. Já que esse
identifica a vontade geral com o que é próprio da natureza humana e é essência dessa última a capacidade de
autodeterminar-se. Mas, considerando que nem todos os homens podem ser educados pela pedagogia que
esse autor propõe, é, então, difícil saber impedir consensos em assembleia geral que vão contra essa natureza,
consensos como o de não mais votar.

18
Pensamento Filosófico Moderno

Há a necessidade da pulverização dos interesses entre o povo justamente


para que nenhum deles seja unânime e impeça a alternância para outro. Essa
pulverização funciona também como freio um do outro: como todos possuem
o mesmo peso, nenhum pode impedir a existência dos demais e nem ter sua
existência impedida. Portanto, interesse social, definitivamente, não significa
unidade de interesse na obra de Montesquieu. Essa pulverização do poder se
mostra no poder legislativo proposto por esse autor. Não deve ser apenas o povo
quem deve escolher suas leis, já que podem, por consenso, impedir a liberdade.
Por isso, defende um poder legislativo bicameral.

Assim, no poder legislativo montesquiano, o povo não usurpa o poder do


senado, esse último entendido como os nobres da Inglaterra do século XVIII,
já que escrevia para a realidade de seu país (MONTESQUIEU, 1997, p. 125).
Nem a nobreza sobrepõe-se ao povo. Assim, além do senado, há o que chama
por “câmera baixa”, essa formada por integrantes vindos do povo, como poder
legislativo. Com essas duas instituições legislando juntas não há vigência de um
interesse sobre outros na lei. Afinal, tais instituições representavam interesses tão
divergentes e variados que não iriam conseguir um consenso sobre qual deveria
ser o interesse que deveria predominar em detrimento de outros.

Temos, portanto, que é necessário que os integrantes dessas duas instituições se


equilibrem entre si para legislarem 5. E é assim, nessa teoria, que é possível legislar
adequadamente (MONTESQUIEU, 1997, p. 172). Responde-se com isso quem deve
compor o legislativo e o porquê dessa composição na teoria de Montesquieu.

E quanto ao executivo, como evitar que, mesmo com a separação dos poderes,
quem o ocupe deixe-se dominar pelas paixões? Quem deve ser o executivo? A
solução aqui, em Montesquieu, segundo Teles (2010, p. 49), é a alternação de
quem ocupa o executivo: “Montesquieu aponta mais um mecanismo para limitar e
direcionar o poder, a saber, o de não permitir a permanência longa de um detentor
no poder. É preciso mutabilidade no poder para que não se disponha de tempo
para corromper o governante.” Se eleito ou não pelo povo, o importante é que
o executivo seja alternado para que o poder que tem disponível não seja
corrompido pelas paixões 6.

A dúvida aqui estaria na quantidade de tempo máxima que um governo pode


permanecer no poder até começar a ser corrompido pelas paixões no seu
exercício. De qualquer forma, é importante lembrar que cabe ao judiciário punir o
governo que não cumpre com sua função adequadamente.

5 Em nosso país, esses diferentes grupos de interesses poderiam ser os diferentes partidos políticos. O
problema é que estes, muitas vezes, corrompem seus interesses partidários em troca da obtenção de poder
para satisfazer seus interesses particulares.

6 Nesse sentido, a reeleição em nosso país não seria um grande mal? Afinal, ela possibilita que o governante do
executivo permaneça bastante tempo no poder e ainda use a chamada “máquina pública” para se reeleger.

19
Capítulo 1

E quanto a esse poder, o judiciário? Como esse deve ser disposto para as
paixões não imperarem em quem o compõe? A resposta a essa questão é bem
expressa na seguinte passagem da obra montesquiana:

Quanto mais o governo se aproxima da república, mais a forma de


julgar se torna fixa; e era um vício da república da Lacedemônia
que os éforos julgassem arbitrariamente, sem que houvesse leis
para dirigi-los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram como os
éforos: sentiram os inconvenientes disto e criaram leis precisas.
No governo republicano, é da natureza da constituição que os
juízes sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa
interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou
de sua vida. (MONTESQUIEU, 1997, p. 87).

Assim, temos que a aplicação da lei por parte do judiciário não pode ser arbitrária,
precisa seguir exatamente as leis provindas do legislativo, o que inclui seguir os
ritos do processo legal, não aplicar algumas leis e não outras.

Ao final da demonstração de como o poder defendido por Montesquieu deve ser


exercido nos três órgãos em que este autor o divide, percebe-se que o poder, para
esse autor, tem, fundamentalmente, uma dimensão de perigo constante, precisando de
mecanismos institucionais que o limitem a ponto de o dirigir para o bem público.

Nitidamente, o autor busca apresentar instituições para o exercício do poder,


não atrelá-lo ao indivíduo, que deve ter essa ou aquela característica, como em
Maquiavel, por exemplo.

Um exemplo dessa necessidade pelas instituições é o que concebe por poder


legislativo: senado (nobreza) e uma câmera baixa (povo), que devem se equilibrar
entre si, de modo a chegarem juntos às leis.

Essa necessidade pelas instituições, de um poder atrelado às instituições e não ao


indivíduo, está ancorada na sua concepção da origem do poder. Diferentemente de
Maquiavel, ele indica o surgimento do poder somente a partir do momento em que
o homem passou a ter “motivos para atacar e defender-se mutuamente”, ou seja,
quando constituiu o Estado. (MONTESQUIEU, 1997, p. 102)

Portanto, faz parte da natureza do poder que ele seja exercido pela sociedade
e não por indivíduos que pertencem a ela. Embora as instituições propostas por
Montesquieu ajam por meio dos indivíduos – por exemplo, o senado é formado de
indivíduos – a natureza delas as dispõe de modo tal que esses indivíduos, por meio
delas, obtenham conteúdo que atendam ao interesse social e não ao particular.

20
Pensamento Filosófico Moderno

Seção 3
A fragilidade da república e o comércio como
solução
Mesmo diante da separação do poder político em três poderes – os quais se
freiam entre si – e as instituições propostas para o exercício de cada um deles,
ainda há a constatação de que o interesse geral pode ser preterido em relação
ao interesse particular. Surgem, então, outras condições que também precisam
ser atendidas para ocorrer o exercício da liberdade no Estado. Nesse sentido,
há a necessidade do território da república não ser muito grande. Pois, segundo
Montesquieu (1997, p. 132):

É da natureza da república que ela só possua um pequeno território;


sem isto não pode subsistir. Numa república grande, existem
grandes fortunas e conseqüentemente pouca moderação nos
espíritos; existem depósitos muito grandes para colocar entre as
mãos de um cidadão; os interesses particularizam-se; um homem
sente, primeiro, que pode ser feliz, grande, glorioso, sem sua pátria;
e, logo, que pode ser o único grande sobre as ruínas de sua pátria.

Vigora em nosso autor a concepção de quanto maior o território de um Estado,


maior a possibilidade de várias fortunas aí se fazerem presentes. Isso pode gerar
conflito de interesse, haja vista que a fortuna, conforme nos mostra a última
citação, corrobora para que as paixões imperem no exercício do poder. Portanto,
quanto mais fortunas, maior a possibilidade de choque de interesses e sobressair-
se interesses particulares.

Além disso, o Executivo, em virtude das grandes fortunas existentes no Estado


que administra, pode agir para satisfazer interesses particulares. Afinal, esses
buscaram sua efetividade e, para isso, não hesitam em usar o poder para lhes
convir. Essas fortunas são, então, depósitos muito grandes para colocar na mão
de um cidadão, conforme nos apresenta a última citação. Esse cidadão poderá
ter força suficiente para manipular o governo.

Essa disputa de interesses particulares leva à ruína do Estado, pois cada


indivíduo, impulsionado pela fortuna, buscará a primazia de seu interesse, o
qual, por ser particular, está em detrimento dos demais, portanto, não há um
projeto comum para o Estado. Por isso, Monstesquieu afirma-nos, conforme já
apresentado na citação anterior, que: um homem sente, primeiro, que pode ser
feliz, grande, glorioso, sem sua pátria; e, logo, que pode ser o único grande sobre
as ruínas de sua pátria.” (MONTESQUIEU, 1997, p. 132).

21
Capítulo 1

Essa usurpação do poder do Estado feita pelo indivíduo é bem mais difícil de
ocorrer quando o território da república é pequeno 7, porque nesta: “[...] o
bem público é mais bem sentido, mais bem conhecido, mais próximo de cada
cidadão; os abusos são menores e, consequentemente, menos protegidos”.
(MONTESQUIEU, 1997, p. 132).

Parece-nos que a virtude cívica, indispensável para o exercício correto do poder,


aquela que agrega os cidadãos em torno de um projeto único para o Estado,
depende de esses possuírem relações estreitas entre si. Precisam se perceber
como responsáveis diretos das ações do Estado e, consequentemente, como
contemplados desse sistema. A relação com o Estado precisa ser bem pessoal,
mas não no sentido de terem seus interesses pessoais atendidos por ele, mas de
por meio dele formar e executar um projeto que atenda ao interesse público.

No entanto, depois de ter apresentados todas as variáveis que considera


como necessárias para uma república, Montesquie constata que uma delas, a
necessidade da república ser pequena, a torna frágil diante dos demais Estados.
Temos, então, nesse momento, o seguinte diagnóstico: “Se uma república
for pequena, ela será destruída por uma força estrangeira; se for grande, será
destruída por um vício interior 8”. (MONTESQUIEU, 1997, p. 141).

Desse modo, a teoria de Montesquieu teria chegado à conclusão de que o


exercício do poder não pode ser realizado de modo a possibilitar a liberdade?
Afinal, como já visto aqui, defende a república como o tipo de Estado capaz de
realizar a liberdade (MONTESQUIEU, 1997, p. 109). Teria, então, nosso autor
nadado, nadado e nadado para morrer na praia?

A resposta seria sim, se nosso autor não tivesse interpretado o comércio do modo
como interpretou:

O comércio é cura dos preconceitos destruidores; e é quase que


uma regra geral que em todo lugar em que existem costumes
suaves existe comércio e que em todo lugar em que existe
comércio existem costumes suaves.
Podemos dizer que as leis do comércio aperfeiçoam os costumes
pela mesma razão pela qual estas mesmas leis perdem os
costumes. O comércio corrompe os costumes puros: este era o
tema das queixas de Platão; dá polimento e abranda os costumes
bárbaros, como podermos observar todos os dias.

7 Essa questão da necessidade do território ser pequeno impede um Estado republicado nos moldes propostos
por Montesquie para o Brasil? Mais adiante, quando tratarmos da importância da questão do comércio para
esse autor, você verá que seria possível uma tal república mesmo com o tamanho de nosso país.

8 Esse vício diz respeito ao fato de as paixões imperarem nas ações dos cidadãos, quando há no Estado
muitas fortunas, conforme apresentado aqui anteriormente.

22
Pensamento Filosófico Moderno

O efeito natural do comércio é trazer a paz. Duas nações que


negociam juntas tornam-se reciprocamente dependentes: se
uma tem interesse em comprar, a outra tem interesse em vender;
e todas as uniões estão fundadas sobre necessidades mútuas.
(MONTESQUIEU, 1997, p. 344).

Aqui é importante lembrar que a obra Montesquieu é do século XVIII, época


em que o comércio se intensificou e se mostrava como o motor de muitas
economias, principalmente, em virtude do uso da ciência para a fabricação de
produtos e a intensificação do comércio marítimo.

Segundo Abreu (2008, p. 118), uma importante comentadora da obra desse


autor e cuja obra já foi usada aqui algumas vezes para sustentar interpretações,
a compreensão montesquiana do comércio o encara como algo que substitui a
necessidade de virtude cívica.

Acompanhemos, agora, as justificativas dadas por essa autora para entender por
que o comércio é capaz de substituir a virtude numa república.

A justificativa montesquiana para o comércio substituir a virtude numa república

A liberdade, característica das repúblicas comerciais, faz com que os cidadãos se


tornem mais preocupados em adquirir do que em conservar (MONTESQUIEU, 1997,
p. 347, negrito nosso), o que torna os indivíduos mais propensos em relacionar-
se com os demais, para fazer trocas e adquirir mais bens. O comércio não está
associado ao atendimento de necessidades, mas à ideia de aumento: “não são as
nações que não precisam de nada que perdem fazendo o comércio; são as que
precisam de tudo. Não são os povos autossuficientes, mas os que não possuem
nada em seu território que encontram vantagens em não fazer comércio com
ninguém” (MONTESQUIEU, 1997, p. 359). (ABREU, 2008, p. 118).

Montesquieu compreende a essência do comércio como aquilo que possibilita


a aquisição das coisas. Por exemplo, adquiro um carro para ir trabalhar, ele me
permite vender minha mão de obra para meu empregador, que, por sua vez, usa da
minha mão de obra para obter lucro e adquirir novos produtos, sejam para si mesmo
ou para a empresa, os fornecedores desses produtos usam do dinheiro dessas
vendas para obter novos produtos para si, e assim sucessivamente. O comércio
leva a uma cadeia de relações que se estabelece pela necessidade de as pessoas
adquirirem, e essa cadeia depende das pessoas se tolerarem para ela existir.

No comércio entre as nações é essa mesma tolerância que é necessária entre


elas para aquele acontecer.

23
Capítulo 1

Combinando essas observações sobre o comércio com a defesa de Montesquieu


de que na república o interesse geral deve prevalecer sobre os interesses
particulares, tem-se que o interesse geral não necessariamente está relacionado
com os interesses políticos ou propriamente do Estado. Interesses gerais podem ser
os do próprio “comércio”, entendido não a partir dos indivíduos nele envolvidos, mas
de um “espaço público”, em que as atividades comerciais seriam realizadas. Nesse
sentido, é possível dizer que preservar e estimular o comércio atende ao interesse
público, e não somente ao dos indivíduos que realizam suas atividades e lucram
com elas. Mas por quê?

Porque ele contribui para a moderação dos costumes, para a tolerância e, inclusive,
para a limitação da paixão dos governos, sem que seja necessária a exigência da
virtude republicana (HIRSCHMAN, 1978, p. 92). Ou seja, com o comércio, é mais
fácil a uma república sobreviver, por que com ele aquela não precisa contar com a
virtude dos cidadãos, além de ele contribuir para a interdependência das nações, o
que, por sua vez, contribui para a paz entre elas.

Fonte: Adaptado de Abreu (2008, p. 118).

Essa tese de Abreu, de que o comércio é capaz de substituir a virtude cívica na


teoria de Montesquieu, mostra-se viável quando essa mesma autora lembra-
nos de que o interesse público – o objetivo do Estado para Montesquieu –
não consiste em uma unidade de interesses, mas em um interesse geral que
possibilita o exercício das liberdades do cidadão (ABREU, 2008, p. 119). Daí sua
divergência com Rousseau, já que esse compreende o bem público como uma
vontade geral que é una, que não abriga a pluralidade de interesses em si. Afinal,
Montesquieu considera que, apesar dos interesses diversos entre os indivíduos,
esses podem concordar entre si sobre um projeto de vida em sociedade em que
o interesse social sobreponha-se ao interesse individual, mas que possibilite este
desde que o mesmo não impossibilite os interesses individuais dos demais.

Se por um lado o comércio possibilita um espaço público comum de ação para


os cidadãos, o que significa a união deles em torno de um projeto comum, o qual
é tão essencial a uma república; por outro lado, em virtude dessa concepção de
comércio, a república se mantém diante dos países estrangeiros.

No entanto, uma república consegue manter-se diante dos demais países graças
ao comércio, não só porque por meio dele as relações entre aqueles se tornam
menos bárbaras, já que o comércio abranda os costumes pelas razões já vistas
aqui, mas também pelo fato de que possibilita a uma república ser extensa,
abrigar, portanto, várias fortunas. Pois, se o espaço público trazido pelo comércio
abriga a possibilidade de realização de diversos interesses, grupos que prezam

24
Pensamento Filosófico Moderno

por esse espaço, inclusive os que possuem grande fortuna, são capazes de
juntarem-se e defender o Estado, o qual possibilita tal espaço. São capazes
de unirem-se em torno de um projeto comum. Acompanhe as duas citações
seguintes que sustentam essas ideias.

Assim, parecia muito provável que os homens fossem afinal


obrigados a viver sob o governo de um só, se não tivessem
imaginado uma forma de constituição que possui todas as
vantagens internas do governo republicano e a força externa da
monarquia. Estou referindo-me à república federativa. Esta forma
de governo é uma convenção segundo a qual vários Corpos
políticos consentem em se tornar cidadãos de um Estado maior
que pretendem formar. É uma sociedade de sociedades, que
formam uma nova sociedade, que pode crescer com novos
associados que se unirem a ela. (MONTESQUIEU, 1997, p. 141).

A república federativa é, segundo as palavras de Montesquieu (1997, p. 142)


um Estado “Composto por repúblicas, goza da excelência do governo interior
de cada uma. Quanto ao exterior, possui, pela força da associação, todas as
vantagens das grandes monarquias”.

No entanto, é exagerado afirmar que o projeto comum, o interesse comum da


sociedade a la Montesquieu, seja a satisfação dos interesses particulares por
meio do comércio.

Parece haver uma troca de ordem de importância nessa interpretação de Abreu,


pois considera o interesse público menos importante que o interesse privado. Que o
interesse particular deva continuar a existir na república montesquiana não há dúvida,
afinal, não compreende que possa existir uma vontade geral. Mas o fato de que o
interesse particular não deve sobrepor-se ao público não quer dizer que este último
existe apenas para satisfazer os particulares.
Da recusa da vontade geral por Montesquieu, podemos afirmar apenas que o interesse
público pode conviver com interesses particulares, não que aquele esteja a serviço dos
interesses particulares. Afinal, se fosse o contrário disso, o que impediria um grupo de
fazer parte de uma república e não de outra? Afinal, todas poderiam, conceitualmente,
possibilitar a satisfação dos interesses individuais. Há ainda a necessidade da virtude
cívica para a existência da liberdade na república montesquiana.

25
Capítulo 1

Você já deve ter percebido que em Filosofia não há unanimidade sobre a


interpretação das obras filosóficas. O que não tira o mérito das discussões; pelo
contrário, contribui para o pensar filosófico, coisa que também já deve ser do seu
conhecimento. Assim, fica aqui o convite para que você aprofunde seus estudos
da obra de Montesquieu, a fim de tomar uma posição filosófica diante dessa
divergência teórica apresentada aqui no último parágrafo.

Mas, independentemente dessa divergência, pode-se concluir que a natureza da


constituição de uma república para Montesquieu compreende:

i. a divisão do poder em três poderes;


ii. a separação desses três poderes, respectivamente, em três órgãos
e, consequentemente, em suas instituições 9;
iii. a compreensão de que só um poder pode frear outro poder;
iv. a defesa de que o comércio, com cada indivíduo atuando
individualmente nele, contribui para o bem público;
v. o interesse público sobrepõe-se sobre os interesses individuais;
vi. o interesse público convive com interesses individuais.

O Estado, segundo essa compreensão, deve abrigar essas seis características


que, consequentemente, possibilitará a liberdade aos seus cidadãos. Nesse
sentido, podemos afirmar que a teoria política de Montesquieu é típica da
Modernidade, pois seu mote é a satisfação do indivíduo e no que esse possui
de racional pois o caminho que propõe para essa satisfação defende como
racionalmente válido.

9 Pense, em nosso país, em instituições como a polícia federal e o ministério público para o poder do
judiciário, e a câmara de deputados e o senado para o exercício do poder legislativo, como exemplo dessas
instituições.

26
Pensamento Filosófico Moderno

Seção 4
Os Federalistas e a proposta constitucional de
Madison
A separação de poderes de Montesquieu vai além do simples balanço entre
executivo, legislativo e judiciário, abre espaço, ainda que o autor não
exatamente o defenda, para o balanço do poder entre facções em competição no
interior de uma república comercial.

Na república sugerida potencialmente por Montesquieu, vários grupos podem


estar em disputas, defendendo seus interesses. Mas eles não precisam ser
“retirados” ou “solucionados” por meio da constituição legal da república. Não
há necessidade de homogeneidade na sociedade - pela natureza humana isso
nem seria possível, no entender de Montesquieu. Esses grupos podem sempre
continuar existindo, freando-se e balanceando-se mutuamente. Há aqui a aposta
de que esse frear-se mútuo acontecerá graças à necessidade de se manter um
espaço público de ação comum entre essas facções. Montesquieu não defende
essa tese diretamente, mas podemos depreendê-la do fato de que não entende
o bem comum como a vontade geral de Rousseau. Essa defesa por um espaço
público comum a diversas facções também foi a busca dos autores da atual
constituição dos Estados Unidos da América: os Federalistas.

Antes de adentrarmos a teoria desses autores, a fim de entender como buscaram


construir esse espaço público, compreendamos, em linhas gerais, quem são os
teóricos políticos federalistas.

Acompanhemos essa breve apresentação por meio das palavras de Pinzani


(2009, p. 107), presentes no quadro a seguir:

Em 1787, à cidade norte-americana da Filadélfia, chegaram representantes dos


trezes estados que em 1776 tinham proclamado sua independência da Inglaterra,
para dar vida aos Estados Unidos da América. A razão que levou a convocar essa
convenção era a manifesta inadequação da existente constituição do país, os
Artigos da Confederação, que deixavam quase todo o poder aos estados, com
um governo central fraco e impotente para agir até nas emergências (como no
caso de uma revolta armada no estado de Massachussets, a chamada “revolta de
Shay”, que na realidade não passou de um pequeno levante, mas foi reprimida com
muita demora e depois de uma constrangedora confusão de atribuições entre as
autoridades públicas).

27
Capítulo 1

Os membros da convenção receberam o mandato para rever os Artigos, mas


acabaram escrevendo uma nova constituição, que foi submetida aos parlamentos
estaduais para ser aprovada. Nos meses que precederam à aprovação definitiva da
nova carta constitucional se abriu um debate vivaz e animadíssimo, tanto nos jornais
como nas assembleias, entre os defensores do novo projeto e os defensores dos
Artigos, denominados pelos adversários de Antifederalistas (quando na realidade
defendiam um federalismo mais radical e se preocupavam com o excessivo poder que
o futuro governo central teria concentrado em suas mãos). Entre os que participaram
do debate se distinguiram três autores que assinaram uma série de artigos com o
mesmo pseudônimo, Públio. Dois deles, James Madison (1751-1836) e Alexander
Hamilton (1755-1804), tinham sido membros da convenção e acabaram sendo,
respectivamente, presidente dos EUA e Secretário do Tesouro (o primeiro da história
do país). O terceiro, John Jay (1745-1829), era um célebre jurista e foi o primeiro chefe
da Corte Suprema estadunidense. Os artigos de Públio são considerados ainda hoje
uma obra-prima do constitucionalismo moderno e são conhecidos como Federalist
Papers (conhecidos em português como Artigos do Federalista).

Fonte: (PINZANI, 2009, p. 119)

Conforme podemos ver por esse breve histórico, o problema que precisava ser
resolvido pelos representantes dos trezes estados que, em 1787, formavam os
Estados Unidos da América não era muito diferente do que Montesquieu buscará
resolver, possibilitar um projeto comum para a nação sem desvincular esse
projeto dos seus integrantes – os estados – e possibilitar que essa nação seja
forte para manter-se enquanto Estado.

O principal problema dos Federalistas era obter um poder central, que unisse os
estados em torno de um projeto comum, mas que não se mostrasse como projeto
de uma facção. Entenderemos aqui por esse termo, facção, o proposto por um
dos Federalistas, Madison:

Por facção entendo um determinado número de cidadãos, quer


constituam uma maioria ou uma minoria face ao todo, que são
unidos e animados por algum impulso comum de paixão, ou
de interesse, adverso aos direitos dos outros cidadãos, ou aos
interesses permanentes e globais da comunidade. (HAMILTON,
2003, p. 80).

É bastante relevante para o projeto de constituição dos Estados Unidos construir


um governo central forte, com o acordo entre os Estados sobre qual devem ser os
conteúdos que esse busca preservar, sem, contudo, impor-se como uma ditadura
em relação aos projetos dos estados. Desse modo, temos, então, que esse

28
Pensamento Filosófico Moderno

projeto assemelha-se à república montesquiana, na qual o interesse social (nação)


possibilita a existência de interesses particulares (estados). Conforme nos aponta
Stourh (1970), considerando o momento histórico dos Estados Unidos daquele
período, era necessária a compreensão de que esse Estado precisava construir
uma república que nada lembrasse a monarquia inglesa:

Antes de investigarmos qual o sentido de “república” nos


Artigos Federalistas é preciso lembrar que a república ali
presente é debatida num contexto pós-guerra (ou revolução) de
independência em relação à metrópole inglesa. Neste sentido,
contra o governo monárquico inglês é que se constrói o sentido
de república no debate americano em que os Artigos Federalistas
estão inseridos. Por isto, quem quisesse sair vitorioso naquele
debate, teria que demonstrar que a sua proposta era a melhor (ou
mais verdadeira ou autêntica) forma de governo republicano. E
tanto os Federalistas quanto seus adversários tinham em conta
que era a organização da liberdade, e do poder que foram as
molas que impulsionaram todo o movimento de independência,
que estava em discussão. (STOURH, 1970, p. 55-56).

Em suma, os representantes dos estados precisavam construir uma constituição


em que nenhum dos grupos (facções) que formavam os Estados Unidos se
impusesse perante os demais na posição de legislador dessa constituição. Sem,
portanto, nenhum dos grupos (facções) se colocar na posição de ditador perante
os demais grupos.

Essa condição, para os Federalistas, segundo Pinzani (2009, p. 109), “só é obtida
quando o bem supremo para cuja defesa é necessária a existência do Estado é a
liberdade individual, garantida por direitos intocáveis 10”.

Como fazer isso? Como construir uma constituição que possibilita a liberdade individual?

Os Federalistas propuseram uma resposta. A compreensão começa com a


distinção entre paixões e interesses. As paixões estão ligadas ao lado irracional do
ser humano, já os interesses ao lado racional. É preciso manter longe do governo
o lado irracional, apesar de esse pertencer ao homem (HAMILTON, 2003, p. 80).
Essa constatação já demonstra que não cabe apenas ao indivíduo que venha a
governar o Estado a responsabilidade pelo sucesso na condução da república,
pois este possui as paixões. Como em Montesquieu, nos Federalistas, também é
necessário dispor de instituições que impeçam o império das paixões no poder:

10 São intocáveis em uma Constituição os direitos que a norteiam.

29
Capítulo 1

Ao construir um governo em que a administração será feita por


homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto:
primeiro, é preciso habilitar o governo a controlar os governados;
e, seguidamente, obrigar o governo a controlar a si próprio
(HAMILTON, 2003, p. 326) 11.

Esse controle do governo é feito também pela divisão do poder em Executivo,


Judiciário e Legislativo e pelo freio entre eles. Como já dissera Montesquieu, o
poder deve frear o poder. Esse frear mútuo entre os poderes foi e é chamado de
Checks and Balances. Sim, podemos dizer que há pequenas diferenças entre
esse sistema e a teoria de Montesquieu, principalmente no que diz respeito à
relação entre o Executivo e o Judiciário. Em Montesquieu, o poder do judiciário
era nulo, e, por isso, não precisa ser freado como no Checks and Balances, em
que o Executivo, portanto, freia-o.

Acompanhemos, portanto, uma descrição desse sistema de exercício do


poder proposto pelos Federalistas. Sistema que, em 1787, na Filadélfia, entre
os representantes dos estados para a formulação da nova constituição norte-
americana, obteve consenso de sua validade:

Inspirando-se em Locke e em Montesquieu 12, os membros


da convenção da Filadélfia previram mecanismos de controle
recíproco entre os três poderes: o presidente (o poder executivo)
possui direito (limitado) de veto contra o legislativo e aponta os
juízes da Corte Suprema; esta última (o judiciário) pode declarar
inconstitucionais leis emitidas pelo legislativo; o Congresso e o
Senado podem depor o presidente (impeachment) e ratificam
a nomeação dos juízes da Corte Suprema, além de poder
emendar a constituição (subtraindo assim suas decisões a um
controle excessivamente rígido pela Corte Suprema). Além disso,
o legislativo foi dividido em duas câmaras por duas razões. A
primeira era a de garantir voz aos estados quer contra o governo
central, quer contra o próprio povo, já que no Senado são
representados os estados e não os cidadãos (cada um dos quais
tem direito a dois senadores independentemente do número de
habitantes). A segunda razão era a de contrabalançar o poder da
multidão (expressado no Congresso pelos representantes) pelo
poder dos estados (expressado no Senado) e de impedir que os
congressistas tomassem decisões apressadas obedecendo à
pressão das massas. (PINZANI, 2009, p. 110)

11 Abreviação para a obra: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. Os Federalistas. Para ver
referência bibliográfica completa, consultar o itens “Referência”, presentes ao final desta unidade. Observação:
essa obra é composta de artigos que são numerados entre si por algarismos romanos.

12 Inspirado por Locke porque o Estado, segundo a constituição norte-americana, existe para garantir os
direitos individuais. Inspirado por Montesquieu em virtude das ferramentas que essa constituição defende para
o Estado conseguir atingir seu objetivo, ou seja, realizar tais direitos.

30
Pensamento Filosófico Moderno

As votações regulares também são elencadas pelo federalista Madison como


instrumento para impedir o império das paixões humanas no exercício do poder
político. Essas que, no caso dessa teoria, mostram-se por meio de facções no
exercício do poder. Mas essas votações só conseguem ter essa finalidade se
forem realizadas por representantes do povo. Ocorre que o autor considera que
a multidão fomenta as paixões dada a falta de ordem natural dessa multidão.
Não defende, portanto, que as leis sejam obtidas pelas assembleias, mas pelos
representantes do povo. Num artigo, nesse sentido, Madison, escreve:

[...] em todas as assembleias muito numerosas, sejam quais


forem as características da sua composição, a paixão nunca
deixa de arrebatar o cetro à razão. Tivesse cada cidadão
ateniense sido um Sócrates, todas as assembleias atenienses
teriam ainda assim sido uma multidão desordenada. (HAMILTON,
2003, p, 348).

Além disso, ainda há necessidade de que a proporção de representantes do povo


para o legislativo comparado com o número de cidadãos que formam esse povo
seja tal que fique difícil de um grupo desses se reunir em torno de uma paixão e
conseguir escolher um candidato que a represente no parlamento (HAMILTON,
2003, p. 82). Um candidato deve precisar de mais votos que os existentes numa
única facção para eleger-se, daí a importância das repúblicas serem numerosas.
Quanto mais numerosa, mais facções diferentes abrigarão, e um candidato para
vencer nesse cenário deve, então, conseguir agradar mais que uma única facção.
Do contrário, não conseguirá o número de votos necessários para vencer os
demais. Logo, dificilmente, eleger-se-á o candidato que representa uma paixão,
o que representa uma única facção. Mas, caso se eleja, dificilmente conseguirá
ter suas propostas aprovadas por seus pares, já que esses não representam os
anseios daquele, não comungam da paixão que o move.

É um trunfo uma república ser extensa: afinal, quanto maior a república, mais facções
existentes nela e maior a dificuldade de uma delas ser tão numerosa em relação à
soma das demais, a ponto de conseguir aprovar suas pretensões no parlamento.

Outro mecanismo proposto pelos federalistas para o controle das paixões é o


sistema legislativo que defendem: separação em Câmera dos Deputados e Senado.
A Câmera representa os anseios do povo, já o Senado representa os anseios
dos estados que formam a nação norte-americana. Desse modo, se uma paixão
passar como conteúdo legislativo pelo Congresso, o Senado é capaz de perceber
essa situação e barrar esse conteúdo. Em virtude de o congresso e o senado
representarem interesses de tipos diferentes, esse último é capaz de barrar as
paixões que, por ventura, tenham vindo na forma de lei ao senado. Como você
pode constatar, todas as ferramentas propostas por Madison para barrar as paixões
resumem-se a instituições por meio das quais se exerce o poder.

31
Capítulo 1

Diante de todo o exposto, você pode compreender que a passagem seguinte de


Pinzani (2009, p. 113) bem expressa a proposta constitucional americana:

O constitucionalismo norte-americano representa, portanto, uma


fusão da tradição republicana (império das leis, divisão dos poderes,
checks and balances, luta contra as facções) e da liberal (sumo fim
do Estado é a defesa da liberdade individual por meio da garantia de
direitos inalienáveis e intocáveis), mas também uma clara rejeição
do modelo radical-democrático que previa uma participação ativa e
continuada dos cidadãos no processo decisório.

Assim, podemos dizer que os federalistas possuem muito mais uma proposta no
sentido do exercício do interesse público garantir os interesses particulares, que
a proposta política de Montesquieu. Afinal, em nenhum momento da sua teoria,
Montesquieu defende que o Estado deve garantir os direitos individuais acima de
tudo, o que, no entanto, faz parte do cerne da constituição norte-americana, algo
defendido e ressaltado pelos federalistas.

32
Capítulo 2

Democracia rousseauniana: a vontade


geral como fundamento para a
felicidade do indivíduo

Para início de estudos


A felicidade do indivíduo é o centro de toda a filosofia desenvolvida por Jean
Jacques Rousseau. Mas ela não consiste na realização de paixões individuais, quer
as ligadas aos desejos físicos ou as ligadas à fama, ao poder ou à riqueza. Trata-
se de uma felicidade que consiste na realização do que esse autor defende por
natureza humana. Aquela, então, não é produto da sociedade, apesar de nosso
autor contar, após a saída do homem do estado de natureza, com uma determinada
ordem social para realizá-la. Mas é a natureza que determina o conteúdo dessa
felicidade. Nesse sentido, como todos os homens são iguais por natureza, a
felicidade de um nunca estará em detrimento da felicidade dos demais.

A razão é usada, nessa teoria, como o instrumento por meio do qual é possível
uma vida de acordo com o que é próprio da alma humana, do que é do homem
por natureza. A razão é um instrumento para a essência humana ser realizada.
Rousseau é, então, um romântico, já que defende o uso da razão, da objetividade,
para possibilitar que a subjetividade seja exercida e que crê que esta é boa.

Teremos, no entanto, de ter claro o que esse autor compreende como típico da
natureza humana para, a partir disso, verificar as suas propostas sobre como
deve ser a sociedade que possibilita a realização dessa natureza.

Essas propostas podem ser divididas em dois segmentos: a pedagogia e o contrato


social defendidos por esse autor. Esses segmentos se complementam entre si.
O primeiro deles restringe-se a estabelecer como um indivíduo deve ser educado
para que seja bom e viva de acordo com o que é próprio da natureza humana. Já
o segundo, estabelece como a sociedade deve se organizar para o que é próprio
da natureza do indivíduo possa ser exercido em sociedade. A sociedade é um
instrumento para o que é próprio do indivíduo ser preservado por ele.

33
Capítulo 2

A relação indivíduo/sociedade é o mote de toda a teoria rousseauniana na sua


busca pelo modo como se alcança a felicidade. Por isso, esse autor demonstra
qual é o conteúdo dessa relação quando ela impossibilita a felicidade e qual deve
ser seu o conteúdo para o indivíduo ser feliz. Suas relações com a sociedade
marcaram profundamente sua obra, isso é unânime entre seus comentadores.
Inclusive, na sua autobiografia, busca justificar muitas de suas ações por meio de
explicações presentes em sua obra filosófica. Assim, esse capítulo inicia-se com
a apresentação de aspectos gerais de sua biografia e da sua obra.

Seção 1
Breve biografia de Rousseau e aspectos gerais
da obra desse autor
Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 28 de junho de 1712. Sua
família pertencia à burguesia média, a mãe morrera em seu parto, mas mesmo
assim nosso autor viveu com o pai e com relativa estabilidade familiar e conforto
material, até os sete anos de idade. Essa estabilidade começou a ruir quando seu
pai teve que fugir da acusação de ter desembainhado a espada para um certo
capitão Gauthier, dentro da cidade de Genebra. Para fugir, o pai expatriou-se, mas
Rousseau ficou em Genebra, sob a guarda de um tio. Esse encaminhou nosso
filósofo a Bossey para estudar. Mas, aos 12 anos, teve de retornar a Genebra, já
que os recursos financeiros deixados pela mãe não lhe permitiam mais continuar
com os estudos.

Depois disso, seus tios buscaram lhe garantir alguma profissão que lhe
possibilitasse a sobrevivência. Nesse sentido, enviaram-no com a idade de
12 anos à casa de um importante notário da cidade de Genebra, para que aí
aprendesse o ofício de moço de recados. Mas não prosperou nessa investida. O
tabelião considerava-o preguiçoso e idiota. Começava aí a trajetória de Rousseau
em garantir por si mesmo seu sustento material.

A partir de então, viveu em vários lugares da Europa, ganhando sua subsistência


de várias formas, umas até não muito lícitas. Também viveu vários romances,
alguns não muito convencionais e, por algumas vezes, teve seu amor não
correspondido. Era um romântico e alguém que buscava justificar sua vida,
inclusive para outros, apesar de afirmar que a sociedade de seu tempo estava
corrompida. Mas, se estava corrompida, porque tinha necessidade de justificar-
se para essa mesma sociedade? Sua tentativa maior de justificar-se para a
sociedade foi a que realizou mais ao final de sua vida: em 1771, escreveu uma
obra autobiográfica intitulada “Diálogo – Rousseau, juiz de Jean Jacques”.

34
Pensamento Filosófico Moderno

Em 1745, liga-se a Thérese Levasseaur, com a qual teria cinco filhos, todos
entregues a orfanatos, porque achava que não poderia cuidar deles sendo pobre
e doente. O remorso por isso foi seu companheiro para o resto da vida; para
livrar-se dele preocupou-se sempre em encontrar justificativas para esses atos.

Em 1749, visita quase todos os dias seu amigo Diderot na cadeia, esse havia sido
preso por publicar um artigo em que expressava claramente posições ateístas.
Numa dessas tardes de visita, enquanto estava a caminho da prisão em que se
encontrava seu amigo Diderot, depara-se com a notícia de que a academia de
Dijon estava realizando um concurso sobre o seguinte tema: “o progresso das
ciências e das artes contribui para corromper ou apurar os costumes?”.

Consta na bibliografia oficial desse autor que essa notícia deixa-o subitamente
transtornado. Toma-se de um entusiasmo que jamais sentira. Ele participa desse
concurso defendendo a ideia de que o progresso das ciências e das artes,
pelo menos os que trouxeram a humanidade até aquela condição social que
constatava em sua época, não tinha contribuído para aprimorar os costumes, se
entendermos esses como aquilo que possibilita a liberdade. As justificativas para
essa resposta vão tornar nosso autor um romântico, já que fomentam a ideia do
bom selvagem. Ganhou o primeiro prêmio nesse concurso.

Desse momento em diante, Rousseau passa a publicar várias obras, inclusive de ópera.

Os seus dois mais importantes livros, Emílio e o Contrato Social, publicados


mais ao final de sua obra, em 1762, são considerados altamente ofensivos às
autoridades de sua época. O primeiro deles trata de política, e, o segundo de
educação. São obras altamente subversivas da ordem social e do pensamento
político e acadêmico vigente em seu tempo, pois pregam a democracia da vontade
geral e a pedagogia que busca trazer à tona o que é próprio da natureza humana.

Com a publicação dessas duas obras, conforme aponta-nos Chauí (1997, p. 10),
inicia-se o período mais negro da vida do nosso autor. Os problemas a partir de
então não são mais com os amigos e as amantes, mas com as autoridades e a
opinião pública. Teve que refugiar-se até em outro país para fugir da prisão, em
virtude das ideias presentes nessas obras. Tentou refúgio em alguns países que
se recusaram a abrigá-lo. Conseguiu abrigo na Inglaterra, junto a seu amigo David
Hume, em 1765.

Ainda em 1764, toma conhecimento de um panfleto anônimo que circula em


Paris, sob o título de O Sentimento dos Cidadãos, no qual é atacado como
hipócrita, pai sem coração e amigo ingrato. Pôs-se então a escrever a sua obra
As Confissões, em que, em quase mil páginas, procurava explicar toda a sua
vida e seu pensamento. “Com isso, o livro tornou-se uma síntese completa do
autor como homem, romancista, filósofo e educador”.

35
Capítulo 2

Um ano depois, na Inglaterra, tomou conhecimento de uma carta, que circulava


na Europa, difamando-o, o que acaba com suas relações com David Hume, já que
acredita ser ele o autor de tal carta. Começa aí sua mania de perseguição. Depois
disso, volta à França. Tenta justificar-se perante o mundo, lendo extratos de texto,
da sua obra As Confissões, nos salões parisienses. Publica mais algumas obras,
e, mais ao final da vida, teve seus sintomas psicóticos, os que resultavam em sua
mania de perseguição, atenuados, pelo menos se considerarmos a última de suas
obras, a obra intitulada Devaneios de um Caminhante Solitário.

Apesar de as obras Contrato Social e Emílio serem as que mais lhes trouxeram
problemas com as autoridades e a opinião pública durante a vida, com certeza, as
raízes dos pensamentos delas já estão contidas na sua primeira obra de renome.
Sim, essa consiste no trabalho que elaborou para o concurso realizado pela
academia de Dijon, na França, em 1749. Nesse momento, expõe a necessidade
da preservação do que julga ser a natureza humana genuína, bem como as suas
justificativas para essa preservação.

Chauí nos apresenta na introdução à obra de Rousseau, na Coleção Os


Pensadores, (1997, p. 12): “a contribuição de Rousseau à história da filosofia é a
defesa da natureza, e a busca por evitar o ataque dos seus filhos a ela”. Ocorre
que ele considera a natureza humana como boa, possibilitando a liberdade, como
veremos aqui mais adiante. Mas uma sociedade que não se guia por isso, pode
subjugá-la, a ponto de a escravidão reinar.

Temos que a obra rousseauniana não compõe um conjunto sistemático.


Sua riqueza e variedade, as frequentes contradições, a repugnância pela
sistematização conceitual e a permanente vinculação entre as ideias e os conflitos
pessoais vividos pelo autor, tornam extremamente difícil uma exposição sintética
de sua obra. Mas, com certeza, podemos constatar alguns elementos comuns
em todas as suas obras e, mais, podemos ver que eles são estruturantes delas.
Temos com o conhecimento desses elementos, o conhecimento do viés por meio
do qual se desenrola toda a sua obra.

Quais são esses elementos?


A relação entre a natureza e a sociedade que defende a liberdade como produto da
natureza, a moral fundada na liberdade, a primazia dos sentimentos sobre a razão,
a teoria da bondade natural do homem, a possibilidade de educar a criança de
modo que ela preserve essa bondade natural e a doutrina do seu contrato social.

Como todos esses elementos vão depender, portanto, da compreensão da


natureza humana genuína defendida por esse autor, é preciso compreender o
seu trabalho que ganhou o concurso da academia de Dijon, em 1749, seu texto
“Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”.
Ocorre que nessa obra o autor já apresenta sua definição da natureza humana.

36
Pensamento Filosófico Moderno

Seção 2
A natureza humana para Rousseau
Com o objetivo de responder qual a origem da desigualdade entre os homens, e
se é autorizada pela lei natural, tema do concurso da academia de Dijon do qual
Rousseau participou, ele busca determinar como era a vida do homem natural,
do que, em filosofia, se passou a chamar de “homem no estado de natureza”.
O conhecimento do que é esse homem mostrará se a referida desigualdade
citada no tema do concurso é permitida pela lei da natureza. Afinal, nesse
estado, o homem ainda não vive em sociedade, encontra-se antes da política, da
convivência social organizada, da necessidade de seguir regras para a existência
de uma ordem social.

Aqui é importante destacar que vários filósofos iluministas, por exemplo, Locke,
Hobbes, construíram suas teorias políticas pressupondo o que compreendiam por
homem no estado de natureza. A tese de que cada homem possui racionalidade,
que podemos entender como a capacidade de autodeterminação, trazida pelo
iluminismo, contém a necessidade de que a ordem social seja justa para cada
indivíduo. E, para isso, esses filósofos recorreram ao que é o homem no estado
de natureza para determinar como o estado civil, a vida do homem em sociedade,
deveria ser para preservar ou repudiar o que, respectivamente, julgavam como
correto ou incorreto no estado de natureza.

O iluminismo excluíra a possibilidade de fundar o poder vigente numa sociedade


sobre alguma tradição, justificativa de cunho religioso, honra ou qualquer outra
justificativa que não a de todos os indivíduos da sociedade ter sua capacidade
de autodeterminação respeitada. Daí também a importância de se determinar a
origem das desigualdades humanas: afinal, se todos são racionais, e essa era a
característica humana mais importante do período, como explicar a desigualdade
social entre os homens?

E é para responder a essa questão que Rousseau passa a investigar o que é o


homem natural. Claro, não no sentido arqueológico, mas no sentido dedutivo
e indutivo, considerando que, no início da empreitada da espécie humana sobre
a terra, os homens viviam nas florestas, isolados uns dos outros, seguindo hábitos
semelhantes aos dos animais.

A defesa do estado de natureza, isto é, de que o homem viveu semelhante aos


animais no início da história da espécie humana, é bem representativa da visão de
mundo vigente no século XVIII - século em que viveu Rousseau. Afinal, a ciência
já era entendida nesse período como o modo adequado de conhecer o mundo.
E se tratava da ciência mecanicista, onde para conhecer algo é necessário
compreender o seu mecanismo: compreender todas as peças que compunham
esse algo e o modo como elas se relacionam entre si. Logo, para compreender
o homem era necessário compreender todas as partes que o compunham,
portanto, também a parte que o tornava pertencente à natureza.

37
Capítulo 2

Esclarecido o papel do estado de natureza nas teorias filosóficas em que é


defendido, continuemos, então, com a investigação de Rousseau sobre o que é o
homem natural.
Por natureza, a ampla desvantagem do homem, em relação aos demais animais,
acabou por ser responsável pelo triunfo da espécie humana. Pois, segundo
Rousseau (2000, p. 58), a espécie humana, não tendo talvez nenhum instinto que
lhe pertença individualmente, apropriou-se dos instintos que tem em comum
com todas as demais espécies, nutriu-se, inclusive, da maior parte dos diversos
alimentos partilhados entre os outros animais e encontrou, por conseguinte, sua
subsistência mais facilmente do que qualquer dos outros.
Essa condição do homem no estado de natureza torna fortes e robustos os
indivíduos humanos que são bem constituídos e faz morrer todos os outros.
Assim, no que diz respeito ao físico, há diferenças, desigualdades, entre os
homens no estado de natureza (ROUSSEAU, 2000, p. 51).
Porém, na sociedade civil, aponta Rousseau (2000, p. 58), as desigualdades
também existem, e se, na natureza, os mais fracos morrem nela antes dos
mais fortes, na sociedade civil, o Estado quando torna os filhos onerosos
economicamente aos pais, mata-os indistintamente, antes mesmo do nascimento.
Além das desigualdades presentes nas sociedades civis de seu tempo serem mais
prejudiciais à sobrevivência dos homens que o próprio estado de natureza, dada
as diferenças econômicas que aquelas sociedades abrigavam em si, há também
nessas as desigualdades as quais tornam uns escravos e outros senhores.
A pergunta agora é: há relação entre as desigualdades naturais e as
desigualdades sociais?
A saída encontrada por Rousseau para determinar a resposta a essa questão era
compreender as faculdades naturais e o desenvolvimento da espécie humana,
no sentido político, até chegar a sua época, o século XVIII. Esse foi o meio que
empregou para verificar se as desigualdades da sociedade de seu tempo deviam-
se à natureza. Empreendeu-se, então, por uma investigação mecanicista da
história do desenvolvimento humano.
Começa essa investigação descartando a possibilidade de tomar o homem no
estado de natureza como o filósofo Hobbes 1 o fez, isto é, como alguém intrépido.
Segundo Rousseau (2000, p. 52), esse tipo de compreensão é possível quando
se transporta ao estado de natureza os sentimentos que se fazem presentes
no homem civil do século XVIII: necessidade, avidez, orgulho, inveja e desejos.
Hobbes e outros filósofos que compreendem esses sentimentos existentes no
homem no estado de natureza "falam do homem selvagem e pintam o homem
civil", segundo nosso autor.

1 Thomas Hobbes viveu no século XVI e desenvolveu uma teoria contratualista que toma o estado de natureza como
uma condição da qual o homem precisou sair em virtude de precisar de segurança. Defendeu que nesse estado
todos temem por suas vidas, pois não há aí nenhuma condição impedindo um indivíduo tirar a vida do outro.

38
Pensamento Filosófico Moderno

O homem selvagem, entendido como o existente no início da história da espécie


humana sobre a terra, vivia nu, isolado dos demais indivíduos de sua espécie,
encontrava propositalmente com outros de sua espécie apenas para acasalar, não
tinha habitação.

O homem podia viver isolado em relação aos demais de sua espécie porque
a natureza o provia suficientemente bem com alimentos, água, e com uma
condição de saúde adequada. Na natureza, a enfermidade não existe em tão
grande escala quanto na sociedade (ROUSSEAU, 2000, p. 61). Rousseau (2000,
p. 62) argumenta que os caçadores atestam isso quando afirmam encontrar
poucos animais doentes na natureza. Esse homem era frágil, já que não possuía
nenhum instinto que o tornasse mais poderoso que qualquer outro animal em
algum aspecto. Mas, diferentemente dos demais animais, tinha a seu favor a
possibilidade de não agir apenas por seus instintos 2.

Essa possibilidade de ação traz à tona outro lado da natureza humana: o metafísico
e moral. Trata-se de outro lado não no sentido de que esse está em contradição
com o lado do homem ligado à natureza, mas apenas de outro lado do humano no
mesmo sentido em que, na moeda, o lado da cara é o outro lado da coroa.

O lado metafísico e moral permite ao homem a escolha de ação diante das


circunstâncias:

Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual


a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se
preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou
perturbá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana,
com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações
do animal, enquanto o homem executa as suas como agente
livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de
liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da
regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso
fazê-lo, e que o homem dela se afaste frequentemente em seu
prejuízo. (ROUSSEAU, 2000, p. 64).

Portanto, a liberdade é usada pelo homem, embora frequentemente em seu


prejuízo, segundo Rousseau (2000, p. 64). O autor defende que os homens
dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque
o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza cala-se
(dá-se por satisfeita).

2 Isso não significa, porém, que o homem, seguindo algo que não apenas seus instintos, necessariamente, está
indo contra a natureza. Há, em Rousseau, um agir de acordo com a razão que permite o respeito à natureza.
Veremos, na sequência, até o final dessa seção, o que é esse agir.

39
Capítulo 2

Mas, apesar do homem ter, geralmente, usado mal sua liberdade, é a existência
dessa que confere a bondade ou a maldade às ações humanas. E ela não
pode ser explicada pela ciência mecanicista, pois a liberdade está ligada à
espiritualidade, à alma humana:

[...] a física explica, de certa maneira, o mecanismo dos sentidos


e a formação das ideias; mas, no poder de querer, ou melhor, de
escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos
puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis
da mecânica. (ROUSSEAU, 2000, p. 64).

No lado espiritual do ser humano, além de se fazer presente a liberdade, também se


encontra a capacidade de aperfeiçoar-se: a qual, com o auxílio das circunstâncias 3,
desenvolve sucessivamente todas as outras capacidades humanas que residem
entre nós, tanto no indivíduo quanto na espécie. Essa capacidade é o que torna,
segundo Rousseau (2000, p. 65), um animal, no fim de alguns meses, no que será
toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil
anos; enquanto que a vida de um indivíduo pode constantemente ser aperfeiçoada
e a espécie humana, no que diz respeito ao aspecto social e conhecimento da
natureza, modificou-se muito desde seu estado primitivo até o século XVIII.

A capacidade de se aperfeiçoar do homem pode, no entanto, privá-lo de sua liberdade.


Mas, “porque o homem está sujeito a se tornar imbecil?” A resposta para isso está no
modo inadequado do uso do motor capaz de mover o seu intelecto, isto é, está no uso
inadequado das paixões. As paixões dependem ou de nossos conhecimentos ou de
nossos instintos: “só podemos desejar ou temer coisas segundo as ideias que temos
delas, ou pelo simples impulso da natureza” (ROUSSEAU, 2000, p. 65).

Sua teoria, para demonstrar o homem selvagem como bom, como alguém que
usa adequadamente as paixões, precisa comprovar que as paixões que vigem
nesse período não possibilitam a imbecilidade humana. Sua saída para isso é
demonstrar que o homem, nesse período, age unicamente por seus instintos, de
acordo com sua natureza.

Assim, no estado de natureza, o homem, privado de toda sorte dos


conhecimentos, só experimenta as paixões ligadas aos instintos: “seus desejos
passam pelas suas necessidades físicas; os únicos bens que conhece no

3 Rousseau (2000, p. 66) atribui a acasos os fenômenos que possibilitaram o desenvolvimento do


conhecimento humano sobre a natureza. Assim, por exemplo, foi por acaso que o homem descobriu que podia
usar a pele de outros animais para proteger-se do frio. O intelecto, por sua vez, foi usado no desenvolvimento
intelectual da espécie humana para reconhecer os acasos que facilitam a vida humana.

40
Pensamento Filosófico Moderno

universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme
são a dor 4 e a fome” (2000, p. 65).

Essas paixões não têm a capacidade de tirar do homem a liberdade, já que ele nem
consegue desfazer-se delas. Portanto, não conferem nem bondade nem maldade
às suas ações. Afinal, por meio delas, não se tem a noção de correto e falso, não
se pode escolher em relação às mesmas, age-se apenas movido por paixões que
estão vinculadas unicamente aos seus instintos (ROUSSEAU, 2000, p. 76).

Conta com pressuposições históricas para sustentar que não há maldade no estado
de natureza, pois considera, entre outras coisas: que os homens desse período
buscavam viver isolados e eram fracos, quando dependentes de suas mães; antes
mesmo de serem robustos, precisavam se tornar independentes, isso os impedia
de se submeterem uns aos outros. Por uma questão de sua própria sobrevivência,
nesse estado, uma mãe abandonava seu filho assim que esse era capaz de se
autoprover, o que contribuía muito para o isolamento entre os indivíduos.

Talvez não contente com essas justificativas para distinguir sua compreensão do
homem selvagem da desenhada por Hobbes, já que para esse último o homem
selvagem era mau, Rousseau afirma que o sentimento de piedade se faz presente
na raça humana já nos primórdios de sua história.

Apresenta como evidência dessa existência o fato de ser repugnante ao ser


humano ver outro semelhante sofrer. Porque precede a qualquer reflexão,
esse sentimento se faz presente no estado de natureza e apresenta-o como
uma explicação para a ternura das mães para com seus filhos e para o fato de
Elas enfrentarem perigos para protegê-los. Busca dar maiores créditos a essa
explicação comparando a outras espécies, como os cavalos, os quais sentem
repugnância em pisar num ser vivo, pois também sentem piedade. Rousseau
(2000, p. 76-7) mostra, então, a piedade como um sentimento disponibilizado pela
natureza em algumas espécies; entre elas, a humana.

O homem selvagem não é bom nem mal, pois não pode escolher. Suas ações são
realizadas meramente por seus instintos. Logo, o homem selvagem de Rousseau,
quer pelos pressupostos históricos do estado de natureza de que parte, quer por
sua explicação do sentimento de piedade, demonstra que as necessidades que
movem o homem nesse período não são capazes de torná-lo imbecil, de tirar-lhe
a liberdade. Afinal, o homem não pode nem escolher nesse período.

Explica que a descrição do homem feita por Hobbes trata-se de uma confusão
desse autor entre o homem selvagem e o de seu tempo. Esse autor tomou as
paixões que o homem de seu tempo precisa satisfazer para tornar-se alguém

4 Afirma ser a dor, e não a morte, porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e
dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal.

41
Capítulo 2

pertencente à sociedade vigente nesse período, como as paixões que pertenciam


ao homem selvagem. Esse equívoco por parte de Hobbes, segundo Rousseau
(2000, p. 76), ocorre porque a sociedade de seu tempo buscava demonstrar as
paixões que vigiam nela como necessárias à espécie humana, e Hobbes não
percebeu isso.

Diante de tudo isso, podemos entender porque, para Rousseau, o estado de


natureza é aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial
aos outros, e, por conseguinte, o mais próprio à paz e o mais conveniente ao
gênero humano.

Mas, o que tirou o homem do seu estado de natureza, se ele proporcionava tanta
satisfação? Acasos. Acasos que serviram de objeto para o desenvolvimento cognitivo
e social do homem e que, conforme veremos aqui, em alguns momentos da história
humana, desenvolveram paixões as quais levaram os homens a se submeterem entre
si, isto é, negarem a liberdade, a qual lhes é própria por natureza.

Logo depois de Rousseau provar que a desigualdade é apenas física no estado


de natureza, faz-se necessário deixar claro que a desigualdade social, sua origem
e seus progressos, deve-se ao desenvolvimento sucessivo do espírito humano.
E mais, esse desenvolvimento tem como matéria-prima os acasos, entre eles,
o principal, é a fundação da propriedade privada. Podemos depreender essas
ideias, por exemplo, da seguinte passagem rousseauniana:

Depois de haver provado que a desigualdade é apenas sensível


no estado de natureza, sendo a sua influência quase nula, resta-
me mostrar sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos
sucessivos do espírito humano. Depois de haver mostrado que a
perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o
homem natural recebera em potencial, jamais podiam desenvolver-
se por si mesmas, que para isso tinham necessidade do concurso
fortuito de muitas causas estranhas, que poderiam não nascer
nunca, e sem as quais é preciso ficar eternamente na sua condição
primitiva, resta-me considerar e aproximar os diversos acasos que
puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espécie,
tornar um ser mau fazendo-o social e, de um termo tão distante,
conduzir enfim o homem e o mundo ao ponto em que os vemos.
(ROUSSEAU, 2000, p. 84, grifo nosso).

E a nós, resta seguir o caminho que nosso autor apresenta como aquele que
levou ao homem à sociedade europeia do século XVIII. Sigamos, então, com
as justificativas rousseauniana para o desenvolvimento de a razão humana ter
possibilitado a existência da falta da liberdade vigente na Europa do século XVIII.

42
Pensamento Filosófico Moderno

Esse desenvolvimento é composto de vários estágios e cada um deles depende,


conforme já afirmado aqui anteriormente, de um algum acaso. Por meio do relato
desses vários estágios e, consequentemente, da apresentação dos acasos que
possibilitaram o entendimento humano desenvolver-se, temos, de acordo com o
nosso autor, a explicação do que é o cidadão europeu do século XVIII.

Para efeitos de delimitação do ponto zero do desenvolvimento humano,


expressaremos aqui a transcrição de uma das mais importantes passagens da
obra de Rousseau, em que ele apresenta o que é o homem selvagem:

O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu


primeiro cuidado, o de sua conservação. As produções da terra
lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a
fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar,
alternativamente, diversas maneiras de existir, houve uma que
o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego,
desprovido de todo sentimento de coração, não produzia
senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os
dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada
mais representava para a mãe logo que podia passar sem ela.
(ROUSSEAU, 2000, p. 84)

Mas a espécie humana passou a se estender ao longo de nosso planeta –


multiplicou-se. Por isso, teve que passar a ocupar terrenos onde sua nudez não
era mais possível para sua sobrevivência ou sua capacidade natural para coletar
alimentos ou caçar também já não lhe eram assim suficientes. Isso fez o homem
sair do ponto zero apresentado aqui mais acima. Afinal, “A diferença dos terrenos,
dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na maneira de viver. Anos
estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem,
exigiram deles uma nova indústria” (ROUSSEAU, 2000, p. 85). Assim, esses
acasos envolvendo temperatura, falta de caça, são exemplos do que impulsionou
o desenvolvimento dos primeiros conhecimentos humanos.

A reflexão era necessária para construir armadilhas, a fim de capturar animais


para seu consumo, bem como tinha que se fazer presente para identificar que se
podia usar a pele de animais para proteção em relação ao frio, sendo necessário
entrelaçar-se com essa pele adequadamente, para aquecer-se. Esses são exemplos,
portanto, de como o homem deixou de agir apenas de acordo com seus instintos.

No que diz respeito às relações humanas, esse período da história do homem


também é relevante para seu desenvolvimento. Pois o homem selvagem
percebe que possui semelhantes em sua maneira de pensar: “[...] vendo que
outros indivíduos de sua espécie se conduziam como teria feito ele próprio em
circunstâncias semelhantes, concluiu que a maneira daqueles de pensar e de
sentir era inteiramente conforme a sua.” (ROUSSEAU, 2000, p. 92).

43
Capítulo 2

Da constatação dessas semelhanças deduziu, por pressentimento, que


deveria seguir as melhores regras de conduta, para sua vantagem e segurança
(ROUSSEAU, 2000, p. 92). Afinal, as paixões que vigiam nesse período eram
ainda as que consistiam na preservação da vida e do bem-estar físico.

Estabeleciam-se, assim, as primeiras sociedades na história da humanidade. Com


isso, já não se conta mais apenas com a piedade entre os homens para esses
regularem suas relações, pois a convivência entre eles depende de se sentirem
seguros entre si, o que, por sua vez, conta com a estipulação de regras de
conduta. E a punição a quem as ofende torna-se necessária.

As punições se tornavam mais severas à medida que as ocasiões de ofender as


regras sociais se tornavam mais frequentes; e ao terror das vinganças cabia fazer
às vezes do freio das leis. Era necessário garantir a preservação da ordem social
para possibilitar ao homem a segurança de viver em sociedade. E, portanto, o
mecanismo usado para mantê-la era punir quem desobedecia às regras vigentes.

Em relação a essa fase, Rousseau (2000, p. 93) afirma que:

[...] embora os homens se tivessem tornado menos tolerantes, e a


piedade natural já tivesse sofrido certa alteração, esse período do
desenvolvimento das faculdades humanas, guardando um justo meio
entre a intolerância do estado de natureza e a petulante atividade de
nosso amor-próprio, devia ser a época mais feliz e mais durável.

Nessa passagem, podemos compreender porque Rousseau é um romântico. Há a


defesa de que o homem é naturalmente bom e que uma determinada quantidade
de desenvolvimento intelectual, a qual lhe rende uma condição social em que
ainda há tolerância, possibilita-lhe a felicidade. Rende-lhe o status de um autor
que acredita na natureza e que o homem pode ser feliz de acordo com ela.

Nesse período do desenvolvimento da história humana, na concepção de


Rousseau, já há a propriedade privada. Embora essa instituição virá a ser a
causa, segundo esse mesmo autor, de diversos crimes, guerras, assassinatos,
misérias e horrores, enquanto resumia-se a cabanas que serviam para abrigar
famílias, ela fez parte da época de ouro do desenvolvimento humano.

E fora o acaso que dera origem à propriedade privada, porque ela deve ter
começado com um homem construindo uma choupana para abrigar a sua família
e tendo os demais respeitando-a como sua. Afinal, Rousseau (2000, p. 90) afirma:

[...] como os mais fortes foram, provavelmente, os primeiros a


fazer alojamentos que se sentiam capazes de defender, é de
se acreditar que os fracos tenham achado mais simples e mais
seguro imitá-los do que tentar desalojá-los: e, quanto aos que já

44
Pensamento Filosófico Moderno

tinham cabanas, cada qual pouco procurou apropriar-se da do


vizinho, menos porque lhe não pertencia do que lhe era inútil, não
podendo apossar-se dela sem se expor a um combate muito vivo
com a família que a ocupava.

Seríamos felizes se tivéssemos parado na época em que a vida em choupanas


iniciou-se. Afinal, não só a tolerância ainda era possível entre os homens dessa
sociedade, mas os mais altos sentimentos se desenvolviam entre a família graças
às proximidades entre seus membros que a vida nas cabanas possibilitou. Essa
convivência fez surgir os “mais doces sentimentos conhecidos dos homens: o
amor fraternal e o amor conjugal” (ROUSSEAU, 2000, p. 91).

Mas a divisão de tarefas entre os dois sexos, possibilitada pela vida em família,
trouxe o gozo do lazer, principalmente por parte do sexo masculino. E a falta
desse se torna mais onerosa que o prazer que se obtém com seu gozo. O
homem já começava aí a sentir necessidade que só a convivência em sociedade
possibilita. Além disso, a convivência possibilitou-lhes fazer comparações entre
os objetos que possuíam; nesse período, ainda muito ligado a ornamentos, mas
reinava a liberdade (ROUSSEAU, 2000, p. 92).

Só quando o homem seguiu para o desenvolvimento do indivíduo e não mais da


sociedade é que a liberdade deixa de existir. Ocorre que o progresso, que tem a
satisfação do indivíduo em seu cerne, submete outros indivíduos às vontades daquele.

O acaso que desencadeou a miséria do gênero humano foi o trabalho


coletivo, o qual dá origem à propriedade. Acompanhemos os motivos
apontados por Rousseau (2000, p. 94) para colocar o trabalho coletivo como o
estopim para tamanha catástrofe:

desde o instante em que um homem sentiu necessidade de


socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar
com as provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-
se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas
florestas tornaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar
com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a
miséria germinarem e crescerem com as colheitas.

A constatação da possibilidade de usar o trabalho de outro indivíduo para


satisfações pessoais iniciou a queda da liberdade. Os indivíduos buscaram, a
partir de então, a submeterem-se uns aos outros para poderem usar o trabalho
de quem submetiam em seu benefício. E se um indivíduo trabalha para satisfazer
as vontades de outro, deixa de satisfazer suas próprias vontades. Daí o fato de a
miséria surgir com esse novo estado de coisas.

45
Capítulo 2

O desenvolvimento da agricultura e da metalúrgica foram dois importantes acasos


para se estabelecer essa relação de uso do trabalho de um indivíduo por parte de
outro. É que essas duas atividades ocupavam muito mais tempo de trabalho que
aquela de caçar ou colher frutos.

O uso do trabalho alheio também contribuiu para uma nova consideração da


propriedade privada: era necessário estabelecer regras sociais para que cada um
pudesse defender a sua, afinal, por exemplo, era necessária a propriedade da
terra para apoderar-se do que nela fosse produzido. E um homem não consegue
defender sua propriedade sozinho quando essa é muito grande, o que, por
sua vez, segundo Rousseau (2000, p. 96), só é possível quando contou com o
trabalho de outro homem.

Depois de estabelecidas as regras sociais que asseguravam a propriedade


privada, veio a miséria. Pois as características individuais dos homens faziam uns
prosperar em suas propriedades, mas outros não. Além das diferenças entre os
talentos dos indivíduos, também existiam as diferenças entre as circunstâncias
em que cada um trabalhava. Para uns, elas podiam contribuir muito para a
produção, já, para outros, poderiam ser exatamente o oposto.

Aqui devemos chamar a atenção para o fato de que a falta de circunstâncias


adequadas para a produção em uma propriedade, enquanto que elas ocorrem
em outra, pode levar o indivíduo proprietário dessa primeira a se submeter ao
proprietário da segunda. Afinal, se esse primeiro não conseguiu sua subsistência
e o outro pode fornecê-la, esse último, com o intuito de aumentar sua
propriedade, pode fornecer essa subsistência mediante a máxima exploração da
mão daquele outro.

Logo, a convivência social entre os homens após o descobrimento da agricultura e da


metalúrgica é a convivência social em que imperam as desigualdades humanas para
além das que dizem respeito às capacidades físicas. O sentimento de piedade, próprio
do homem natural, não tem espaço nesse cenário em que há um paradoxo: ao passo
que o indivíduo precisa viver em sociedade, busca, assim, fazê-lo de modo a sobrepor-
se aos demais. O amálgama responsável pela vida em coletividade é a concorrência
e a rivalidade para alcançar lucros a expensas de outrem (ROUSSEAU, 2000, p. 98).
E muitos, justamente, para alcançar esses lucros simulam-se benevolentes e bem
intencionados em relação às chagas alheias.

O problema maior dessa situação consiste no fato de que as frivolidades, que se


passa a atender com os lucros e vantagens obtidos sobre os demais indivíduos,
tornam-se necessidades. Logo, a propriedade privada torna-se o centro
da vida. Todos querem a possuir na maior medida possível, para terem suas
frivolidades atendidas; tanto é assim que não se passa mais, segundo Rousseau,

46
Pensamento Filosófico Moderno

a respeitar o direito natural, isto é, o fato de ela pertencer a um indivíduo, em


virtude de ele ter a ocupado primeiro e ter se fixado nela, de modo a usá-la para
satisfazer suas necessidades. Rousseau (2000, p. 98) nos apresenta esse estágio
do desenvolvimento da razão humana, narrando que ali:

Ergueu-se entre o direito do mais forte e o direito do ocupante


um conflito perpétuo que terminava em conflitos e assassinatos.
A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de
guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais
voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes
que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar para a
vergonha, abusando das faculdades que o dignificam.

Diferentemente das teorias de Locke e de Hobbes, o estado de guerra se


estabelece quando a sociedade já tem se consolidado. Portanto, após o
estabelecimento da propriedade privada.

Seguindo na explicação cronológica dada por Rousseau (2000, p. 100), sobre


o desenvolvimento humano, temos que os ricos perceberam que o estado de
natureza não lhes era vantajoso. Afinal, tinham de gastar para defender suas
propriedades, enquanto que aos pobres bastava lutar para ocupá-las. Diante
disso, aqueles fingem se juntar aos seus inimigos, os pobres, para terem seus
próprios anseios atendidos. Aproveitaram-se do fato de que nem os pobres
tinham suas propriedades seguras nesse estado e estabeleceram junto com
esses um pacto para:

defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e


assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence;
instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos
sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção a
ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o
poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da
fortuna. (ROUSSEAU, 2000, p. 100).

Os fracos aceitaram estabelecer esses regulamentos, não percebiam que


eram muito mais convenientes aos ricos que a eles. Afinal, quem mais tinha
propriedades para defender? E, conforme nos aponta Rousseau (2000, p. 100),
mesmo os que não eram ricos, mas perceberam as reais intenções desses
regulamentos, os aceitaram porque tinham em mente como tirar vantagem dessa

47
Capítulo 2

situação. Para esses, era melhor abrir mão de certos conteúdos em prol de ter
outros assegurados. Tinham a ideia de que assim que adquirissem algum
bem conseguiriam usar esses mesmos regulamentos para defender suas
propriedades. Viram que era preciso sacrificar uma parte de sua liberdade
para a conservação de outra maior 5, como um ferido deixa que lhe cortem um
braço para salvar o resto do corpo.

Com o estabelecimento desses regulamentos, o direito natural deixa de existir. Isso,


de acordo com Rousseau (2000, p. 100), significa que esses regulamentos deram:

novos entraves aos fracos e novas forças aos ricos, destruíram


irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei
da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação
sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos,
daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à
servidão e a miséria.

A sociedade que primeiro se estabeleceu por esses regulamentos levaram às


demais a também assim o fazer. É que eles tornaram-se um excelente meio para
as paixões suscitadas pela propriedade privada se satisfazerem, e a propriedade
privada é fruto, como vimos, de um acaso que facilmente pode ter se feito
presente em todos os grupos humanos.

É nítido, portanto, a crítica de Rousseau às sociedades civilizadas e, em contra


partida, sua idealização do homem primitivo. No entanto, isso não deve ser visto
como um desejo do autor de voltar à animalidade. Como nos aponta Chauí (1997, p.
13): “o que Rousseau sempre pretendeu não foi exaltar a animalidade do selvagem,
porém, sua mais profunda humanidade em relação ao homem civilizado”.

Seção 3
Como foi impossibilitada a liberdade
O direito civil vige em detrimento do direito natural, essa é a condição que
prevalece na Europa do século XVIII. Porém, o direito civil não prevalece entre
as nações; “por isso, as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos [...] as
pessoas matam num só dia nesses conflitos mais que matou-se no estado de
natureza todo”. (ROUSSEAU, 2000, p. 101). Cada estado quer afirmar seu próprio
direito civil e, por isso, existem as guerras nacionais.

5 Aqui encontramos uma alusão ao contrato social defendido por Locke, já que esse autor defende que o
homem deve abrir mão da liberdade total – liberdade natural- em prol de uma liberdade assegurada pelo
Estado. Esse autor defende que essa traz vantagens, já que sempre poderá ser realizada, ao passo que a
liberdade natural não consegue viger devido à falta de normas para resolver os conflitos entre os indivíduos.

48
Pensamento Filosófico Moderno

Para Rousseau, qualquer direito civil quando não está de acordo com o direito
natural, não resolverá a miséria e a escravidão do homem. Por definição, na teoria
desse autor, como já vimos aqui, o direito civil quando longe da lei natural, cultiva
as paixões que levam a tais vicissitudes.

Segundo Rousseau (2000, p. 100), em virtude de a sociedade fracassar


constantemente na tentativa de estabelecer regulamentos que extinguissem seus
males e por não conseguir punir os seus infratores, delegou o poder da autoridade
pública e a capacidade de punir a pessoas escolhidas para realizarem essas tarefas.
Buscou concentrar em poucas pessoas esses poderes, na tentativa de torná-los
efetivos na tarefa de extinguir esses males.
Esse fato, segundo a análise desse autor, foi o grão finale para a servidão dos
cidadãos. Compreende que aos cidadãos passarem às mãos desses escolhidos o
poder de deliberar e punir, passam a essas mesmas mãos todo o poder a que seus
donos foram escolhidos para defender (ROUSSEAU, 2000, p.101). Ou seja, o povo não
possui mais poder quando escolhe alguém para exercê-lo.

O povo não se deu conta da falta de liberdade que há nessa transferência de


poder porque não conhece o que é exercitá-lo. Deixou-se ocupar pela busca da
satisfação de futilidades/frivulariedades 6, as quais o desenvolvimento da razão
humana deu a aparência de necessidades, e deixou de exercitar o que é próprio de
sua natureza, a capacidade de se autodeterminar de acordo com a sua natureza.
Aqui podemos entender os refinamentos típicos da sociedade do século XVIII, pois
a moda, a tradições familiares e os hábitos sociais são rebuscados. Tudo aquilo que
se sobrepunha às satisfações das necessidades naturais do homem.

Mas quando o povo fez essa transferência de poder, acreditava que ela resolveria
os males vigentes na sua sociedade. Nas gerações que sucederam essa
transferência, já não se sabia o que era o poder para se sentir falta dele, pois não
se pode sentir falta de algo que nunca se conheceu (ROUSSEAU, 2000, p. 103).

Rousseau ainda rebate as teorias de que o poder vigente na sociedade de seu


tempo provinha de uma evolução do poder paternal. Não há semelhança entre
esses poderes, segundo nosso autor, porque o poder absoluto vigente em sua
sociedade nada tem a ver com a doçura empregue pelo pai no exercício do
poder sobre seu filho e: “Além disso, o pai, pela lei da natureza, só é senhor do
filho enquanto a este é necessário seu auxílio, tornando-se, depois disso, iguais
e, então, o filho, inteiramente independente do pai, só lhe deve respeito, sem
nenhuma obediência” (ROUSSEAU, 2000, p. 105).

6 Contemporaneamente, você pode refletir e perceber que essas futilidades também existem: vemos isso
quando o ter - seja o carro do ano, a roupa de grife ou a coleção completa de álbuns dessa ou daquela banda -
é mais importante que o ser.

49
Capítulo 2

Seguindo nessa esteira, nosso autor irá inferir que o reconhecimento pelo poder
adequadamente exercido é um dever de quem recebeu esse benefício, não um
direito para quem o exerceu reclamar (ROUSSEAU, 2000, p. 105). Aqui nos
deparamos com a ideia de que o poder não pode ser imposto, independente
de quem o exerça, mas que ele é reconhecido quando exercido
adequadamente. Portanto, encontramos aqui mais uma evidência das críticas
rousseaunianas ao poder absolutista, o que lhe rendia problemas, porque esse
poder era vigente na França de seu tempo e em muitos outros lugares da Europa.

Independentemente de qual fosse o sistema de governo vigente em seu tempo,


não poderia concordar com nenhum que não preservasse a vida e a liberdade
dos cidadãos (ROUSSEAU, 2000, p. 106). A vida, porque esse é um direito que
a natureza proporciona e, portanto, não é algo que um homem pode querer
despojar-se, isso nos mostra que ninguém tem o direito de tirá-la. E o mesmo
ocorre com a liberdade, ela é um direito natural, ninguém pode destituir-se ou
ser destituído dela, é inerente à condição humana, depois de sair do estado de
natureza. Pode ser exercida ou não, mas não transferida 7. Nesse sentido,
temos também aqui uma crítica à democracia representativa.

Nem o estado que se sustenta sobre a transferência do poder do povo aos seus
chefes, por meio de uma constituição, escapa das críticas de Rousseau. Ele
mostra-nos que mesmo havendo obrigações nesse contrato, para ambas as
partes que o firmaram, não há nada que efetivamente obrigue os chefes a segui-
la. Pois o povo não consegue punir os chefes, caso eles não cumpram com sua
parte nesse contrato, já que é jogado à falta de ordem pública quando destitui
seus chefes (ROUSSEAU, 2000, p. 109).

Assim, mesmo que os chefes legislem a seu favor e em detrimento do povo, não
cumpram com alguma cláusula da constituição, o povo que não sabe exercer
sua liberdade prefere manter essa ordem pública a não ficar com nenhuma.
Acompanhemos algumas palavras de Rousseau nesse sentido: “o povo, já
acostumado com a dependência, com a calma e as comodidades da vida, e já
incapaz de quebrar seus grilhões, consentiu em deixar aumentar sua servidão
para assegurar sua tranquilidade” (ROUSSEAU, 2000, p. 109).

Rousseau (2000, p. 110), então, como uma última pá de terra sobre um corpo
já totalmente enterrado, sintetiza o processo político da humanidade até seu
tempo como: o desenvolvimento do processo da desigualdade nas diferentes
revoluções políticas que ocorreram desde o estabelecimento da propriedade
privada. Se no estado de natureza o homem não exercia a liberdade, era

7 Rousseau acabará as pesquisas que iniciou aqui, na Origem das desigualdades entre os homens, na sua obra
Contrato Social, em que o povo é o “corpo político”: ou seja, o “Estado”, quando passivo, ou o “Soberano”,
quando ativo.

50
Pensamento Filosófico Moderno

porque não tinha desenvolvido a razão, apenas a possui latente em si; mas,
na Europa do século XVIII, ele não exercia a liberdade porque acabou durante
a história do desenvolvimento da razão até ali, a qual coincide com a história
do desenvolvimento social da espécie humana, dando atenção à satisfação de
necessidades que surgiram em virtude da convivência social mas que não estão
de acordo com a natureza humana.

E diante de tudo o que foi exposto até aqui, podemos concordar que o processo de
desenvolvimento da política, aos olhos de Rousseau, pode ser dividido em três fases:

1. O estabelecimento da lei e da propriedade privada;


2. A instituição da magistratura (instituição de chefe investido de
autoridade pública, o soberano);
3. A transformação do poder legítimo em poder arbitrário (quando o
chefe legisla em seu benefício e em detrimento do povo).

Essas fases representam diferentes épocas da história da humanidade, afirma-


nos Rousseau. Ele resume as desigualdades presentes entre os homens, em cada
fase, do seguinte modo: a fase 1 autorizou o estado de rico e pobre, a fase 2 de
poderoso e de fraco, e a fase 3 de senhor e de escravo.

O cerne de todas essas fases está na corrupção da natureza humana. É


o desejo de dominação do soberano que o leva a legislar em causa própria, e
que ele só mantém-se no poder quando consegue que parcela do povo o apoie
em troca de benefícios particulares. Essa parcela consente, então, em carregar
grilhões para poder também aplicá-los. Já a outra segue também as decisões
daquele, porque espera trocar de lugar com a primeira dessas parcelas. Assim,
como mote de processo, a falta de liberdade manifesta-se na falta de igualdade
entre os homens.

Ainda considerando essas fases, compreende-se que na terceira temos o estado


de natureza enquanto um ambiente hostil: em que as paixões imperam e cada
indivíduo busca realizar as suas em detrimento das outras. Corrupção do primeiro
estado de natureza, quando a pureza da natureza humana se fazia presente, e,
por isso, neste o mal impera, a infelicidade se faz presente, está mais para um
estado de guerra.

51
Capítulo 2

Seção 4
O Emílio e Do Contrato Social
As obras Emílio e Do Contrato Social, ambas publicadas em 1762, visam a
reformular a sociedade vigente em seu tempo, a qual nosso autor demonstrou
estar corrompida na sua obra Sobre a Origem das Desigualdades, publicada
em 1755. Rousseau, por meio dessas duas primeiras obras, mostra como viver
de acordo com a natureza, como fugir da corrupção da natureza vigente em seu
tempo. Mostra-nos como é possível viver feliz mesmo depois de a humanidade
sair do que denomina de época de ouro, a qual viveu logo após a saída do
homem do estado de natureza.

Na sua obra de 1755, apresentou suas razões para defender que antes da
fundação da propriedade privada e a transferência de poder do povo a um
magistrado, a vida ocorreria de acordo com a natureza, isso concedia felicidade
ao homem.

No entanto, com as obras de 1762, ele não busca demonstrar um caminho para
o homem voltar àquele estado de natureza. Não crê que a vida, de acordo com
a natureza, regenere-se pela destruição do estado social. Sobre isso, podemos
seguir as palavras de Chauí (1997, p. 13), em sua apresentação da teoria de
Rousseau na coleção Os Pensadores:

O homem, para Rousseau, não se regenera pela destruição da


sociedade e com o retorno à vida no meio das florestas. Embora
privado, no estado social, de muitas vantagens da Natureza, ele
adquire outras: capacidade de desenvolver-se mais rapidamente,
ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos
sentimentos e elevação total da alma. Se os abusos do estado
social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o
homem deveria bendizer o instante feliz que o arrancou para
sempre da animalidade e fez de um se estúpido e limitado uma
criatura inteligente. O propósito de Rousseau é combater os
abusos e não repudiar os mais altos valores humanos.

E as suas obras de 1762, buscam demonstrar como combater esses abusos


citados aqui. No Emílio, busca demonstrar como o indivíduo é capaz de assim o
fazer, o que passa por um determinado tipo de educação que esse indivíduo deve
receber desde a sua mais tenra idade. Já no Contrato Social, mostra como a
sociedade deve combater esses abusos.

52
Pensamento Filosófico Moderno

A proposta pedagógica da obra Emílio


Emílio é um ensaio pedagógico sob a forma de romance em que Rousseau
mostra o que uma criança deve realizar para evitar os caminhos maus, os
excessos da vida vigentes numa sociedade corrompida. Defende que, por
natureza, a criança é boa: logo, para se transformar num adulto bom basta seguir
sua trajetória sem desviar-se por caminhos maus.

O objetivo dessa obra, portanto, é mostrar como desenvolver as capacidades naturais


da criança e mantê-la longe dos males sociais.

Segundo Frangiotti (2001, p. 38), para Rousseau: o desenvolvimento das


capacidades naturais da criança ocorre quando ela se encontra em contato direto
com as necessidades que são os objetos dessas capacidades; já para manter
a criança afastada dos males da sociedade, não se deve deixar as paixões que
movem a sociedade injusta desenvolverem-se na criança, o que, por sua vez,
consiste em não deixar que tenham êxito as ações movidas por essas paixões e
que a criança venha a realizar.

Assim, seguindo Frangiotti (2001, p. 38), temos que:

O bebê logo percebe que suas lágrimas produzem mais do que a


satisfação das suas necessidades: elas alteram o comportamento
dos adultos à sua volta: são eles os instrumentos que mediam a
satisfação das suas necessidades. Pouco a pouco o bebê perde
o interesse em simplesmente saciar essas necessidades e passa
a se entregar a paixão de controlar os adultos. [...] A solução de
Rousseau para evitar o surgimento da paixão no bebê consiste
em torná-lo dependente não das suas vontades, mas das coisas.
O tutor deve, por assim dizer, desaparecer, deixando a criança
em contato direito com as coisas. Suas reações devem ser
provocadas por elas e a satisfação de suas necessidades não
devem ser mediadas por seus adultos.

A criança deve ligar a satisfação das suas necessidades às coisas que a


satisfazem e não a como usar os adultos para satisfazê-las. Se a educação se
der de acordo com esses preceitos, a natureza humana não se corromperá nessa
criança, isto é, ela não buscará se sobressair sobre os demais indivíduos em
alguma medida. Logo, paixões como vaidade, avareza, ambição não comporão o
rol de suas paixões.

Diante disso, podemos concluir que o tutor, de acordo com essa proposta
pedagógica, não é alguém que impõe sua vontade ao seu discípulo, mas alguém
que instrui esse último. Isso se deve ao fato de que uma criança jamais aceitará

53
Capítulo 2

uma proibição, mas aceita o fato de que o estado de coisas em que está inserido
impede que ela tenha sua vontade atendida. Por exemplo, segundo Frangiotti
(2001, p. 37), a atitude de um tutor rousseauniano para evitar que uma criança
coma mais doce não é dizer “não coma mais doce”, mas sim dizer “o doce
acabou” e providenciar para que o doce não esteja à vista da criança.

Se for negado algo à criança, ela não entenderá que aquilo não lhe é conveniente,
mas que aquilo lhe foi negado. A paixão que moveu seu desejo por tal objeto
continuará existindo. Além disso, quando adulta, ela poderá usar do fato de negar
a paixão de outros indivíduos a seu favor, de modo a conseguir realizar as suas
próprias paixões com isso.

Repetindo, a ideia é tornar a realização das paixões dependente das coisas, não
do uso de outros indivíduos para obter essas últimas. Assim, temos que a criança
deve ser educada de modo a contar apenas consigo próprio para a satisfação
de suas necessidades. Um exemplo disso, dado por Rousseau, e que Frangiotti
(2001, p. 39) muito bem resume, é o seguinte:

Rousseau demonstra seu método colocando Emílio (o discípulo)


num jardim [...], o garoto é induzido a plantar alguns feijões
como um tipo de jogo. Sua curiosidade, espírito de imitação
e energia infantil são usados para que cumpra a tarefa. Ele
observa os feijões crescerem enquanto Rousseau faz-lhe um
discurso, apoiando-o no prazer que sente ao ver o resultado de
seu trabalho. O discurso não se apresenta ao garoto como um
sermão porque apoia sua inclinação, em lugar de se opor a ela.
Os feijões pertencem a Emílio porque ele colocou seu trabalho
naqueles feijões.

A estrutura moral de Emílio é formada desse modo, com o contato direto da


criança com as coisas que satisfazem suas necessidades naturais. No exemplo
dado, a ideia de propriedade significa exercer o trabalho direto sobre ela para a
possuir, obtém-se isso por meio de uma situação lúdica.

O tutor deve preparar a criança para o futuro, para o exercício da cidadania.


Por isso, além do exposto até aqui, deve evitar a excitação precoce - criar
expectativas em relação ao futuro – e também a imaginação. Por isso, a criança
não deve ler, exceto livros como do tipo do livro de Robson Crusoé, já que há aí
apenas o relato do contato do homem com a natureza.

Há muitos outros detalhes importantes e polêmicos na pedagogia proposta


por Rousseau, mas o que foi expresso aqui já basta para nosso objetivo, isto
é, demonstrar como o indivíduo pode viver de acordo com a natureza e numa
sociedade civil. Sim, ainda não demonstramos como viver desse modo numa
sociedade civil, isso o faremos na sequência, quando analisarmos a obra Do
contrato social.

54
Pensamento Filosófico Moderno

O contrato social de Rousseau


A proposta política defendida por Rousseau, isto é, sua compreensão de como a
liberdade é possível na sociedade, consiste no contrato social que propõe, o qual se
centra na noção de liberdade que defende, entendida por ele como direito e como dever.

Essa dupla face da liberdade dá-se, justamente, porque ela provém da natureza.
Se por um lado o indivíduo tem o direito de reclamar sua liberdade, por outro tem
o dever de exercê-la. Essa natureza também torna todos os indivíduos iguais em
relação ao exercício do poder. Em outras palavras, faz parte do humano a liberdade
e como essa é a essência da natureza humana, todos em essência são iguais.

Essa noção de liberdade como um direito e como um dever é uma expressão,


segundo Chauí (1997, p. 17), do humanismo renascentista. Sim, a obra de
Rousseau é uma das expressões mais fortes da defesa de que o homem,
enquanto indivíduo, é o sujeito capaz de autodeterminação. Essas características
da liberdade, nessa teoria, impedem a sua transferência de um indivíduo para
outro ou para alguma instituição. Faz parte da essência do indivíduo a liberdade,
não exercê-la diretamente é negar a si mesmo.

A liberdade como um dever é o que difere o Contrato social proposto por Rousseau
do proposto por Locke. Embora esse último autor também concorde que a natureza
possibilita as condições da liberdade e da igualdade, entende que aquela, ou, pelo
menos, parte dela, pode ser transferida a outrem. Entende a liberdade muito mais
como um direito que como um dever. E o fato da realização da liberdade pertencer à
essência humana, exclui a teoria rousseauniana do individualismo. Afinal, a liberdade
não pode ser realizada por cada indivíduo de modo diferente, mas do mesmo modo
por todos, já que é justamente a natureza humana que a possibilita, não algo que foi
desenvolvido pelo indivíduo por meio de seu intelecto.

O individualismo consiste justamente na antítese do indivíduo em relação à


coletividade. Nessa visão, o indivíduo quando se junta à sociedade assim só o faz
para ter seus interesses pessoais atendidos. Ele só concorda com a possibilidade
dos demais indivíduos dessa sociedade terem seus interesses pessoais
atendidos, se isso permitir-lhe realizar os seus também. Nessa sociedade,
portanto, os interesses dos indivíduos não precisam coincidir entre si, basta
coincidirem entre si as regras que consideram convenientes para manterem uma
ordem social que possibilite a cada um satisfazer seus próprios interesses.

Mas, em Rousseau, o respeito à liberdade dá-se quando os indivíduos de


uma sociedade encontram interesses que são compartilhados por todos
eles. Isso ocorre quando o que um indivíduo busca preservar em si é aquilo que
os demais também buscam preservar. Isso é fácil de compreender se lembrarmos
que, em Rousseau, todos os homens são iguais no que diz respeito à liberdade.

55
Capítulo 2

Se a liberdade de um é preservada, a dos demais também o é.

Seguindo novamente os ensinamentos de Chauí (2010, p. 18), podemos assinalar


aqui a seguinte passagem de sua autoria:

Rousseau reivindica a consciência da dignidade do homem


em geral e ilumina o valor universal da personalidade humana,
cuja consciência moral não se traduz do sentimento particular
do amor-próprio, mas da universalidade do amor de si. No
pensamento de Rousseau, o amor de si, constituindo a
interioridade por excelência e a força expansiva da alma que
identifica o indivíduo com seus semelhantes, é a ponte que
identifica o indivíduo com o eu comum, a vontade particular
à vontade geral. Assim é que todos os cidadãos “poderão
identificar-se por fim, com o Todo [sociedade] maior, sentir-se
membro da pátria, amá-la com esse sentimento delicado que
todo homem separado só tem para si”.

Para conseguir realizar o eu comum é necessário estabelecer um contrato


entre todos os indivíduos da sociedade. Pois, embora tenhamos o eu comum,
cada um desses possui características que os tornam singular em relação aos
demais. E essas podem levar, inclusive, ao cultivo das paixões que buscam
negar a natureza humana. Se a criança deve ser educada de acordo com uma
pedagogia que preza pela natureza humana, a vida em sociedade também precisa
de um mecanismo para se dar o respeito a essa natureza. Esse mecanismo
consiste num pacto realizado entre todos e cujo respeito tem como consequência
o respeito ao eu comum: o pacto social rousseauniano.

Esse pacto é descrito por Rousseau (1999, p. 69) na sua obra Do Contrato
Social. Apresenta-o como: “uma forma de associação que defenda e proteja a
pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada
um, unindo-se a todos, só obedece a si mesmo, permanecendo, assim, tão livre
quanto antes”. Trata-se de uma total alienação de cada associado, com todos
os seus direitos, em benefício da comunidade. Assim, é uma alienação do
indivíduo apenas enquanto individualista.

Precisamos, então, ter mais detalhes do que é essa alienação. Trata-se da alienação
do que no cidadão é peculiar de sua individualidade e que vai de encontro ao
que é entendido pela coletividade como correto. Quando essa alienação faz-se
presente, surge “um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos
são os votos da assembleia e que, por esse mesmo ato [a alienação citada], ganha
unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade” (ROUSSEAU, 1999, p. 71). Logo,
o que é decidido nessa coletividade não vai contra ao súdito, pois também proveio
desse. À vontade dessa coletividade, Rousseau deu o nome de vontade geral.
Conceito extremamente famoso até hoje.

56
Pensamento Filosófico Moderno

Aqui é importante ter bem claro que as decisões obtidas na coletividade a la Rousseau
não são obtidas pela soma da vontade dos indivíduos que a compõem, mas pela
vontade da comunidade que esses juntos formam.

Isto é, não consistem em decisões a que os indivíduos chegaram porque,


coincidentemente, elas são convenientes para cada um deles, mas que eles
chegaram por meio daquilo que os tornam membros da mesma coletividade,
aquilo que os identifica como um grupo cujos integrantes querem desenvolver
suas vidas juntos.

Pinzani (2009, p. 127) nos apresenta um exemplo para diferenciar a vontade de


todos da vontade geral, acompanhe:

um governo po­deria decidir vender a investidores estrangeiros


todos os recursos naturais do país para redistribuir os proventos
entre os cidadãos e estes últimos poderiam apoiar unanimemente
esta decisão pen­sando no dinheiro que cada um deles receberia
imediatamente. Contudo, uma decisão deste tipo seria contrária
ao interesse da comunidade política se incluirmos nela as
gerações futuras ou se pensarmos na importância estratégica
que tais recursos poderiam adquirir num momento sucessivo. A
vontade de todos os cida­dãos não coincidiria neste caso com
a vontade geral.

Mas, como chegar a decisões com base na vontade geral? Não, não é por
meio de debates em assembleias, nesses, segundo Rousseau (1999, p. 203), só
se demonstra a defesa de interesses particulares. Se existir divergências entre
dois indivíduos, significa que a natureza própria do homem não está prevalecendo
sobre os interesses (paixões) particulares de algum deles.

Depois de os homens se reconhecerem como iguais ocorre, então, que os


cidadãos proferem a uma única voz quais são as regras que devem imperar na
sua comunidade? Claro que não. É necessário que essas regras sejam decididas
em assembleias, mas não por meio de debates.

As assembleias devem ser lugares onde propostas são apresentadas e os


cidadãos as votam. Servem para se ratificar ou não propostas provindas de
magistrados. Mas, mesmo assim, nosso autor não é ingênuo (é romântico,
mas não ingênuo) a ponto de defender que haverá uma unanimidade entre os
cidadãos na votação de alguma proposta. Acompanhe um trecho de sua obra em
que mostra como as decisões devem ser obtidas nas assembleias:

57
Capítulo 2

Quando se propõe uma lei na assembleia do povo, o que se lhes


pergunta não é precisamente se aprovam ou re­jeitam a proposta,
mas se estão ou não de acordo com a vontade geral que é deles;
cada um, dando o seu sufrágio, dá com isso a sua opinião, e
do cálculo dos votos se conclui a declaração da vontade geral.
Quando, pois, domina a opinião contrária à minha, tal coisa não
prova senão que eu me enganara e que aquilo que julgava ser
a vontade geral não o era. Se minha opinião particular tivesse
predominado, eu teria feito uma coisa diferente daquela que
quisera; então, é que eu não seria livre. (ROUSSEAU, 1999, p.
205 Apud PINZANI, 2009, p. 128).

A assembleia é um instrumento para o indivíduo verificar se seus interesses estão


ou não de acordo com a natureza, com a vontade geral. Considerando que se
deve estar de acordo com ela, haja vista o que nosso autor descreveu como
causas das desigualdades entre os homens e da infelicidade, resta corrigir os
interesses individuais e se ajustar de acordo com a vontade geral. A assembleia é,
portanto, um meio para saber qual posição sobre o assunto em votação está de
acordo com a natureza.

A vontade geral é, portanto, a liberdade do egoísmo e das paixões individuais.


Itens esses últimos que, conforme já vimos aqui, a educação deve manter longe
da criança, segundo nosso pedagogo Rousseau. Podemos verificar que em
Emílio, a criança é educada de acordo com essa pedagogia, assim, tornar-se-á
um excelente cidadão, capaz de submeter-se à vontade geral.

Temos o povo, que se reúne numa assembleia popular, como o soberano. É ele que,
em última instância, legisla, apesar de a proposta dos conteúdos que são votados pelo
mesmo não provir dele, mas dos magistrados. Mas quem executa essas leis? Não, não
pode ser o próprio povo, porque no trabalho de executá-las poderia fazê-lo de modo a
atender aos seus interesses individuais. Precisa eleger um governo, indivíduos que as
exerçam, um executivo. Esse estaria ligado ao soberano (povo/vontade geral) como o
corpo está ligado ao cérebro: o primeiro deles é comandado pelo segundo. Assim, o
governo não agiria de acordo com os interesses individuais de quem o compõe, já que
o soberano tem sobre ele plenos poderes, pode, inclusive, portanto, destituí-lo, assim
que achar conveniente.

O povo escolhe seu governo para executar as leis que obteve em assembleia
popular e, caso esse último não cumpra com o que aquele lhe solicita, esse
mesmo o destitui. Isso, no entanto, não resulta em uma falta de ordem social,
porque basta ao soberano escolher outro governo. Como esse último não pode
legislar, a liberdade do povo não está enfraquecida, a ponto de não conseguir
escolher outro governo. O exercício constante do poder, por parte do povo,
impede que o usurpem de suas mãos.

58
Pensamento Filosófico Moderno

Há ainda toda uma proporcionalidade que deve existir entre o governo e o número
de cidadãos, isto é, entre o governo e o soberano: “o governo, para ser bom,
deve ser relativamente mais forte, na medida em que o povo for mais numeroso”
(ROUSSEAU, 1999, p. 139). Não entraremos aqui nas explicações das regras que
devem ser observadas para efetivar essa proporcionalidade, limitaremo-nos a
afirmar aqui que, segundo nosso autor, “em geral o governo democrático convém
aos estados pequenos, o aris­tocrático aos médios e o monárquico aos grandes”
(ROUSSEAU, 1999, p.148).

A primeira decisão sobre a forma de governo mais adequa­da para um determinado


povo é tomada não pelo povo, mas pelo autor da constituição que estabelece
se o Estado em questão será democrático, aristocrático ou monárquico. Essa
figura, o legisla­dor, é “o mecânico que inventa a máquina” do Estado. Essa é
uma tarefa árdua, já que atribuir a um povo uma constituição significa modificar
a própria natureza hu­mana, “transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um
todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual, de certo modo, esse
indivíduo recebe sua vida e seu ser” (ROUSSEAU, 1999, p. 110).

Se o executivo é um corpo cujo cérebro que o comanda é o soberano, o


legislador, isto é, quem estipula a constituição de um Estado, é o responsável
pelo sopro de vida que põe para funcionar esse cérebro e, consequentemente,
esse corpo.

Não entraremos aqui na explicação de quem é esse legislador, limitamo-


nos a descrever como sua obra deve ser executada para a liberdade e,
consequentemente, a felicidade a la Rousseau ocorrerem. Cabe a você, como
estudante de filosofia, pesquisar sobre essa figura da obra de Rousseau, já que
os pressupostos para entendê-la foram apresentados aqui nesse capítulo.

59
Capítulo 3

Conhecimento, política e ética na


teoria kantiana

A teoria de Immanuel Kant é, com certeza, uma das teorias que você mais
estudará em qualquer curso de Filosofia. Sua obra é um grande marco da
Filosofia e abriga respostas a muitas das questões gerais dessa área.

Porém, nem sempre o estilo textual de nosso autor é apreciado por muitos
leitores, haja vista suas frases muito longas, formadas por várias orações
intercaladas dentro de uma principal, e os termos técnicos que este vai cunhando
no decorrer de sua obra.

Gostos literários à parte, é necessário conhecer essa filosofia, pela sua grandeza
e para compreender muitas obras posteriores que lhe fazem referência, ou apenas
para entender mais profundamente os problemas filosóficos de que trata.

Esse autor possibilita-nos conhecer muito, inclusive, da história da filosofia, pois


analisa muitas respostas filosóficas dadas até o seu tempo. Embora analise-
as para demonstrá-las incorretas ou insuficientes, o modo como as utiliza,
possibilita-nos conhecer questões da Filosofia que já foram respondidas por
alguns outros filósofos.

Neste capítulo, não é pretensão realizar um estudo aprofundado de algum problema


geral abordado por Kant, pois isso exigiria, no mínimo, um livro todo, não somente
um capítulo. Todavia, com certeza, serão apresentados aqui vários conceitos gerais
das respostas dadas por Kant para as seguintes questões: como conhecemos o
mundo? O que é correto eticamente? Qual deve ser o sistema político?

De posse dos conceitos gerais da filosofia kantiana, é só escolher alguma dessas


questões e ler uma das obras kantiana que a aborda especificamente. O estudo
deste capítulo suprirá você com a devida bagagem necessária para realizar uma
leitura crítica de qualquer obra kantiana à sua escolha.

61
Capítulo 3

Seção 1
Como podemos conhecer o mundo

Crítica ao empirismo
A metafísica, compreendida como a ciência que determina como é possível
o conhecimento, segundo Kant, até sua época, século XVIII, não obtivera
progressos, já que entendia que ela não conseguia dar uma resposta definitiva
sobre como é possível o conhecimento (KANT, 2002, p. 15).

Havia, no entanto, uma teoria do conhecimento que possuía grande aceitação na


época. Trata-se da teoria do conhecimento de John Locke, a qual fora cunhada
no século XVII. Esta consiste em determinar o modo como conhecemos o mundo
a partir da experiência empírica.

De acordo com Locke, o conhecimento dá-se graças aos seguintes passos:

a. a repetição das sensações trazidas pela experiência empírica, as


quais são depositadas na memória;
b. essas sensações são, então, nomeadas;
c. a mente realiza abstrações sobre essas nomeações e, em seguida,
nomeia essas abstrações;
d. depois de nomear essas últimas abstrações, a mente esquece as
sensações trazidas pela empiria que possibilitaram todas essas ações;
e. a mente passa, então, a tratar das ideias somente por meio do discurso,
não mais fazendo referência direta às sensações vindas da empiria.

Assim, seguindo esse viés teórico, o uso da razão torna-se mais complexo e
mais claro com a posse de ideias gerais. Os usos da razão e da palavra, esta
última enquanto nomeação geral, crescem juntos, pois essas nomeações já são o
desenvolvimento da razão sobre as sensações trazidas pela experiência empírica.

No entanto, os críticos da teoria do conhecimento de Locke irão demonstrar


que o seu pressuposto – a experiência empírica como origem de qualquer
conhecimento – não é suficiente para sustentar muitos conceitos apresentados
por essa mesma teoria.

Kant (2002) é um desses críticos. Pega carona na crítica que Hume faz a
Locke, pois foi Hume quem afirmou que do simples fato de percebermos pela
experiência empírica que um evento antecede a outro, não se pode deduzir que
aquele seja a causa deste último.

62
Pensamento Filosófico Moderno

Assim, segundo Kant, na teoria de Locke (2002, p.55):

A razão aprenderia por hábito a sucessão e passaria a crer na


duração necessária dos eventos, criando imaginariamente a
causalidade e estendendo-a para a forma conceitual de princípio. A
razão estaria acreditando retirar uma certeza de si que, entretanto,
é colhida do mundo empírico, no qual tal certeza não existe.

O objetivo da Crítica da razão pura


Kant tem a sua própria explicação para como conhecemos o mundo. Esta está
presente em sua obra “Crítica da razão pura”. Portanto, diante da demonstração
da falta de validade da obra de Locke, nosso autor embrenha-se por buscar
mostrar como conhecemos. E, para isso, a fim de não cair em um círculo
vicioso, isto é, para não usar a razão erroneamente para investigar como a razão
conhece as coisas − conta com a necessidade de um tribunal que a investigue
e a julgue. Esse tribunal não é outra coisa, segundo suas próprias palavras, que
não a própria “Crítica da razão pura” (KANT, 2002, p. 17). Assim, essa crítica irá
apresentar como a razão funciona quando conhece.

O principal objetivo deste capítulo é entender essa crítica da razão: entender o que é
esse tribunal e o que ele solicita da sua ré, a razão, para obter da mesma a verdade – o
modo como conhecemos as coisas.

Tal crítica não começa a investigar como a razão é usada em relação a uma
experiência empírica. Se assim o fizesse, já se estaria tomando alguns conteúdos
como corretos, independentemente da investigação do que é a razão, o que é
um equívoco quando se pretende entender as bases do conhecimento. Afinal,
estaria pressupondo-se que a experiência empírica é realizada de um determinado
modo, o que, por sua vez, já pressuporia um modo de usar a razão. Antes disso, é
necessário verificar o que é a razão para depois, sim, determinar como ela pode ser
usada para conhecer objetos empíricos. O objetivo, então, é demonstrar o que é a
faculdade da razão em geral e não como ela pode ser usada para obtenção de um
determinado conteúdo. Logo, cabe realizar a crítica da faculdade da razão pura.

E nosso autor afirma no prefácio da primeira edição de sua obra Crítica da razão
pura ter conseguido conhecer a faculdade da razão pura. E adianta-nos que esse
conhecimento consiste em saber o que e até onde podem o entendimento e a
razão conhecer (KANT, 2002).

Cabe já mencionar aqui que compreender essa crítica consiste em compreender


dois pontos centrais dela:

63
Capítulo 3

•• porque entendimento e razão, nessa teoria, não são sinônimos,


apesar de estreitamente ligados;
•• porque a compreensão de como conhecemos o mundo restringe-se
ao conhecimento dos limites dentro dos quais podemos conhecer
as coisas, e não ao conhecimento das coisas como elas são em si
mesmas.

E para iniciar a compreensão desses dois pontos, nada melhor do que saber o
que são os juízos para Kant.

Tipos de juízos
O caminho trilhado por Kant para a demonstração dos limites da razão inicia-se
com as diferenças que existem entre dois tipos de conteúdo do conhecimento:
empírico e puro.

A origem do conhecimento está na experiência, mas isso não significa que todo
conhecimento dependa da experiência empírica para existir, pois existem os
conteúdos puros, como os matemáticos, por exemplo. Atenhamo-nos a uma
passagem kantiana que dá base para a compreensão de que existem esses dois
tipos de conteúdo:

Porém, se todo o conhecimento se principia com a experiência,


isso não prova que todo ele derive da experiência. Nosso próprio
conhecimento experimental bem poderia ser composto do
que recebemos por meio das impressões sensíveis e daquilo
que a nossa capacidade de conhecer – apenas acionada por
impressões sensíveis – produz por si mesma, acréscimo esse
que não distinguimos da matéria-prima [experiência sensível],
enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício
que nos capacite a separá-lo. (KANT, 2002, p. 44).

Os conteúdos que a razão produz por si mesma denominam-se conteúdos a


priori (KANT, 2002). Trata-se do conhecimento puro. A partir da experiência
sensível, não com base na experiência sensível, a razão produz esses conteúdos,
o que implica que a sua validade é, portanto, independente da experiência.
Muitas vezes, esses conteúdos servem para a compreensão da experiência
sensível, mas de nenhuma forma dependem dela para se compreender o que são.
Por exemplo, o juízo “5 maçãs’. Ele inicia-se na experiência empírica, mas a parte
do “5” não depende da experiência empírica, depende da nossa capacidade
puramente racional que nos leva a conceituar o “5”. Pois, a disposição de cinco
coisas uma ao lado da outra não nos leva a conceituar “5”, mas sim nossa
capacidade racional.

64
Pensamento Filosófico Moderno

Torna-se necessário agora um critério pelo qual possamos distinguir com


segurança um conhecimento puro de um empírico. Afinal, apesar de ambos terem
origem na experiência, a forma do primeiro desses não depende da experiência.
Na esteira de obter esse critério, Kant examina o que é típico da experiência. O
que for característico a essa não pertence a um juízo que é válido a priori, puro. E
a grande característica dos juízos ligados à experiência é a falta de universalidade
deles: pode-se dizer que um juízo ligado à experiência sensível é válido
considerando a situação da empiria a que está ligado, mas não se pode afirmar
que ele será válido independentemente dessa situação particular da empiria.

Segundo as próprias palavras de Kant (2002, p. 46): “se um juízo é pensado com
rigorosa universalidade, ou seja, de tal modo que, nenhuma exceção seja admitida, não
é derivado da experiência, mas é válido totalmente a priori”.

Depois da distinção entre juízos empíricos e juízos a priori, Kant passa a


dar exemplos do que são juízos a priori, puros. Apresenta que os juízos da
matemática são desse tipo, mas que há diversos outros fora desse campo, por
exemplo, “Todo movimento possui uma causa”.

A importância dos tipos de juízos para o conhecimento


Consideradas as distinções entre os juízos a priori e os juízos dependentes
da experiência, estes últimos também chamados, nessa teoria, como a
posteriori, surge, então, o cerne da teoria de nosso autor: a afirmação de que as
possibilidades de conhecimento, inclusive do conhecimento ligado à experiência
empírica dependem de juízos válidos a priori. Pois, segundo Kant (2002), as
possibilidades da experiência compreendem regras que não são contingentes,
que não dependem da experiência para existir. Diante disso, declara: “a filosofia
precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e a extensão
de todo o conhecimento a priori”. (KANT, 2002, p. 46). Essa ciência nada mais
é do que crítica da razão pura e consiste no que defende por sua filosofia
transcendental, já que transcende, portanto, a experiência empírica.

No entanto, essa ciência não deixa de considerar a experiência empírica


como fator determinante para o conhecimento. Deve-se lembrar de que
precisamos conhecer a razão de modo a poder afirmar que ela está sendo usada
corretamente quando se refere, por exemplo, a um conteúdo empírico em seus
juízos. E esse conhecimento da razão expressa-se, como já vimos, em juízos
sintéticos a priori, não por meio da experiência empírica.

Kant relembra o fracasso a que chegou a teoria platônica do conhecimento,


justamente por ter apenas considerado o mundo das ideias e não também o
dos sentidos, no que diz respeito ao conhecimento. Nas palavras kantianas, a
empreitada de Platão fracassou em virtude deste ter enveredado pelo mundo das

65
Capítulo 3

ideias puras, juízos a priori, mas não ter um ponto de apoio sobre o qual poderia
sustentá-las a ponto de demonstrar por que elas eram corretas em relação à
experiência empírica, inclusive. Cabe, então, à teoria kantiana demonstrar que
não sucumbe ao que a teoria do conhecimento platônica sucumbiu.

Essa empreitada kantiana inicia-se com uma maior especificação dos juízos. Ocorre
que, além de juízos a priori e a posteriori, Kant considerou também que existe uma
maior especificação desses juízos, pois, para ele, os juízos a priori podem ser sintéticos
ou analíticos, enquanto os a posteriori sempre são sintéticos.

Sigamos para compreender o que são juízos sintéticos e o que são juízos
analíticos. Para isso, leia com atenção a citação a seguir lembrando que sempre
faz parte de um juízo, o qual podemos tomar como sinônimo ao que temos como
“oração”, um sujeito e um predicado.

Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está


contido implicitamente nesse conceito A, ou B está totalmente
fora do conceito A, conquanto em ligação com ele. Analítico é
como chamo o juízo do primeiro caso, sintético o do segundo
caso de juízo. (KANT, 2002, p. 49).

É importante a compreensão adequada desses juízos porque é por meio deles que
podemos demonstrar como podemos conhecer os conteúdos que dependem apenas
da racionalidade e os conteúdos que estão ligados à experiência empírica. Essa
distinção de juízos é o ponto de apoio por meio do qual nosso autor não possui apenas
uma teoria das ideias, mas também do conhecimento, que explica como conhecemos
as coisas ligadas à empiria. Essa distinção, como já visto aqui anteriormente, busca
livrar Kant de ser um platônico.

Os juízos analíticos são, como vimos na última citação da obra kantiana, só


explicativos, pois apresentam no predicado aquilo que já está contido no sujeito.
Nesses juízos, como já nos disse Kant, o predicado já está contido implicitamente
no sujeito. Um exemplo de um tal juízo é “todo solteiro é um não casado”. (KANT,
2002, p. 50). A explicação “é um não casado” já está implícita no conceito “solteiro”.

Já os juízos sintéticos são extensivos, “acrescentam ao conceito do sujeito


um predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por
qualquer decomposição”. (KANT, 2002, p. 50).

Logo, temos que os juízos da experiência empírica são todos sintéticos, além
de a posteriori. Pois, seria um absurdo fundar, com base nela, um juízo analítico,
uma vez que não preciso sair do sujeito para formular esse último juízo e, por

66
Pensamento Filosófico Moderno

conseguinte, não preciso do testemunho da experiência para tê-lo. Por exemplo,


o juízo “todo corpo é extenso” é algo que o homem não precisa da experiência
para saber que é verdade, do simples conceito de “corpo” obtenho que “um
corpo é extenso”. Não é preciso analisar corpos no mundo todo para entender
que são extensos.

Assim, o predicado de um juízo sintético a posteriori depende da experiência


empírica para estar ligado ao sujeito. A experiência empírica realiza uma ligação entre
sujeito e predicado de modo que percebo esses dois elementos juntos como um só,
apesar de diferentes, formando, dessa maneira, um juízo sintético a posteriori.

Podemos dar como exemplo de juízo sintético a posteriori: “O menino é bonito”, o


predicado não está no sujeito, pois, apesar de formar um único juízo, a ligação entre
ambos depende da experiência empírica.

O que garante que a pessoa não se engane em relação aos objetos


empíricos? Como garantir que a experiência empírica, e, consequentemente,
o juízo sintético correspondente a ela tenham relação com a realidade?

Assim, entra em cena outro tipo de juízo, os juízos sintéticos a priori (KANT,
2002). São juízos em que o predicado não está contido no sujeito e que a
ligação entre esses elementos, minha intuição da síntese entre eles, não se dá,
no entanto, por meio da experiência empírica, mas unicamente pela razão. Um
exemplo de um juízo sintético a priori é “Tudo o que acontece tem uma causa”.

Esses juízos, os juízos sintéticos a priori, são muito importantes por que
representam conteúdos válidos universalmente, dependem da razão para serem
válidos, e não de condições empíricas como os juízos que são sintéticos a
posteriori. Afinal, nada garante que as condições empíricas simplesmente por
existirem agora irão continuar a existir: logo, enquanto os juízos sintéticos a
posteriori são contingentes, os sintéticos a priori são universais.

Lembrando o que já afirmamos aqui antes, os juízos sobre como a razão deve
ser usada para conhecer o mundo são sintéticos a priori, pois são válidos
universalmente, afinal, não dizem respeito sobre como devo conhecer esse ou
aquele objeto, mas sobre como posso conhecer em geral.

Além de existirem no campo do conhecimento da faculdade da razão, temos que


“em todas as ciências teóricas da razão encontram-se, como princípios, juízos
sintéticos a priori.” (KANT, 2002, p. 52). A matemática 1 é um belo exemplo desse
tipo de ciência, e podemos dar inúmeros exemplos de juízos sintéticos a priori
existentes dentro dessa área.

1 Kant também apresenta juízos sintéticos a priori como existentes nas ciências da natureza. Por exemplo,
“Todo movimento tem uma causa”. (2002, p. 54).

67
Capítulo 3

Um exemplo nesse sentido é 7 + 5 = 12. O 5 não está contido no 7, nem vice-versa, e


essa soma é válida independentemente da experiência empírica, pois não é pelo fato
de ver 5 objetos empíricos postos ao lado de outros 7 que chego à conclusão de que
há 12 desses objetos, mas é simplesmente em virtude da razão que tenho esse juízo
e percebo sua validade. Logo, antes que 5 coisas sejam postas ao lado de 7 coisas
na experiência empírica, na razão já se tem que essa soma resultará em 12. Se ficar
apenas na experiência empírica, não se realiza a soma, apenas perceber-se-á 5 objetos
postos ao lado de outros 7.

Compreendendo a capacidade de conhecer


A razão é capaz de representar o todo formal de um objeto sem seu conteúdo
empírico e é capaz de representá-lo de modo que quando se refere à empiria,
esta é compatível com aquele todo formal. Esse todo formal se deixa expressar
em juízos sintéticos a priori, como veremos,

Façamos uma analogia 2 para compreender essa capacidade da razão, o seu


todo formal. Assim, tome essa capacidade da razão em analogia a uma forma de
pão. A forma possibilita o pão, não só o seu formato, mas ele em si mesmo; pois
do contrário, o pão não conseguiria nem ser assado uniformemente, enfim, não
teria as condições que lhe permitem ser chamado de pão.

Porém, essa forma seria totalmente inútil se não existisse a massa do pão. No caso
da nossa analogia, a capacidade da razão (a forma) seria inútil se não existisse a
experiência empírica (a massa do pão) sobre a qual aquela, então, realiza-se.

Os juízos sintéticos a priori e juízos analíticos fariam parte dessa forma. Já os


sintéticos a posteriori seriam conteúdos que foram possíveis graças a essa forma mas
não fazem parte dela, pois dependem da experiência, não fazem parte da razão pura.

Assim, nossa capacidade de conhecer o mundo, nossa forma de conhecer o


mundo, determina como podemos conhecê-lo e ele só poderá ser conhecido
desse modo. Essa capacidade corresponde ao que, na teoria kantiana, chama-
se sensibilidade e entendimento. A sensibilidade entendida como capacidade de
receber dados sensíveis, o entendimento entendido como capacidade de refletir
sobre esses dados.

Portanto, não se deve confundir, na teoria kantiana, sensibilidade com


experiência empírica. Sensibilidade, portanto, diz respeito às condições que
são atendidas para um objeto ser inteligível para a razão, trata-se de parte da

2 Uma analogia que valerá só até uma certa medida nessa teoria. Avisaremos quando isso ocorrer, bem como o
porquê disso quando for necessário.

68
Pensamento Filosófico Moderno

forma (mais adiante veremos por que não de toda a forma, pois temos também o
entendimento); já experiência, por exemplo, tem a ver com a percepção empírica
de um objeto, trata-se de um conteúdo que já está na forma.

A ideia agora é compreender que condições a razão deve atender em relação a um


objeto para percebê-lo, isto é, para sua sensibilidade apreendê-lo. Temos, portanto,
que compreender do que é feito a forma razão. Em outras palavras, é preciso usar
a razão para conhecer a razão. Assim, temos que a razão é autorreflexiva.

Logo, como nenhuma outra forma do mundo pode ser autorreflexiva, deve cessar
aqui a analogia da razão com uma forma de pão.

Aqui, como já adiantamos, entram em cena novamente os juízos sintéticos a


priori, pois conhecer a razão é ter juízos desse tipo. Afinal, a capacidade de
conhecer tem validade universal, isto é, não depende dessa ou daquela situação
empírica para ocorrer, pois é o que possibilita as situações de conhecimento. E
juízos analíticos, apesar de não dependerem da experiência empírica, pouca coisa
trazem de novidade – seu predicado só explica o que já sabemos em relação ao
seu sujeito (KANT, 2002).

O verdadeiro problema da razão está contido, portanto, na seguinte pergunta: quais


são os juízos sintéticos a priori da capacidade de conhecer? A resposta a
essa questão depende da resposta de uma outra questão: como são possíveis
juízos sintéticos a priori? A crítica da razão pura kantiana demonstrará como eles
são possíveis. Por que, nas palavras de Kant (2002, p.58), temos que “a razão é a
faculdade que nos fornece os princípios do conhecimento a priori”. Portanto, a razão
pura é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori, e esses
princípios são os juízos sintéticos aqui procurados.

O que Kant faz para conseguir responder as questões postas no parágrafo


anterior é dar-se conta dos componentes da razão que, no caso, consistem, de
forma geral, na sensibilidade e no entendimento da razão 3.

Nosso autor demonstra como esses dois componentes – razão e sensibilidade


- associados possibilitam o conhecimento e, inclusive, os juízos sintéticos agora
aqui procurados.

Na primeira dessas partes, na sensibilidade, temos os elementos de acordo com


os quais a natureza humana pode ter percepções; na segunda, no entendimento,
o método que a razão deve utilizar-se para, a partir das percepções, obter

3 Há também a imaginação em Kant. A imaginação é entendida como uma faculdade intermediária entre a
sensibilização e o entendimento e se refere à capacidade de representar o objeto mesmo quando ele não está́
presente. É a capacidade de representação de um objeto intuído, mediante um conceito, o que significa que,
pela imaginação, é possível fazer uma síntese da multiplicidade das coisas percebidas, ou dadas pela intuição.

69
Capítulo 3

os referidos juízos. Essa ordem entre essas partes é necessária, afinal, “as
condições, pelas quais unicamente nos são dados os objetos do conhecimento
humano, precedem as condições segundo as quais esses mesmos objetos são
pensados” (KANT, 2002, p. 58).

Importante
Assim, a capacidade de receber representações – receptividade dos objetos, a
maneira como somos afetados pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Todavia, é o
entendimento que pensa esses objetos e é do entendimento que provém os conceitos.

Quando somos afetados pelo objeto por meio de sua sensação, temos a sua
intuição empírica. Consequentemente, podemos dizer que nosso entendimento
pode realizar juízos sintéticos a posteriori em relação a esse objeto. Já quando
somos afetados por um objeto exclusivamente por meio da razão, sem a sensação
empírica em relação a ele, nossa intuição, sensação, dele é pura e nosso
entendimento só pode ter juízos sintéticos a priori em relação a esse objeto.

A necessidade do entendimento referir-se às intuições implica moldar-se a estas.


Tal necessidade possibilita as representações dos objetos, isto é, possibilita-nos
perceber os objetos.

Assim, existem as representações denominadas puras, são as que não


possuem nada que pertença à sensação empírica, experiência empírica.
Consequentemente, essas representações encontram-se absolutamente a
priori no espírito, são decorrência da forma pura das intuições sensíveis. Logo,
representações que não dependem da percepção empírica são possíveis. O
estudo dessas representações, as quais por fazerem parte da própria capacidade
de representar, e que, justamente por isso, podemos chamar de intuições
sensíveis gerais, na obra kantiana, chama-se “estética transcendental”. (KANT,
2002, p. 66).

Kant (2002) apura, na sua investigação dessa estética, que há duas formas puras
da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori: o espaço e o
tempo, pois não há como pensar nada que esteja fora de um espaço ou de um
tempo. Kant chama essas regras formais de sensibilidade de transcendental, as
quais pertencem à capacidade da razão em geral.

As representações de espaço e tempo são simples formas da intuição, pois,


por exemplo, se das percepções empíricas dos corpos e seus movimentos
eliminarem-se todos os elementos empíricos, espaço e tempo restarão como não
elimináveis e como fundamento a priori desses elementos. Não existe objeto fora
do espaço e do tempo.

70
Pensamento Filosófico Moderno

Temos, aqui, portanto, um juízo sintético a priori sobre a razão enquanto capacidade de
conhecer: que qualquer conhecimento ocorre dentro de um espaço e um tempo.

Mas, além das intuições puras (espaço e tempo) – que determinam nossa
capacidade de receptividade de impressões empíricas, − nosso conhecimento
depende de mais um componente geral: a capacidade de conhecer um objeto
mediante as impressões lógicas dele, captadas por nosso entendimento, também
conhecido como a capacidade de formar conceito a partir das representações
obtidas mediante nossas intuições. “Assim, intuição e conceito constituem os
elementos de todo o nosso conhecimento, de tal sorte que nem conceitos sem
intuição, nem uma intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento”.
(KANT, 2002, p. 89).

Seguindo na explicação kantiana (2002, p. 89) do que são intuição e conceito,


temos que “são puros ou empíricos. Empíricos, quando a sensação empírica –
que pressupõe a presença real do objeto – está neles contida. Puros, quando
nenhuma sensação mistura-se à representação”, como conceitos matemáticos,
por exemplo.

Nas intuições puras da sensibilidade associadas ao entendimento realizado sobre


essas intuições, a matemática pura funda todos os seus juízos necessários −
juízos em relação ao tempo e ao espaço e sem a presença de representações
empíricas. E a geometria funda-se na intuição pura do espaço, a aritmética forma
seus conceitos de número pela adição sucessiva das unidades de tempo, assim
como a mecânica pura forma seu conceito de movimento pela representação
de tempo. Dessa maneira, temos uma explicação para como são possíveis
juízos sintéticos a priori, pelo menos os das ciências teóricas. Esses juízos são
formados pela razão, mais especificamente, pelo entendimento a partir das
formas gerais de intuição da própria razão, do espaço e do tempo.

Como já mencionado anteriormente, devido às condições da nossa natureza,


a intuição apenas contém a maneira pela qual somos atingidos pelos objetos,
ao passo que o entendimento é a capacidade de pensar o objeto da intuição
sensível. Como também já afirmado, nenhuma dessas qualidades tem primazia
sobre a outra. Daí nosso autor distinguir, em sua obra, a ciência das regras da
sensibilidade em geral, que é a estética, da ciência das regras do entendimento,
que é a lógica.

Por sua vez, temos que essa lógica é dividida em duas partes na teoria desse
autor: a lógica do uso geral do entendimento e a lógica do seu uso particular.
Acompanhemos as próprias palavras de Kant (2002, p.90) para a compreensão de
cada uma dessas lógicas:

71
Capítulo 3

Contém a primeira [lógica geral], as regras indispensáveis do


pensamento, sem as quais não pode haver nenhum uso do
entendimento, e, portanto, ocupa-se deste, independentemente
da diversidade dos objetos a que possa referir-se. A lógica do uso
particular do entendimento contém as regras para pensar com
retidão a respeito de terminada espécie de objetos.

Lógica geral é, então, pura lógica aplicada. Nela, separamos de todas as condições
empíricas nosso pensamento, pois elas exercem grande influência sobre o
pensamento. Assim, da lógica geral temos que retirar as influências dos sentidos,
do jogo da imaginação, das leis da memória, do poder do hábito, da inclinação etc.,
portanto, também as fontes dos preconceitos. Uma lógica geral, conquanto pura,
ocupa-se, então, “de princípios puros a priori e é um cânone do entendimento e da
razão”. (KANT, 2002, p. 91).

Essa lógica geral decompõe nos seus elementos todo o trabalho formal do
entendimento e apresenta-os como princípios de toda a apreciação lógica
do nosso conhecimento. Essa parte da lógica é chamada analítica. Segundo
Kant (2002), representa a pedra de toque da verdade na medida em que,
primeiramente, comprova e avalia, com base nessas regras, todo o conhecimento
quanto à sua forma, antes de investigar seu conteúdo.

Assim, a analítica dos conceitos trata da possibilidade dos conceitos a priori. Os


conceitos fundam-se sobre a espontaneidade do pensamento, tal como as intuições
sensíveis (como tempo e espaço) sobre a receptividade das intuições.

Após realizar a investigação de como ocorre o trabalho do entendimento, mais


especificamente no que consiste essa lógica formal, a qual não adentraremos
aqui em função disso representar um estudo bem mais aprofundado dessa teoria
do que nos é permitido aqui, nosso autor chega ao que ele chama de categorias
lógicas do entendimento.

De acordo com essas categorias podemos ter pensamentos, segundo Kant. Elas são
condições de acordo com as quais podemos pensar os objetos.

Tais categorias podem ser dispostas em quatro grupos, como apresentado a seguir.

72
Pensamento Filosófico Moderno

Quadro 4.1 – Quadro das categorias kantianas

1. Da quantidade 2. Da qualidade 3. Da relação 4. Da modalidade

Unidade Realidade Inerência e subsistência Possibilidade –


Pluralidade Negação (substância e acidente) Impossibilidade

Totalidade Limitação Causalidade e Existência – Não


dependência (causa e existência
efeito) Necessidade –
Comunidade (ação Contingência
recíproca entre agente e
paciente)

Esse, para tal autor, é o sumário de todos os conceitos gerais que pertencem
ao entendimento, é o resultado do entendimento sobre as sínteses
realizadas em relação às intuições puras. Graças a esses conceitos é que um
conhecimento é possível.

Nesse sentido, temos aqui, portanto, mais um juízo sintético a priori sobre a nossa
capacidade de conhecer, sobre o que é a forma razão: o de que o conhecimento só é
possível de acordo com essas categorias que pertencem ao entendimento.
Portanto, as categorias lógicas relacionam-se, necessariamente, a priori com os
objetos da experiência, já que só por intermédio delas é possível pensar qualquer
objeto da experiência (KANT, 2012).

O entendimento precisa das categorias para tornar possíveis os juízos e,


consequentemente, o pensamento, este que é a faculdade de operar por conceitos a
fim de chegar ao conhecimento. Quando as regras do pensamento estão de acordo
com o conteúdo que a sensibilidade possibilita em relação a um objeto, opera com
as categorias lógicas corretamente em relação à sensibilidade (representações
sensíveis, experiência empírica), tem-se, portanto, o conhecimento desse.

Diante de toda essa exposição, podemos ver que não conhecemos o mundo como
ele realmente é, mas apenas por meio da nossa capacidade de conhecer, por meio
da nossa intuição e do nosso entendimento que resultam no pensamento. Não
conhecemos o mundo em si, apenas o modo como ele nos aparece, apenas o
seu fenômeno para nós, apenas como o conseguimos pensar corretamente.

No entanto, ainda que Kant conclua que não conhecemos jamais o mundo, senão
por meio das regras formais de nosso entendimento e nossa sensibilidade (as
categorias e as intuições, respectivamente), nem por isso devemos admitir a
teoria desse autor como um idealismo fundado no pensamento, nem a rejeitar
em nome de um empirismo. Afinal, é necessário admitir, também, que há coisas
fora de nós, o que nosso autor faz, já que considera que a experiência empírica

73
Capítulo 3

provém de objetos que existem fora de nós; porém, como ele também nos
mostra, não podemos considerar que essa experiência não é determinada por
nossa capacidade racional de apreendê-la. Assim, a teoria de Kant não é nem
platônica e nem lockeana.

O ponto de toque da teoria kantiana com o mundo empírico é justamente a sua


demonstração de como a razão opera quando conhece e que pode conhecer
por meio das representações que provêm da experiência empírica, afinal, admite
a existência de juízos sintéticos a posteriori. Isso a impede de ficar apenas com
juízos sintéticos a priori.

Podemos dizer que, agora, sabemos por que Kant afirmou no primeiro prefácio da
sua obra Crítica da Razão Pura, que para conhecer como conhecemos o mundo
era necessário colocar a razão na qualidade de uma ré e agir em relação a ela
como o tribunal que deseja saber da mesma como conhecemos o mundo.

Seção 2
Como devemos agir eticamente
A resposta kantiana para a questão “como devemos agir eticamente?” é uma das
mais fecundas da história da Filosofia. Essa resposta é dada por Kant em seu livro
Fundamentação da metafísica dos costumes, cujo objetivo central é encontrar e
estabelecer o princípio supremo da moralidade, o qual Kant chama de Imperativo
Categórico. Este é, certamente, um dos textos clássicos no estudo dos temas éticos.

Muitos trabalhos acadêmicos já foram realizados para a compreensão e


investigação dessa obra. Seguiremos aqui um desses trabalhos, o realizado por
Darlei Dall’Agnol, para um livro didático sobre o tema da moralidade kantiana.
Como afirma Dall’agnol (2009, p. 55), o projeto de uma “metafísica dos costumes”
pretende apresentar os princípios a priori do direito e da ética.

Kant procurará estabelecer o princípio supremo da moral, como ele próprio


escreve, “pela simples análise dos conceitos da moralidade”. (KANT, 1980, p.
4). O autor compreende que esses conceitos são válidos a priori e, portanto, a
simples análise do que são permitirá compreender o que todos compartilham: o
princípio da moralidade. Uma vez encontrado tal princípio, pode-se discutir quais
leis jurídicas, por exemplo, seguem-se dele.

Entretanto, se o princípio da moralidade é dado a priori, como podemos ser livres?


Afinal, Kant mostrou-nos que não criamos os objetos de nossas representações, quer
elas resultem em juízos a priori ou a posteriori. Logo, não criamos o juízo referente ao
princípio da moralidade. Pois, como no conhecimento, na moralidade não criamos os
seus conteúdos. Porém, isso quer dizer que somos determinados?

74
Pensamento Filosófico Moderno

O texto a seguir demonstra como Kant consegue salvaguardar a liberdade, apesar


de defender que o que nossa razão é capaz de conhecer é apenas o que a ela é
dado enquanto representação.

A saída de Kant em relação à crítica de seu princípio moral é não possibilitar


a liberdade

Kant procura salvaguardar a possibilidade da liberdade distinguindo entre fenômeno


e noumeno: o fenômeno é o modo como o objeto nos aparece (na sensibilidade e no
entendimento); e o noumeno é a coisa-em-si (pensada pela razão), independente de
nós. Como fenômenos, todos os objetos estão determinados por relações de causa e
efeito, e, nesse sentido, o mundo natural é completamente determinado causalmente.
Essa é a tese do determinismo natural, que, aparentemente, leva à negação da
liberdade, e, por conseguinte, a moralidade seria uma mera ilusão ou ficção.

Todavia, não é contraditório atribuir a liberdade à coisa-em-si, e, de fato, isso é


até mesmo necessário para evitar o determinismo natural. Assim, a liberdade é a
ratio essendi, é uma condição de ser da moralidade. Porém, nessa obra não se
prova que existam coisas-em-si. Por isso, na Fundamentação da metafísica dos
costumes (1785), obra que precede tanto a Crítica da razão prática (publicada
em 1788) quanto a própria Metafísica dos costumes (publicada em 1797), Kant
não afirma que exista moralidade ou que o Imperativo Categórico é algo real.
Simplesmente, supõe que, se ele existir, ele terá tal e tal forma. Será exatamente
a tarefa da Crítica da razão prática: provar que a liberdade é real e que,
por conseguinte, a moralidade também não é mera ficção. É bom salientar,
todavia, que em Kant há apenas uma razão pura, com dois usos: o teórico e o
prático. A diferença fundamental é entre o domínio das leis naturais, descritivas,
e o domínio das leis morais, imperativas ou prescritivas. Kant, na segunda crítica,
prova a efetividade da liberdade por meio do Faktum da razão, isto é, por meio
da consciência da moralidade, sendo efetiva, é a ratio cognoscendi da liberdade.
Em outros termos, temos consciência da moralidade e assim somos
obrigados a nos determinar a agir a partir dela. Tal Faktum da razão é
suficiente, segundo Kant, para garantir a realidade e a efetividade da lei
moral. Determinar a partir da moralidade significa: escolher agir de acordo com
ela, quando agimos de forma moral, ou escolher agir contra ela, o que ocorre
quando agimos de forma imoral. Significa ser livre, escolher, apesar de não poder
escolher qualquer coisa, mas só agir de acordo ou contra a moralidade.

Finalmente, a obra Metafísica dos costumes aplica o princípio supremo da


moralidade ao âmbito do direito (por exemplo, garantindo a propriedade) e
ao âmbito da ética, ou seja, explicitando quais são os deveres de virtude que
efetivamente temos em relação aos outros e também em relação a nós mesmos.

Fonte: Adaptado de Dall’Agnoll, 2009, p. 56-7.

75
Capítulo 3

Provada a existência da liberdade em outras obras kantianas, voltemos à análise


da obra Fundamentação da metafísica dos costumes, em que ele apresenta o
princípio da moralidade, de acordo com o qual ocorre a liberdade humana.

Inicia essa obra demonstrando que a nada nesse mundo exceto uma vontade boa 4
pode ser atrelado ao predicado bom. Nesse sentido, critica uma ética baseada
exclusivamente nas virtudes, por exemplo, a ética aristotélica, e também critica a
ética utilitarista.

As justificativas kantianas para não considerar como correta uma proposta ética
do tipo proposto por Aristóteles consistem no fato de que muitas dessas virtudes
em algumas situações são más. Por exemplo, a coragem é uma das virtudes, mas
quando existente em um assassino só potencializa o poder desse para realizar o mal.

Já a crítica kantiana à ética utilitarista dá-se em virtude do fim último dessa ética ser
o bem-estar, e este varia de pessoa para pessoa. Contudo, a moralidade não pode
variar de pessoa para pessoa, já que consiste no que é bom para todas as pessoas.

Seguindo Dall’Agnoll (2009, p. 58), temos que Kant também argumenta contra o
utilitarismo de Hutcheson e Hume. A crítica kantiana aqui pode ser resumida na
afirmação de que uma ação não pode ser absolutamente considerada boa a partir
de seus resultados, por exemplo, por trazer o maior prazer ao maior número de
pessoas. Ao contrário, muitas ações imorais podem ter esse caráter, por exemplo,
a exploração sexual de mulheres até pode trazer prazer para um grande número
de indivíduos, mas ela é imoral, má em si mesma.

Já a vontade boa kantiana, o que dá base para o seu princípio da moralidade,


é válida em si mesma, isto é, não é boa em virtude deste ou daquele resultado
que pode ser obtido por meio dela, mas é boa em si mesma (KANT, 1980). Logo,
as ações morais que são deduzidas dessa vontade boa não são boas nessas ou
naquelas circunstâncias, mas são universalmente boas.

O valor moral da ação está, portanto, em seu cumprimento por dever (e não
meramente em conformidade com o dever). Por exemplo, se respeitar o sinal
vermelho no trânsito é moralmente correto em virtude dessa ação ser a expressão
do respeito à vida dos indivíduos que estão no trânsito, meu ato de parar diante do
sinal vermelho só é moralmente correto se eu assim o fizer em respeito à vida dos
demais indivíduos que estão no trânsito. Então, se eu paro diante desse sinal para
não ser multado, xingado ou por qualquer outro motivo que não o respeito à vida dos
demais indivíduos que estão no trânsito, esse meu ato não é moralmente correto,
está conforme o que o dever ordena, mas não ocorre por dever, isto é, não ocorre
em virtude do meu respeito ao dever.

4 Por “vontade boa”, Kant entende o cumprimento das exigências do dever moral por uma pessoa motivada
única e exclusivamente pelo próprio dever, e não uma vontade que é benevolente ou generosa (DALL’AGNOLL,
2009, p. 57).

76
Pensamento Filosófico Moderno

Assim, temos que há duas formas de cumprir o dever, mas só aquela que ocorre
por respeito ao dever é correta, e que a lei moral que se funde sobre a boa
vontade é universal, não depende dessa ou daquela situação para fazer valer os
conteúdos morais que possibilita. Diante de tudo isso, fica fácil, então, entender
o princípio (lei geral) da moralidade kantiana, o qual é o seguinte: “devo sempre
proceder de maneira que eu possa querer também que a minha máxima torne-se
uma lei universal”. (KANT, 1980, p. 17).

Esse princípio trata-se de um juízo sintético a priori, não depende da


experiência para a razão obtê-lo, já que é universalmente válido, e seu predicado
não está contido no seu sujeito, não se trata de um juízo analítico.

É importante ter bem claro o significado desse princípio. Tenha claro que as regras
que se obtêm por meio dele não são a mesma coisa que as máximas que movem
essas regras. Uma máxima, nesse sentido, é aquilo que move uma ação minha de
acordo com o princípio. No nosso exemplo de parar diante do sinal vermelho no
trânsito, a máxima dessa regra era o respeito à vida, e a regra é, então, justamente
esta: “deve-se parar diante do sinal vermelho no trânsito”. Logo, quando realizo
uma ação em que a máxima que a moveu pode ser universalizada, isto é, qualquer
ser racional deve querer essa máxima, tal regra, na teoria kantiana, é moralmente
válida, está de acordo com o princípio categórico kantiano.

Podemos dizer que o valor moral de uma ação, de uma prática, de uma virtude
comporta três momentos decisivos, os quais seguem a ordem em que estão
dispostos a seguir.

1. o estabelecimento de máximas, ou seja, de regras subjetivas do


agir – os motivos pelos quais o indivíduo visa a realizar uma ação;
2. um “teste” dessas máximas pelo Imperativo Categórico (ou sua
“dedução” a partir dele). Isto é, verifica-se se essas máximas são
válidas universalmente, podem ser queridas por todo ser racional;
3. um modo específico para cumprir as regras que são movidas por
essas máximas, isto é, deve-se cumprir essas regras em virtude das
suas máximas, por respeito ao dever.

Realizadas essas três etapas, realiza-se uma ação moral.

Temos, então, que o Imperativo Categórico não consiste em uma regra moral,
mas a forma a que todas as regras morais respeitam. Kant apresentou uma
formulação geral do Imperativo Categórico na obra Fundamentação da
metafísica dos costumes, fórmula que já foi apresentada aqui, e uma série de
elaborações secundárias que procuravam torná-lo intuitivo, isto é, compreensível
em seus pressupostos básicos.

77
Capítulo 3

Devido ao espaço que é necessário para a apresentação e debate de todas essas


elaborações secundárias, não as traremos neste estudo. Apenas traremos a
conclusão que após essas elaborações nosso autor chega para a área do direito.
Essa conclusão consiste no que deve, portanto, ser o princípio geral do direito:
“uma ação qualquer é correta se ela pode coexistir com a liberdade de todos,
de acordo com uma lei universal ou se, sob sua máxima, a liberdade de escolha
pode coexistir com a liberdade de todos, de acordo com uma lei universal”.
(KANT, 2003, p. 396).

Seção 3
A proposta política kantiana
Segundo Pinzani (2009, p. 139), o pensamento político kantiano é fortemente
inspirado por Rousseau e apresenta traços característicos do republicanismo deste
autor, além de outros que remetem ao liberalismo de Locke. Todavia, é preciso
cuidado para, além de enxergar as semelhanças entre as teorias políticas de Kant e
de Rousseau, também perceber as grandes diferenças que existem entre elas.

Kant defende que o modelo ideal de política é o de uma república. Assim,


temos que ele continua o projeto moderno do republicanismo. Para esse autor,
as formas de governo são duas: república e despotismo. Como Montesquieu,
descarta o despotismo como um modelo capaz de exercer a política
adequadamente.

Defende a república porque considera que essa é caracterizada pela divisão


dos poderes e pelo princípio de representação, isto é, pelo fato de o poder
soberano ser exercido não diretamente pelo povo (que é seu de­tentor), mas
por representantes. Quando essas duas condições não são preenchidas, há
despotismo para o nosso autor.

O tipo de republicanismo defendido por Kant o coloca em oposição à teoria


rousseauniana, tendo em vista o que esta defende por poder executivo. Sobre
essa forma de representação do governo, Kant afirma que:

A democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente


um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos
decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por
conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem, no
entanto, serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade
geral consigo mesma e com a liberdade. (KANT, 2008, p. 14).

78
Pensamento Filosófico Moderno

Logo, não é porque o despotismo é realizado pela maioria de um Estado que


aquele deixa de ser despotismo. E quando os poderes legislativo e executivo
coincidem, o que é o caso da democracia rousseauniana, corre-se, então, o risco
de haver o despotismo da maioria em relação a uma minoria.

A necessidade kantiana é demonstrar como é possível o exercício da


representação do governo sem que haja o despotismo, seja o despotismo de
um contra muitos – caso da monarquia – seja o despotismo de muitos contra
um – caso da democracia. E a proposta kantiana para o exercício do governo
na república que defende é que esse exercício seja conforme o direito que esse
mesmo autor propõe. (KANT, 2008).

Ocorre que Kant, com base no que considera por moralidade, defende a
necessidade de uma ordem jurídica que possibilite o exercício dessa moralidade
e, além disso, a segurança pública. Assim, a república que propõe deve seguir
os preceitos dessa ordem. No entanto, isso não quer dizer que essa república
contenha em si uma série de preceitos morais que devam ser seguidos por seus
cidadãos, afinal, preceitos morais só o indivíduo pode dar-se (são internos).
Contudo, quer dizer que os cidadãos podem realizar suas atividades na
sociedade e de modo a procurar desenvolverem por si próprios a moralidade.

Pinzani (2009) sintetiza as três principais características da república kantiana.


Pois, segundo esse comentador da obra kantiana, as características gerais dessa
república são as seguintes: todos os cidadãos devem possuir liberdade legal,
igualdade civil e independência civil. E, logo em seguida, passa a apresentar
uma síntese do que significa cada uma dessas características na obra kantiana.
Acompanhemos, resumidamente, tal síntese.

1. A liberdade legal consiste na autonomia que faz com que um


indivíduo possa procurar sua felicidade com base em uma ideia
sua sobre a natureza daquela. Em outras pa­lavras, ninguém pode
obrigar alguém a ser feliz à sua maneira. Kant associa tal liberdade
à ideia de que devemos obedecer unicamente às leis às quais
demos nosso assentimento – mas isso não sig­nifica ainda que
obedecemos só às leis que nós criamos. É necessário também
respeitar as leis criadas pelo Estado.
No entanto, a liberdade legal garante que o Estado não deve
determinar qual o caminho que o indivíduo deve tomar para ser
feliz, isto é, não deve estabelecer o projeto de vida do indivíduo. O
que implica também em o Estado garantir segurança para que os
outros indivíduos não impossibilitem esse projeto.

79
Capítulo 3

Aqui, podemos perguntar-nos se leis antidrogas, leis trabalhistas que estipulam


o número máximo de horas de trabalho não estariam impedindo a liberdade legal
dos indivíduos, uma vez que interferem no projeto de vida deles.

De qualquer modo, aqui, nessa característica geral de sua república, Kant parece-
se muito com Locke, no que esse defende por liberdade. Já que concorda que é
justamente da necessidade de coordenar as diversas liberdades individuais, os arbítrios
particulares, que nasce o direito, que Kant de­fine como “a soma das condições sob as
quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem, de acordo com uma lei
universal de liberdade.” (KANT, 2003, p. 76).

Como Montes­quieu e Rousseau, Kant, longe de ver na lei o limite da liber­dade


individual, vê na primeira a condição que possibilita o exercício da segunda.
Ocorre que, como nos diz Pinzani (2009), as ins­tituições estatais, para Kant,
oferecem pura e simplesmente a moldura formal dentro da qual o cidadão
fica livre para perseguir seus fins na medida em que eles conciliem-se com
os dos outros. Em outras palavras, as leis dessa república devem ser tais que
possibilitem o projeto de vida de todos, sem que algum desses possa legalmente
impedir o projeto de vida de outros cidadãos dessa república.

2. A segunda característica da república kantiana é a igualdade civil.


Essa igualdade é aquela de todos perante a lei. O que, por sua
vez, não implica a igualdade econômica ou de condições sociais
entre os cidadãos. É a igualdade dos cidadãos enquanto súditos,
enquanto des­tinatários das normas jurídicas.
Essa igualdade é muito importante para a segurança jurídica – para
que a vida em sociedade transcorra de acordo com as leis jurídicas.
Afinal, sabe-se que se obterá do Estado o selo pelo respeito a essas
leis, mesmo quando essas não são respeitadas, porque o judiciário
pune quem as descumpre. Isso gera um sentimento de segurança
na sociedade, pois essa tem consciência de que deve seguir certas
regras para um convívio social correto e igualitário.

3. A independência civil. Essa característica deve pertencer


àqueles que participam do processo legislativo. Ela está atrelada à
independência econômica. Para Pinzani (2009, p. 149), em Kant:

Enquanto liberdade e igual­dade constituem simples atributos que


caracterizam o cida­dão republicano, a independência constitui
uma condição para ser plenamente um cidadão. Quem não pode
ser dono de si mesmo, ou seja, quem não possua uma propriedade
que lhe proporcione os meios de sobrevivência sem depender da
vontade alheia, não possui personalidade civil, segundo Kant.

80
Pensamento Filosófico Moderno

Kant considera que cada um pode ser capaz de desenvolver seus talentos e
ser capaz de tornar-se independente financeiramente de outros, condição essa
necessária para um indivíduo fazer parte da política de seu Estado, no caso, ser
capaz de votar, escolher os seus representantes políticos.

Entretanto, independentemente dessa participação política, todas as leis do Estado


aplicam-se a todos os seus cidadãos, quer participantes ou não de sua política.
Todos os cidadãos recebem a moldura kantiana do direito 5, a proteção da
liberdade por parte do Estado, dentro da qual podem desenvolver seu próprio projeto
de vida, desde que esse não impeça o projeto de vida de algum outro cidadão.

Kant preocupa-se pouco com os riscos que podem derivar do egoísmo dos
cidadãos – preocupação típica da tradição republicana, principalmente de
Rousseau e Montesquieu, pois considera que se cada cidadão poli­ticamente
ativo persegue somente seu interesse particular, esses interesses – considerados
singularmente – seriam demasiado fra­cos para prevalecer sobre os dos outros
indivíduos. Além disso, cada cidadão, buscando realizar seus interesses
individuais, não permitiria que o Estado encampasse os interesses particulares
desse ou daquele indivíduo.

5 Mais tarde, na Filosofia, seja na teoria de Karl Marx ou na escola de Frankfurt, realizar-se-á intensas críticas
ao pensamento kantiano, em virtude do princípio de liberdade civil que apregoa.

81
Capítulo 4

Hegel: a tentativa de conciliar


racionalmente o indivíduo à sua época
histórica

É importante já lembrar aqui que Georg Wilhelm Friedrich Hegel viveu na


Alemanha do final do século XVIII e início do século XIX, época em que esse país
era caótico em termos de organização política. Naquela época, essa nação era
formada pela Prússia e Áustria; mas, na realidade, tratava-se de uma grande
colcha de retalhos porque era formada por, aproximadamente, trezentos territórios
independentes. Não existia, portanto, centralização a qual esses vários retalhos
remetiam-se, embora existisse um governo central.

Esse caos na nação alemã levou alguns governantes a patrocinarem os


estudos de indivíduos que não possuíam condições financeiras para tal, mas
que demonstravam ter um bom desempenho intelectual. O objetivo desses
patrocinadores era o de que tais alunos, quando formados, viessem a moldar a
opinião dos indivíduos, de modo que o ducado a que estes últimos pertencessem
fosse defendido por eles. Entre esses alunos, estava nosso autor, Hegel.

Esse patrocínio, no entanto, não era estabelecido por uma relação de troca entre
o patrocinador e o aluno, mas na influência por parte do patrocinador em relação
ao que era ensinado nas instituições de ensino. Porém, Hegel, como muitos
outros alunos das instituições de ensino da Alemanha nesse período, não se
limitou a ler os livros disponíveis nas bibliotecas de onde estudou. Pelo contrário,
buscou também ler as obras que tinham ou vinham influenciando grandes
acontecimentos políticos e intelectuais que ocorriam em alguns outros pontos
da Europa, naquele período histórico. Afinal, a Revolução Francesa ocorreu
em 1789 e as obras de Kant e de outros dos primeiros autores contratualistas,
especialmente Rousseau, tornavam-se grandes referências intelectuais para a
organização política e jurídica dos Estados que estavam estabelecendo-se. Além
disso, as obras de Kant já representavam, naquela época, um marco na teoria do
conhecimento. Logo, a leitura das obras desses autores era indispensável a esses
alunos, apesar de serem obras proibidas naquela época na Alemanha.

83
Capítulo 4

Assim, mesmo que Hegel tenha vivido em uma sociedade política que era mais
parecida com a estrutura feudal, teve contato, por meio dessas obras e desses
acontecimentos históricos, com os ideais da modernidade para a organização da
sociedade e em relação ao conhecimento.

E a marca da modernidade, a racionalidade, é encontrada na teoria de Hegel na


mais alta potência, segundo aponta-nos Assmann (2009). Ocorre que Hegel defende
um sistema metafísico em que a razão não só justifica toda a realidade, mas dá
forma à própria realidade. Deve-se entender aqui “realidade” como aquilo que se
mostra racional no dia a dia, na materialidade. A razão, para nosso autor, realiza um
ciclo na medida em que produz a realidade e a justifica, o que corresponde a um
período histórico; mas não um ciclo que se mostra como vicioso, pois desenvolve-
se a cada ciclo até autorrealizar-se de modo consciente, compondo, assim, uma
espiral ascendente. Desse modo, essa teoria explica a racionalidade desenvolvendo-
se nos diferentes períodos históricos da história da humanidade.

Este capítulo busca apresentar algumas das ideias presentes em todos esses
ciclos, como, por exemplo, a filosofia da história, a liberdade, o papel da
Filosofia, a relação entre indivíduo e universal. Isto é, veremos as principais
características daquilo que Hegel chama de, já que esse é o responsável pelo
desenvolvimento da razão na história.

Claro, a obra desse autor é bastante vasta; só realizaremos aqui um estudo em


linhas gerais de algumas das principais ideias dele. No entanto, pretende-se
dar uma explicação satisfatória para qual é a relação entre indivíduo e universal
proposta por ele.

Boa leitura!

Seção 1
A Filosofia da história e a história da Filosofia
Começamos a apresentação da filosofia da história de Hegel, com uma
importante afirmação, que encontramos na obra de Assmann (2009, p. 15): “para
Hegel, o Ser não tem história, mas é história”.

Ocorre que, em diversas passagens de sua obra, Hegel concebe a racionalidade como
aquilo que é o expresso na história universal. Acompanhe uma dessas passagens:

O único pensamento que consigo traz [a filosofia] é o simples


pensamento da razão, de que a razão governa o mundo, de
que, portanto, também a história universal transcorreu de

84
Pensamento Filosófico Moderno

modo racional. Esta convicção e este discernimento são um


pressuposto relativamente à história como tal. Na filosofia, porém,
isto não é pressuposto algum; demonstra-se nela, mediante o
conhecimento especulativo, que a razão [...], a substância, como
poder infinito, é para si mesma a matéria infinita de toda a vida
natural e espiritual e, como forma infinita, a atuação deste seu
conteúdo. (ASSMANN, 2009, p. 16).

No entanto, não se deve tomar o fato da história ser racional como sinônimo de
que todo o real é racional. Na sua obra “Enciclopédia”, Hegel apresenta que seus
opositores tomaram essas duas palavras como sinônimas em sua filosofia, o que
é um equívoco. Afinal, se nosso autor defender que todo o real é racional, sua
filosofia justificaria qualquer realidade, por mais injusta que fosse. O que, porém,
ele compreende é que o que é efetivo é racional.

Com a explicação do que é o “ser” para esse autor, compreender-se-á melhor o


sentido do que é esse “efetivo”, do que é o racional, a história para esse mesmo autor.

O ser é aquilo que dá mobilidade à história do mundo. (ASSMANN, 2009, p.


27). Ele apresenta-se como o finito e também como o infinito: o infinito é o ser
pensante que possibilita todos os finitos; e o finito consiste na determinação
empírica em que se encontra o ser pensante. (ASSMANN, 2009, p. 25). O que
o ser pensante reconhece no finito como seu, como algo pensado por ele, é
racional, é efetivo do infinito no finito. Logo, na determinação empírica, em uma
época histórica e em um lugar, nem tudo é racional. Como já afirmado, nisso só é
racional aquilo que o infinito identifica como posto por si mesmo ali.

Nesse sentido, como apresenta-nos Rosenfield (2002, p. 30), a Revolução Francesa,


por exemplo, é da ordem da efetividade, pois é a culminação de todo um processo
histórico racionalmente trabalhado, já o terror realizado em nome dela, principalmente
pelos jacobinos, não é racional.

O objetivo da história do mundo é a consciência da liberdade. (ASSMANN,


2009, p. 27). No entanto, essa consciência não ocorre em uma só ação ou por
meio de um só contexto histórico, mas é fruto do processo histórico em que o
infinito e o finito relacionam-se, de modo a haver racionalidade na contradição
que expressam entre si. E é justamente em virtude desse processo que a razão
surge, nessa teoria, como algo diferente do que é a reflexão e o intelecto,
conforme propostos por Kant. A razão, para Hegel, vai para além desses dois
conceitos, pois é a junção dos mesmos. Se a reflexão consiste no processo por
meio do qual se pode conhecer um objeto e o intelecto, por sua vez, consiste no

85
Capítulo 4

modo como o percebemos, a razão hegeliana é a junção desses momentos, da


percepção e da reflexão. Pois embora a reflexão seja infinita − pode dar-se sobre
uma infinidade de objetos − e o intelecto sempre refere-se a um objeto por que
apresenta os predicados desse objeto, não há contradição na junção desses dois
elementos; porque a razão, ao tomar consciência de si na sua compreensão do
objeto, percebe que foi ela que possibilitou ao intelecto realizar-se desse modo,
apresentar o objeto em questão como o faz, e por meio da reflexão, a razão
percebe que é capaz de conhecer esse objeto e de determinar-se em relação a
ele, sem, no entanto, ficar restrita a esse objeto. Logo, se a razão ficasse restrita a
um objeto, fosse, portanto, só finita, sempre só conheceríamos um objeto, o que
é um equívoco, dado a diversidade de conhecimentos que possuímos, de épocas
históricas que temos, por exemplo.

Assim, na contradição entre finito e infinito expressa-se a razão hegeliana, porém,


como visto anteriormente, trata-se de uma contradição produtiva, em que a razão
autorrealiza-se, desenvolve-se.

E é na modernidade, segundo nosso autor, que a razão toma consciência que


a história da humanidade desenvolve-se por meio dessa contradição. Nesse
período histórico, a razão dá-se conta de que é o espírito do mundo, ou seja,
aquilo que possibilitou os diversos períodos históricos da humanidade e que,
graças à contradição mencionada, foi possível passar de um a outro, de modo a
desenvolver-se até se autorrealizar. Na modernidade, portanto, a razão toma
consciência de si.

Assim, só foi possível, em um determinado momento da história, os homens


entenderem que a história é a autorrealização do absoluto. Isso significa que,
nesse momento, dão-se conta de que a história deve ser feita de acordo com a
racionalidade. O, exemplo mais claro dessa tomada de consciência, para Hegel,
é a Revolução Francesa, porque com ela surge um mundo novo, o moderno, em
que o homem assume o comando da totalidade, surgindo, portanto, a liberdade
de propriedade, de religião, de expressão e de participação e representação
política. Os homens são, finalmente, livres, sabendo que o são: “Esta indivisa
substância da liberdade absoluta ascende ao trono do mundo − declara Hegel −
sem que poder algum tenha sido capaz de lhe resistir” (HEGEL, 1992, p. 127).

E a liberdade acaba sendo – Hegel não a nega e nem se preocupa em fazê-lo − fazer
o que se deve: a liberdade do homem consiste em ser servo do espírito, ou, o que
é o mesmo, em saber simplesmente que é servo do espírito do mundo e do povo.
Quem não sabe que é escravo − repita-se − é escravo; quem o sabe, liberta-se, ou
seja, passa a colaborar conscientemente com o que o espírito universal obriga a fazer.
(ASSMANN; DUTRA; HEBECHE, 2009).

86
Pensamento Filosófico Moderno

Com a Revolução Francesa, os homens são livres porque percebem o conteúdo


da racionalidade, o qual se expressa em direitos no Estado em que essa
revolução conspirou, e que esses conteúdos lhe pertencem justamente
porque são seres racionais. Por isso, Hegel afirma que, nesse período, a razão
toma para si a consciência de seu em si. E a razão toma essa consciência
porque percebe que esses direitos são expressão da liberdade, a qual o espírito
veio desenvolvendo no decorrer da história da humanidade para alcançá-la.

Assim, até chegar à modernidade, o espírito passou por um desenvolvimento,


já que, conforme citado aqui anteriormente, a história da humanidade é o
desenvolvimento do Espírito Absoluto em busca da liberdade. A história é “o
fazer-se do espírito”. (HEGEL, 1992, p. 304). “O movimento pelo qual este (o
espírito) constitui a forma do seu saber de si, é o trabalho que o espírito cumpre
como história efetiva”. (HEGEL, 1992, p. 299).

Segundo Rosenfield (2002), ao privilegiarmos a acepção da ideia da liberdade


hegeliana, concebemos a história como um longo – e sofrido – processo de
realização dessa ideia, que nasce com a liberdade de um no mundo oriental (a
liberdade do monarca), passa pela liberdade de poucos no mundo greco-romano,
para chegar à liberdade de todos no mundo moderno, cujo desfecho político é a
Revolução Francesa.

Uma boa figura utilizada para expressar a teoria hegeliana sobre a história é a
espiral, apresentada a seguir na Figura 4.1.

Figura 4.1 − Espiral que representa o movimento histórico da humanidade em Hegel

Fonte: Adaptado de Assmann, 2009.

87
Capítulo 4

Assim, pressupondo todo o dito até aqui sobre o que significa a história para
Hegel e considerando a espiral como representativa desse conteúdo, afirmamos
que o Espírito Absoluto (a razão que se expressa na história da humanidade) é o
fio que forma a espiral, que cada anel dela é uma determinação de si do Espírito
Absoluto, é o tempo do espírito − isto é, um período histórico (história do oriente
antes de Cristo, história greco-romana, modernidade). E essas determinações
formam um percurso no que tange à humanidade (a história humana), o qual tem
uma direção, há o progresso, a realização da liberdade.

Temos, dessa maneira, um ordenamento racional do mundo, por isso, afirma-se que,
na teoria hegeliana, a compreensão da história depende do que seu autor defende
por ontologia. Conta-se, portanto, com um ordenamento racional do mundo. Todavia,
como explicar as injustiças que ocorrem ou ocorreram em vários dos períodos
históricos? Estas ocorreram em relação a indivíduos, não representam a realização
do espírito nesses períodos. Por mais distantes que os fatos históricos possam estar
entre si em um período histórico, guardam uma ordem, uma relação de necessidade.
O que nos aparece como um mal, segundo uma perspectiva individual, é algo
necessário, se vislumbrado pela ótica do regramento total do mundo.

Por exemplo, se as ações repugnantes que muitos monarcas orientais da história


antiga realizaram em relação a seus súditos representam um mal, esse período
histórico foi necessário para a compreensão de que a liberdade existe, embora,
nesse momento histórico, ela só tenha sido compreendida como possível
de ser realizada por um indivíduo. Trata-se de um dos primeiros estágios do
desenvolvimento do espírito. Hegel, no entanto, não pretende justificar como
corretas essas ações de tais monarcas, mas pretende demonstrar como a razão
fez-se presente nesse período da história da humanidade.

Nenhuma possibilidade para manter a individualidade acima do universal é cogitada


por nosso autor. Até porque isso seria uma contradição, já que o universal (infinito)
possibilita o individual (o finito). Nesse sentido, as aflições que acometiam o próprio
indivíduo Hegel, no período em que o exército francês invade a Alemanha – como
a separação de sua companheira, de seu filho natural, a dificuldade de encontrar
trabalho e o temor em relação a esse exército – não lhe permitiam desejar que
essa invasão cessasse ou que nem tivesse ocorrido. Afinal, as ideias presentes
na resolução francesa e que então faziam-se presentes com o exército francês na
Alemanha eram um progresso em relação às ideias que sustentavam a estrutura
feudal presente neste país daquele tempo. Por isso, Hegel afirma que viu, na figura
de Napoleão, quando este adentra em Iena para derrotar os exércitos alemães, a
figura do absoluto encarnada em um indivíduo. (ROSENFIELD, 2002, p. 14-15).

Entretanto, o que faz os indivíduos diferenciarem-se entre si em uma determinada


condição histórica? O Espírito Absoluto determina as individualidades até no
modo como essas diferenciarem-se entre si na condição histórica em que vivem?
Não, não as determina a esse ponto. O espírito determina é o espírito do povo
dentro do qual o indivíduo vive. Isso concede ao indivíduo liberdade, o que,
segundo Assmann, não pode dar-se noutro sentido porque:

88
Pensamento Filosófico Moderno

A liberdade é determinada porque não podemos escolher no


vazio; no vazio, não há ação. Essas determinações ocorrem
por conta de estarmos na história, e por conta de que nossas
escolhas, relacionadas à nossa individualidade, também levam
a necessidades que ocorrem em função de as termos feito.
(ASSMANN, 2009, p. 60).

Assim, a nacionalidade é uma prisão e, ao mesmo tempo, a condição da


liberdade. E também aquilo que o indivíduo realiza em seu dia a dia, apenas
enquanto indivíduo, também determina suas ações subsequentes: depois de
ter feito uma escolha, já não posso escolher algo independente da escolha feita
antes (ASSMANN, 2009, p.60).

Os indivíduos que se dão conta do espírito do povo de que fazem parte e passam
a agir de acordo com esse espírito, são os grandes homens de um povo. São os
que guiam o povo de acordo com o espírito universal (HEGEL, 1985, p. 66).
Aqui, é importante ter claro de que esses indivíduos não criam nada para além
do que as condições históricas possibilitam-lhes, isto é, apenas encarnam de um
bom modo o Espírito Absoluto na fase de desenvolvimento de seu tempo.

Contudo, se é possível alguns indivíduos encarnarem o espírito do povo de que


fazem parte, eles possuem consciência do que as ações desse povo trarão
em relação à realização do Espírito Absoluto? Não, embora esses indivíduos
encarnem o espírito porque esse corporifica-se no povo a que aqueles fazem
parte, não é possível prever suas ações futuras.

Assmann (2009, p. 61) considera essa impossibilidade como a astúcia da razão


para possibilitar a liberdade humana, já que se os indivíduos soubessem as
consequências futuras de suas ações, dariam conta do determinismo em que
vivem. A liberdade dos indivíduos está em não saber quais consequências trarão
suas ações e mesmo assim poder escolher por realizá-las. Logo, podemos
afirmar que a vida dos indivíduos que encarnam o Espírito Absoluto é a expressão
da liberdade, em alguma medida.

Porém, do mesmo modo que muitos indivíduos não se dão conta do espírito
do povo de que fazem parte, muitos povos também não se dão conta de
que pertencem ao absoluto e, consequentemente, não são determinantes
para o desenvolvimento desse absoluto. Para um povo fazer parte desse
desenvolvimento, precisa organizar-se politicamente em um Estado.

Povos “sem Estado” podem desenvolver-se, mas nem por isso têm história:
são − declara Hegel − o passado que “cai fora da história” (ASSMANN, 2009, p.
137). Portanto, “na história universal só pode-se falar dos povos que formam um
Estado”. (ASSMANN, 2009, p. 102). Nesse sentido, na África, onde a sociedade
organiza-se em tribos, “o homem não vale nada” (ASSMANN, 2009, p. 188).

89
Capítulo 4

Afinal, se a liberdade consiste no desenvolvimento do espírito e isso deixa-se encarnar


só na figura do Estado, nos povos que não se organizam por meio do Estado, não há
liberdade em nenhuma medida.

Contudo, não basta um Estado para que haja automaticamente o início da história.
“Assim como o indivíduo, sem a relação com outras pessoas, não é pessoa real,
assim o Estado, sem a relação com outros Estados, não é um indivíduo real”.
(HEGEL, 1976, p. 331). Também aqui desponta a necessidade do outro como
negativo para o desenvolvimento do espírito universal concreto, para que haja um
reconhecimento. Afinal, para haver desenvolvimento é necessário movimento, e
esse só é possível quando há contraposição entre diferentes elementos.

Portanto, em nenhum dos períodos históricos, em nenhum dos anéis da espiral


que apresentamos como analogia do desenvolvimento do Espírito Absoluto, há
unanimidade entre os povos sobre o que é o melhor. Se houvesse essa unanimidade, o
Espírito Absoluto estacionaria nesse período e não haveria novos períodos históricos.

Dado que o espírito desenvolve-se, nenhum “espírito do povo” que existe como
saber (povo que se apreende mediante o pensamento, isto é, organiza-se por
meio do Estado) é definitivo. Todo povo, nasce, desenvolve-se, decai e serve
como pressuposto para o legado de outro, que continua a marcha do espírito
universal. Conforme já assinalou-se a respeito da Fenomenologia: “a morte do
espírito de um povo é trânsito para a vida; mas não como na natureza, onde a
morte de uma coisa dá existência à outra igual” (HEGEL, 1992, p. 75).

Já na introdução da sua obra Fenomenologia, Hegel (1992) faz uma analogia do


desenvolvimento do espírito em um povo com o desenvolvimento de uma semente:
a semente pressupõe o desenvolvimento da planta que lhe deu origem, no caso, o
povo que até então encarnava o Espírito Absoluto; ela germina quando posta em um
solo adequado, isto é, se esse novo povo segue na realização da liberdade; quando
a semente germina, não deixa de existir, mas transforma-se em uma nova planta, a
qual, no auge de seu desenvolvimento, irá produzir sementes, assim também o povo
que encarna o Espírito Absoluto não descarta as conquistas do povo anterior que
se encontrava no caminho da liberdade, mas as pressupõem, e, conseguintemente,
terá suas próprias conquistas como pressupostos para a realização do próximo
povo que vier a encarnar esse espírito. Porém, diferentemente da natureza, onde a
semente que germina dá vida a um ser igual ao que lhe deu origem, no caminho do
desenvolvimento do espírito, um povo dá origem a outro que lhe é diferente, que lhe
será superior em relação à realização da liberdade.

Assim como a semente que não dá vida à planta que lhe deu origem, mas a
uma nova planta, ocorre que um povo não pode encarnar o Espírito Absoluto
em mais de uma de suas determinações. Isto é, um mesmo povo não pode
ser responsável por mais de um dos anéis na espiral do desenvolvimento do

90
Pensamento Filosófico Moderno

Espírito Absoluto, por mais de um dos períodos históricos no desenvolvimento


da liberdade. Cada um desses anéis é, então, pressuposto para o surgimento do
anel seguinte: “o espírito de um povo determinado é só um indivíduo no curso da
história universal”. (HEGEL, 1992. p. 74). Assim, para mantermos coerência lógica
na analogia entre o desenvolvimento de uma semente e o desenvolvimento do
Espírito Absoluto, precisamos sempre admitir que a planta, ao produzir sementes,
morrerá em seguida.

Logo, após o apogeu de um povo na sua realização do Espírito Absoluto, virá a


sua derrocada. Nesse aspecto, podemos novamente incorrer na interpretação
de Assmann, da filosofia hegeliana, porque encontramos nessa interpretação o
seguinte trecho:

O início da morte [de um povo que encarna o Espírito Absoluto],


segundo Hegel, reside exatamente no momento da maior
conquista, ou seja, quando o povo começa a estar satisfeito
com o que conseguiu; quando começa ‘o hábito de viver, um
presente sem necessidades’, quando há uma só preocupação,
a de conservar o que já se alcançou. (HEGEL, 1985, p. 71 apud
ASSMANN, 2009, p. 66).

Em virtude dessa relação entre os povos que encarnam o Espírito Absoluto,


entendemos porque os comentadores dessa filosofia defendem que a história
hegeliana é a história feita pelos vencedores, embora sempre deva haver
perdedores para que haja vencedores. Afinal, embora dependa do passado, a
história é sempre contada no momento presente, pois é impossível ao homem viver
no passado ou futuro, então, o que conta como realização da liberdade é aquilo visto
pelo povo que encarna o Espírito Absoluto, o povo vencedor, naquele momento.

Portanto, é na prática que a liberdade faz-se presente, pois, com isso, ocorre a
ação, mas a prática não modifica o Espírito Absoluto. A liberdade é, portanto,
ahistórica, embora seu desenvolvimento seja histórico. Isso porque a liberdade, o
Espírito Absoluto, não se modifica no seu desenvolvimento, traz em si toda a sua
potencialidade, apenas torna-se para si o que já está em si quando realiza com
plenitude a liberdade, o que ocorre com plenitude no final do século XVIII. Como
já vimos, esse período trazia as conquistas da reforma protestante e contava com
as mudanças ocorridas com a Revolução Francesa, consequentemente, com a
liberdade do indivíduo assegurada pelo Estado.

91
Capítulo 4

Seção 2
A Revolução Francesa e o tomar para si do
Espírito Absoluto do seu em si
A Revolução Francesa é determinante para a filosofia hegeliana. Tanto é assim
que Hegel plantou no pátio da universidade de Tübingen, em 1790, uma árvore,
a “árvore da liberdade”, em virtude da Revolução, que ocorreu em l789. Esse
movimento sociopolítico era, para esse autor, o apogeu do movimento da razão
como fundamento último para as ações humanas, do projeto da modernidade,
que já iniciara no século XV.

Assmann, (2009, p. 28) endossa essa interpretação da conduta filosófica


hegeliana, o que podemos verificar na seguinte passagem desse comentador:

Ele [Hegel] nunca escondeu seu desejo de contribuir para que


a liberdade se instaurasse na Alemanha, para que também a
Alemanha se tornasse “moderna”. Foi essa preocupação e seu
gênio que transformaram Hegel um dos grandes filósofos
modernos, tornando-se, inclusive, o primeiro pensador que se
preocupou em ver a modernidade como um problema filosófico.

A França desse período exala uma nova ordem para a política. Uma ordem que,
como podemos lembrar em nossas aulas de História do Ensino Médio, rompe a
política dos laços da monarquia. Essa nova ordem conta com a emancipação do
indivíduo: este tem valor, é detentor do poder de autodeterminar-se, já que se dá
conta de que a razão deve organizar a vida política.

Essa nova ordem política expressa a liberdade, consiste, na concepção hegeliana,


na realização da liberdade. Como também já apresentado aqui, a liberdade hegeliana
expressa-se em várias figuras (liberdade de pensamento, de propriedade, de culto
religioso). Muitas delas já existiam no desenvolvimento do espírito em etapas
anteriores, mas essa revolução veio, conforme apresenta-nos Rosenfield (2002, p.
11), para unir a política com essas figuras − com a universalização desses direitos.
Agora, a partir da referida revolução, não basta a compreensão de que essas figuras
são racionalmente corretas, mas que o Estado as respeite, porque este precisa ser
racional. Ainda em outras palavras, qualquer Estado racional, portanto, em que o
Espírito é consciente do seu em si – em uma linguagem totalmente hegeliana, assim
o espírito tem para si o seu em si – pressupõe tais figuras. Essa universalidade faz
todos os indivíduos entenderem-se como pertencentes a um todo.

Usando da imagem da espiral como uma analogia do Espírito Absoluto, temos


que o último anel dessa espiral, a última forma em que o espírito autodeterminou-
se até o tempo de Hegel, é aquele em que o homem, por meio da razão, dá-se
conta dos conteúdos racionais obtidos nos anéis anteriores. Por exemplo, o

92
Pensamento Filosófico Moderno

último anel em que a liberdade expressou-se antes da revolução francesa foi na


reforma protestante, na qual privilegiou-se a atividade racional e não os atos de
fé, de submissão a determinados dogmas quanto à religião.

Aliás, Hegel defende que o absoluto tem a necessidade de ligar as pessoas


entre si por meio de um credo religioso, o qual, como você pode deduzir, não
é qualquer um, mas o protestante. Na riqueza da obra hegeliana, encontramos
livros escritos diretamente ao tema da religião.

No entanto, mesmo com sua manifestação positiva em relação à religião, o autor


defende a separação entre a Igreja e o Estado. O Estado é a manifestação política
da liberdade e essa manifestação conta com a eticidade, coisa que parece não
caber no fenômeno religioso. Entretanto, dada a complexidade das justificativas
para essa razão, não adentraremos no estudo delas. Basta a sua compreensão de
que Hegel defendia a separação entre Igreja e Estado e a manutenção da primeira
de acordo com os preceitos do protestantismo.

Segundo Hegel, quais são as características que o governo de tal Estado deve possuir?

Em sua obra Filosofia do direito (1821), defende uma monarquia constitucional, na


qual, segundo Rosenfield (2002, p. 24): “caberia, portanto, ao rei por ‘os pingos
nos is’ ao término de um longo processo de deliberação segundo regras, o que
retirava ao monarca todo o poder discricionário”. Essas regras seriam aquelas
que respeitam as figuras em que a liberdade conquistada pelo Espírito Absoluto
encarna-se naquele momento histórico.

Podemos fazer uma comparação com a teoria de Montesquieu, podemos dizer


que, como este autor, Hegel buscou, por meio da Constituição, impedir que a força
de um indivíduo ou grupo de indivíduos sobrepusesse por meio do Estado sobre
os demais. No entanto, Hegel não propõe um sistema de balanços dos poderes
porque não compreende que este possa ser dividido, portanto, o poder não poderia
frear o poder, conforme defende Montesquieu. Porém, para evitar que os indivíduos
sobreponham-se uns aos outros, propõe um Estado que pressupõe as três
determinações do indivíduo (ASSMANN, 2009, p. 51), isto é, o indivíduo enquanto:

•• pessoa − indivíduo portador de direitos, indivíduo geral 1;


•• sujeito – realizador de ações, portanto, trata-se do sujeito moral, aquele
que é capaz de determinar o que é correto, incorreto, mau, pois tem a
oportunidade de agir de modo a estar de acordo com o Espírito Absoluto;
•• membro de uma vida ética – pertence a uma comunidade existente
em um momento histórico.

1 Dessa determinação do indivíduo, cuida o direito abstrato na teoria do direito hegeliana. Trata-se do conteúdo
mais geral que caracteriza o indivíduo no Estado; portanto, é aquele conteúdo que possibilitou o contrato social
entre os indivíduos.

93
Capítulo 4

Na vida ética, na modernidade, temos primeiro a família, depois a sociedade


burguesa, e, por último, o cidadão. (HEGEL, 1985, p. 104). Aqui, portanto,
também ocorrem três figuras em que a substância determina-se.

Agora, acompanhemos mais uma vez Rosenfield (2002) para entender cada uma
dessas figuras − esferas − da ética na Modernidade, segundo Hegel.

Na primeira esfera da ética, temos a esfera da relação matrimonial entre pais e


filhos e da defesa do aumento do patrimônio da família.

Na segunda dessas esferas, ocorrem as relações sociais propriamente modernas.


Nessa determinação estão, para Hegel, as relações de trabalho, das corporações,
dos processos socioeconômicos e da competição que, frequentemente,
desconhece quaisquer limites entre elas.

Já a determinação ética do indivíduo que lhe é própria em virtude de pertencer a um


Estado, portanto, por ser cidadão, é produzida em virtude das contradições e conflitos
sociais que surgem nas outras duas esferas da ética. O Estado busca resolvê-los, pois
busca mediar esses conflitos de modo a encontrar suas respectivas soluções.

As esferas éticas pressupõem-se. Afinal, para um indivíduo relacionar-se em


sociedade por meio do seu trabalho, do seu pertencimento a corporações e da
sua participação no processo socioeconômico precisa ter sido preparado para tal,
o que, por sua vez, pressupõe a esfera ética da família. E o Estado moderno só
surge por que se faz necessário para a solução dos conflitos sociais decorrentes
da existência do indivíduo na sociedade a que pertencem, isto é, para a solução
de conflitos que os indivíduos, por exemplo, na modernidade, obtêm em virtude
de suas relações no trabalho.

O Estado surge, então, como um terceiro momento que se sucede de dois


momentos anteriores, quando ocorre a suprassunção 2 desses outros dois.

A triplicidade em que a substância, o espírito absoluto, divide-se para formar


um conceito, a determinação do ser absoluto, é frequente na obra hegeliana.
Trata-se do modo como o Espírito Absoluto age para realizar uma etapa em seu
desenvolvimento. Para mais um exemplo nesse sentido, podemos recordar aqui
das determinações do espírito na história, os períodos históricos. Conforme
vimos, sobre o desenvolvimento desses períodos, podemos argumentar que:

•• um período histórico só surge quando o anterior a ele mostra-se


como não mais suficiente para a realização da liberdade − já que
o espírito dá-se conta de que ela está além das possibilidades
históricas permitidas;

2 Aufheben é o termo alemão citado por Hegel para expressar essa atividade. Trata-se da negação do momento
anterior, porém, de uma negação que traz do momento anterior o que este tem de racional.

94
Pensamento Filosófico Moderno

•• o novo período histórico passa, então, a realizar a liberdade até a


mais alta medida em que esse é capaz de realizá-la;
•• do auge da realização da liberdade por esse período histórico,
lança-se a semente para isso ser superado, porque o espírito
continua a desenvolver-se e dá-se conta de que precisa de um novo
período histórico para realizar a liberdade em maior medida, o que
só termina na modernidade.

Porém, é importante lembrar aqui mais uma vez que a superação de um


movimento histórico por outro não implica no último deles descartar o realizado
pelo seu anterior, no que diz respeito à realização da liberdade. Pelo contrário, há
a conservação dessa conquista que, por sua vez, possibilita a próxima conquista
no desenvolvimento do espírito.

Essa triplicidade existente nessa filosofia é chamada de dialética hegeliana.


Acompanhe como Pinzani (2009) buscou apresentar didaticamente essa dialética.

A dialética hegeliana

Na dialética hegeliana existem três momentos. O primeiro é o do universal


abstrato, isto é, de um conceito definido de forma abstrata e imediata. Um
exemplo (apresentado nos pri­meiros parágrafos da Filosofia do direito de Hegel)
é o conceito de vontade, que neste primeiro momento é visto como a simples
faculdade do querer, mas que, justamente por ser mera capacidade potencial
de querer, não quer nada e, portanto, resulta um conceito abstrato e vazio. O
segundo momento é o do particular e da determinação, em que o universal abstrato
“perde-se” em determinações concre­tas, mas isoladas. Para continuar no exemplo
da vontade, signifi­caria considerar esta última somente do ponto de vista das
suas determinações, dos atos de vontade particulares, nos quais ela re­sulta ser
meramente passiva, sendo movida por desejos, necessi­dades, objetos externos etc.
O terceiro momento é o momento do singular, que é universalidade determinada, e
representa a recu­peração do primeiro, mantendo, contudo, a riqueza de conteúdos
do segundo. A vontade é considerada, agora, como algo que não é mera
capacidade de querer, mas é expressão de uma subjetividade que quer conteúdos
determinados para si, sem ser determinada passivamente por eles: é vontade livre
que se sabe como volição e, portanto, ao querer seus objetos, quer a si mesma.

Se o segundo momento representava a negação do primeiro, o terceiro momento


representa a negação da negação. Hegel utiliza, então, uma linguagem lógica ao
formular sua dialética, mas não no sentido da lógica tradicional.

(PINZANI, 2009, p. 172.).

95
Capítulo 4

A forma que a dialética hegeliana trouxe para a política moderna é, portanto, a da


mediação dos conflitos existentes na sociedade civil − dos conflitos existentes
nas relações sociais entre os indivíduos da modernidade – por meio do Estado.
Trata-se do Estado moderno, o qual se utiliza das regras jurídicas para a
mediação desses conflitos.

Todavia, essa mediação não é realizada por todos os indivíduos que fazem parte do
Estado, mas pelos processos e pelas instituições representativos desse todo − ou
seja, nosso autor defende a representatividade política. Ainda, em outras palavras,
nem todos os indivíduos desse Estado executam diretamente o poder político,
apesar de indiretamente o fazerem por ser expressão do Espírito Absoluto.

Os indivíduos que diretamente executam o poder político nesse período histórico


são os representantes da sociedade civil, − das corporações presentes nesta − e
da família.

Ocorre que Hegel não entende que o todo – toda sociedade − deva submeter-se
a resolver os problemas no que diz respeito ao indivíduo, portanto, não admite
que se deve representar os interesses dos indivíduos, mas os interesses que
estes possuem enquanto componentes de uma corporação ou da família, de
instituições. Para compreender como as corporações representam a sociedade
no exercício do poder político, acompanhe o seguinte trecho dos comentários de
Rosenfield a essa questão na obra hegeliana:

[...] estas merecem precisamente a função de mediar os membros


da sociedade com a materialidade de seu trabalho e de suas
relações sociais. E esta forma profissional de representação
produzirá, por sua vez, uma forma de representação política,
quando membros eleitos das corporações vierem a representá-
las, como deputados, no parlamento.
Não é função do Estado ocupar-se diretamente dos indivíduos,
mesmo em suas infelicidades e problemas mais graves, porém
das comunidades às quais pertencem. Cabe ao Estado, nesse
sentido, supervisionar e controlar se os mecanismos sociais estão
funcionando corretamente. (ROSENFIELD, 2002, p. 34).

Essa função das corporações na sociedade civil demonstra a crítica hegeliana


aos modelos de contrato social propostos por Locke, Rousseau e Hobbes, já
que estes buscam resolver os conflitos sociais considerando o que é próprio do
indivíduo, não o que é desenvolvido pelo Estado como resultante da ação da
sociedade enquanto organização civil ou pela família (HEGEL, 2000).

Hegel concebe o Estado Moderno como um todo, mas um todo organizado em


instâncias:

96
Pensamento Filosófico Moderno

1. o estamento camponês, que “tem sua riqueza nos produtos naturais


do solo que ele trabalha” (HEGEL, 2000, p. 39).;
2. o estamento da indústria, que inclui os artesãos e os fabricantes
(HEGEL, 2000, p. 41);
3. o estamento dos servidores do Estado, que se ocupam dos
“interesses universais do estado de sociedade” (HEGEL, 2000, p. 42).

Na modernidade, o indivíduo, ao escolher livremente sua profissão, coloca-se


em um desses estamentos e realiza o ideal ético próprio desse. Os estamentos
conseguem eleger representantes para o exercício político, assim, os interesses
universais do indivíduo são representados por meio desses estamentos no Estado.

Hegel (1998) considera que o poder deve ser dividido em poder legislativo,
governamental e monárquico.

Hegel (2000) defende que o poder legislativo deve ser constituído por uma câmera
de deputados, divididos em Câmera baixa e Câmera baixa: o Parlamento. A
primeira representa a nobreza, grande proprietária de terras (SC 203, 39); a segunda
representa a burguesia, profissionais liberais e as corporações dos artesãos.

O poder governamental é formado pelo Ministério, pelo Gabinete, tendo à frente


um primeiro-ministro, responsável diante do poder legislativo. Cabe, então, ao
governo realizar, aplicar, as leis provindas do poder legislativo.

Já a função do monarca não é só ajudar na aplicação das leis, mas também decidir
as questões polêmicas e manter a coesão entre os indivíduos no Estado. Nesse
sistema político, o monarca exerce o poder não como um indivíduo, mas como
encarnação do Espírito Absoluto. Essa condição dá ao monarca a condição de ele
pôr os “pingos nos is” – dar a última palavra − em qualquer situação.

Para corroborar com essa interpretação do que representa esse monarca no


exercício político, acompanhemos mais uma passagem da interpretação de
Pinzani sobre a teoria desse autor:

É na figura do monarca que o Estado manifesta-se como pessoa.


Ele representa, portanto, a perfeita encarnação daquele princípio
da soberania sobre o qual se constrói todo o pensamento
político moderno. Sua tarefa primária é justamente a de manter a
unidade do Estado (daí a justificativa – pouco convincente – que
Hegel ofe­rece do princípio dinástico) e de ser o garantidor da
constituição. O governo possui a tarefa de aplicar as leis criadas
pelo legislativo, o qual é formado não somente pelo parlamento,
mas também pelo próprio monarca (ao qual compete a decisão
última) e pelo governo (em função meramente consultiva).
(PINZANI, 2009, p. 177).

97
Capítulo 4

Apesar de o exercício do poder político ser dividido em três instâncias –


legislativo, governo e monarca −, elas são interconectadas. O parlamento é
formado por representantes dos estamentos, que funcionam como uma correia
de transmissão entre o Estado e a sociedade civil e, portanto, como órgão
mediador entre: o governo e o monarca, por um lado, e governo e o povo pelo
outro. (HEGEL, 1998).

O parlamento é o mediador entre o governo e o monarca, porque este último


decide coisas em relação a conteúdos ou à falta de conteúdos trazidos pelo
Parlamento, ocupando-se do governo para fazê-las cumprir. Já no que diz respeito
à relação do governo com o povo, o parlamento é o mediador dessa relação porque
temos as corporações em que se organizam os indivíduos e estas elegem seus
representantes políticos para estes aprovarem leis que vão ao encontro dos anseios
do povo, dos indivíduos enquanto pertencentes a corporações.

É importante lembrar que as relações entre esses poderes precisam respeitar


os direitos conquistados no desenvolvimento do Espírito Absoluto, quais sejam
esses direitos: liberdade de opinião, de religião, de propriedade e de participação
política. Assim, graças a tudo isso, na Filosofia hegeliana temos então que, nesse
período histórico, o Espírito Absoluto toma para si o seu em si, usa da razão para
dar-se conta de como pode usá-la para realizar-se. (HEGEL, 2000).

Neste momento, é interessante que acompanhemos a crítica hegeliana à


democracia, nos moldes da democracia jacobina (que se fez presente entre grupos
na revolução francesa), isto é, à democracia direta. Ele vê esse tipo de exercício
do poder como intervenções descontroladas das massas na cena pública e, mais
precisamente, do controle sobre elas exercido por seus líderes. Isto é, Hegel
concebe que esse tipo de democracia consiste no exercício do poder de alguns
poucos que se utilizam das massas para intervir conforme os interesses daqueles.
Há, portanto, nesse caso, o vigor de interesses individuais no governo.

O resultado disso, como nos apresenta Rosenfield (2002, p. 35), na sua


interpretação da concepção hegeliana, é: “a violência revolucionária, que nada de
sólido deixa subsistir diante de si. Instituições são então reiteradamente banidas e
toda tentativa de fazê-las nascer é abortada em seu próprio nascedouro”.

Na democracia Jacobina não há, portanto, uma correta ligação entre os


interesses da sociedade civil e o Estado, nem do Estado em relação à sociedade
civil. Contudo, há aí a prevalência de interesses individuais. Essa correta ligação,
como você já deve saber, segundo Hegel, só corre pelo Estado que esse autor
defende, um Estado em o Espírito Absoluto toma para si o seu em si, cujas
características apresentamos aqui anteriormente.

E, para Hegel, a expressão de Estado que é a encarnação dessa autoconsciência


do Espírito Absoluto é o Estado prussiano de seu tempo (PINZANI, 2009). Este,
idealmente, pressupõe as conquistas das ideias presentes na revolução francesa
e possui um exercício do poder político como o descrito aqui anteriormente.
Idealmente porque, de fato, esse Estado nunca conseguiu existir desse modo.

98
Pensamento Filosófico Moderno

Porém, independentemente de qual Estado histórico tenha conseguido realizar o


exercício correto do poder político, tenha sido a encarnação do Espírito Absoluto
tomando consciência para si do seu em si, é nítida a necessidade dos conteúdos
políticos de pertencerem a sociedade a que pertencem e no período histórico
que lhes diz respeito. Consideradas todas essas explicações de como realizar o
exercício do poder político, temos a nítida compreensão de que a política sempre
desenvolve-se na história, pois desenvolve-se por meio de indivíduos que estão
na história e, portanto, deve ser a realização com base nos anseios dos mesmos.

Apesar dos direitos de livre propriedade, liberdade de expressão, de religião, de


exercício político, o Estado nunca pode partir de mais do que esses conteúdos
para realizar a liberdade do povo a que se refere. Os demais conteúdos para
exercer a liberdade no Estado devem vir por meio do exercício político dos
indivíduos a que dizem respeito, são históricos.

A ideia de que a condição histórica é essencial para a determinação do indivíduo


encontra seu auge na filosofia pós-Hegel 3. Esse auge ocorreu na teoria marxista.
Apesar de Marx criticar a teoria hegeliana em vários de seus aspectos, ele concordava
com a explicação de que o que determina um homem enquanto ser social é a
condição histórica em que este vive.

Hegel acusa Kant de não ter compreendido que a subjetividade, o indivíduo


enquanto pertencente ao mundo dos fenômenos, à história, àquilo que é
transitório, está intimamente ligado ao objetivo, ao indivíduo enquanto
ser racional. Essa ligação, como você já deve ter deduzido, ocorre na
autoconsciência do espírito, na razão. Usaremos aqui, para aprofundar o
entendimento dessa crítica, mais uma vez a interpretação de Assmann da obra
hegeliana (2009, p. 28):

A diferença é que, enquanto para Kant, esta unidade última dá-se


na autoconsciência pura, no ‘cogito’, para Hegel não se trata do
puro cogito, mas de algo concreto, que possui corpo, matéria,
multiplicidade, em suma, é vida. Não é apenas forma, mas
também conteúdo; nunca há só ser, sem um modo concreto de
ser, uma forma de ser. Ou melhor, só há ser enquanto há forma de
ser historicamente dada. Não há ser fora da história.

A compreensão de que a condição histórica da sociedade é ponto fundamental


para a determinação do que politicamente é a solução dos conflitos desta
sociedade, fez a filosofia política adormecer no debate sobre como resolvê-los.

3 Tanto na moralidade (imperativo categórico) quanto no Estado propostos por Kant (república kantiana), os
princípios que devem reger a ação são mais importantes do que o modo como deve-se considerar os cidadãos
na história para a solução dos conflitos. Em Hegel, princípios universais de ação e condição histórica estão
intimamente ligados.

99
Capítulo 4

Esse adormecimento da Filosofia política deu-se da época de Hegel, no século


XVIII, até os anos 80 do século XX. A partir dos anos 80, há um esfriamento do
interesse pelas teorias hegeliana e marxista, surgindo, novamente, o interesse
por obras como a de Kant. Um marco para a saída desse adormecimento foi a
teoria de John Ralws, a qual possui bases kantianas. Mais tarde, já nos anos
90 do século XX, um outro exemplar de teoria político-filosófica que pressupõe
princípios universais que devem ser usados para a solução dos conflitos sociais é
a teoria de Jürgen Habermas.

Seção 3
O papel da Filosofia e o fim da história
Não há nenhuma possibilidade de a filosofia ter papel mais abrangente no sentido
de constatação da realidade do que o proposto na teoria hegeliana.

Hegel entende a filosofia como: “a descoberta de que os sistemas nada mais


são do que a expressão conceitual da realidade histórica” (MASSOLO apud
ASSMANN, 2009, p. 25).

Os sistemas constituem cada uma das etapas do desenvolvimento do Espírito


na história. Nesse sentido, podemos compreender a seguinte passagem da
interpretação de Assmann (2009, p. 25) à filosofia nessa teoria:

É a história da filosofia que mostra, mais do que qualquer


historiografia, o que aconteceu em cada época histórica, e
será, por isso, a história da filosofia o que mais claramente nos
mostrará se existe e qual é o fio racional que liga os diferentes
momentos históricos entre si.

Mais do que realizar um retrato do que ocorre no período histórico em que vive,
o filósofo realiza esse retrato dando a ele uma dimensão que vai além dos fatos
históricos relevantes de sua época, embora os pressuponha 4, pois confere a
esse período a sua expressão em conceitos.

Podemos afirmar, então, que o filósofo toma consciência da realização do Espírito


Absoluto no período em que vive. Como o filósofo também é expressão desse espírito,
conclui-se que a filosofia é a expressão do espírito para si do seu em si.

4 A filosofia, em sua atividade, conta com a historiografia embora não restrinja-se a esta.

100
Pensamento Filosófico Moderno

Verificamos essa relação da Filosofia como desenvolvimento do espírito em sua


época, por exemplo, na seguinte passagem da obra hegeliana:

Pensando, elevo-me até ao absoluto – para além de todo


o finito – sou consciência infinita e, ao mesmo tempo sou
autoconsciência finita, e, certamente, segundo toda minha
determinação empírica; ambas as coisas são para mim, e sua
referência a mim é a unidade essencial do meu saber infinito e de
minha finitude. Esses dois aspectos se atraem e se rejeitam:
Eu sou este conflito e este acordo, e eles existem em mim e para
mim [...]. Eu sou o intuir, o sentir e o representar este acordo
e este conflito [...]. Eu sou a relação destes dois aspectos;
estes dois extremos são, cada um deles, eu mesmo, aquele
que relaciono [...]; eu sou a luta [...], não sou apenas um dos
combatentes, mas ambos os combatentes; eu sou a própria luta.
(HEGEL, 1984, p.113-4).

Assim, o filósofo, justamente por ser um pensador, embora seja finito − trata-se
de um indivíduo porque pertence sempre a uma condição histórica − alcança o
infinito porque é expressão do mesmo e consegue, a partir de sua finitude, dar-se
conta de que faz parte de um universal, ao qual, porém, só tem acesso pelo modo
como essa universalidade apresenta-se em sua época. Afinal, o indivíduo nunca
pode deixar sua condição histórica.

Aqui, vale uma nota de esclarecimento: os períodos da história da filosofia não


são, para Hegel, todos os períodos da história do mundo. Ele considera que só é
possível a filosofia ocorrer em períodos históricos em que o Estado fez-se presente,
em que esse sistema de organização da sociedade existiu. Por isso, segundo ele,
não há história da filosofia, não houve filosofia, no Oriente antigo, onde, portanto,
ocorreu o primeiro período da história da humanidade. Essa razão ocorre porque só
no Estado o indivíduo é capaz de, a partir da sua condição histórica, dar-se conta
do todo presente em seu tempo, isto é, dar-se conta da determinação do Espírito
Absoluto naquele período. (HEGEL, 2000, p. 16).

Podemos fazer uma analogia aqui do filósofo com o médico da medicina curativa
(não da preventiva, portanto). Como o médico, o trabalho do filósofo depende de
uma situação que já está posta para seu trabalho começar. A partir dos sintomas
do paciente, o médico, atrelado ao seu conhecimento da medicina, realiza o
diagnóstico do mal que aflige aquele. O filósofo, também, a partir da situação
histórica em que vive atrelada à sua capacidade racional, consegue expressar, em
conceitos gerais, a racionalidade de sua época.

101
Capítulo 4

Entretanto, claro, temos também uma grande diferença nessa analogia: enquanto
o médico cuida de doenças, de algo ruim, para negá-las (livrar o paciente das
mesmas), o filósofo cuida da realização do Espírito Absoluto, portanto, da razão,
em seu período histórico. E mais, o filósofo ajuda a realizar, na maior medida
possível, aquilo que constata, já que expressa, em conceitos, o racional presente
na realidade histórica a que ele pertence. A Filosofia contribui, assim, para a
autorrealização do Espírito Absoluto, para a tomada de consciência do Espírito
Absoluto do seu em si.

Uma figura que é usada para representar a atividade da Filosofia na obra


hegeliana é a da coruja:

A ideia de que a filosofia só pode falar do que foi e é, e não do


que ainda não é, rende a esse autor sua analogia da filosofia
com a coruja. Da mesma maneira que a coruja tem que esperar
a atividade do dia terminar para exercer a sua atividade, caçar,
e para “ver”, a filosofia tem que esperar os acontecimentos
ocorrerem para exercer a sua atividade, para construir os conceitos
filosóficos. Os conceitos filosóficos só existem em função do que
já ocorreu; para usar a linguagem de Hegel, a filosofia é sempre
pensamento objetivo, tendo o objeto como base, e o objetivo é a
consciência que o Espírito Absoluto já tem de si, através da história
que já aconteceu. (ASSMANN, 2009, p. 29).

Considerando que cada período histórico é a determinação do Espírito Absoluto


que, por sua vez, é infinito, uma vez que não se deixa prender em nenhuma de
suas determinações, mas, pelo contrário, pressupõe sempre a última para seu
próximo movimento de determinação, cabe ao filósofo demonstrar a finitude de
todo finito. Ocorre, portanto, que os conceitos de cada período histórico são
conceitos que não abarcam em si toda a amplitude do Espírito Absoluto, só de
uma determinação sua, a que consiste na época histórica em que o filósofo vive.

Todavia, na modernidade, a Filosofia não se deu conta da infinitude do Espírito


Absoluto? Sim! Nesse período da história da humanidade, como apresenta-nos
Assmann (2009, p. 34):

A razão que se faz consciente de ser espírito, percebe-se ao


mesmo tempo como espírito que é história. E isso só foi
possível na modernidade, a saber, só foi possível ao espírito
conhecer-se como histórico num determinado momento da
história do mesmo espírito, numa determinada figura e momento
da história do mundo: é no mundo moderno que o espírito se
deu conta de que é mundo, e é só mundo, imanente, e mundo
histórico, encarnado na sucessão dos “espíritos dos povos”.

102
Pensamento Filosófico Moderno

Considerando toda a lógica da filosofia hegeliana, não podemos afirmar que,


embora o espírito tenha dado-se conta de si na modernidade, de que ele é
história, que não haverá nada de novo no futuro. Afinal, não se pode afirmar o que
ainda não é, já que toda a realidade para Hegel é história, e o futuro é uma história
que ainda não aconteceu. É como Hegel diz: “o homem não pode saltar para fora
do seu tempo”. (HEGEL, 2000, p. 14).

Contudo, considerando que esse nosso autor compreende a história do mundo


como o caminho do espírito para tomar consciência de si, isto é, para tomar
consciência de que por meio da sua razão determina o mundo (HEGEL, 1992,
p. 127), esse processo não terminou na modernidade? Afinal, compreende a
modernidade como o período em que:

[...] pela primeira vez, conseguiu o homem reconhecer que


o pensamento deve reger a realidade espiritual. Foi isso, por
conseguinte, uma alvorada magnífica. Todos os seres pensantes
celebraram esta época [...]. O entusiasmo do espírito estremeceu
o mundo, como se só então se tivesse chegado à efetiva
reconciliação do divino com o humano. (ASSMANN, 2009, p. 64).

Não, a compreensão da grandiosidade do feito do Espírito Absoluto na


modernidade não significa que a história terminou e que o ele não vá desenvolver-
se mais. Se fosse assim, não se poderia compreender que Hegel declare, ao
final das Lições de Filosofia da História: que “até aqui chegou à consciência”.
Ao invés disso, Hegel teria dito: “até aqui é onde a consciência pode chegar”.
(HEGEL, 1985, p. 539).

Outra coisa que nos evidencia que a filosofia hegeliana não considera a
modernidade como fim da história, diz respeito ao papel que ela considera ser
própria da atividade filosófica: a filosofia, recordando, chega ao final de um
período histórico para apresentar em conceitos o que é característico deste. E
a filosofia chegou à modernidade, ela, a filosofia hegeliana, é a representação disso.

Além disso, há uma série de referências ao futuro na teoria hegeliana, como


as que falam da América do Norte e dos povos eslavos, referências que esse
autor admite, embora chame a atenção de que não cabe ao filósofo como tal
dizer o que irá acontecer, pois não são os filósofos que fazem a história, apenas
a constatam. Não se chegou, portanto, na Alemanha do século XVII ao fim da
história, segundo Hegel.

Porém, você, como um conhecedor dos principais fatos da história universal,


daqueles que se toma conhecimento nos estudos de história no ensino médio,
pode afirmar: a filosofia hegeliana está incorreta; afinal, o que ocorreu depois da
tentativa dos ideais da Revolução Francesa fazerem-se presentes na política da

103
Capítulo 4

Alemanha e mesmo de outros países da Europa foi o retorno ao modo absolutista


de governo nesses lugares. E se o espírito é razão, considerando os pressupostos
da própria teoria hegeliana, ele não pode retornar a alguma coisa que lhe era
inferior no seu desenvolvimento.

Sim, apesar de todas as perspectivas positivas de autorrealização da liberdade


que Hegel possuía em relação ao movimento revolucionário francês vigente
na Europa do final do século XVIII e início do século XIX, a ideia de liberdade
encontra dificuldades em sua realização nesse período. Dadas essas dificuldades,
ocorre a Restauração, a volta, nesses países, aos antigos regimes de governo
presentes antes desse movimento revolucionário.

Contudo, a Revolução Francesa deixou marcas que não poderão ser mais apagadas,
pois, se antes dela os privilégios concedidos aos governantes absolutistas eram tidos
como naturais, depois, eles passaram a ser tidos como artificiais, isto é, estipulados à
força por esses governantes. As transformações revolucionárias vieram para ficar.

Em relação à Restauração, Hegel, em correspondência a seu amigo Niethammer,


comenta a queda de Napoleão:

Coisas grandes aconteceram em torno de nós. É um espetáculo


horroroso e prodigioso ver um enorme gênio destruir-se. É a coisa
mais trágica. A mediocridade aparece em todo o seu peso, sem
descanso nem pausa, até que o que se elevou seja rebaixado a
seu nível ou mais baixo ainda. (ROSENFIELD, 2002, p. 22).

Entretanto, como já assinalado aqui, segundo Hegel, a Restauração não quer


dizer que o Espírito Absoluto esteja voltando no seu caminho da realização
da liberdade, afinal, a razão não pode desfazer-se de sua consciência, isso
seria um ato irracional. Todavia, quer dizer que a Alemanha, por exemplo,
com a Restauração, perdeu a oportunidade de realizar esse caminho mais
rápido. O tempo do Espírito não é o tempo da vida individual. Coube, então, a
Hegel resignar-se com a Restauração e viver de modo que sua vida individual
transcorresse dentro desse regime político.

104
Considerações Finais

A filosofia que se desenvolveu nos séculos XVIII e XIX é a continuação do projeto


da modernidade, um projeto que busca a autorrealização do indivíduo enquanto
ser racional.

Vimos algumas propostas filosóficas para essa autorrealização. Podemos


perceber que o Estado de direito, aquele que conta com normas jurídicas para
resolver os conflitos sociais e apresenta-se como meio para a efetivação das
pretensões do indivíduo na sociedade enquanto ser racional, é um conceito
defendido por todas essas propostas. No entanto, também vimos que há
divergências entre esses autores sobre o que esse Estado deve ser.

Deve ter ficado claro que as propostas de Estado de direito apresentadas


aqui pressupõem sempre uma concepção de natureza humana. Todavia, com
certeza, como você também pôde acompanhar, o conceito de natureza humana
compreendido por Madison e Montesquieu, alguns dos autores que foram
estudados aqui, não é compartilhado pela teoria de Rousseau. Este defende uma
concepção de natureza humana bem peculiar, sobre a qual sustenta a liberdade e
autorrealização do indivíduo. Vimos que o Estado e a pedagogia que ele defende
– a democracia e a pedagogia rousseauniana − mostram-se como os meios
capazes de realizar a liberdade dos indivíduos.

Depois de estudar Rousseau, não podemos deixar de tratar da teoria kantiana.


Ela é um marco não só na Filosofia do século XVIII, mas é um dos grandes
ápices da filosofia moderna, no que diz respeito, principalmente, à teoria do
conhecimento e à ética.

Esperamos ter deixado clara essa teoria do conhecimento a ponto de você poder
justificar que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas o
modo como elas podem ser percebidas por nós.

Também estudamos o Estado de direito de Kant. Vimos que ele é uma


continuação da teoria ética desse autor e que justamente por isso não pode
ir ao encontro da democracia de Rousseau. É importante que você tenha
compreendido a teoria ética kantiana e, consequentemente, as suas justificativas
para sua recusa da democracia e para a sua defesa da república que propõe.

Na esteira da defesa entre os séculos XVIII e XIX, de um Estado de direito para a


realização do indivíduo racional, período a que diz respeito à história da filosofia
estudada nesta Unidade de Aprendizagem, também está a filosofia de Hegel.

105
Estudamos aqui porque e como Hegel buscou demonstrar a história da
humanidade como racional. Estudamos, então, a sua filosofia da história. Assim,
demonstrou-se porque, segundo esse autor, os demais autores estudados aqui
contribuíram para a realização do Espírito Absoluto enquanto contribuíram para
a justificativa do Estado moderno, mas não se deram conta de que há o Espírito
Absoluto e que este autorrealiza-se em tal Estado porque só nessa condição
histórica toma consciência de si.

Assim, coube-nos acompanhar as justificativas hegelianas para sua crítica a


essas outras propostas filosóficas e para a sua defesa do que compreende por
Estado moderno. Um Estado que, conforme acompanhamos nesta Unidade de
Aprendizagem, Hegel defende como a realização do Espírito Absoluto.

A compreensão de que o Estado de direito é um meio para a autorrealização,


na sociedade, do indivíduo enquanto ser racional, é uma grande aposta da
modernidade. Essa aposta começa com os primeiros contratualistas, Hobbes e
Locke, ainda, respectivamente, nos séculos XVI e XVII, e encontra uma grande
continuação nos séculos XVIII e XIX, com as teorias filosóficas que estudamos
nesta Unidade de Aprendizagem. Porém, como também já deve ser do seu
conhecimento, o desenvolvimento filosófico sobre o conceito de Estado de direito
não parou com as teorias aqui estudadas. Aliás, as teorias políticas e éticas da
contemporaneidade, em sua maioria, defendem, cada uma à sua maneira, um
determinado Estado de direito.

Esperamos ter contribuído para a sua compreensão de algumas das justificativas


para o Estado de direito ser visto como um grande meio à realização da
racionalidade do indivíduo.

Professora Carmelita Schulze


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Sobre a Professora Conteudista

Carmelita Schulze

Possui graduação e mestrado em Filosofia. Tem diversos trabalhos publicados


na área da Filosofia do Direito e de Ética. Participou de pesquisas na área de
Ética e Filosofia Política, mais especificamente na área do biocentrismo e da
fundamentação da política e teorias da justiça, na UFSC, dos anos de 2007-2010.
Trabalha como professora na Unisul em Unidades de Aprendizagens da graduação
e de Pós-graduação. Trabalhou por cerca de três anos como tutora em cursos a
distância pela UFSC/ UAB. Atua como designer instrucional há mais de 5 anos,
trabalhando na elaboração e adaptação de conteúdos para Educação a Distância.

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