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Universidade do Sul de Santa Catarina

Ciência Política
e Teoria Geral do
Estado

UnisulVirtual
Palhoça, 2014

1
Créditos

Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul


Reitor
Sebastião Salésio Herdt
Vice-Reitor
Mauri Luiz Heerdt

Pró-Reitor de Ensino, de Pesquisa e de Extensão


Mauri Luiz Heerdt
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional
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Diretor do Campus Universitário UnisulVirtual
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Campus Universitário UnisulVirtual


Diretor
Fabiano Ceretta

Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) - Educação, Humanidades e Artes


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Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Ciências Sociais, Direito, Negócios e
Serviços
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Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Produção, Construção e Agroindústria
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Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Saúde e Bem-estar Social
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Gerente de Operações e Serviços Acadêmicos


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Gerente de Ensino, Pesquisa e Extensão
Roberto Iunskovski
Gerente de Desenho, Desenvolvimento e Produção de Recursos Didáticos
Márcia Loch
Gerente de Prospecção Mercadológica
Eliza Bianchini Dallanhol

2
Luiz Henrique Queriquelli

Ciência Política
e Teoria Geral do
Estado

Livro didático

Designer instrucional
Marcelo Tavares de Souza Campos

UnisulVirtual
Palhoça, 2014

3
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2014 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Livro Didático

Professor conteudista Diagramador


Luiz Henrique Queriquelli Frederico Trilha

Designer instrucional Revisora


Marcelo Tavares de Souza Campos Perpétua G. Prudêncio

Projeto gráfico e capa


Equipe UnisulVirtual

320
Q53 Queriquelli, Luiz Henrique
Ciência política e teoria geral do estado : livro didático / Luiz
Henrique Queriquelli ; design instrucional Marcelo Tavares de Souza
Campos. – Palhoça : UnisulVirtual, 2014.
149 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-616-7

1 Ciência política. 2. Estado. 3. Sociedade civil. I. Campos, Marcelo


Tavares de Souza. II. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

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Sumário

Introdução | 7

Capítulo 1
Política na Antiguidade | 9

Capítulo 2
Do absolutismo medieval ao Estado moderno:
atores e eventos cruciais | 37

Capítulo 3
A consolidação do Estado moderno | 79

Capítulo 4
Tópicos de política contemporânea | 125

Considerações Finais | 141

Referências | 143

Sobre o professor conteudista | 149

5
Introdução

Caro estudante,

Quando alguém fala em Política, use uma linguagem comum ou uma linguagem
culta, esteja em um ambiente comum ou em uma universidade, está se referindo ao
exercício de alguma forma de poder e, naturalmente, às múltiplas consequências desse
exercício. Como diria João Ubaldo Ribeiro, importante escritor brasileiro, “a Política tem
a ver com quem manda, por que manda, como manda” (1998, p. 8). Mandar é decidir,
é conseguir consentimento, apoio ou até submissão. Porém também é persuadir e,
portanto, não se trata de um processo simples.

Apesar dos esforços dos estudiosos, que, há milhares de anos, vêm tentando
dissecar, analisar e categorizar o fenômeno político, ninguém pode alegar
compreendê-lo totalmente. Em toda sociedade, desde que o mundo é mundo,
existem estruturas de governo. Alguém, de alguma forma, sempre mandou em
outrem. Normalmente uma minoria governa a maioria, e este é um fato central.

A Política requer um talento especial de quem a pratica, uma sensibilidade


especial, uma vocação muito marcada. É, portanto, uma arte. No entanto, uma
vez que podemos sistematizar os governos dos homens a partir de observações e
inferências, também podemos enxergar neles uma ciência. A Política – vista como
um ramo de conhecimento sistematizado, referente a um determinado grupo de
fenômenos, regidos por leis gerais – surgiu, contudo, em um momento específico
da história, a Idade Moderna, e foi somente a partir desse momento que as
pessoas passaram a falar em Ciência Política.

Com este livro, pretendo dar-lhe a oportunidade de compreender o desenvolvimento da


Ciência Política, desde as suas raízes na Antiguidade até seu estado atual, com especial
atenção às revoluções e às correntes de pensamento surgidas no período moderno,
pois ali se encontram suas principais bases. Respeitei uma ordem cronológica apenas
para que você possa vislumbrar de que maneira as ideias políticas tiveram sua origem
ao longo da história, embora saibamos que elas nem sempre são resultado de um
processo linear, de uma soma de contribuições. Em última instância, a concepção desta
unidade de aprendizagem visou a garantir-lhe uma noção o mais abrangente possível
das principais contribuições já dadas ao estudo da Política, para que você mesmo(a)
possa construir seu próprio entendimento a respeito deste assunto.

Tenha uma excelente leitura!

Prof. Luiz Henrique Queriquelli

7
Capítulo 1

Política na Antiguidade

Habilidades Com a leitura deste capítulo você desenvolverá


as habilidades de: compreender a passagem dos
homens do estado primitivo para a sociedade, e
as implicações políticas desse processo; discernir
a organização política presente no Egito Antigo,
um dos mais duradouros impérios da Antiguidade;
compreender o pensamento político dos gregos
antigos, aos quais se costuma atribuir a “invenção
da política”; identificar as principais instituições
políticas legadas pelos romanos, que conferiram à
política um significado eminentemente prático.

Seções de estudo Seção 1: O surgimento da sociedade

Seção 2: Egito Antigo: o desenvolvimento do


estado teológico

Seção 3: Grécia Antiga: a descoberta do homem


através da política

Seção 4: Roma Antiga: a política só existe na prática

9
Capítulo 1

Seção 1
O surgimento da sociedade
A população humana passa a se chamar humanidade a partir do momento em
que deixa de enfrentar apenas a sobrevivência e se depara com outro problema
crucial para sua espécie: a convivência. Desse período inicial da história dos
homens, além do desenvolvimento das mais diversas técnicas que transformaram
sua relação com a natureza, podemos destacar a atividade que os homines
sapientes, servindo-se da capacidade cognitiva que os distingue, elevaram a uma
condição de existência: a política.

Com o passar do tempo, algumas sociedades conseguiram mais estabilidade que


outras e, assim, puderam chegar a níveis de desenvolvimento impressionantes,
considerados insuperáveis por muitos estudiosos sob certos aspectos. Tal feito
coincide com a percepção de que a política não consiste apenas em uma arte,
mas – dadas as suas regularidades – também se propõe como ciência.

O surgimento das grandes civilizações que caracterizaram a Antiguidade está, pois,


relacionado a uma nova concepção de política. Em outras palavras, as grandes
civilizações antigas só puderam se desenvolver porque seus governantes
perceberam a necessidade de pensar sobre o exercício do governo.

Não são poucos os pensadores políticos clássicos que se dedicaram a explicar as


razões pelas quais o homem primitivo sai de sua condição original, na qual só lhe
interessa a sobrevivência, e passa a viver em um estado no qual sua existência
depende da relação com seus semelhantes.

Apesar das divergências, podemos afirmar que todos concordam em um ponto:


os homens decidem entrar em sociedade a fim de resolver os conflitos que a
convivência traz no estado natural. Isto é, os homens optam por viver em um
modo de vida ordenado, em que as pessoas submetem-se a regras, basicamente
em busca de justiça, já que, no estado primitivo, cada um julga seus atos e os
atos alheios conforme lhe convém. Esse princípio está expresso em um provérbio
secular, muito recorrente entre os romanos: Ubi homo, ibi societas. Ubi societas,
ibi jus. Onde há homem, há sociedade. Onde há sociedade, há direito.

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Ciência Política e Teoria Geral do Estado

1.1 A cidade, o comércio e a escrita


Na Pré-História, o aprimoramento do homem sobre a natureza caminhou lado
a lado com o aprimoramento do homem sobre sua própria natureza. O maior
exemplo disso é o surgimento da cidade, talvez o maior símbolo político: a
primeira cidade só pôde surgir porque os homens já haviam desenvolvido
a técnica de manipulação da argila, que lhes permitiu as edificações, e –
principalmente – porque haviam chegado à consciência de que um grande
agrupamento de pessoas necessitava organização.

A cidade mais antiga já descoberta pela Arqueologia é a cidade de Çatalhüyük,


cuja fundação deu-se por volta de 6700 a.C. Ela está localizada ao sul da atual
Turquia, no Oriente Médio. Çatalhüyük teve cerca de cinco mil habitantes. Suas
casas, feitas de cerâmica, eram construídas uma ao lado da outra, sem espaço
para circulação. O trânsito dava-se pelo telhado das casas, o que pode estar
ligado a questões de segurança. As bases de sua economia eram a agricultura e
o comércio de pedras vítreas de vulcão, um item valioso à época.

Figura 1.1 - Sítio arqueológico da antiga cidade de Çatalhüyük, na Turquia

Fonte: Quinlan (2009).

O exemplo de Çatalhüyük já nos apresenta dois elementos fundamentais à


transição das sociedades arcaicas para as grandes civilizações que marcaram a
Antiguidade: trata-se da cidade e do comércio. Um terceiro elemento fundamental
nesse processo foi a invenção da escrita. Os fatores decisivos que ocasionaram
este evento foram, ao mesmo tempo, econômicos e políticos. À certa altura, com
o crescimento das cidades, percebeu-se a necessidade de:

•• contabilizar os funcionários públicos, os impostos arrecadados e os


produtos comercializados; e
•• fazer um levantamento da estrutura das obras, o que exigiu a criação
de um sistema numérico para a realização dos cálculos geométricos.

11
Capítulo 1

Com a invenção da escrita, os homens puderam registrar os seus conhecimentos


e, assim, transmiti-los não mais apenas de forma oral, mas, agora, de maneira
muito mais perene e segura. Sua origem deu-se por meio de desenhos que
representavam coisas ou conceitos. Esses desenhos, ou símbolos gráficos, são
chamados ideogramas.

O desenho de uma maçã denotaria a própria fruta, já o desenho de duas pernas


poderia representar o conceito de andar. A letra M, por exemplo, presente no
Escrita cuneiforme e alfabeto latino, deriva de um hieróglifo egípcio que
os hieróglifos retratava ondas na água e representava o som produzido
A primeira era feita com por elas. A propósito, as formas de escrita mais antigas já
o auxílio de objetos em
forma de cunha, de
conhecidas são a escrita cuneiforme e os hieróglifos. O
onde vem o seu nome surgimento de ambas deu-se por volta de 3500 a.C., e
(cuneiforme). O nome acredita-se que uma não influenciou a outra, isto é, seu
da segunda deriva da
desenvolvimento foi autônomo. A primeira esteve
junção de dois termos
gregos: hierós (sagrado) associada à Mesopotâmia e a segunda, ao Egito Antigo,
e glýphein (escrita). duas das maiores civilizações antigas – uma prova da
importância da escrita no processo civilizatório.

Revolução Neolítica A Mesopotâmia, onde se originou a escrita cuneiforme,


A Revolução Neolítica, é considerada o berço da civilização. Seu nome, que
ocorrida entre 9000 e
3000 a.C., marca o fim
significa “entre rios”, deriva dos termos gregos meso
dos povos nômades e o (entre) e pótamos (rios). Localizada entre os rios Tigre
início da sedentarização e Eufrates, no Oriente Médio, esta região abrigou uma
do homem, com o
série de cidades surgidas durante a chamada Revolução
aparecimento das
primeiras cidades. Neolítica, o mesmo período em que foi fundada a já
mencionada Çatalhüyük. Datam do III milênio a.C. as
fundações de importantes cidades mesopotâmicas, tais
como Lagash, Umma, Kish, Ur, Uruk, Gatium e Elam.

1.2 Cidade-estado
Os mesopotâmicos não se caracterizaram pela formação de uma unidade política.
Cada cidade controlava seu próprio território e sua própria rede de irrigação;
tinha governo e burocracia próprios e era independente em relação às outras.
Segundo Pierre Lévêque (1990, p. 15), “o Estado mesopotâmico é, antes de tudo,
uma cidade, à qual o príncipe está ligado por estreitos laços; é igualmente uma
dinastia, o que dá legitimidade ao seu poder.”

Por estes motivos, isto é, por concentrar todas as dimensões da vida política
de um povo no território de uma única cidade, tais cidades são chamadas de
cidades-estado.

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Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Em certas ocasiões, no entanto, devido a eventuais guerras, formaram-se


alianças entre as cidades e, assim, surgiram os chamados estados maiores:
monarquias em que o poder real era imbuído de origem divina. Tais alianças,
porém, eram temporárias. Apesar de independentes politicamente, as cidades-
estado mesopotâmicas dependiam
Figura 1.2 - Monólito com o Código de Hamurabi umas das outras na economia, o que
gerava uma dinâmica atividade
comercial.

Diversos povos nômades passaram


pela Mesopotâmia, mas apenas alguns
se estabeleceram ali. Os primeiros
foram os sumérios, seguidos, em
ordem cronológica, pelos acádios,
amoritas (ou antigos babilônios),
assírios, elamitas e caldeus (ou novos
babilônios). O período dos amoritas
(2000-1750 a.C.) foi um dos mais
prósperos. Nesse período, as cidades
mesopotâmicas constituíram o Império
Babilônico, cujo fundador e mais
importante líder foi Hamurabi I (1810-
1750 a.C.).

A fama de Hamurabi deve-se,


sobretudo, à criação do primeiro
código de leis já registrado na história,
Fonte: Boumaza (2011).
promulgado por volta de 1700 a.C. e
conhecido como Código de Hamurabi.
Conforme Pettit (1976, p.22):

O Código de Hamurabi, achado em Susa, em 1902, é um dos


mais belos documentos da história universal. De um lado, é ele a
codificação de um direito natural e consuetudinário em vigor nos
Consuetudinário
territórios conquistados e em via de evolução. De outro, é a
Baseado nos
costumes. compilação de diversos códigos sumerianos, obras de Urucagina
e de Chulgui. Mais tarde, um Código assírio, achado em 1920,
cuja criação se deu entre os séculos XV-XIII a.C., mostraria que o
de Hamurabi é mais sistemático que as leis sumerianas, mais
evoluído e menos bárbaro que as leis assírias, as quais,
entretanto, nele se inspiraram.
Segundo o Código, a sociedade divide-se em três classes
desiguais, os homens livres (awilu), os subalternos ou inferiores
(muchkenu) e os escravos; a origem da classe intermediária
constituiu-se num problema: tratar-se-ia de antigos servos presos

13
Capítulo 1

à gleba no tempo do regime senhorial e libertados pelos


progressos do poder real, já na época de Urucagina (2630 a.C.).
Talião Pena antiga pela O direito penal repousa no talião, quando a vítima é livre, e numa
qual se vingava o delito, compensação em dinheiro, se ela pertence às classes inferiores.
infligindo ao delinquente O casamento apoia-se na inalienabilidade do dote, na repressão
o mesmo dano ou mal brutal ao adultério e no divórcio por iniciativa do marido. As
que ele praticara. É questões dos juros são minuciosamente tratadas, o que atesta o
mais conhecida como papel do dinheiro e da terra nesta civilização de produtores e de
“olho por olho, dente
comerciantes: as disposições são precisas e equitativas, os
por dente”.
castigos expeditivos e matizados, com uma tendência à dureza
comum a todas as civilizações recentemente saídas da iniciativa
privada. A partir de então, a justiça, em todos os setores, passa
às mãos de juízes de Estado, agindo sob inspiração do deus
(Marduc ou Chamach), segundo um processo escrito, audição de
testemunhas e recurso ao juramento.

Adversidades Endossando as palavras de Pettit, o Código de Hamurabi


naturais Junto constitui um marco na história universal, especialmente
das cidades, os
no que diz respeito ao direito e, consequentemente, à
mesopotâmicos
desenvolveram um política. Representou o ponto alto dos primeiros esforços
complexo sistema da humanidade na busca de garantir paz, justiça e ordem à
hidráulico que favorecia convivência entre os homens. Se um dos grandes méritos
a utilização dos
da civilização mesopotâmica foi conseguir, através do
pântanos, evitava
inundações e garantia planejamento urbano, superar as adversidades naturais
o armazenamento de impostas pela geografia da região e as adversidades
água para as estações impostas pelo convívio entre os homens, o Código
mais secas.
significou a coroação dessa superação.

Seção 2
Egito Antigo: o desenvolvimento do estado teológico
Não muito longe da Mesopotâmia, a oeste do Mar Vermelho, outro povo também
soube aproveitar a dádiva trazida por um rio em meio ao deserto: os egípcios. O
Rio Nilo, que nasce de uma confluência de rios africanos e corta o nordeste do
Saara até desembocar no Mar Mediterrâneo, esteve para o Egito Antigo, assim
como o Tigre e o Eufrates estiveram para a Mesopotâmia: nem uma e nem outra
civilização teria existido sem suas águas.

Por esta razão, a região que compreende os territórios dessas duas antigas
civilizações ficou conhecida como Crescente Fértil. O nome foi dado no final do
séc. XIX, pelo arqueólogo James Henry Breasted (1865-1935), que enxergou no
contorno da região o desenho de uma lua crescente – um símbolo apropriado
para a fertilidade.

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Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 1.3 - Região do Crescente Fértil

Fonte: Einstein (2005).

O Tigre e o Eufrates, em função do relevo que os envolve, correm de noroeste


para sudeste, em um sentido oposto ao rio Nilo. Isto teve uma implicação
significativa para o desenvolvimento daqueles povos: as enchentes na
Mesopotâmia, devido ao comportamento de seus rios, foram muito mais
violentas, o que demandou um grande esforço por parte de seus habitantes no
desenvolvimento de sistemas de irrigação.

2.1 A unidade política egípcia e a burocracia de oficiais


Por outro lado, a uniformidade e a regularidade apresentadas pelo Nilo deram ao
povo egípcio tranquilidade para fazerem prospectos mais ambiciosos. O reflexo
mais claro dessa condição deu-se no plano político: enquanto os mesopotâmicos
não chegaram a uma unidade política, tendo passado por diversas reformulações
político-territoriais, a relativa estabilidade climática oferecida pelo Nilo pode ter
dado ao povo egípcio a oportunidade de conceber um governo forte e unificado,
como aconteceu desde o princípio.

15
Capítulo 1

Quadro 1.1 - Governos do Antigo Egito

Períodos (os algarismos romanos se referem Duração


às dinastias)

Período pré-dinástico 4500-3200 a.C.

Período protodinástico 3200-3100 a.C.

Época Tinita: I e II. 3100-2700 a.C.

Império Antigo: III, IV, V e VI. 2700-2300 a.C.

1º Período Intermediário: VII, VIII, IX, X e XI. 2300-2000 a.C.

Império Médio: XI e XII. 2000-1780 a.C.

2º Período Intermediário: XIII, XIV, XV, XVI, XVII. 1780-1570 a.C.

Império Novo: XVIII, XIX e XX. 1550-1070 a.C.

3º Período Intermediário: XXI, XXII, XXIII, XXIV e XXV. 1070-664 a.C.

Época Baixa: XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, XXX e XXXI. 664-332 a.C.

Período Greco-romano (dinastias macedônica e 305-30 a.C.


ptolomaica)

Período Romano A partir de 30 a.C.

Fonte: Elaboração do autor (2009).

Conforme indica o quadro apresentado, costuma-se dividir a história política do


Egito Antigo em doze períodos, dos quais nove correspondem às dinastias
genuinamente egípcias, que garantiram àquela nação sua longa estabilidade,
apesar das crises e intermitências.

A primeira delas iniciou-se há cerca de cinco mil anos, quando uma cadeia de
cidades-estado situadas à beira do Nilo ganhou um governo central. O faraó –
como se chamava o rei egípcio – detinha, então, o controle completo das terras e
de seus recursos. Ele era o supremo comandante militar e também a cabeça do
governo. No entanto, não era exatamente um déspota, pois dividia sua autoridade
com uma burocracia de oficiais.

Tjati Este cargo, que A administração ficava a cargo de seu segundo


surge na IV dinastia, é comandante, o tjati, uma espécie de primeiro-ministro que
comumente chamado
de vizir, o que, segundo
coordenava a inspeção das terras, o tesouro, os projetos
Gardiner (1957), das obras, o sistema legal e os arquivos. O Império era
constitui um erro, dividido em 32 províncias, chamadas nomos, e cada uma
visto que os vizires só
delas era governada por um nomarca, que ficava sob a
apareceriam mais tarde,
nas dinastias islâmicas. jurisdição do tjati.

16
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

2.2 Religião, governo e economia


A religião era o principal sustentáculo do governo. Divindade e política foram dois
assuntos tão imbricados no Egito Antigo que é comum admiti-lo como o primeiro
autêntico estado teológico da história. Os templos, por exemplo, formavam a espinha
dorsal da economia, pois não eram apenas casas de adoração, mas também
estabelecimentos responsáveis por recolher e armazenar a riqueza da nação.

Figura 1.4 - Deus Rá, portando símbolos de poder, recebe as oferendas de um humano (peça do séc. X a.C.)

Fonte: Blanchard (2004).

Eles constituíam um sistema de silos e tesouros, e eram administrados por


inspetores, que redistribuíam os grãos e os bens. O faraó era visto como uma
personificação do deus Hórus, enquanto que seu antecedente era associado ao
pai de Hórus, o deus Osíris. A partir da V dinastia, os faraós também passaram a
se apresentar como filhos de Rá, o deus do sol.

Certamente os monarcas egípcios perceberam a conveniência dessa associação,


já que o sol – além de ser um evidente símbolo de poder – tinha uma importância
para a agricultura, a base econômica da nação. A maior parte da economia
era centralizada e estritamente controlada. Entretanto, segundo Shaw (2002),
os antigos egípcios não tiveram uma moeda oficial até o Império Antigo (2700
a.C.). Antes do estabelecimento da moeda, foi desenvolvido um tipo de sistema

17
Capítulo 1

monetário baseado no escambo, em que havia um saco de grãos padrão e o


deben, um anel de cobre ou prata que pesava cerca de 90 gramas e representava
um denominador comum nas trocas.

Os trabalhadores eram pagos em grãos. Um simples trabalhador ganhava 5½


sacos de grãos por mês, enquanto que um capataz chegava a ganhar 7½ sacos.
Os preços eram fixos em todo o país e ficavam registrados em listas, para facilitar
o comércio. Uma camisa, por exemplo, custava 5 deben de cobre, enquanto que
uma vaca custava em torno de 140 deben.

Figura 1.5 - Deben egípcio, que significa literalmente “anel de metal”

Fonte: Smith (2013).

Os grãos poderiam ser comercializados por outros bens, de acordo com a lista de
preços fixada. Durante o século V a.C., o dinheiro em forma de moeda foi
introduzido no Egito, vindo de fora. No princípio, as moedas foram usadas mais
como peças de metal precioso padronizadas do que, de fato, como dinheiro; nos
séculos seguintes, mercadores internacionais vieram a dar confiabilidade ao
sistema monetário.

2.3 Estratificação social e sexual


Estratificada Dividida A sociedade egípcia foi altamente estratificada, e o
em estratos (camadas) status social era expressamente exibido. Os agricultores
sociais rígidos.
compunham a maioria da população, mas a produção
agrária era apropriada diretamente pelo estado, pelo templo ou pela família nobre
que possuía a terra. Eles também ficavam sujeitos a uma taxa de trabalho e eram
convocados a trabalhar em projetos de irrigação ou construção.

18
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Artistas e artesãos tinham um status mais alto que os agricultores, mas também
ficavam sob o controle estatal, trabalhando em tendas vinculadas aos templos,
financiadas diretamente pelo tesouro do estado. Os escribas e os oficiais
formavam uma classe superior, que se distinguia das demais através de vestes
brancas. Esta classe demarcou sua proeminência social na arte e na literatura.
Abaixo da nobreza estavam os sacerdotes, médicos e engenheiros, cada qual
com sua especialidade. Sabe-se que a escravidão existiu no Egito Antigo, mas a
extensão e a prevalência desta prática ainda não foram plenamente esclarecidas.

Homens e mulheres – incluindo pessoas de todas as classes (exceto os escravos)


– eram essencialmente iguais perante a lei, e até mesmo a um ínfimo camponês era
permitido solicitar ao tjati e sua corte algum tipo de reparação. Tanto os homens
como as mulheres tinham o direito de adquirir e vender propriedades, fazer
contratos, casar e divorciar, receber herança e recorrer aos tribunais. Os casais que
estabelecessem matrimônio poderiam adquirir propriedades em conjunto e
proteger-se do divórcio por meio de contratos que previam comunhão de bens.

Amon O deus da vida, Em comparação com os Gregos e os Romanos, e


considerado o rei dos até mesmo com outros povos modernos, as antigas
deuses.
mulheres egípcias tiveram uma gama de oportunidades
muito maior para a sua autorrealização. Mulheres como
Hatchepsut (séc. XV a.C) e Cleópatra (69-30 a.C.) chegaram a se tornar faraós, ao
passo que outras possuíram grande poder enquanto Esposas Divinas de Amon –
o mais alto grau de uma sacerdotisa.

Apesar destas liberdades, as mulheres no Egito Antigo não assumiram cargos


oficiais na administração, tendo cumprido apenas funções secundárias nos templos.
Além disso, a educação que recebiam não era a mesma dada aos homens.

2.4 O direito egípcio


Oficialmente, o faraó era a cabeça do sistema legal, responsável por promulgar
as leis e julgar sua aplicação, mantendo assim a lei e a ordem, um conceito ao
qual os egípcios se referiam pelo termo Ma’at. Entretanto, no Egito, não havia
códigos legais, como o de Hamurabi, na Mesopotâmia.

Os registros dos tribunais egípcios mostram que a lei era baseada em uma
visão do bem e do mal advinda do senso comum, que enfatizava a obtenção de
acordos e a resolução de conflitos mais do que qualquer adesão estrita a uma
série de estatutos.

19
Capítulo 1

O conselho local dos anciãos, conhecido no Império Novo como Kenbet, era
responsável por julgar casos que envolvessem pequenas reivindicações e
disputas menores. Casos mais sérios, que envolvessem assassinato, transações
de grandes porções de terra e roubo de tumbas, cabiam ao Grande Kenbet, que
era presidido pelo tjati ou pelo faraó.

Perceba que os egípcios tinham uma tendência ao direito consuetudinário, isto é,


baseado nos costumes, enquanto que os mesopotâmicos preferiam a lei
codificada. Essas duas tendências permanecem no mundo atual.

A partir do Império Novo, os oráculos – divindades que respondiam a consultas


e orientavam os crentes – desempenharam um papel maior no sistema legal,
respondendo pela justiça tanto nos casos civis quanto nos criminais. O
procedimento consistia em fazer uma pergunta à divindade, pedindo-lhe “sim”
ou “não” como resposta, a fim de saber que lado estava
Óstraco O termo
advém do grego
certo e que lado estava errado em um determinado caso.
ostrakon, que significa Amparado por um grupo de sacerdotes, o oráculo escolhia
concha ou fragmento uma das duas opções e, assim, dava seu julgamento. Ele
de cerâmica, usado
podia indicá-lo simplesmente movendo-se para frente, ou
como cédula de
votação. para trás, ou apontando para uma das respostas escritas
em um pedaço de papiro ou em um óstraco.

Figura 1.6 - Cena de consulta a um antigo oráculo egípcio

Fonte: Bukerova (2006).

As características da vida política egípcia apresentadas até aqui sequer nos


permitem vislumbrar a complexidade daquela sociedade. Tudo o que já se
conseguiu resgatar da antiga civilização egípcia espanta qualquer um, seja
leigo ou especialista, por uma questão óbvia: como aquele povo, egresso da
pré-história, pôde conceber um arranjo político tão eficiente, capaz de mantê-

20
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

lo próspero por quase cinco milênios? Em nossa avaliação, pudemos ver que
o faraó e sua máquina administrativa encontraram meios de conciliar religião,
economia e justiça, atendendo aos desejos mais sensíveis de seus súditos.

Seção 3
Grécia Antiga: a descoberta do homem através
da política
É muito comum encontrarmos teóricos que atribuem aos gregos antigos a
“invenção da política”. Por tudo o que já estudamos até aqui, isto é, considerando
todas as invenções políticas realizadas por povos anteriores aos gregos, parece
impróprio confirmar esta afirmação. Em outras palavras, será mesmo possível
afirmar que os gregos inventaram a política?

Por incrível que pareça, a partir de certa perspectiva, a resposta é sim.


Já dissemos que as grandes civilizações só puderam existir porque seus
governantes perceberam que a política não consiste apenas em uma arte – ou
seja, em uma atividade prática – mas também, dadas as suas regularidades,
apresenta-se como uma ciência.

Obviamente, homens anteriores à antiga civilização grega tiveram esta percepção,


caso contrário, Hamurabi, por exemplo, não poderia condensar séculos de
experiências políticas em seu código; e os egípcios, como vimos, não seriam
capazes de elaborar um sistema de administração pública tão eficaz. No entanto,
o que faz dos gregos inventores da política enquanto ciência é a maneira como
eles a puseram no centro de sua existência.

Para os gregos antigos, a política era uma nova forma de pensar, de sentir e,
sobretudo, de relacionamento entre as pessoas. Como nos lembra Kenneth
Minogue (1996, p. 19), “os cidadãos eram diferentes uns dos outros em riqueza,
beleza e inteligência, mas eram iguais enquanto cidadãos, porque eram racionais
e a única relação adequada entre os seres racionais é a persuasão.”

A persuasão difere do comando – ato emblemático dos regimes despóticos –


porque parte do princípio da igualdade entre o orador e o ouvinte, isto é, entre
aquele que defende a sua ideia e aquele que o julga.

21
Capítulo 1

O uso da razão – aquela faculdade que o ser humano tem de avaliar, julgar,
ponderar ideias universais – era, portanto, uma condição primária para que
um grego tivesse uma vida política.

Platão (428-347 a.C.), em seu diálogo Críton, narra o fim daquele que se tornou o
maior exemplo de homem e cidadão para a humanidade. Segundo ele, o filósofo
Sócrates, tendo sido condenado à morte, acusado de corromper a juventude,
recusou a oferta de ajuda para fugir de Atenas, argumentando que a fuga não
seria condizente com seu empenho pela cidade, à qual havia dedicado sua vida.

Cicuta Veneno extraído A própria execução de Sócrates ilustra a convicção que os


de uma planta que leva gregos tinham de que a violência não era uma forma
o mesmo nome. aceitável de convivência: deram-lhe uma taça de cicuta,
que ele bebeu enquanto seguia conversando com seus
amigos, da mesma forma como fez durante toda a vida.

Os gregos obedeciam às leis da polis por vontade própria,


Polis Termo grego que
significa cidade e é ae não por imposição. Isto é, eles seguiam a lei livremente,
e tinham orgulho nisto. O pior que podia acontecer a um
raiz da palavra política,
o que sugere que a grego antigo era o exílio, que representava uma forma
política diga respeito
à cidade ou, ainda, ao
de morte cívica. Em Atenas – uma das duas principais
convívio na cidade. cidades-estado gregas, ao lado de Esparta – surgiu uma
convenção chamada ostracismo, um tipo de banimento
temporário que os cidadãos votavam, quando viam em alguém uma ameaça aos
interesses públicos.

3.1 A civilização grega antiga


Mas quem foram os gregos antigos? Antes de seguirmos tratando dos ideais
políticos de seu povo, vale situarmos a Grécia Antiga no tempo e no mapa. No
que se refere ao tempo, podemos dividir a antiga história grega em seis períodos,
conforme indica o seguinte quadro:

22
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Quadro 1.2 - Períodos da antiga história grega

Período Duração

Civilização Egeia Antes de 1600 a.C.

Grécia Micênica 1600-1200 a.C.

Idade das Trevas 1200-800 a.C.

Grécia Antiga 800-338 a.C.

Período Helenístico 338-146 a.C.

Período Greco-Romano 146 a.C.-330 d.C.

Fonte: Elaboração do autor (2009).

Alguns historiadores incluem a Civilização Egeia (ou


Idade das Trevas
Período em que a Minóica), a Grécia Micênica e a Idade das Trevas na
Grécia foi invadida chamada Grécia Antiga. No entanto, a maioria prefere usar
pelos povos aqueus, este termo para designar um período específico, em que a
dóricos, eólios e
civilização grega conheceu seu esplendor. A Grécia Antiga,
jônicos.
assim compreendida, subdivide-se em dois outros períodos:
o Arcaico (800-500 a.C.) e o Clássico (500-338 a.C.).

O Período Arcaico foi uma fase de formação, durante a qual surgiram os


principais modelos de cidade grega, o alfabeto fonético, as tendências artísticas
e literárias e todos os demais aspectos que constituiriam a base cultural das
conquistas clássicas. Além disso, também se observa nesse período um notável
progresso econômico, com a expansão da divisão do trabalho, do comércio e da
indústria, paralelamente aos processos de urbanização e colonização.

No Período Clássico, as invenções das mais diversas ordens iniciadas no Período


Arcaico estavam plenamente desenvolvidas. As já mencionadas Atenas e Esparta
eram, na época, as principais cidades gregas, mas, além delas, também havia
outras importantes cidades, como Tebas, Corinto e Siracusa.

Durante este período, aconteceu uma série de conflitos externos, denominados


Guerras Médicas (500-448 a.C.), e também a Guerra do Peloponeso (431-404
a.C.), um conflito interno entre as duas principais potências gregas de então:
Esparta, de tradição oligárquica, e Atenas, de tradição democrática. Essa guerra,
fatídica para o mundo grego, foi iniciada por Esparta, que temia a ascensão de
Atenas. Esparta venceu a guerra e, por um breve período, dominou todo o mundo
grego, porém, em 371 a.C., as outras cidades-estado insurgiram contra a tirania
espartana e derrubaram seu domínio.

Com relação ao território, o mapa a seguir representa a Grécia no século VIII a.C.

23
Capítulo 1

Figura 1.7 - Grécia no século VIII a.C.

Fonte: Albuquerque (1977).

3.2 Liberdade na polis


Em Atenas – o centro civilizacional do mundo no século V – encontramos a
maioria das condições da liberdade: uma vida vivida entre iguais, sujeitos apenas
às leis, governando e sendo, por sua vez, governados.

Referindo-se à liberdade de que gozavam os cidadãos atenienses, Minogue


(1996, p. 20) é enfático ao explicar por que os gregos antigos são considerados
os inventores da política:

Os gregos foram o primeiro povo na história a criar sociedades


deste tipo; foram, certamente, os primeiros a criar uma literatura
que explorou essa forma de vida como experiência. A política era
a atividade específica para essa nova figura chamada “cidadão”.
Podia revestir muitas formas, mesmo aviltantes, de tirania e
usurpação, mas numa coisa os últimos clássicos da Grécia foram
inflexíveis: para eles o despotismo oriental não era política.

24
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Em se tratando de religião, costumes ou concepção de vida humana, são muitas


e profundas as diferenças entre nós, modernos, e os gregos clássicos. Apesar
deste abismo cultural, quando lemos sua literatura é fácil enxergá-los como
nossos contemporâneos. Por meio de seu racionalismo, os gregos atravessam os
milênios e se comunicam conosco com uma fluência espantosa. A concepção de
vida dos gregos era essencialmente humanista, no entanto seu humanismo não
era igual ao nosso – transformado pelo cristianismo.

Os gregos antigos consideravam o homem um animal racional e o


significado da vida humana encontrava-se no exercício dessa racionalidade.

Para os gregos, sucumbir às paixões era o mesmo que rebaixar-se à condição


de um animal irracional. O segredo da vida consistia no autoconhecimento e
no equilíbrio das próprias capacidades. A maneira mais elevada que um grego
poderia encontrar para expressar-se a si mesmo era deliberar sobre as leis e os
assuntos públicos, o que só podia ocorrer na cidade.

3.3 Humanismo cruel e cidadania


Este humanismo, contudo, também tinha seu lado cruel. Uma vez que alguém só
é humano quando é racional, e uma vez que uns são menos racionais que outros,
os humanistas gregos mais astutos achavam-se no direito de escravizar seus
semelhantes “inferiores”. Entretanto, os que defendiam esse ponto de vista, entre eles
o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), sabiam que, intelectualmente, muitos escravos
eram superiores aos seus senhores, o que nos leva à outra importante conclusão.

Em última instância, os princípios humanistas serviam apenas para dar uma


base racional às instituições políticas criadas pelas elites gregas.

Os elitistas gregos, fossem oligarcas ou aristocratas, acreditavam que, além dos


escravos, também as mulheres eram menos racionais do que os homens. Eles
sabiam que, sobretudo naquela época, política e guerra estavam intimamente
ligadas, e – considerando que as mulheres, por sua natureza física, não têm tanto
vigor para lutar em guerras – apoiavam-se também nesse argumento para impedir
a participação feminina nos assuntos públicos.

A cidadania grega, portanto, estava restrita aos adultos livres do sexo masculino
e, em algumas cidades, nem sequer a todos estes.

25
Capítulo 1

As leis e as políticas (ações governamentais) provinham não do palácio de um


déspota, mas de uma praça pública, onde os cidadãos discutiam todo tipo de
questão que importasse à cidade. Na ágora – como essa praça era chamada
na Grécia Antiga (o equivalente ao fórum romano) – os cidadãos gozavam de
isonomia (igualdade perante a lei) e de iguais oportunidades para se pronunciar
em uma assembleia. Evidentemente, em grandes cidades, como Atenas, onde
milhares de pessoas compareciam a uma assembleia, era impossível que cada
participante se pronunciasse, de modo que o privilégio recaía sobre os que
dominavam a arte da palavra (geralmente os aristocratas) e sobre os grandes
líderes, que tinham notável apoio popular.

Figura 1.8 - Reconstituição da ágora ateniense em 479 a.C.

Fonte: Tsalkanis (2012).

Os cidadãos que participavam das assembleias na ágora pertenciam a casas de


família (oikia), que consistiam em unidades produtivas básicas daquele mundo
antigo. A oikos – de onde vem o termo economia – foi
Oikos está no singular
e oikia no plural. descrita por Aristóteles como um sistema de subordinação:
a mulher era subordinada ao homem, os filhos eram
subordinados aos pais e os escravos aos senhores. Era o
espaço em que os gregos desfrutavam a vida familiar e realizavam a maior parte
de suas necessidades materiais, como alimentação, conforto, procriação, etc. Em
outras palavras, era a esfera privada do mundo grego.

Para os gregos, a “casa de família” representava o mundo da natureza, enquanto


que a ágora, por exemplo, representava o lado artificial – embora necessário
– da cidade. Quando se tornava adulto, o jovem grego podia sair da “casa de
família” para a ágora, a fim de encontrar a liberdade e superar suas necessidades
naturais, assumindo responsabilidades, proferindo palavras nobres e realizando
feitos que, de alguma maneira, o imortalizariam.

26
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

De acordo com Finley (1998), os gregos do período clássico estavam


suficientemente conscientes de si mesmos para se reconhecerem como uma
cultura diferente, e foi ao construírem um entendimento histórico de si próprios
e do seu mundo que eles ofereceram possibilidades absolutamente novas de
experiência humana. “A política e a história nasceram, assim, juntas, porque
partilham o mesmo conceito do que é um ser humano e daquilo que vale a pena
ser recordado.” (FINLEY, 1998, p. 35).

A história, que é feita de atos e palavras, tem nas próprias palavras o seu veículo.
Daí a importância que os gregos deram à retórica – a arte das palavras. Eles
entenderam que apenas com termos bem pensados, argumentos devidamente
construídos, voltados para o público que os julgaria, teriam sucesso nas
assembleias. Entenderam que apenas com discursos bem elaborados poderiam
fazer história. Parece natural, hoje em dia, que a política se realizasse daquela
maneira, mas, pela primeira vez na história, as decisões públicas eram tomadas à
luz do dia, sujeitas a críticas de toda a gente.

A busca da primazia nos discursos levou a uma perversão desta prática. Jovens
aristocratas ambiciosos, instruídos por professores chamados sofistas, que
haviam codificado a arte da retórica, vieram a manipular as palavras conforme os
seus interesses, desviando o sentido da política. Em sua História da Guerra do
Peloponeso, Tucídides (460-400 a.C) registrou uma série de discursos proferidos
pelos participantes daquele conflito, os quais Minogue (1996, p. 24) ironiza: “no
seu conjunto, estes discursos constituem um manual
Estultícia Estupidez.
completo da sabedoria e também da estultícia políticas.”

3.4 A reforma de Sólon e a separação dos poderes


A perversão da retórica estava ligada a um engano cometido pelos gregos, que
nós modernos repetimos até hoje: a falsa convicção de que o mundo resulta
de um plano deliberado. O mundo nem sempre funcionava conforme os gregos
queriam, imaginavam e prescreviam em suas assembleias.

27
Capítulo 1

Figura 1.9 – “Sólon, legislador de Atenas”, quadro de Merry-Joseph Blondel (1828)

Fonte: Förlag (2013).

Em algumas oportunidades, eles perceberam que seus projetos haviam falhado.


O caso mais famoso ocorreu no século VII a.C., quando os atenienses pediram
a Sólon (640-560 a.C.) que concebesse uma reforma nas leis da cidade. Entre
as características desta reforma, duas merecem destaque, por exemplificarem o
essencial da política grega.

Sólon baseou a política ateniense em unidades territoriais, em que se


misturavam diversas lealdades de clã ou tribo, a fim de desagregá-las e
encorajar a defesa de interesses gerais, partilhados por toda a comunidade.
Isto é reproduzido até hoje: o círculo eleitoral moderno agrega uma população
heterogênea que habita uma determinada área, a fim de captar seus interesses
como um todo.

Após estabelecer sua reforma, Sólon ausentou-se de Atenas por dez anos,
para que a constituição fosse posta em prática por outras pessoas. Com isso,
Sólon sugeriu que quem concebe a lei não pode pô-la em prática, pois, caso
contrário, dará margem a arbitrariedades. Esse princípio seria retomado pelos
modernos sob o título de separação dos poderes.

28
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

3.5 A constituição
O conjunto de cargos que formavam o governo da polis e as leis que
estabeleciam suas relações representavam a constituição. A constituição,
para os gregos, tinha uma importância particular: sem ela, um governo não
teria o tipo específico de limitação moral que distingue a atividade política. Os
gregos clássicos acreditavam que um governo sem constituição não possuía
legitimidade. As constituições têm duas funções básicas:

•• delimitar o poder daqueles que detêm os cargos; (e, assim,)


•• criar um mundo previsível (embora não rígido e fixo), no qual os
cidadãos podem orientar suas vidas.
Podemos afirmar que a constituição representa o principal objeto da ciência
política, pois ela é a expressão formal das regularidades que esta atividade
apresenta. Diversos pensadores gregos dedicaram-se a estudar as formas que as
constituições tomaram.

Durante o período clássico, as duas formas constitucionais que predominaram


foram a oligarquia, que favorecia os ricos e os poderosos, e a democracia, que
atendia aos interesses dos pobres e demonstrava-se violenta e instável. Talvez por
este motivo, os principais pensadores deste período, Platão e Aristóteles, criticaram
os inconvenientes dessas duas formas, apontando a república como solução.

3.6 Teoria dos ciclos recorrentes


Mais tarde, Políbio (203-120 a.C), de um ponto de vista histórico mais privilegiado,
complementaria a análise de seus antecessores ao propor a teoria dos ciclos
recorrentes. Reunindo as contribuições da ciência política grega, Políbio
estudou as constituições e generalizou a relação entre a natureza humana e as
associações políticas.

Para ele, as monarquias tendem a degenerar em tirania, as tiranias são


destronadas pelas aristocracias, estas degeneram em oligarquias exploradoras
da população, que são derrubadas pelas democracias, as quais, por sua vez,
degeneram numa instabilidade intolerável; aparece então um líder poderoso
que se impõe como monarca, e o ciclo recomeça. Mais de um milênio depois,
o renascentista Maquiavel retomaria a teoria de Políbio e a complementaria,
acrescentando a ela uma distinção entre anarquia e democracia e enfatizando a
república como uma combinação das formas puras.

Além disso, Maquiavel, amante da Antiguidade Clássica, também se posicionaria


em relação à outra questão proposta pelos gregos antigos. Aristóteles, em
particular, acreditava que o elemento democrático era essencial em uma

29
Capítulo 1

constituição equilibrada, que ele chamou de politeia. Para ele, todo tipo de
mudança na forma de governo, isto é, todo tipo de revolução política é motivada
por uma causa apenas: a exigência da igualdade.

Ora preocupado com a ética, ora com a política, Aristóteles fez, a si mesmo e à
humanidade como um todo, a seguinte pergunta: um bom cidadão pode ser um
bom homem? Ao responder a essa pergunta, Maquiavel faria nascer a Ciência
Política moderna. No entanto, este assunto extravasa nossas pretensões nesta
seção. Por ora, fiquemos com este breve panorama do pensamento político
desenvolvido pelos gregos antigos, certamente o primeiro povo a descobrir a
essência humana através da política.

Seção 4
Roma Antiga: a política só existe na prática
A maioria dos estudiosos atribui uma merecida importância aos gregos antigos,
porém costuma subestimar seus sucessores e conquistadores, os romanos,
tomando-os apenas como meros reprodutores dos modelos gregos. Há alguma
verdade nisso; no entanto, ao imitar seus mestres gregos, os romanos, ao menos
na prática, vieram a superá-los.

Essencialmente pragmáticos, voltados para a ação e apoiados em valores nobres,


os romanos deram à sua civilização uma vida longa e próspera, que durou mais
de mil anos, sendo meio milênio só de república. Se o termo política deriva da
língua grega, os termos civilidade, cidadão e civilização derivam da língua dos
romanos, o latim – um sinal da influência que Roma exerce sobre a tradição
política ocidental.

Epopeia Epopeias Todavia, os romanos consideravam-se ligados aos gregos


são poemas longos em todos os sentidos. A própria epopeia, que explica as
acerca de um assunto origens do povo romano – a Eneida, de Virgílio – narra
grandioso e heroico.
Toda língua ou nação
a aventura de Eneias, herói do povo troiano, que, após
costuma possuir uma ter sua cidade tomada e destruída pelos gregos, conduz
epopeia que exalte os sobreviventes de seu povo até a região do Lácio, na
suas origens. É o caso
Itália, onde seria fundada a cidade de Roma. Ou seja,
da Ilíada, de Homero,
e de Os Lusíadas, de os romanos criaram a sua própria história, de modo que
Camões. ela fosse vista como uma continuação direta da clássica
civilização grega.

30
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 1.10 – “Eneias foge de Tróia em chamas”, quadro de Federico Barocci (1598)

Fonte: Krén e Marx (2012).

Na mitologia romana, após estabelecer-se no Lácio, Ascânio, filho de Eneias,


funda a cidade de Alba Longa. Os descendentes de Ascânio governam Alba
Longa por cerca de 400 anos, até que uma briga pela sucessão no trono abala a
estabilidade da dinastia.

Vestal Sacerdotisa
Numitor, filho do rei Procas e legítimo herdeiro do trono, é
virgem, consagrada à deposto por seu ambicioso irmão Amúlio. Este obriga a
deusa Vesta. esposa de Procas, Reia Sílvia, a tornar-se uma vestal e
fazer um voto de castidade. O deus Marte, no entanto,
seduz a legítima princesa, que engravida e dá a luz a dois gêmeos homens,
chamados Rômulo e Remo. Amúlio ordena que os gêmeos sejam mortos, mas o
escravo incumbido desiste da tarefa de matá-los e os abandona no rio Tibre.
A cesta com os bebês vai parar nas margens do rio, entre os montes Palatino e
Capitolino, onde são encontrados, adotados e amamentados por uma loba. Os
gêmeos crescem e decidem, então, fundar uma nova cidade. Mas novamente a
ambição pelo poder abala a fraternidade e faz com que eles entrem em conflito.
Rômulo prevalece e, em homenagem a seu nome, funda a cidade de Roma,
tornando-se seu primeiro rei.
Com o governo de Rômulo, Roma inicia a sua primeira fase política, o Reino, que
vai de 753 a 509 a.C. Nesse período, foram estabelecidas suas bases políticas.

Assembleia Curial Ainda durante o período monárquico, o povo romano


Relativo à Cúria – a expressou sua inclinação republicana, instituindo a
corte pontifícia, Assembleia Curial, que elaborava e aprovava as leis e
composta pelos
supremos sacerdotes
escolhia os reis; e o Senado Romano (ou Conselho dos
da cidade. Anciões), que possuía o direito de aprovar, ou não, as leis e
políticas propostas pelo rei.

31
Capítulo 1

Além disso, durante o Reino, Roma também exibiu sua tendência expansionista,
que ficaria evidente durante o período republicano e, principalmente, durante
o Império. Em seus 243 anos de duração, a monarquia romana impôs o seu
domínio no Lácio, conquistando Alba Longa e estendendo seu território até a foz
do rio Tibre.

Durante o período monárquico, estratificaram-se as cinco principais classes que


perdurariam na sociedade romana:

•• Patrícios - cidadãos romanos, que detinham o poder econômico e


político;
•• Plebeus - homens livres, porém sem direitos políticos;
•• Clientes - pessoas ligadas a uma família patrícia, que se
subordinavam ao seu patrono e seguiam-no na política e na guerra,
além de assumir, também, obrigações econômicas;
•• Escravos - geralmente, pessoas recrutadas entre os derrotados
da guerra, consideradas meros instrumentos, sem nenhum direito
político;
•• Marinos - carpinteiros e marceneiros ligados aos plebeus.
Nesse intervalo, houve apenas sete reis, o que dá uma média de 35 anos
por reinado – uma estabilidade muito maior do que qualquer dinastia já havia
atingido até então. Em algum momento desta época, o trono romano passou a
ser ocupado por reis etruscos, o que colidia diretamente com os interesses da
aristocracia romana: manter a hegemonia na região do Lácio, que também era
composta de cidades etruscas. Isso motivou os membros da elite a derrubar a
monarquia e – ao invés de estabelecer uma aristocracia – fundar a República
Romana, que duraria de 509 até 29 a.C.

4.1 A república romana: uma constituição equilibrada


Curiosamente, e confirmando o que dissemos no começo desta seção, através
da República os romanos, de alguma forma, realizaram um ideal aristotélico
que os gregos não chegaram a realizar plenamente: a politeia. A constituição da
República Romana previa um elemento monárquico (os cônsules), um elemento
aristocrático (o senado) e – o mais importante – um elemento democrático (o
tribuno da plebe).

Ao garantir o elemento democrático, os romanos criaram uma espécie de válvula


de escape para os anseios de igualdade, fazendo com que nenhum cidadão
jamais se sentisse ignorado e, assim, desigual em relação aos mais poderosos.

32
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

A forte base oferecida pelo governo republicano permitiu que Roma, de uma
pequena cidade-estado, fosse transformada em um império. No século III a.C., os
exércitos romanos já haviam tomado todas as cidades etruscas, conquistando o
domínio completo da península itálica.

Entre os séculos III e II a.C., Roma iniciou sua expansão para além da península.
O primeiro passo foi conquistar os territórios dos cartagineses, que tinham sua
capital no norte da África e haviam colonizado toda a costa setentrional daquele
continente, além da Sicília, Sardenha, Córsega e Península Ibérica. Enquanto
acabavam de liquidar os púnicos, os romanos voltaram
Púnicos Como os
romanos chamavam
seus olhos para o oriente, onde o Império de Alexandre
os cartagineses. Daí Magno (356-323 a.C.) se havia diluído. Em menos de
o nome “Guerras um século, Roma dominou a maior parte do território
Púnicas”.
macedônico, além da Grécia e do Egito.

Figura 1.11 - Expansão do território romano, desde o Reino até o início do Império

Fonte: Albuquerque (1977, p. 77).

33
Capítulo 1

No final do século II a.C., a civilização romana já era a maior potência mundial.


Àquela época, o território dos romanos estendia-se por quatro mil quilômetros,
indo da Espanha até a Ásia Menor.

Seu ímpeto expansionista, entretanto, não cessou. Pelo contrário, apenas


aumentou: em meados do século I a.C., o general Júlio César (100-44 a.C.), patrício
de grande influência, conquistou a cobiçada Gália, e assim fez crescer seu prestígio
entre a população romana. Naquele momento, o Senado, temendo seu populismo,
tentou enfraquecê-lo. César, entretanto, voltou-se contra a elite aristocrática e
declarou-se Imperador Romano, pondo um fim ao período republicano e dando
início ao Império Romano (27 a.C.- 476 d.C.), que viria a revolucionar para sempre
toda a estrutura política, geográfica e econômica da Europa.

4.2 Sincretismo e patriotismo


Parte do sucesso romano deve-se, sem dúvida, à sua postura civilizatória. Sempre
que os romanos conquistavam um grande povo, como fizeram com os gregos, os
egípcios e os cartagineses, ao invés de destruírem toda a produção cultural de seu
inimigo, eles preservavam-na, procurando absorver o que havia de melhor nela.

Os estudiosos dão a esta prática o nome de sincretismo, que consiste


em fundir elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só
elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários. Um dos
maiores reflexos desta postura sincretista está na maneira como os
romanos absorveram e transformaram o humanismo grego.

Se a política dos gregos baseou-se na razão, a dos romanos baseou-se no


amor – um amor ao país, um amor à própria Roma. Os romanos, de fato,
inventaram o patriotismo, e esta é uma das grandes chaves de seu sucesso. Eles
consideravam-se uma espécie de família e viam em Rômulo, seu fundador, um
antepassado comum.

Talvez tenha sido Agostinho de Hipona (mais conhecido como Santo Agostinho),
um dos maiores pensadores cristãos, que viveu durante a fase final do Império
Romano (354-430 d.C.), o primeiro a perceber o patriotismo como a paixão
orientadora dos romanos; em parte porque viu em tal paixão uma prefiguração
do amor que animava os cristãos. No entanto, é do poeta Horácio (65-8 a.C.) o
verso que, por muito tempo, representou o mais nobre dos sentimentos políticos:
“dulce et decorum est pro patria mori” (morrer pela pátria é maravilhoso e digno).
Este sentimento perderia seu valor após a II Guerra Mundial, devido aos horrores
causados pelo patriotismo exagerado dos nazistas.

34
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

4.3 Poder e autoridade


Como afirma Minogue (1996, p. 32), “quando os romanos pensavam no poder,
utilizavam duas palavras, a fim de marcarem uma diferença importante: potentia
significava poder físico, enquanto potestas significava o direito e o poder legais
inerentes a um cargo.” O conjunto total dos poderes à disposição do estado
constituía o imperium. Além disso, essas duas formas de poder diferiam de outro
conceito legado pelos romanos, muito caro à tradição política: a auctoritas.

Auctoritas (autoridade) representava a reunião da política com a religião


romana, implicava a veneração das famílias e, portanto, dos antepassados.

Um auctor (autor) era o fundador ou o iniciador de qualquer coisa – fosse uma


cidade, uma família, ou mesmo um livro ou uma ideia. Se o Senado foi a mais
importante instituição romana, é porque seus membros eram considerados os
autores daquela sociedade. Daí o respeito que qualquer cidadão tinha por um
senador, confiando a esta figura a condução da res publica (a coisa pública).

O estandarte do exército trazia o símbolo militar da


Figura 1.12 - Réplica do nação, a águia, e a sigla do seu lema principal: Senatus
estandarte romano
Populusque Romanus (Senado e Povo Romano) – um sinal
da estima que o povo tinha por esta instituição, o senado.

Além do patriotismo e da autoridade, o sucesso romano


teve outro fator decisivo: sua força moral. Na Roma
Antiga, o suborno de um funcionário público era um
crime capital. Ademais, podia-se confiar em um romano:
eles eram famosos por honrar seus compromissos.

A causa desta inerente probidade também era


religiosa: os romanos acreditavam em superstições
sobre castigos na vida após a morte. Os judeus,
quando entraram em contato com os romanos, por
volta do século II a.C., assim como os gregos, sentiram
grande admiração por aquele povo tão correto e o
consideraram um aliado equilibrado.

Entretanto, embora tivessem crescido apoiados em


uma moralidade sólida, com o passar do tempo o
Fonte: Steendam (2007).
sucesso e a riqueza corromperam os romanos, que
acabaram por cair sob o domínio daquelas formas
despóticas de governo que, antes, repudiavam.

35
Capítulo 1

No século I d.C., após os tempos gloriosos de Otávio Augusto (63 a.C.-14 d.C.),
os governos que se estabeleceram, ainda que sejam inclusos no período clássico
da história romana, não fizeram por merecer. Os imperadores da Dinastia Júlio-
Claudiana, especialmente os tiranos Calígula (12-37 d.C.) e Nero (37-68 d.C.),
ao imergir Roma em um mar de vícios, fizeram de sua época um período de
decadência anunciada.

Figura 1.13 – “Os romanos da decadência”, de Thomas Couture (1879)

Fonte: Lewandowski (2006).

Todavia, se queremos fazer da política uma ciência, não cabe a nós julgar
os períodos críticos da história romana. Assim como fizeram aqueles que
prosperaram nas terras pantanosas do Lácio, devemos analisar friamente o que
fez a política funcionar e o que a prejudicou.

A política ocidental distingue-se de outras formas de ordem social pelo


desenvolvimento da tese de que, “para além da harmonia que resulta de todos
saberem qual é o seu lugar, existe uma outra harmonia na qual os conflitos são
resolvidos através da discussão livre e da aceitação plena dos resultados, sejam eles
quais forem, de procedimentos constitucionais.” (MINOGUE, 1996, p. 35). Se podemos
tirar alguma lição da experiência romana, é a de que a política só existe na prática.

36
Capítulo 2

Do absolutismo medieval ao Estado


moderno: atores e eventos cruciais

Habilidades Com a leitura deste capítulo, você desenvolverá as


habilidades de: compreender a organização política na
Europa medieval e as razões que levaram o feudalismo
ao declínio; compreender os problemas políticos da
Itália medieval e o pensamento de Maquiavel diante do
desafio da unificação italiana; compreender a formação
do Estado Absoluto e a justificativa de Thomas
Hobbes; compreender o significado da chamada
Paz de Westfália para o surgimento da comunidade
internacional e para a concretização dos ideais de
soberania estatal e Estado-nação.

Seções de estudo Seção 1: A organização política na Europa medieval

Seção 2: Maquiavel e a percepção de um paradigma


nascente

Seção 3: Hobbes e o medo como paixão civilizadora

Seção 4: A Paz de Westfália e o surgimento da


comunidade internacional

37
Capítulo 2

Seção 1
A organização política na Europa medieval
Segundo uma convenção histórica, o Império Romano do Ocidente termina no
ano de 476 d.C., quando Odoacro, rei dos Hérulos, toma a cidade de Roma e
depõe o imperador Rômulo Augusto, tornando-se o primeiro rei bárbaro de Roma.
O povo de Odoacro e os demais povos bárbaros que derrubaram o império jamais
apagariam o legado romano, presente até os dias de hoje, porém instituiriam
alguns costumes que mudariam o mundo civilizado pelos séculos seguintes.

Figura 2.1 – “Rômulo Augusto abdica à coroa”, gravura de Charlotte Mary Yonge (1880)

Fonte: Masár (2006).

Além de suas próprias noções de justiça, honra e lealdade, os bárbaros


perpetuariam no mundo europeu a prática de recompensar com terras os
guerreiros que se destacavam nos combates. Com o mundo romano esfacelado,
sem mais um forte poder centralizador, os guerreiros recompensados viram-se
cada vez mais independentes e, aos poucos, tornaram-se senhores de suas
terras. Surgia, assim, não apenas um novo modelo de organização fundiária,
mas uma nova forma de organização política: o feudo.

A insegurança talvez tenha sido a maior das aflições sofridas pelos que viveram
nessa época. As muitas guerras travadas até que Roma fosse definitivamente
tomada acabaram por debilitar as defesas das cidades europeias. Os novos
reinos, à medida que se formavam, nasciam completamente frágeis. Isso obrigou

38
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

reis, guerreiros e camponeses em geral a se organizarem em alianças, a fim de se


defenderem das invasões iminentes. A propósito, uma provável etimologia da
palavra feudo é o vocábulo latino foedus, que significa “pacto, aliança”.

Nesse período, os camponeses submetiam-se aos senhores feudais, estes se


aliavam aos reis, que se aliavam a outros reis, todos em busca de uma coisa
apenas: proteção. Assim se formaram verdadeiras coligações feudais na Idade
Média. A mais expressiva delas talvez tenha sido o reino dos Francos, que, por
volta do século IX, auge da dinastia carolíngia, era tão
Capetiana O nome
deve-se a Hugo grande que se chegou a acreditar no ressurgimento do
Capeto, o fundador da Império Romano do Ocidente. O Papa Leão III, por exemplo,
dinastia. Chamavam-no chegou a declarar Carlos Magno (rei dos Francos entre
Capeto por causa da
os anos de 771 e 814 d.C.) Imperador do Sacro Império
capa curta que sempre
ostentava. Como era o Romano, título que não era usado desde Rômulo Augusto.
vassalo mais importante
de Luís V, o último A figura a seguir ilustra a hierarquia do reino dos Francos
rei carolíngio, Hugo sob a dinastia que sucedeu os carolíngios, a dinastia
elegeu-se rei após a
capetiana, cujo auge deu-se durante o reinado de Luís VI,
morte de seu suserano.
“O Gordo”, entre os anos de 1108 e 1137 d.C.

Figura 2.2 - Pirâmide feudal: relações de vassalagem entre Luís VI e seus nobres e camponeses

Fonte: Elaboração do autor (2014).

39
Capítulo 2

Todavia, por mais que, na Idade Média, tenham existido reis capazes de
concentrar um grande poder em suas mãos, nenhum de fato se igualou à
potência dos romanos. No período medieval, as cidades eram os principais alvos
de ataques, o que causou a dispersão do povo em pequenas vilas, os feudos,
dificultando a centralização do poder. Isso fez com que os camponeses – servos
e homens livres – fossem submetidos ao governo da autoridade política mais
próxima a eles: o senhor feudal.

O senhor feudal, que jurava lealdade ao rei, prometendo-lhe reforço militar em


caso de guerra, tinha total autonomia dentro de seus domínios, respondendo por
quase todos os aspectos da vida política: administrava a justiça, cunhava moeda,
instituía tributos, efetuava casamentos, declarava os direitos e deveres de seus
vassalos, mantinha o policiamento do feudo e os homens de guerra.

A nobreza organizou-se na Cavalaria. O primeiro cavaleiro era o imperador ou


o rei. Abaixo dele, e em ordem hierárquica, estavam os duques, os condes, os
barões, os viscondes e os cavaleiros ou senhores. Esses títulos eram prestigiados
por toda a sociedade feudal e não implicavam riqueza necessariamente. Os filhos
dos nobres eram educados desde cedo para ingressar na Cavalaria. Começavam
como pajens (quando aprendiam a cortesia a serviço das damas), depois se
tornavam escudeiros (a serviço de um cavaleiro), até que eram proclamados
cavaleiros (aos 18 anos), em cerimônia especial de investidura. Como observa
Jacques Le Goff (1989, p. 34):

Graças a esse mecanismo de interdependência (suserano-


vassalo), a sociedade medieval pôde sobreviver e atravessar
os difíceis dias de insegurança então reinantes. Os laços de
vassalagem, com obrigações de assistência e defesa mútua,
substituíram o governo forte do rei, através da descentralização
do poder, fracionado na mão dos nobres.

Na Idade Média, assim como na Antiguidade, a religião continuou a ser


absolutamente vinculada à política. A relação entre política e religião existente na
Idade Média tem, no entanto, uma diferença crucial. No período medieval, emerge
uma instituição que, ao lado da nobreza, determinaria a ordem mundial por cerca
de um milênio: a Igreja Católica.

A Cavalaria, que representava a nobreza, e a Igreja formavam, portanto, o par


de instituições mais importantes na vida política medieval. A Igreja transformou
sua autoridade religiosa em poder político. Em um mundo onde predominava
o pensamento religioso, a Igreja, como única intercessora entre Deus e os
homens, detinha o “monopólio da salvação”, exercendo assim um forte poder
de manipulação ideológica sobre o povo. Ela, portanto, ditava os costumes,
regulando o comportamento social.

40
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 2.3 - A Igreja Medieval

Fonte: Pereira (2012).

Abades Abade era Os membros mais elevados da hierarquia católica, bispos


todo aquele que e abades, eram recrutados entre os nobres. Segundo
governava uma abadia
Le Goff (1989), naquela época, havia o costume de fazer
(uma comunidade
cristã) e estava abaixo com que o segundo filho de uma família nobre seguisse
do bispo. Os bispos a carreira eclesiástica – o primeiro filho herdava o feudo;
estavam para os reis, o segundo, o direito à primogenitura. Auferindo bens dos
assim como os abades
estavam para os
fiéis e herdando terras da nobreza, a Igreja tornou-se dona
senhores feudais. Os de um imenso volume de propriedades. Dessa forma, foi,
abades tinham uma pouco a pouco, ampliando seus domínios, detendo não só
função semelhante
poder espiritual, mas também econômico e, logo, político.
à que têm hoje os
párocos.
A administração da justiça, como dissemos, ficava a cargo
do senhor feudal. As leis na Idade Média não eram feitas
por legisladores encerrados num parlamento, mas baseadas nos costumes
– e, por isso, eram chamadas de leis consuetudinárias. A lei consuetudinária
decorria dos costumes criados por todas as categorias sociais na vida cotidiana.
Eram guardadas na mente dos populares; os anciões eram seus guardiões
mais zelosos. Quando havia necessidade, essas leis orais eram registradas
em pergaminhos. No Império Português, foi instituído um tipo de documento
chamado foral, ilustrado pela próxima figura, que servia para o registro de leis
consuetudinárias, entre outras coisas.

As leis consuetudinárias eram verdadeiros compêndios de sabedoria popular.


Nem o rei, nem o nobre, nem os eclesiásticos podiam ir contra o costume, e
deviam respeitá-lo, desde que ele não violasse a Lei de Deus.

41
Capítulo 2

Figura 2.4 - Foral do séc. XVI

Fonte: Corrêa (1998).

Como a Igreja ditava os costumes, interferia diretamente na criação de leis. Para


assegurar o cumprimento de sua doutrina moral, ela criou meios de censura.
A partir do século V, por exemplo, a Igreja Católica fez entrar em vigor o Index
Librorum Proibitorum (Índice dos Livros Proibidos); no século XI, iniciou os primeiros
processos de inquisição; e, no século XV, fundou o Tribunal do Santo Ofício.

Ao contrário do que se pensa comumente, o Tribunal do Santo Ofício era


responsável apenas por interrogar (ou inquirir, daí o termo inquisição) e julgar
os acusados de heresia, ou seja, os acusados de qualquer contrassenso moral.
A execução da pena, fosse ela a privação da liberdade ou da vida, cabia aos
mandatários do rei ou do senhor feudal.

Entretanto, a Igreja não cumpriu apenas a função de censura. Entre outras muitas
intervenções na vida política, ela combateu as lutas entre nobres, instituindo
a chamada “Trégua de Deus”, uma proibição de lutas durante certas épocas
do ano. Além disso, transformou a Cavalaria numa instituição em defesa da
religião, da mulher, dos fracos, dos órfãos, da lealdade até para com os inimigos,
da cortesia e da honra. De certa forma, podemos dizer que a Igreja foi assim
precursora da assistência social.

Sendo o trabalho manual considerado indigno dos nobres, de cavaleiros e de


homens livres, ele foi transformado em ocupação dos artífices, que moravam
em aldeias (burgos) e cidades. Conforme Le Goff (1992), cada tipo de atividade
concentrava-se numa rua determinada. Havia, por exemplo, a Rua dos
Sapateiros, a Rua dos Alfaiates, a Rua dos Armeiros, etc.

Sob o mesmo teto, viviam os “mestres” e oficiais trabalhando em seu mister


(emprego, ocupação). A oficina era a própria loja de venda. A Igreja estimulou a
formação de associações de classe (“fraternidades”) e corporações, que reuniam

42
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

seus membros em torno de estatutos comuns, bandeiras, tesourarias e santos


padroeiros. Essas corporações eram beneficentes e amparavam seus membros
em época de necessidade.

A História mostra-nos que, durante os tempos medievais, as ações promovidas


tanto pela Igreja quanto pela Nobreza – as duas instituições que então
concentravam o poder – foram apenas paliativas na solução dos principais
problemas políticos. Isso é compreensível, uma vez que o clima de instabilidade
geral não permitia grandes prospectos: não havia tempo para organizar grandes
programas governamentais senão para se preparar para os constantes conflitos.
Além disso, Nobreza e Igreja foram sempre extremamente conservadoras
e jamais colocariam questões como a liberdade dos indivíduos – que tanto
motivou os antigos e motivaria os modernos – em sua agenda.

À medida que as cidades reestruturam-se e, fortalecidas, voltam a aglutinar o


poder político, o mundo feudal começa a entrar em declínio. Isso tem relação
direta com a economia e com o mundo intelectual. Por muito tempo, o sentimento
de insegurança restringiu as atividades comerciais aos limites dos feudos, burgos
e cidades. Aos poucos, com a segurança restabelecida, as trocas começaram a
acontecer entre feudos, burgos e cidades de um mesmo reino, e, depois, entre
diferentes reinos. O restabelecimento de sistemas mercantis possibilitou também
o restabelecimento de sistemas de governo, tendo como sedes os grandes
centros comerciais: as cidades.

A partir do ano 1000 até cerca de 1150 d.C, o feudalismo entra em ascensão,
definindo seus elementos básicos. Na França, nos Países Baixos e na Itália, seu
desaparecimento começa a se manifestar no final do século XIII. Na Alemanha e
na Inglaterra, entretanto, ele ainda permanece por mais tempo, extinguindo-se
totalmente na Europa ocidental por volta de 1500.

No século XIII, quando o feudalismo começa a desaparecer, surge o movimento


intelectual que, num retorno à Antiguidade Clássica, impulsionou o projeto do
Estado moderno: o Renascimento. Artistas e pensadores de diferentes partes
da Europa, inspirados pelos antigos, davam os primeiros passos em direção às
revoluções política, econômica e científica que se consumariam séculos mais
tarde. Acima de tudo, eles compartilhavam um mesmo ideal político, desejosos
de estabilidade e paz.

Diferente dos antigos, que idealizaram suas cidades-estado, e dos modernos,


que, com muito custo, viriam a pôr em prática seu ideal de Estado, não se pode
afirmar que os atores do feudalismo tenham tido um grande projeto político, e
isso reflete a essência desse período: a instabilidade.

43
Capítulo 2

Esse ideal político compartilhado pelos renascentistas está diretamente ligado ao


que a Ciência Política chama de Estado estamental: a forma embrionária do que
viria a ser o Estado moderno. Quando as cidades voltaram
Estamental Para Max
Weber (1864-1920), o a se fortalecer e conseguiram alguma estabilidade, as
conceito de estamento parcelas organizadas das populações urbanas
diz respeito a uma teia constituíram-se um contrapoder às pretensões dos
de relacionamentos,
soberanos. Impunham-se, assim, limites à ação das
que constitui um poder
político e influi em monarquias, a partir da ação política dos súditos. Portanto,
determinado campo embora fosse ainda inconsistente, o Estado estamental já
de atividade. (WEBER, trazia consigo o germe daqueles princípios democráticos
2004).
que, mais adiante, garantiriam liberdade, igualdade e
fraternidade aos povos.

Nas próximas seções, estudaremos dois contextos políticos bastante representativos


do período inicial da Idade Moderna, em que o feudalismo se extinguia
definitivamente: a Itália do século XVI e a Inglaterra do século XVII. Veremos como as
ideias de dois pensadores – Maquiavel, na Itália, e Hobbes, na Inglaterra – refletiram
os problemas políticos por que passavam suas respectivas nações.

Seção 2
Maquiavel e a percepção de um paradigma
nascente
Nesta seção, você será levado à reflexão a partir do pensamento político de
Nicolau Maquiavel (1469-1527). Como será possível perceber ao longo das
páginas que seguem, este pensador influenciou significativamente as discussões
sobre o Estado moderno, apesar de não haver formulado este conceito conforme
o entendemos hoje em dia.

Dotado de uma concepção negativa de homem, especialmente em relação às


massas, Maquiavel discorre, em sua obra, sobre as condições e as possibilidades
de se manter no poder. Autor de perspicazes interpretações das experiências
e modelos políticos legados pela Antiguidade clássica, este pensador tornou-
se uma referência central na tradição do pensamento político ocidental, em
se tratando de absolutismo e república. Mais do que isso, ele promoveu uma
separação definitiva entre política e moral, fazendo nascer a moderna filosofia
política. Estas e outras razões vinculam este renascentista ao rol dos pensadores
que influenciaram a política moderna.

44
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

2.1 A Itália medieval: um espelho partido


Após a queda do Império Romano do Ocidente, a ambição de reeditar aquele
feito grandioso – o de conquistar um território que extravasasse os limites do
continente europeu – ocupou, por cerca de mil anos, a mente dos monarcas
medievais, até que chegassem a uma conclusão: essa ambição já se tornara
inviável, e a única saída para se chegar à paz e à estabilidade seria respeitar a
autonomia de cada povo dentro dos territórios já estabelecidos.

A concórdia, no entanto, não veio senão à custa de muita discórdia. Como


analisa Jacob Burkhardt (1991), o desaparecimento do Império Romano
provocou uma involução política em todo o território itálico.

Cada região da Itália, por menor que fosse, tornou-se um paese (um país)
indiferente ou hostil aos seus vizinhos. A península, que havia conhecido um dos
maiores apogeus da civilização, voltava então aos tempos pré-romanos. Como
definiu certa vez o príncipe austríaco, Klemens Wenzel von Metternich (1773-
1859), a Itália tinha deixado de ser o território onde se estabeleceu o Império
Romano para ser apenas uma “expressão geográfica”.

Durantes os séculos IX e X, toda a Europa, inclusive a Itália, sofreu penosas


invasões por parte dos normandos, germânicos e sarracenos. Durante os séculos
XIV e XV, a Itália viu-se palco de guerras entre França e Espanha. Em ambas as
oportunidades, os italianos – ao invés de se unirem para ganhar força política e
expulsar os invasores – aproveitaram-se da presença dos estrangeiros para obter
alguma vantagem sobre seus vizinhos.

Cada célula que compunha aquele corpo político pulverizado,


cada comuna ou cidade, cada condado ou principado procurava
tirar proveito da presença dos estranhos para usá-los contra os
seus rivais mais próximos. Milão opunha-se a Veneza, esta a
Gênova. Florença estranhava-se com Pisa. Chegou-se, por várias
vezes, ao extremo de algum tirano ou de uma família patrícia
apoiar-se num invasor para fazê-lo agir contra seus próprios
concidadãos, como, certa vez, foi o caso dos Médici de Florença.
(SCHILING, 2005).

45
Capítulo 2

Cosme de Médici A conjuntura protagonizada por Lourenço de Médici, o


Cosme de Médici,
Magnífico (1449-1492), é particularmente significativa.
além de ter firmado
uma boa relação O período em que Lourenço interferiu na política italiana
com a comunidade coincide com um dos poucos períodos de paz e união
judaica, foi um notável conhecidos pela Itália nos tempos pré-modernos. Sua
incentivador das artes e
família governou Florença desde o início do século XV até
ciências, tendo fundado
o mecenato dos meados do século XVIII. Cosme de Médici, o primeiro
Médici. Ele e seu neto, líder dos Médici, chegou ao poder em 1437 e governou até
Lourenço de Médici, 1464, iniciando um ciclo próspero não só para a política
desempenharam um
papel fundamental
florentina, mas para as artes e ciências de todo o mundo.
na promoção do Seu filho e sucessor, Pedro de Cosme de Médici, tinha
Renascentismo. uma saúde débil e viveu, apenas, até 1469.

Figura 2.5 - Itália no séc. XV

Fonte: Matthew (1983).

46
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Com a morte do pai, os irmãos Juliano e Lourenço de Médici são declarados


príncipes de Florença. Juliano e Lourenço governam em paz por quase dez anos,
até que, em 1478, são alvos de uma conspiração organizada pela família Pazzi,
cúmplice dos Salviati e do então Papa Sisto IV, inimigos dos Médici. Em um
domingo de Páscoa, em plena missa, os conspiradores tentam tirar a vida dos
príncipes: Juliano morre, mas Lourenço salva-se. O povo, revoltado, lincha alguns
dos autores do plano; e o Papa, frente à calamidade, interdita Florença.

Em 1480, Lourenço, ilustrado pela seguinte figura, propositalmente, viaja sozinho


para Nápoles e acaba sendo capturado por Dom Ferrante, o então rei napolitano. Ele
passa três meses preso, até ser libertado, ao convencer Fernando I (nome oficial de
Dom Ferrante) de que o Papa poderia voltar-se contra ele, caso continuasse a
ampliar seus domínios no norte da Itália –
Figura 2.6 - Estátua de Lourenço de Médici tal era o clima de instabilidade e
hostilidade presente entre as repúblicas e
principados italianos de então.

Com este feito de notável talento


diplomático, Lourenço incitou os povos
da Toscana à paz, dando um exemplo
histórico de como estimular a construção
de uma soberania estatal.

Com o apoio de Nápoles, Lourenço força


o Papa a também aceitar a trégua e,
assim, proporciona à Itália um período de
paz que não era visto há muito tempo.
Após seu sucesso, ao invés de usar o
prestígio de que gozava para declarar-
se rei, Lourenço preferiu não tomar o
poder e seguir sua vida apenas como um
influente cidadão da república florentina,
ainda que muitos tenham projetado nele a
imagem de um rei. Depois de sua morte,
em 1492, o equilíbrio entre os estados
Fonte: Frieda (2005). italianos é desfeito; e a península volta a
ficar à mercê de invasores.

47
Capítulo 2

2.2 O surgimento de Maquiavel em meio à Renascença florentina


O êxito de Lourenço, no entanto, não se deu ao acaso; ele vivenciou um
momento ideologicamente muito especial da história europeia e contribuiu
para ele: o Renascimento. Entre os muitos artistas e pensadores que, direta ou
indiretamente, o apoiavam e eram apoiados por ele, esteve Nicolau Maquiavel
(1469-1527).

Figura 2.7 - Estátua de Nicolau Maquiavel, por Maquiavel – que viria a ser um dos
Lourenço Bartolini
pensadores políticos mais influentes de toda
a história, considerado fundador da Ciência
Política moderna – foi um funcionário público
de Florença, eventual conselheiro dos Médici.
Nascido no mesmo ano em que Lourenço,
o Magnífico, foi levado ao poder, Maquiavel
acompanhou de perto as ações de seu
príncipe frente ao desafio da unificação.

Em 1512, depois de servir à Segunda


Chancelaria por 14 anos, foi forçado ao
ostracismo, acusado de traição. Retirando-se
para o interior, Maquiavel passa então cinco
anos em exílio, período em que escreve suas
duas principais obras políticas: O Príncipe e
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

Antes de ser um teórico, Maquiavel foi,


portanto, um político, e isso se reflete
fortemente em seu pensamento: sua
experiência como embaixador de
Florença forneceu-lhe uma das bases
Fonte: Frieda (2005).
de sua teoria, a base empírica. A outra
base vinha da história: por sua formação
Segunda Chancelaria humanística, Maquiavel inspirou-se na cultura clássica
A Primeira Chancelaria grega e, principalmente, na cultura romana. Seus modelos,
do governo florentino
tanto de monarquia quanto de república, vieram de Roma.
era responsável pela
política externa e pela Maquiavel tinha convicção de que não se pode aprender
correspondência com algo sobre as coisas humanas em geral e sobre o homem
o exterior. A Segunda em particular sem dar a devida atenção à história, que,
ocupava-se com as
guerras e a política
para ele, era uma magistra uitae (mestra da vida).
interna.

48
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Estas duas bases explicam um dado importante a respeito de seu


pensamento: Maquiavel não tem intenção de estabelecer regras da política,
mas sim identificar regularidades.

Método Seu método é, portanto, indutivo – não dedutivo, como


O método indutivo parte seria, por exemplo, o método de Hobbes. Maquiavel
de fatos particulares
não parte de axiomas ou postulados, mas de exemplos
para tirar conclusões
gerais. Já o método históricos: sejam eles extraídos de autores clássicos,
dedutivo parte da da então recente história europeia ou de sua própria
causa para os efeitos, experiência como diplomata. Contudo ele não faz isso
do princípio para as
consequências, do
por acaso, não adota o método indutivo, com incessante
geral para o particular. recurso à História, por desconhecer o método dedutivo.

Se, por um lado, seu método, mais tarde, não pareceria


suficientemente científico a alguns pensadores modernos, por outro, Maquiavel
podia perfeitamente repreendê-los, argumentando que assim eles permaneciam
distantes da realidade concreta das coisas, por ele chamada verità effettuale
(verdade efetiva). Segundo Maquiavel, a verdade efetiva só se deixa
compreender através do conhecimento e da correta interpretação da história.

Maquiavel começa o capítulo oito de O Príncipe invocando um exemplo histórico,


para então induzir de tal acontecimento um raciocínio geral: ele apresenta
Agátocles como um exemplar político cruel antigo e Liverotto de Fermo como
exemplo de político cruel contemporâneo. Em seguida, discorre sobre o uso bom
ou ruim (no sentido de útil ou inútil) da crueldade na política.

Esta oposição epistemológica a alguns modernos, ou seja, esta preferência pelo


método histórico-indutivo ao dedutivo-anacrônico diz respeito a outra questão
relevante a seu respeito: embora, com sua obra, proceda a uma ruptura na
tradição do pensamento político, que beneficiaria os modernos, Maquiavel não
pode ser considerado um autor eminentemente moderno. Ele é antes um pré-
moderno ou, ainda, um renascentista.

Esse aspecto do referido autor está diretamente relacionado a outro detalhe


importante, que diz respeito, mais especificamente, ao seu repertório conceitual.
Como afirma Pinzani (2009, p. 17), “seu pensamento se situa no limiar que
separa a Idade Média da Modernidade.” Ele percebe questões problemáticas que
caracterizarão o pensamento político moderno, mas sua perspectiva impõe-lhe
limites que não o deixam perceber sua própria modernidade.

A maior prova disso é o fato de que Maquiavel não dispõe de um conceito de


Estado e, portanto, não consegue compreender plenamente o surgimento do
moderno Estado nacional.

49
Capítulo 2

O secretário florentino chega a identificar alguns elementos que viriam a ser


constitutivos do Estado moderno (concentração de poder legítimo nas mãos de
um único soberano, independência do poder papal, submissão da aristocracia e
das cidades independentes), mas os interpreta à luz da Antiguidade.

Para Maquiavel, não existe diferença entre Francisco I da França, Carlos V e


César Bórgia, e tampouco entre Filipe da Macedônia e Júlio César: ele não
consegue, por exemplo, discernir com clareza que a luta entre a França
(representante do nascente Estado moderno) e o Império Austríaco, travada em
sua época, assinalava o fim de um sistema político e o nascimento de outro.

Maquiavel parece intuir essa revolução, quando aponta


Unificação nacional
A unificação italiana
a França e a Espanha como exemplos a serem seguidos
foi uma obsessão que pela Itália, a fim de atingir a unificação nacional. Não é à
ocupou a mente e a toa que se costuma atribuir a ele a pioneira percepção dos
vida de Maquiavel,
três elementos básicos do Estado: povo (língua, cultura),
tamanho era seu
apreço pela política território e soberania. Todavia, por ora, este não é o foco
e seu sentimento de nossa discussão.
patriótico.
Retomando a questão que expusemos há pouco, outra
prova de que Maquiavel não possui um conceito de Estado
completamente elaborado está no fato de que, quando ele quer falar daquela
entidade jurídica e institucional que representa o poder político de um país, ele
usa os termos “principado”, “república” ou “cidade” – nunca Estado. A palavra
stato (estado) só emerge em seu vocabulário, quando usa a expressão “manter
o estado”, que significa manter a condição vigente, manter a situação, ou seja,
manter a autoridade, manter o domínio sobre um território, manter a riqueza em
bens materiais, etc.

Além disso, como observa Pinzani (2009), outro aspecto incipiente em Maquiavel
do ponto de vista da Ciência Política que se constituiu posteriormente – está no
fato de que ele se esquiva de questões socioeconômicas.

Para Maquiavel, a história é a história político-militar: a história das guerras e


conquistas, a história dos grandes feitos realizados por indivíduos excepcionais.
Em suas análises, o povo é apenas uma multidão passiva, pronta para ser
manipulada e instrumentalizada.

50
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Neste autor, o antropocentrismo renascentista manifesta-se da forma mais


radical: para ele, somente o indivíduo excepcional é capaz de interferir
decisivamente nos assuntos políticos. Tanto é que, nas instruções que dirige ao
príncipe, Maquiavel nunca considera a possibilidade de que este realize alguma
revolução social ou empreenda mudanças na economia, a fim de manter seu
poder; tais instruções são de caráter exclusivamente político ou militar.
Maquiaveliana Um último indício, portanto, de que o conceito de Estado
Os comentaristas de
Maquiavel preferem o
não tomou corpo na mentalidade maquiaveliana é sua
adjetivo maquiaveliano visão patrimonialista do poder político. Para Maquiavel,
a maquiavélico, devido o poder está nas mãos dos indivíduos, e não na instituição
ao caráter pejorativo
representada por eles. Este é um ponto crucial.
que este último possui.

2.3 Noções centrais no pensamento maquiaveliano


Embora o conceito de Estado não se tenha realizado plenamente na obra de
Maquiavel, não foram poucas as suas contribuições teóricas que o fizeram
inspirar os modernos. Entre elas, podemos destacar as concepções de natureza
humana, poder, virtù, fortuna, virtude cívica e lei. A seguir, como forma de resumir
sua teoria política, explicamos cada uma dessas concepções.

Para Maquiavel, a natureza humana é perversa.

Os homens seriam essencialmente maus, e a distinção entre os que são maus


o bastante a ponto de prejudicarem a convivência com os demais e os que
não chegam a este ponto é, para Maquiavel, um primeiro critério para a ideia
de justiça. Se Aristóteles via o homem como um animal político, que tende
naturalmente à convivência com seus semelhantes, e Rousseau mais tarde o
veria como um ser naturalmente bom e ingênuo, corrompido pela sociedade,
Maquiavel não vê nenhum sinal de esperança na natureza humana.

São fartas as passagens, tanto em sua obra O Príncipe como em


Discursos, em que nosso autor pinta o homem com as piores
cores. Eis alguns exemplos:
Os homens são ingratos, volúveis, simulados e dissimulados,
fogem dos perigos, são ávidos de ganhar [...], têm menos receio
de ofender a quem se faz amar do que a outro que se faça temer
[...] e esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda
do patrimônio. (MAQUIAVEL, 2001, p. 80-81).
Comprazem-se tanto em suas próprias coisas e de tal modo se
iludem que raramente se defendem dos aduladores [...], e sempre
se revelarão maus, se não forem forçados pela necessidade a
serem bons. (ibid., p. 113-115).

51
Capítulo 2

Em decorrência disso, para Maquiavel todas as relações humanas são relações


de poder.

Na visão de Maquiavel, para o indivíduo, os outros ou são obstáculos ou são


instrumentos para a realização de seus fins. Exatamente por isso, é necessário
controlá-los sem se deixar cair no controle deles. Como muitos críticos têm afirmado,
a obra de Maquiavel consiste em sua totalidade numa reflexão sobre o poder.

O que interessa a este pensador, no entanto, não é o poder em si, mas “o poder
como instrumento irrenunciável para unificar uma comunidade política, para dar-
lhe ordem e segurança e para deixá-la prosperar.” (PINZANI, 2009, p. 25).

Em outras palavras, Maquiavel está interessado na soberania: em primeiro lugar, porque


conhecia a natureza humana, e, em segundo lugar, porque sabia que somente o bom
uso do poder político poderia construir uma comunidade política estável. Maquiavel
preocupou-se em esmiuçar as qualidades necessárias ao homem que, a despeito de
qualquer empecilho, faria bom uso do poder e saberia manter uma comunidade política.

Ao conjunto das qualidades necessárias a este homem, isto é, ao príncipe


soberano, Maquiavel deu o nome de virtù.

A palavra portuguesa para virtù é virtude, porém


Virtude A palavra
“virtude” carrega o Maquiavel, ao utilizá-la, quis expressar um conceito
significado tradicional específico, e, por este motivo, a Ciência Política
cristão de excelência preservou-a em italiano, tornando-a um signo
moral. Quando
maquiaveliano. Esse conceito está diretamente relacionado
Maquiavel usou o
termo virtù, inspirou- com a ruptura que Maquiavel promoveu na tradição
se no conceito latino ocidental do pensamento político. Tal ruptura deu-se pela
de virtus, que significa separação, feita por Maquiavel, entre política e moral.
“qualidade que
distingue o homem”.
Durante toda a Idade Média, era comum avaliar os atos
políticos, fazendo juízo de valor deles. Se as análises
políticas anteriores a Maquiavel não atingiram profundidade, foi porque estavam
imbuídas de moralismo, em grande parte devido à mentalidade cristã que
vigorava. Deixando a moralidade cristã de lado em sua obra, Maquiavel – em uma
atitude absolutamente moderna – separa a política e a moral.

Mas você já refletiu sobre o que vem a ser esta separação?

Dizer que Maquiavel separou a política e a moral significa dizer que ele passou a
avaliar um ato político não em função de seu valor moral, mas em função de seu
sucesso perante a manutenção do poder.

52
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Um pensador preso à moralidade cristã, por exemplo, jamais diria ser bom um
príncipe que matou milhares de inocentes para preservar sua soberania, por
mais que isso fosse interessante para a Igreja. Já Maquiavel avaliaria tal príncipe
em termos de custo e benefício político: se a matança lhe foi favorável e se a
converteu em sucesso político, o príncipe seria, sim, visto como um bom príncipe.
Foi esse rigor analítico, desprovido de pudor, que rendeu ao termo “maquiavélico”
o significado pejorativo que até hoje possui.

Contudo, esta moralidade cristã criticada é a moralidade do rebanho, a


moralidade domesticadora, que ensina os homens a serem mansos de coração
e a darem a outra face. Para o autor, esta é uma moralidade de sujeição, que, em
um ambiente de combates e conquistas pela força, leva, inclusive, à destruição
da virtude dos cidadãos. Isso corrobora a compreensão de que o termo virtù,
em Maquiavel, possui antes conotação pagã, do que qualquer identificação com
qualidades cristãs.

As críticas de Maquiavel não se estendem à religião enquanto tal, mas,


unicamente, à religião aplicada à política. Maquiavel reconhece que a religião é
de fundamental importância em determinados momentos. Defende a ideia de que
não é porque algo é bom para as pessoas que elas vão reconhecer a validade da
lei. Portanto, recorrer ao transcendente – ao religioso – como justificativa é uma
sábia maneira de resolver este tipo de dificuldade.

Se vistos pela ótica da moralidade cristã, dificilmente seriam admissíveis


conselhos como: enganar as pessoas, aparentar qualidades que são valorizadas
pelo povo e renegar estas qualidades quando elas não forem mais úteis,
assassinar aliados quando necessário para a manutenção do poder, entre outros,
que chocaram leitores da época e ainda podem causar espanto em nossos dias.

Contudo, o alerta de Maquiavel é que o príncipe pode até ser temido por seu
povo, no lugar de ser amado, mas aconselha a cuidar para que não venha a
ser odiado e desprezado. O medo que o povo tiver de seu príncipe lhe é mais
favorável para manter o poder do que o amor, mas o ódio e desprezo apenas
prejudicam esta tarefa.

Outro conceito importante à teoria de Maquiavel é a ideia de fortuna. No mapa


conceitual maquiaveliano, fortuna está diretamente associada à virtù. Para que
seja considerado um homem de virtù, o príncipe deve estar acima da fortuna e
jamais submisso a ela.

Fortuna é o correspondente antigo para o moderno conceito de


contingência, isto é, denota o imprevisível, o imponderável.

53
Capítulo 2

É importante que fique claro para você o sentido da palavra fortuna, quando
empregada por Maquiavel. Fortuna para os antigos, assim como para o pensador
florentino, não tem a conotação de riqueza ou grandes somas dinheiro, como
atualmente. Este termo, antigamente, denotava o imprevisível, a boa ou a má
sorte, a ambivalência das coisas. Portanto, ao afirmar que o príncipe virtuoso deve
controlar a fortuna para imperar, ele sugere que o bom governante deve antecipar-
se às adversidades, provenham elas da natureza ou da atividade humana.
Este é mais um ponto que aproxima Maquiavel dos modernos. A modernidade,
desde o seu nascimento, caracteriza-se por uma incessante busca de controle por
parte do homem sobre a natureza, o que coincide plenamente com a relação entre
virtù e fortuna, tal como a explanamos aqui. Na figura a seguir, você pode ver a roda
da fortuna presente no Hortus Deliciarum (Jardim das Delícias), uma enciclopédia
medieval compilada durante o século XII pelo alemão Herrad de Landsberg.

Figura 2.8 - A roda da fortuna do Hortus Deliciarum, de Herrad de Landsberg

Fonte: Greene (1983).

Observe que, no topo da roda da fortuna, um príncipe está representado como


soberano. Ele não está à mercê da roda, mas a controla, exatamente como
deveria fazer o príncipe ideal de Maquiavel.

Aqui chegamos a um ponto decisivo para a compreensão da obra de Maquiavel e, por


assim dizer, polêmico, tendo em conta as muitas interpretações já feitas a respeito.

54
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Você já se perguntou por que Maquiavel escreveu O Príncipe, isto é, por


que ele se prestou a escrever uma obra contendo todos os conselhos
possíveis a um monarca?

Antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer que Maquiavel era um republicano


e, como todo republicano, prezava a liberdade. Um homem como Maquiavel
jamais aprovaria o governo de um tirano, tendo a própria tirania como fim. Seu
desejo maior, por questão de princípios, é a boa saúde da república. Por isso,
valoriza o bem comum, não o individual. No entanto, ele acredita que uma
república só pode ser restaurada ou erguida por um homem excepcional, um
homem de virtù, que se coloque acima da fortuna e vença todos os obstáculos, a
fim de proporcionar estabilidade a uma comunidade política.

Maquiavel é considerado um pensador absolutista, porque sua obra mais famosa,


O Príncipe, é de fato um verdadeiro manual do absolutismo. Ele quer ver sua Itália
forte e unificada politicamente, e sabe que somente um príncipe virtuoso, que
tome a frente da situação, poderá então restaurá-la. É exatamente por isso que,
ao final de O Príncipe, Maquiavel exorta Lourenço de Médici (neto de Lourenço, o
Magnífico) a tomar a Itália e libertá-la da mão dos bárbaros.

Maquiavel, no entanto, ao contrário do que muitos pensam, não quer que a reforma
encerre-se na chegada do príncipe ao poder e em seu sucesso na tarefa de
Tito Lívio unificar a Itália. Ele sabe que, uma hora, o príncipe morrerá
(59 a.C.-17 d.C.) foi e que, junto dele, morrerá também a estabilidade de sua
um historiador romano, comunidade política, caso não se tomem medidas as quais
autor de História de
garantam a perenidade dela.
Roma, um conjunto
de livros que relatam a
história romana desde a
E quais seriam essas medidas? Maquiavel manifesta
sua fundação, em 753 de forma mais explícita seus ideais republicanos em
a.C., até o século I d.C. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Nessa
Maquiavel escreve os
obra, fica claro que, após conquistar um território e
Discursos, analisando
e comentando, do dar-lhe unidade, o príncipe, caso queira preservá-lo,
ponto de vista político, deve providenciar uma constituição republicana, pois
os primeiros dez anos nada garante que seus sucessores terão as mesmas
historiados por Tito Lívio.
capacidades que ele.

55
Capítulo 2

Maquiavel e o historiador grego Políbio

Para demonstrar isso, Maquiavel recorre ao historiador grego Políbio (203 a.C.-120
a.C.), um dos primeiros a discutir o ciclo natural das formas de governo, apoiado
diretamente em fatos históricos. Segundo Políbio – e isso foi discutido por muitos
outros pensadores antigos – quando uma sociedade nasce, a primeira forma de
governo a despontar é a monarquia. Caso o monarca confira ordem à comunidade,
surgirá a consciência do que é útil e honesto e do que é pernicioso e ruim, e assim
surgirão as leis. Com o tempo, no entanto, o poder pode vir a ser transferido
hereditariamente, e os herdeiros, se não forem virtuosos como seu antecessor,
irão sucumbir aos vícios do poder e deixar com que a monarquia se degenere em
tirania. Caso isso aconteça, é provável que os nobres se revoltem e tomem o poder
do tirano, instaurando uma aristocracia. Os filhos desses nobres revolucionários,
porém, podem não ter os mesmos princípios que seus pais, e, dessa forma,
com o tempo, a aristocracia degenera-se em oligarquia. Nesse caso, uma revolta
chefiada por um só homem (Maquiavel tem certeza de que o povo não é capaz de
se organizar sem uma liderança) derruba a oligarquia e instaura uma democracia.
Porém – mais uma vez, quando nascem as próximas gerações – a democracia por
si só não se sustenta, degenerando-se em anarquia, e o ciclo recomeça.

Para Maquiavel, todas estas formas – mesmo as formas puras (Monarquia,


Aristocracia e Democracia) – são desvantajosas em si mesmas. Em seu
entendimento, somente um misto das formas puras de governo pode garantir
que uma comunidade política mantenha-se, e este misto das formas puras não
consiste em outra coisa senão na República.

Veja a seguir um esquema sobre o ciclo das formas de governo que representa a
ideia de República para Maquiavel:

56
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 2.9 - Ciclo das formas de governo

Monarquia

Anarquia Tirania
República

Democracia Aristocracia

Oligarquia

Fonte: Elaboração do autor (2009).

A ideia de uma forma mista de governo, no entanto, não surgiu da mente de


Maquiavel. Como um autêntico renascentista, ele resgata seus modelos da
Antiguidade Clássica. Sendo assim, a Roma republicana é certamente sua maior
inspiração. De 509 a.C. a 27 a.C., Roma constituiu-se uma república, isto é, em sua
constituição havia um elemento monárquico (os cônsules), um elemento aristocrático
(os senadores) e um elemento democrático (as assembleias e os tribunos). Seus
quase quinhentos anos de permanência saudável são uma prova de que tal
constituição promove estabilidade e longevidade, pois um elemento regula o outro.

Os cônsules têm poder de liderança, execução, mas não podem passar por cima
da prudência do senado e do sentimento popular; os senadores têm o poder de
legislar, mas não podem fazê-lo sem considerar os anseios do povo e as políticas
consulares; o povo tem força e, de alguma forma, é ele quem inspira a justiça
numa república, mas seu ímpeto é controlado pelas leis dos senadores e pelas
rédeas dos cônsules.

Contudo, uma república não sobrevive se não for devidamente administrada – e


é precisamente nesse ponto que Maquiavel, ao reler os antigos, deixa de replicá-
los simplesmente, para dar sua contribuição à tradição do pensamento político.
Segundo o pensador florentino, uma república bem-ordenada caracterizar-se-ia
por cinco elementos:

•• Constituição mista
•• Império das leis
•• Boas leis
•• Bons costumes
•• Milícia popular

57
Capítulo 2

A constituição mista – já sabemos do que se trata – é a fusão de monarquia,


aristocracia e democracia. O império das leis diz respeito à supremacia das
leis perante qualquer outra instituição. Sobre a milícia popular também recém
falamos: tem a ver com a vigilância do povo em relação às ações dos cônsules
e senadores. Resta-nos explicitar o que Maquiavel quer dizer com “boas leis” e
“bons costumes”.

Em seu entendimento, as leis são inúteis, se os cidadãos não forem bons, isto
é, se eles não tiverem bons costumes. Assim como a virtù está diretamente
associada à fortuna, as boas leis estão inseparavelmente ligadas à virtude cívica.
De nada adianta que o comandante proponha leis pretensamente boas, se o povo
não tiver condições de suportá-las, ou seja, se o povo não estiver em um estado
de espírito moralmente adequado.

A virtude cívica existiria, portanto, mediante cinco condições:

•• em primeiro lugar, o bem comum deve vir antes do interesse pessoal;


•• em segundo lugar, deve haver nos cidadãos o incessante desejo de
combater a injustiça em defesa da liberdade pública;
•• em terceiro lugar, é necessário que tenham religiosidade, que sejam
tementes a Deus, mesmo que num sentido meramente instrumental;
•• em quarto lugar, os cidadãos precisam valorizar o trabalho como
algo dignificante e detestar o ócio; e,
•• em quinto lugar, Maquiavel insiste – como Rousseau o faria mais
tarde – que a maior causa da decadência dos costumes é a riqueza
excessiva: cidadãos excessivamente ricos podem facilmente corromper
os mais pobres, provocando assim revoltas das mais diversas ordens.
A partir daí, inferimos que a boa lei para Maquiavel é aquela que contempla o
estado moral em que determinado povo se encontra. Em outras palavras, a boa
lei é aquela que contempla a virtude de seu povo.

Tanto em O Príncipe como nos Discursos, Maquiavel deixa claro que, caso uma
comunidade chegue à decadência moral e a república não se sustente mais,
um homem extraordinário, um príncipe de virtù, deve tomar o poder. Ao fazer-
se absoluto no governo, o príncipe de virtù deve restabelecer as leis originais
daquela comunidade em sua pureza e força, para que a república não se precipite
em uma anarquia, da qual não sairá senão com a instauração de uma monarquia,
reiniciando assim o errante – e sanguinário – ciclo das constituições, que tirou o
sono de todos os que viveram no período medieval, inclusive o de Maquiavel.

Embora nos pareça claro que Maquiavel tenha sido um republicano, parece-nos
igualmente evidente que suas constantes recomendações ao governo absoluto de
um príncipe fizeram com que a tradição o considerasse um pensador absolutista.

58
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Seção 3
Hobbes e o medo como paixão civilizadora
Nesta seção, você entrará em contato com as reflexões sobre o Estado
desenvolvidas por Thomas Hobbes (1588-1679), um dos pensadores
contratualistas, ao lado de Locke e Rousseau. Como a alcunha sugere, o que
une esses pensadores é a ideia de que um contrato entre os indivíduos faz-se
necessário para que todos possam aderir ao Estado jurídico, deixando de lado
os inconvenientes do estado natural. No entanto, perceba que tanto a concepção
de estado natural quanto a concepção de Estado propriamente dito terão suas
particularidades nos pensadores abordados, o que também implica dizer que a
legitimação do Estado possui uma configuração própria em cada um deles.

Hobbes pinta o cenário do estado de natureza como a um ambiente hostil, uma


vez que, nele, os sujeitos são impulsionados pelo medo e têm a presença do
outro como perturbadora, ameaçadora. No estado de natureza, nada garante que
o outro não atentará contra sua vida, que, em Hobbes, constitui o maior bem do
ser humano. Por isso, a busca por melhores garantias de preservar a própria vida
pode ser entendida como uma justificativa para aderir ao Estado, que, para este
pensador, evoca um modelo coativo, a partir do qual as leis seriam tudo aquilo
que o soberano ordenasse, sendo este desobrigado de cumpri-las.

Entretanto, antes de aprofundarmos as reflexões de Hobbes, vamos entender


melhor o contexto histórico vivenciado por ele e os motivos que o levaram a
pensar dessa maneira.

3.1 A Guerra Civil Inglesa


Mais de um século depois de Maquiavel, quando a revolução científica iniciava-se
na Europa, a Modernidade já podia ser vislumbrada e a concepção moderna de
Estado já se fazia reconhecer nas ideias dos pensadores mais excepcionais, entre
eles o filósofo e matemático inglês Thomas Hobbes.

O que separa os pensadores modernos de Maquiavel é a maneira como cada


um enxerga o poder soberano: os modernos veem o poder soberano como
pertencente à instituição (o Estado), enquanto Maquiavel o vê como pertencente a
um indivíduo (o monarca) ou a um grupo de indivíduos (os aristocratas).

O primeiro a assinalar esta distinção foi o francês Jean Bodin (1530-1596), mas
Thomas Hobbes, pelo contexto onde ele e suas ideias surgiram e, também,
pela universalidade de suas teses, tornou-se um autor mais proeminente dentro
da tradição do pensamento político. A propósito, o contexto em que Hobbes

59
Capítulo 2

escreveu sua obra é o contexto da Guerra Civil Inglesa (1642-1649), um dos mais
turbulentos do período moderno e também um dos mais inspiradores para a
Filosofia Política.

Essa guerra caracterizou-se pela insurgência dos parlamentares ingleses, liderados


por Oliver Cromwell (1599-1658), contra o tirano Carlos I (1600-1649). Desde que
Carlos I assumiu o reino britânico, em 1621, suas relações com o parlamento foram
sempre hostis e desastrosas. Carlos e o parlamento divergiram por várias vezes em
pontos bastante problemáticos: religião, política externa e política fiscal.

Entre os muitos problemas causados pelas atitudes inconsequentes de Carlos I,


podemos destacar:

•• a destruição do equilíbrio religioso conseguido por Elizabete I;


•• o fracasso em guerras, primeiro com a Espanha, depois com a
Escócia; e
•• o descontentamento popular, provocado pela cobrança excessiva
de impostos para sanar os prejuízos das guerras.
Quando mencionamos o fracasso em guerras, estamos referindo-nos ao fato de
que Carlos I entrou em conflito com a Espanha por motivos pouco razoáveis, e
tinha sido advertido pelo parlamento a não fazê-lo. A guerra com os escoceses
foi igualmente irracional: Carlos I desrespeitou suas posições religiosas e, em
seguida, ao invés de retratar-se imediatamente, entrou em confronto direto.

Em 1629, Carlos I, irritado com os limites colocados pelos parlamentares,


dissolve o parlamento e instaura uma tirania que iria durar onze anos. Em 1640,
enfraquecido pelos erros cometidos, convoca o parlamento. Retalhado pelos
parlamentares por causa de seus abusos durante a tirania, Carlos I dissolve o
parlamento em menos de um mês, outra vez. Cinco meses mais tarde, depois do
fracasso na segunda “Guerra dos Bispos”, o rei convoca o parlamento novamente
e se vê obrigado a aceitar suas exigências. O primeiro parlamento, que foi logo
dissolvido, ficou conhecido como “Parlamento Curto”. O segundo, que perdurou,
ficou conhecido como “Parlamento Longo”.

Em meio a acordos e desacordos, acusações e defesas, em 1642, por ocasião


de novos conflitos religiosos, Carlos I e o parlamento, cada qual com suas tropas
reunidas, declaram guerra um ao outro. As batalhas duram cerca de sete anos, até que
os parlamentaristas vencem e condenam Carlos I à pena de morte por alta traição.

60
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Os vencedores, liderados por Cromwell, derrubam então a monarquia e


estabelecem um governo republicano – que, na verdade, constituiu-se uma
ditadura militar. Após a morte de Oliver Cromwell, seu filho Ricardo tenta sucedê-
lo como ditador, mas acaba deposto pelo parlamento. Pouco depois, em 1660,
Carlos II, filho do tirano, restaura a monarquia, transformando a Inglaterra numa
monarquia parlamentar, como é até hoje.

Figura 2.10 - “E quando você viu seu pai pela última vez?”, de William Frederick Yeames

Fonte: Yomangani (2007).

Esta tela de William Frederick Yeames retrata o filho de um “realista” (partidário do


rei) sendo interrogado por um parlamentarista, durante a Guerra Civil.

Hobbes não interveio diretamente na guerra civil como um político ou um militar,


mas vivenciou-a, e não só a partir dela como também para ela escreveu suas
principais obras políticas.
Diferente de Maquiavel, Thomas Hobbes não foi propriamente um funcionário
público; não exerceu qualquer profissão diretamente ligada à prática política. Com
formação clássica, ele levou a vida como um típico erudito da época. Todavia
não foi qualquer erudito: Hobbes relacionou-se com algumas das maiores figuras
científicas de seu tempo: trocou correspondências com Descartes e Gassendi;
quando jovem, foi secretário de Francis Bacon e, como preceptor dos filhos de um
importante lorde, viajou muito pela Europa, chegando a conhecer Galileu Galilei.
Durante a guerra civil, Hobbes exilou-se na França, onde ficou até 1652,
convivendo com a corte inglesa, que também estava refugiada, reunida em torno
do futuro rei Carlos II. Os biógrafos de Hobbes admitem que sua experiência
na França foi importante para mostrar-lhe como um monarca absoluto pudera
submeter os aristocratas ao seu poder e acabar com as lutas que afligiam aquele
país havia séculos. Hobbes observou de perto o triunfo de Luís XIV, o qual pôs fim
às disputas entre os aristocratas e às guerras entre católicos e protestantes, que
haviam dificultado o governo de seu pai, Luís XIII.

61
Capítulo 2

Exilado na França, assistindo nesta condição à decisiva crise política vivida


por seu país, Hobbes decide conciliar suas inclinações científicas a seus ideais
políticos, a fim de escrever sua principal obra: o Leviatã. Hobbes já tinha escrito
outras obras políticas antes, como De Cive (Sobre o Cidadão) e Elements of Law
(Elementos da Lei), mas foi o Leviatã que, de fato, colocou-o entre os autores
fundamentais da tradição do pensamento político.

Assim como Maquiavel, Hobbes deseja o bem de sua nação e anseia ver o fim da
crise e, por isso, escreve sua obra a favor de um monarca, crente que somente um
homem virtuoso poderia conferir ordem a uma comunidade política. No entanto,
se Maquiavel dirige sua obra ao próprio monarca, Hobbes dirige a sua ao povo, na
intenção de convencê-lo da necessidade de submeter-se ao governo do monarca.

Apesar das diferenças metodológicas que já mencionamos antes, quando


falávamos de Maquiavel, a teoria de Hobbes tem muitos pontos de contato com
a do pensador florentino, como veremos até o final deste capítulo. Um deles é tão
óbvio quanto crucial: Hobbes não acredita que o povo possa, sozinho, organizar-
se e governar em regime de “livre cooperação” (democracia), sem um líder. Essa
convicção é uma de suas principais motivações para desenvolver uma teoria que
justifique racionalmente o poder absoluto de um soberano no governo do Estado.

3.2 Rigor metodológico e racionalismo no pensamento hobbesiano


Antes dissemos que Hobbes optou pelo método dedutivo, pretensamente mais
científico aos olhos modernos. No entanto, no Leviatã, antes de chegar às suas
principais conclusões por via dedutiva, Hobbes, partindo de observação empírica,
tece algumas considerações sobre a natureza humana, às quais chega por via
indutiva – o mesmo método preferido por Maquiavel. Em seguida, ele convida o
leitor a fazer um “experimento mental”, para demonstrar por que o homem sai de
um estado de selvageria rumo à sociedade civil organizada.

O Leviatã é dividido em quatro partes. As considerações sobre a natureza


humana e o experimento mental correspondem à primeira parte da obra. Na
segunda parte, Hobbes passa a deduzir – a partir de premissas que tinha
estabelecido até então – as leis da razão ou da natureza, e a estabelecer quais
são os deveres dos súditos e os direitos do soberano. Como seus principais
conceitos foram estabelecidos de maneira dedutiva, Hobbes foi visto como um
típico pensador moderno, simpático aos ideais da Ciência nascente. Na terceira e
na quarta parte, Hobbes dedica-se a explicar a relação entre o poder soberano e
a religião. Foram, entretanto, as duas primeiras partes que fizeram de Hobbes um
autor reconhecido, e é, portanto, delas que trataremos daqui em diante.

Em sua obra, Hobbes distingue o mundo da natureza e o mundo artificial do Estado.


Para ele, um e outro são matérias distintas de estudo. Todavia, ambos os mundos

62
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

são semelhantes sob certos aspectos e, sendo assim, podem ser submetidos ao
mesmo método de investigação: o método matemático e empírico defendido por
Bacon e Galilei. Não é por menos que Hobbes aplica a noção de corpo, própria das
ciências naturais, ao Estado.

No frontispício da primeira edição do Leviatã, por exemplo, o Estado, personificado


pelo soberano, apresentava um corpo formado por todos os cidadãos de uma
cidade. Hobbes vê o Estado como um “corpo político”, cuja vontade e razão são
dadas pelo soberano: o monarca absoluto.

Em sua perspectiva, o Estado é criado por homens, os quais estão sujeitos a impulsos
naturais, e, por isso, o próprio Estado está sujeito ao imponderável, ao imprevisível.
Eis o motivo pelo qual Hobbes recorre ao método científico, racional: para reduzir este
aspecto (o imprevisível) a um fenômeno mensurável. Esse é outro ponto de contato
evidente entre os pensamentos de Hobbes e Maquiavel: assim como o italiano,
Hobbes também entendia que a necessidade de superar o imprevisível (a Fortuna)
deve ser umas das razões do Estado.

Crente de que os seres humanos são submetidos sempre às mesmas paixões,


Hobbes faz uma descrição sistemática dessas paixões. Ele o faz, num primeiro
plano, para demonstrar ao seu leitor como nós, seres humanos, somos
inconstantes e, por isso, temos que nos submeter ao governo de uma entidade
maior. Mas, num segundo plano, ele pretende prescrever as medidas mais
eficazes para controlar os homens.

A descrição sistemática que Hobbes faz das paixões humanas é conhecida


como teoria mecanicista do agir humano. Para Hobbes, o homem pode tanto
divinizar-se quanto bestializar-se. Por isso, se não houver limites artificiais que
não o deixem cair em um estado de selvageria, não haverá paz nem estabilidade
política, concepção esta que o aproxima mais uma vez de Maquiavel. A teoria
mecanicista do agir humano é composta pelas seguintes noções:

•• Sensação
•• Imaginação
•• Entendimento
•• Linguagem
•• Razão
•• Paixões
•• Bem e mal
•• Medo e esperança
•• Conflito
•• Hedonismo humano

63
Capítulo 2

Qualquer ação, qualquer pensamento, qualquer expressão, enfim, qualquer


representação humana tem origem por meio de uma sensação. Nas palavras de
Hobbes:

A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona


o órgão próprio de cada sentido, ou de forma imediata, como no
gosto e no tato, ou de forma mediata, como na vista, no ouvido e no
cheiro. [...] Esta pressão, pela mediação dos nervos e outras cordas
e membranas do corpo, se prolonga até o cérebro e o coração, e
encontra ali uma resistência ou contrapressão. Este esforço é o que
denominamos de sensação. (HOBBES, 1974, p. 15).

Portanto, o mundo exterior é percebido por nós através das sensações. Essas
sensações, esses “movimentos” que agitam o interior de nosso corpo, são
contínuas e só cessam com a morte. No entanto Hobbes observa que, quando o
corpo não está submetido à “pressão” de objetos externos, as sensações ainda
permanecem nele, porém diminuídas. Essas sensações diminuídas, Hobbes
chama-as de imaginação. Ou seja: as sensações que já foram tidas pelo sujeito,
mas que ainda reverberam em seu interior, tornam-se imaginação.

A imaginação também pode surgir no homem através de palavras ou de


quaisquer outros sinais voluntários. Quando alguém nos fala sobre o mar, por
exemplo, imaginamos o mar, mesmo que não estejamos em frente a uma praia ou
a bordo de um barco.

Esta capacidade, Hobbes chama-a de entendimento, que, para ele, não é


exclusiva do homem, mas pertence a todos os animais. O que distingue o
entendimento humano do entendimento dos outros animais é o fato de que o
entendimento do homem deriva da “seqüência e contextura dos nomes das
coisas em afirmações, negações e outras formas de discurso.” (HOBBES, 1974,
p. 19). Em outras palavras, o entendimento do homem está ligado diretamente à
sua capacidade linguística e discursiva.

Mas por que Hobbes vai tão longe para falar do Estado?

Ao distinguir o entendimento humano, já mencionamos um elemento central


de qualquer ciência humana, seja básica ou aplicada: a linguagem. Temos
sensações, mas os animais também têm. Temos imaginação; os animais também
têm. Temos entendimento; os animais também. Temos, no entanto, a língua, coisa
que os animais não têm. Com a língua, podemos registrar nossas sensações,
imaginações e pensamentos e compartilhar os registros através de conversas.
Sem a língua, não poderíamos pensar em uma vida coletiva, não poderíamos
pensar em política. Nas palavras de Hobbes:

64
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

[A linguagem consiste] em nomes ou apelações e em suas


conexões, pelas quais os homens registram seus pensamentos,
recordam-nos depois de passarem, e também os usam entre si
para a utilidade e conversa recíprocas, sem o que não haveria
entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem
paz, tal como não existem entre os leões, os ursos e os lobos.
(ibid., p. 24).

Daí, podemos extrair uma chave para a compreensão do pensamento político


deste autor: toda sociedade é artificial e se assenta no uso da linguagem.

No entanto, só a linguagem não basta para organizar a vida comum. Deve haver
previsão, deve haver ponderação, deve haver cálculo em nossos atos e palavras.
Isto é, deve haver razão. Para Hobbes, razão pode ser entendida como a
faculdade de fazer cálculos “das conseqüências de nomes gerais estabelecidos
para marcar e significar nossos pensamentos.” (HOBBES, 1974, p. 31).

Por exemplo: estabelecemos o nome “fogo” para uma determinada coisa; o nome
“combustível”, para outra coisa; e, o nome “incêndio” para outra coisa. Uma vez
que usamos a razão e incluímos fogo e combustível em nosso cálculo, podemos
prever o incêndio como consequência. Este é um exemplo de uma operação
racional, à qual Hobbes se refere quando trata da razão.

Assim como para a maioria dos pensadores modernos – Descartes, por exemplo
– para Hobbes as paixões ocupam um lugar central dentro de sua teoria
mecanicista do agir humano. As paixões estão diretamente ligadas às sensações.
Entretanto as sensações são causadas por pressões externas, enquanto que
as paixões são causadas por pressões internas, derivadas da imaginação (o
resquício das sensações em nós). As paixões mais elementares são o desejo e a
aversão. Se nossa imaginação move-nos em direção a alguma coisa, temos um
desejo. Se nossa imaginação faz-nos evitar alguma coisa, temos uma aversão.

Desejo e aversão são nossos critérios básicos de bem e mal. Se algo causa-
nos desejo, é bom. Se algo causa-nos aversão, é mau. Por mais óbvio que isso
pareça, nós somos de fato condicionados por essas noções, e nossa vida –
principalmente nossa vida em sociedade – é determinada por elas. Qualquer tipo
de lei, por exemplo, visa o nosso bem, seja contemplando nossos desejos ou
afastando-nos do mal.

Na situação que precede a criação do Estado, cada um julga o que é bom e o que é
mau para si. Todavia, no pensamento de Hobbes, com a criação do Estado o juízo
do monarca soberano passa a ser o juízo de todos os homens. Nesse sentido, o
soberano nunca erra, uma vez que não há critério para julgá-lo, pois, se houvesse,
existiria outra instância superior a ele e, dessa forma, o soberano não seria soberano.

65
Capítulo 2

Como já dissemos, o desejo e a aversão são as paixões elementares. Dela


derivam todas as demais paixões, como é o caso do medo e da esperança,
as mais importantes do ponto de vista do nosso autor. Ambas indicam
probabilidade: quando temos medo, acreditamos que um dano é possível;
quando temos esperança, acreditamos que podemos conseguir algo.

E por que essas paixões, medo e esperança, são tão caras para Hobbes? Como
já sabemos, os sujeitos são movidos por paixões. Logo, a diferença entre os
sujeitos está na qualidade dessas paixões, e isso determina o espírito de um
corpo político. Um corpo político formado por sujeitos bem-educados, isto é,
sujeitos que têm paixões nobres, é muito mais próspero que um corpo político
formado por sujeitos com paixões vis. Todavia, independente da educação,
todos os sujeitos são movidos pelo desejo do poder, definido como “o conjunto
dos meios que um homem possui para obter qualquer bem visível no futuro.”
(HOBBES, 1974, p. 57).

Entre tais meios, há a força física e a reputação de poder, que incluem qualidades
como astúcia, saber, inteligência e beleza (outro ponto de contato com
Maquiavel). E, nesse sentido, o pensamento, que compreende entendimento
e razão, está a serviço das paixões. Isto é, pensamos para satisfazer nossos
desejos ou para evitar os males. A paixão preencheria o fim, e a razão preencheria
os meios necessários.

O desejo de poder é incessante em todos nós e persiste até a nossa morte.


Partidário da mesma visão do homem que tinha Maquiavel, Hobbes define a vida
como “um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas
com a morte”, e chega a definir a felicidade como “um contínuo progresso do
desejo de um objeto para o outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa
senão o caminho para conseguir o segundo.” (HOBBES, 1974, p. 64). Sendo assim,
uma vez que as pessoas acabam por desejar os mesmos bens, e uma vez que os
bens não são suficientes para todos, elas acabam sempre e novamente por entrar
em conflito. Há três bens decisivos, especialmente no que diz respeito ao poder:

•• Riqueza
•• Honra
•• Mando
Todo homem quer enriquecer, quer ser honrado e quer mandar em algo. A disputa
desses bens leva os homens inevitavelmente à luta, à inimizade e à guerra. E é
este o principal motivo que leva Hobbes a querer compreender como se dá o
agir humano: Hobbes quer encontrar as chaves para tomadas de decisão que
ajudem a interferir positivamente nos conflitos. Isso evoca uma discussão muito
pertinente no que diz respeito a este autor.

66
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Por muito tempo os intérpretes difundiram a ideia de que Hobbes tem uma visão
completamente ruim, pessimista e negativa do homem. Deu-se isso pelo mesmo motivo
pelo qual o adjetivo maquiavélico ganhou o sentido de diabólico: Hobbes, assim como
Maquiavel, buscava entender o homem e as relações políticas sem pudores, friamente;
buscava ver as coisas como realmente são. Acontece que a visão de Hobbes sobre o
homem não é tão simplista quanto pode parecer. Isso fica claro quando ele atribui ao
homem o hedonismo (a busca constante de prazer), e não o egoísmo.

Para a maioria dos intérpretes tradicionais, quando se pensava em Hobbes,


pensava-se no homem como um ser egoísta e no Estado como um repressor que
continha os impulsos maléficos desse egoísmo. No entanto, as coisas não são
tão simples assim.

Hobbes sugere que a razão nem sempre interfere nas ações dos homens. Se
interferisse, se os homens usassem sempre a razão, não haveria a necessidade
do Estado para organizar a convivência deles. Esta concepção de Hobbes vai de
encontro a uma série de pensadores que, ao contrário, sugerem que o Estado
somente é possível se os homens utilizarem a razão, uma vez que contra sujeitos
não racionais não existe dispositivo que o Estado possa utilizar na busca do
controle de ações, isto é, na aplicação do direito jurídico.

Entretanto, para melhor compreensão desta questão, cabe salientar que Hobbes
pode ser entendido como um positivista jurídico, isto é, pode ser entendido como
um pensador que concorda com a tese de separação entre moral e direito,
segundo a qual, para que o sistema dê condições de convivência em sociedade,
o direito necessita ser coativo.

Tendo em vista que, em seu pensamento, o direito é da vontade, e não da


razão, Hobbes opta por não julgar os homens de forma tão severa, como se
todos pensassem racionalmente na hora de cometer
Prazer Em grego,
prazer significa hedoné, alguma ação maléfica. Os homens buscam sempre e
daí o termo hedonismo. instintivamente o seu prazer, por isso são hedonistas, não
egoístas necessariamente.

3.3 Do estado de natureza à sociedade civil organizada: um


experimento mental
E aqui chegamos a um ponto crucial para a compreensão de Hobbes e de sua
principal obra, o Leviatã. Uma vez que Hobbes demonstrou uma compreensão
plena da natureza humana, ele passa – de maneira dedutiva – a realizar um
experimento mental para explicar como o homem sai do que ele chama de “estado
de natureza” para chegar à sociedade civil organizada, isto é, ao Estado. Pinzani
(2009) reconhece, neste percurso descrito por Hobbes, dez momentos distintos:

67
Capítulo 2

•• Estado de natureza
•• Pavor da morte
•• Pleonexia
•• Escassez de bens
•• Condição de igualdade
•• Rivalidade
•• Desconfiança
•• Glória
•• Guerra de todos contra todos
•• Aversão ao estado de natureza: sociedade civil organizada
O primeiro deles, o estado de natureza, é aquele estado primitivo em que os
homens, hedonistas, viviam supostamente à mercê de suas paixões, sem uma
autoridade soberana, mas apenas estabelecendo relações sociais naturais, como
laços familiares, por exemplo.

Ainda no estado de natureza, os homens, dotados de linguagem, consideram a


morte violenta, não voluntária, como um mal a ser evitado absolutamente, ou seja,
desenvolvem um pavor da morte. Eventualmente podem até mesmo preferir a
morte, mas nunca sem o seu consentimento.

Uma vez que a vida para os homens, naturalmente hedonistas, é uma busca
contínua de prazeres, os homens terão sempre a sensação de que algo ainda está
por ser obtido, de que não possuem algum bem, algum prazer. Essa sensação é o
que os antigos chamavam de pleonexia. Isso é característica inerente ao homem, e
Hobbes a vê apenas como uma característica, não necessariamente como um mal.

Se há pleonexia, então sempre chegará o momento em que os bens desejados


pelos homens se acabarão, isto é, a escassez de bens é algo que sempre estará
iminente. Por este motivo, Hobbes acredita que, em algum momento, os homens
hão de lutar por esses bens escassos.

A princípio, todos os seres humanos possuem, por natureza, as mesmas


faculdades, as mesmas capacidades, sejam físicas ou espirituais: portanto todos
vêm ao mundo em uma condição de igualdade. Isso levaria todos a acreditar
que podem, em condições naturais, alcançar seus próprios fins.

A condição de igualdade leva todos os homens a nutrir o mesmo sentimento


de esperança: se tenho as mesmas capacidades que todos, tenho a mesma
chance que todos têm de conseguir o que desejam. Entretanto, se dois indivíduos
desejarem o mesmo objeto – por exemplo, o mando (a liderança) de uma tribo
– haverá conflito. Esta rivalidade “leva os homens a atacar os outros tendo em
vista o lucro.” (HOBBES, 1974, p. 79).

68
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

A rivalidade faz com que a esperança nascente com a igualdade


converta-se em desconfiança. Uma vez que cada um sabe muito bem
que os outros cobiçam os seus bens, teme que possa ser atacado a
qualquer momento.

Para Hobbes, no estado de natureza, os homens não tiram nenhum prazer da


convivência, mas, ao mesmo tempo, não podem renunciar ao convívio, já que
desejam ser apreciados pelos demais. Para conseguir tal realização, eles fazem
o possível para depor a fama de seus rivais. O sucesso nessa tentativa é o que
Hobbes chama de glória.

Em um clima de rivalidade, desconfiança e ânsia pela glória (o fracasso do rival),


outra coisa não pode suceder senão um conflito generalizado. Daí vem a célebre
expressão “guerra de todos contra todos”, uma situação ilustrativamente
antagônica ao Estado. Para Hobbes, em uma situação como esta:

[...] não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto;


consequentemente nem cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não
há construções confortáveis, nem instrumentos para mover
e remover as coisas que precisam de grande força; não há
conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem
artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que
tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida
do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
(HOBBES, 1974, p. 80).

No estado de guerra de todos contra todos, a morte torna-se um risco constante,


iminente. Na teoria mecanicista do agir humano, o homem ou sente desejo por algo
ou sente aversão por algo. Como já explicamos, o homem tem aversão à morte; logo,
terá aversão pelo estado de guerra de todos contra todos e desejará abandoná-lo.

Portanto é o medo da morte que leva os homens a buscar a paz, a constituição


de uma sociedade regrada. O medo, no pensamento hobbesiano, é um elemento
central. O medo é, para Hobbes, uma paixão civilizadora.

Na intenção de abandonar o estado de guerra de todos contra todos, o homem


depara-se então com o reconhecimento de direitos e, consequentemente, com
a criação de leis. Neste ponto de sua obra, Hobbes passa a estabelecer as bases
jurídicas para sua teoria do Estado.

Para Hobbes, o direito de natureza perpassa pela liberdade de proteção à vida.


Nas palavras do próprio autor:

69
Capítulo 2

[...] a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio


poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria
natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo
aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como
meios adequados a esse fim. (HOBBES, 1974, p. 80).

Observe que, na afirmação de Hobbes, o direito de natureza pode ser


compreendido como um direito à vida. Para o autor, até mesmo a paz pode ser
vista como um mero meio que visa a proteção à vida; a paz não seria um fim
em si mesmo. A liberdade de utilizar todas as coisas possíveis para manter a
vida explica-se pela consideração de que, no estado de natureza, não haveria
distinção entre o “meu” e o “seu”. Portanto, o conceito de liberdade em Hobbes
pode ser entendido como uma liberdade potencializada, uma liberdade que
necessitará de limitação, a fim de garantir o maior bem do sujeito, que é sua vida.
Essa limitação não há no estado de natureza.

A liberdade é, portanto, “a ausência de impedimentos externos” (HOBBES,


1974, p.114), e não propriamente o livre arbítrio, como defendiam alguns
contemporâneos seus.

Tendo pintado a liberdade desta maneira, ou seja, de maneira negativa, como


algo perigoso, Hobbes então apresenta a lei como algo maravilhoso. A lei é

[...] um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante


o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir
sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou
omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la.
(HOBBES, 1974, p. 114).

Hobbes apresenta, no Leviatã, vinte e uma leis naturais. Entretanto, não caberia
nem seria conveniente comentar todas aqui. As leis mais fundamentais são
certamente as duas primeiras, pois delas derivam todas as outras:

•• Renunciar ao direito a todas as coisas -- isto é, renunciar àquela


liberdade incondicional apresentada como um perigo.
•• Deve haver reciprocidade nessa renúncia -- isto é, só haverá paz uma
vez que todos aceitem mutuamente a primeira condição.
As leis naturais devem ser compreendidas como “ditames da razão”. Ou seja, as
leis naturais são regras às quais se pode chegar naturalmente, usando apenas
a razão. Porém, aí mora um problema inevitável: nem todos os homens são

70
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

capazes de servir-se corretamente da razão. Surge então outra guerra inevitável,


a guerra das opiniões, e, com essa guerra, surge uma questão central dentro da
política moderna: como motivar as pessoas a aceitar as leis naturais?

A maioria das comunidades é composta por tolos, e os tolos dizem em seu foro
íntimo que justiça é coisa que não existe e que, por isso, cada um é livre para
decidir se deve, ou não, respeitar os pactos. Mediante esta situação, Hobbes vê
três possibilidades:

1. concordar com os tolos e abandonar as leis naturais, uma vez que seria
perigoso aceitar os pactos sem ter a certeza de que todos os aceitaram;
2. constituir um poder civil capaz de impor, através do uso da força,
o cumprimento das promessas, fazendo com que seja perigoso
não respeitar os pactos, pois isso significaria correr o risco de ser
punido pela mão do soberano;
3. formar alianças para se defender dos inimigos, em um regime de
“livre cooperação” (democracia).
Quanto à segunda possibilidade, que prevê o uso da força, cabe observar que
esta solução persiste até os dias de hoje, em todo o mundo. A polícia – uma
instituição existente em qualquer país contemporâneo – é a maior prova de que o
Estado só sustenta sua autoridade através do uso da força.

Hobbes – em entrelinhas, porém de maneira bastante óbvia para quem conhece


seu contexto histórico – ridiculariza a terceira possibilidade, usando o exemplo
dos parlamentaristas, os quais quiseram instaurar uma democracia, mas,
rapidamente, incorreram em uma tirania, mostrando a fragilidade desse modelo
em sua forma pura. Portanto, obviamente, chega à conclusão de que a segunda
opção é a mais conveniente para acabar com a guerra das opiniões: aceitar a
imposição do soberano.

No entanto, Hobbes procura deixar bem claro que não está defendendo uma
tirania, mas sim uma monarquia devidamente constituída, de modo legítimo:
Hobbes é um absolutista, não um despotista. E essa legitimidade passaria
naturalmente por instâncias jurídicas: a concessão do direito natural ao soberano
(que representa o Estado) ocorre por meio de um contrato de autorização.

Este contrato implica, ao indivíduo, renunciar à sua liberdade incondicional em


favor do Estado e reconhecer como expressões da própria vontade as ações e
as decisões de um determinado sujeito. Para Hobbes, este sujeito não seria outro
senão o monarca, mas, no sentido jurídico, pode ser tanto o monarca quanto um
grupo de indivíduos, como no caso de um governo republicano. Daí a validade
jurídica desse contrato. Mediante este contrato, a liberdade do indivíduo vai até
onde a lei permite.

71
Capítulo 2

Este processo de constituição de um poder civil supremo que organiza uma


sociedade – a criação do Estado – pode acontecer por duas maneiras:

1. Estado por instituição – é criado através da força, quando um


homem, usando seu exército, por exemplo, impõe seu governo;
2. Estado por aquisição – é, como o próprio nome diz, instituído pelos
sujeitos, ou seja, os sujeitos escolhem alguém para governá-los.
Para Hobbes, até o seu momento histórico, todos os Estados haviam sido criados
por aquisição, no entanto a única diferença entre um Estado criado por aquisição
e o criado por instituição é que, no primeiro caso, os homens submetem-se ao
soberano por medo de sua punição, e, no segundo, os homens escolhem um
soberano por medo uns dos outros (desconfiança).

É importante compreender que, em ambos os modelos de criação apresentados


por Hobbes, os homens são movidos a fazer o contrato social pelo medo. O
medo é definitivamente um elemento central no pensamento hobbesiano, pois
move a política.

3.4 Retórica na inserção do elemento religioso


Nas sutilezas do pensamento hobbesiano, é possível identificar momentos em
que o súdito fica desobrigado a se curvar aos ditames do soberano, por mais que
o mesmo seja infalível. Trata-se de situações em que suas ordens são contrárias
à intenção pela qual os sujeitos aderem ao contrato, isto é, quando as ordens
do soberano forem contrárias à preservação da vida do súdito, mesmo que
este atentado à vida tenha sido uma condenação justa. Contudo este direito à
resistência, como menciona Alves (2001), não se coloca como problema, uma vez
que é entendido como um direito individual.

De qualquer forma, não se esqueça de que o soberano é o único sujeito que


permanece fora do contrato. Todos os sujeitos de uma dada sociedade, uma
vez que assumem o contrato social, “assinam embaixo” do que o soberano disser
ou fizer, renunciando à sua liberdade incondicional de utilizar-se de todas as
coisas possíveis para preservação da vida, visto que esta liberdade se chocará
com a de outro, o que colocará o maior bem de ambos, a vida, em risco. No
entanto o soberano mesmo não tem um representante; ele tem o direito de fazer o
que bem quiser, ele tem livre arbítrio.

Aí naturalmente reside um problema: e se o soberano for um insano, um imprudente,


um tirano injusto? E se suas medidas, ao invés de manterem a paz, provocarem a
revolta, a discórdia? Vejamos como Hobbes define o cargo do soberano:

72
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

O cargo do soberano [...] consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado
o soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo,
ao qual está obrigado pela lei de natureza e da qual tem de prestar conta
a Deus, o autor dessa lei, e a mais ninguém além dele. Mas por segurança
não entendemos aqui uma simples prevenção, mas também todas as
outras comodidades da vida, que todo homem por uma indústria legítima,
sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio. (HOBBES,
1974, p. 204).

Eis o ponto exato onde a religião emerge dentro da teoria hobbesiana. O


soberano tem um compromisso com Deus e somente a ele prestará contas, o
que corrobora a compreensão de que não é possível afirmar um erro por parte do
soberano. A justeza de suas ações deriva de um temor a Deus – mais uma vez,
o medo é um elemento regulador. Além disso, essa justeza está baseada em uma
doutrina religiosa. Não é por menos que, com base na Bíblia, Hobbes (1974, p.
208) propõe uma versão do decálogo voltada para a doutrina do soberano – os
dez mandamentos do deus mortal Leviatã.

1) Bíblia: Não terás outros deuses além de mim.

Hobbes: Proibição de comparar o próprio sistema político com o dos vizinhos.

2) Bíblia: Não farás para ti imagem, não te inclinarás diante dela nem a servirás.

Hobbes: Proibição de tributar honras excessivas a indivíduos ou grupos e de equipará-


los ao soberano.

3) Bíblia: Não tomarás o nome do senhor teu Deus em vão.

Hobbes: Proibição de críticas ao soberano.

4) Bíblia: Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo.

Hobbes: Obrigação de participar em assembleias nas quais os súditos, depois das


orações e das ações de graças a Deus, o Soberano dos Soberanos, possam ouvir
falar nos seus deveres, para que as leis positivas sejam lidas e expostas. Em suma,
obrigação de participar em aulas de catecismo político.

5) Bíblia: Honra a teu pai e a tua mãe.

Hobbes: Obrigação de ser grato aos pais, já que cada um lhes deve a primeira
educação e, portanto, os pais são responsáveis pelo que as crianças aprendem a
obedecer (do ponto de vista político, a família é simplesmente o lugar em que se criam
os futuros súditos).

73
Capítulo 2

6) Bíblia: Não matarás.

Hobbes: Proibição de tirar dos outros “sua vida e membros”; proibição da vingança
pessoal.

7) Bíblia: Não adulterarás.

Hobbes: Proibição de violar a “honra conjugal”.

8) Bíblia: Não furtarás.

Hobbes: Proibição da rapina violenta e da subtração fraudulenta dos bens alheios.

9) Bíblia: Não dirás falso testemunho contra teu próximo.

Hobbes: Proibição da corrupção dos juízes e das testemunhas.

10) Bíblia: Não cobiçarás coisa alguma do teu próximo.

Hobbes: Proibição de planejar atos injustos ou de ter a intenção de praticá-los (a


injustiça consiste tanto na depravação da vontade como na irregularidade do ato).

É importante ressaltar que Hobbes escreve sua obra em meio aos conflitos que
contrapunham a coroa (o Estado) e as igrejas (católica e protestante). Portanto,
há a possibilidade de que ele se tenha visto obrigado a incluir a religião dentro
de suas justificativas para o contrato social e dentro de sua explicação sobre a
condição do soberano, apesar de esta compreensão ser discutível. Além disso,
não apenas por conta da conjuntura, mas também por conta da própria cultura da
época: mesmo no início da Idade Moderna, os sujeitos eram religiosos a ponto de
obedecer mais a desígnios divinos do que a desígnios jurídicos.

O curioso nisso tudo é que Hobbes faz de sua teoria um sistema tão fechado, tão
perfeito, que, de fato, parece forçada a inserção do elemento religioso no final,
como um regulador do soberano.

Você se lembra de que Maquiavel, resgatando os modelos antigos, apresenta a


república como uma forma mista de governo, onde um elemento fiscaliza o outro –
por exemplo, o senado (ou parlamento) fiscaliza o cônsul (ou rei)? Por que será que
Hobbes não considera esta possibilidade ou a ignora? Lembra-se, também, de que,

74
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

no começo deste capítulo, quando apresentávamos o contexto histórico de Hobbes,


dissemos que, após o fracasso da ditadura de Oliver Cromwell, foi instituída uma
monarquia parlamentarista na Inglaterra, modelo que permanece até hoje?

O que podemos responder é que, de forma absolutamente metódica e racional,


Hobbes tenta realmente provar que a doutrina religiosa pode regular e sustentar
o soberano, mas é evidente que todo esse esforço está diretamente relacionado
às suas afinidades partidárias, aos seus compromissos sociais e religiosos.
Entretanto – e finalmente – podemos dizer que Hobbes foi, ao lado de Maquiavel,
um dos grandes autores absolutistas da história, tendo aberto caminho para as
teorias do Estado que viriam a se constituir.

Seção 4
A Paz de Westfália e o surgimento da
comunidade internacional
Embora Maquiavel e Hobbes tenham indicado as bases
Westfália era o nome
dado à região situada para a soberania estatal, isso só viria a se realizar de fato
entre o rio Reno e o um pouco mais tarde, com a Paz de Westfália: uma série
rio Weser. No século de tratados de paz que marcou não só o fim da Guerra
XVII, situavam-se na
Westfália as cidades de
dos Trinta Anos, mas também a concretização do ideal
Münster e Osnabrück, de soberania e o início de uma verdadeira comunidade
onde aconteceram os internacional. O contexto da Paz de Westfália é bastante
dois principais tratados
complicado, pois derivou da confluência de diversos acordos
de paz que marcaram o
fim da guerra. diplomáticos e, mais do que isso, significou o surgimento de
uma nova ordem mundial. Vamos tentar entendê-lo!

O século XVI iniciou-se com uma Europa dominada por duas potências
hegemônicas: a Igreja Católica – que exercia influência absoluta sobre os
assuntos políticos dos Estados europeus – e o Império Habsburgo, de orientação
católica. O Império Habsburgo, também conhecido como Império Austríaco,
passou a dominar o Sacro Império Romano no século XVI, e era visto, desde
então, como a maior e mais temerosa hegemonia política da Europa.

75
Capítulo 2

Figura 2.12 - Império Habsburgo (em verde) no ano de 1547

Fonte: Leathes (1912).

O domínio dessas duas grandes potências foi, no entanto, abalado por dois
acontecimentos principais: a Reforma Protestante, iniciada em 1517 por Martinho
Lutero (1483-1546), e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), provocada pela
França e pela Suécia.

Ingerência Influência Por um lado, a Reforma Protestante desestruturou a Igreja


nas decisões políticas Católica, dando aos estadistas europeus a opção de
internas, os chamados
rejeitarem a ingerência das autoridades católicas em seu
assuntos domésticos.
governo e escolher, por exemplo, qual seria a religião de seu
país. Por outro lado, a Guerra dos Trinta Anos enfraqueceu
decisivamente o Império Habsburgo, a ponto de minar-lhe as esperanças de
constituir uma monarquia centralizada e esfacelar seu território. A nova Europa,
surgida com o fim dessa guerra, apresentava uma série de territórios e povos, e
seus príncipes, exaustos de séculos de batalhas e danos irreparáveis, decidiram
respeitar-se mutuamente, a fim de garantir alguma paz e estabilidade. Aqueles que
reconheceram a necessidade desse respeito e puseram-no em prática deram então
as primeiras diretrizes para uma comunidade internacional.

76
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 2.13 - Celebração da Paz de Westfália, de Bartholomeus van der Helst

Fonte: Steenberg (2008).

A Paz de Westfália representou, portanto, uma paz anti-hegemônica, pois


rejeitava qualquer autoridade política pretensamente universal, como o Imperador
e o Papa, “erigindo um sistema multiestatal, baseado na pluralidade de Estados
territoriais soberanos”. (WATSON, 1992, p. 188). Stephen Krasner (1995) defende
que esse sistema estava baseado em dois pilares: soberania e territorialidade.

Territorialidade significa que a autoridade política é exercida sobre uma


determinada porção geográfica, ao invés de um agrupamento de pessoas,
por exemplo.

Soberania significa que nenhum ator externo pode exercer qualquer tipo
de autoridade dentro das fronteiras de um determinado Estado, como
faziam o Império Habsburgo e a Igreja Católica no período medieval.

A consolidação da territorialidade e da soberania gerou uma norma respeitada


até hoje pelos países que formam a comunidade internacional: o princípio da não
intervenção. Os chefes de estado que, com a Paz de Westfália, fundavam aquele
“clube” – metáfora usada por alguns autores das Relações Internacionais – só
admitiam um novo sócio, na medida em que esse sócio aceitasse uma condição
básica: não intervir, em hipótese alguma, nos assuntos domésticos de qualquer
aliado. O princípio da não intervenção está presente no principal documento da
ONU, a Carta das Nações Unidas, assinada 1945.

Reforçando o dissemos até aqui, Kalevi Holsti (2004) admite serem quatro os
princípios mais importantes estabelecidos nos tratados de Westfália:

77
Capítulo 2

1. Não à Igreja
Os participantes dos acordos consentiram quanto a uma negação
à Igreja Católica em seu direito de interferir nas questões seculares
dos Estados europeus.

2. Não à conversão religiosa


Entre os acordantes, ficou expressamente proibido tentar converter
uns aos outros, assim como a seus súditos. Surgia então o princípio
da liberdade de culto.

3. Sim aos tratados e alianças


Os protagonistas da Paz de Westfália garantiram aos principados
membros do Sacro Império Romano o direito de se engajarem em
tratados e alianças, desde que eles não prejudicassem o imperador.
Surgia o princípio da flexibilidade, marca característica das
negociações diplomáticas.

4. Sim aos Estados soberanos


Os benefícios surgidos com os tratados eram garantidos apenas
aos Estados soberanos, isto é, àqueles Estados onde havia um
governo devidamente constituído, apoiado em leis e reconhecido
pelo povo.

Muitos autores, entre eles Adreas Osiander (2001), acreditam que, em partes, a Paz
de Westfália tornou-se um mito na área das Ciências Humanas, tendo recebido
uma importância maior do que realmente teve. Osiander acredita que não se pode
tomar a Paz de Westfália como um fato isolado, e lembra que, por exemplo, outras
transformações políticas ocorridas no século XVIII e, principalmente, as inovações
cartográficas do século XIX exerceram igual ou maior influência no estabelecimento
das bases para uma comunidade internacional.

O quanto de justiça há na importância que a tradição atribuiu à Paz de Westfália


não podemos afirmar com precisão. Porém, o fato é que este acontecimento
simbolizou um momento de grande revolução política, tão significante quanto a
Revolução Francesa, e se tornou um marco para aqueles que buscam entender o
surgimento do Estado moderno. Eis o motivo por que o inserimos neste capítulo.

78
Capítulo 3

A consolidação do Estado
moderno

Habilidades Com a leitura deste capítulo, você desenvolverá as


habilidades de: compreender a teoria do Estado de
Locke e sua importância para o liberalismo clássico;
identificar as contribuições de Montesquieu para a
fundamentação teórica das constituições modernas;
compreender o pensamento político de Rousseau
e sua importância para as democracias modernas;
compreender as repercussões que as ideias liberais
tiveram na Europa dos séculos XVIII e XIX, seja com
relação às transformações reais causadas pela queda
dos regimes absolutistas, seja nas ideias de autores
como Stuart Mill e Marx.

Seções de estudo Seção 1: Locke e as bases do liberalismo clássico

Seção 2: Rousseau: a vontade geral como fonte


das leis

Seção 3: Montesquieu e o constitucionalismo

Seção 4: Reflexos das ideias nos fatos

79
Capítulo 3

Seção 1
Locke e as bases do liberalismo clássico
Nesta primeira seção, você entrará em contato com reflexões sobre o Estado a
partir das ideias de John Locke (1632-1704), pensador inglês, cuja concepção de
estado de natureza apresenta elementos como o uso da razão, a situação de paz
e, ainda, a existência da propriedade. Essa compreensão, de que a propriedade
já está presente no estado de natureza, eleva-a à categoria de direito anterior à
instituição do Estado – ao lado da vida e da liberdade. Por esse motivo, Locke inclui
a propriedade entre os direitos que se busca garantir a partir do contrato social.

Entre as implicações de tal concepção, está a consideração de que o Estado


não pode interferir na propriedade do sujeito, uma vez que a adesão a ele foi
justificada pela defesa do direito à propriedade individual, através de um corpo
político imparcial, apto a resolver questões cuja solução em estado de natureza
– incluindo questões relacionadas à propriedade – estaria comprometida por
interesses individuais.

Essas e outras questões controversas levantadas por Locke fariam nascer uma
corrente de pensamento político que, apesar das transformações pelas quais
passou, predomina até os dias atuais. Acompanhe o desenvolvimento desses
temas nas próximas seções.

1.1 A Revolução Gloriosa


Se traçássemos uma linha histórica, indicando os principais autores políticos, logo
após Thomas Hobbes (1588-1679) colocaríamos seu compatriota John Locke
(1632-1704). Todavia não é apenas a cronologia que aproxima esses dois autores.
Ambos tiveram formações muito semelhantes, e seus interesses cruzaram-se em
diversos pontos, embora suas inclinações tenham sido singulares.

Assim como Hobbes, Locke frequentou a alta sociedade inglesa e estabeleceu


laços com importantes cientistas de sua época. No entanto, não como preceptor,
mas como médico de uma importante família – a família do Conde de Shaftesbury
(1621-1683), um nobre muito influente na política inglesa, que esteve entre os
fundadores do Partido Liberal, inicialmente chamado de Partido Whig.

Em 1681, três anos após a morte de Hobbes, seu príncipe predileto, Carlos II,
reedita os feitos do pai tirano e dissolve o parlamento outra vez, reacendendo o
conflito entre realistas e parlamentaristas que havia marcado todo o último século.
O Conde de Shaftesbury, um dos principais opositores de Carlos II, vê-se
obrigado a deixar a Inglaterra e decide exilar-se na Holanda de Guilherme de

80
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Orange (1650-1702), país mais tolerante em assuntos políticos. Locke, que


assumia o mesmo posicionamento de seu patrono e já havia sofrido algumas
perseguições por conta de suas ideias contrárias ao autoritarismo de Carlos II,
decide também exilar-se na Holanda.

Nesse intermédio, a Inglaterra passa


Figura 3.1 - Escultura de marfim de John por outro período crítico, o qual ficaria
Locke, de David Le Marchand
conhecido como Revolução Gloriosa.
Uma das fortes objeções do Conde de
Shaftesbury era a sucessão de Jaime II
(1633-1701), irmão de Carlos II, no trono
inglês. Em 1679, quando ainda era membro
do parlamento, o Conde propôs a Lei de
Exclusão, que pretendia excluir Jaime II
da linha sucessória. Um dos principais
motivos era a postura católica de Jaime II.

A imposição do catolicismo em uma


Inglaterra protestante havia sido um dos
principais estopins da Guerra Civil. No
entanto, em 1685, quando Carlos II morre,
Jaime II é levado ao trono, a contragosto
da maioria protestante no parlamento.

Por três anos, o católico Jaime II reina


sob a tolerância dos parlamentaristas,
que o suportavam, certos de que sua filha
protestante, Maria II (1662-1694), sucedê-
lo-ia em breve. Em 1687, porém, a esposa
de Jaime, Anne Hyde, dá luz a um filho
Fonte: Victoria and Albert Museum (2010).
homem, o que ameaça as esperanças dos
parlamentaristas e os motiva a derrubá-lo.

Maria II era casada com Guilherme de Orange, rei da Holanda – ambos eram
protestantes. Em 1688, os parlamentaristas, decididos a depor Jaime, organizam
uma conspiração e convocam o rei holandês a tomar-lhe o trono e assumir o
governo da Inglaterra. Diante de tal favorável situação, em novembro daquele
ano, acompanhado de sua esposa inglesa e do exército holandês, Guilherme de
Orange desembarca na Inglaterra disposto a entrar em conflito com Jaime II. O
exército inglês, no entanto, frente à potência holandesa, deserta, e Jaime decide
fugir. Em 1689, o parlamento reúne-se em uma convenção, declara que a fuga de
Jaime significou sua abdicação e oferece o trono a Maria e seu esposo holandês.

81
Capítulo 3

Nessa época, John Locke volta então à Inglaterra como membro do partido
vencedor e põe-se a escrever suas principais obras políticas: o Primeiro e o
Segundo Tratado sobre o Governo Civil, publicados entre 1689 e 1690.

1. No Primeiro Tratado, Locke dedica-se a polemizar a obra de Robert


Filmer (1588-1653), defensor de um modelo de monarquia absoluta
e da origem divina do poder real. Hobbes defendia as mesmas
teses que Filmer, e suas ideias eram certamente muito mais
influentes que as deste, no entanto foi muito mais conveniente para
Locke derrubar as teses de um autor menor, como Filmer.
2. O Segundo Tratado, contudo, tornou-se sua obra mais famosa, pois
é nele que Locke de fato expõe sua teoria do Estado.

Figura 3.2 - Chegada de Guilherme de Orange à Inglaterra, painel de James Thornhill.

Fonte: Palmer (2006).

1.2 Oposição direta à teoria absolutista


Embora Locke dirija suas críticas a Filmer, parece claro que sua principal intenção
é reformular os conceitos e justificativas de Hobbes – fortemente presentes no
debate da época – de modo a adequá-los à ideologia do nascente partido liberal.

82
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Por conta das perseguições que já havia sofrido, receoso de que voltassem
a acontecer, Locke publicou seu livro anonimamente. A obra só foi atribuída
oficialmente a ele nas edições que vieram após a sua morte.

Entre os pontos centrais da argumentação de Locke, podemos destacar as noções de:

•• Estado de Natureza
•• Propriedade
•• Trabalho
•• Dinheiro
•• Lei
•• Liberdade e Licença
•• Consentimento
•• Divisão de poderes
•• Prerrogativa
Assim como Hobbes, Locke entende que as leis naturais são ditames da razão,
ou seja, são noções de justiça às quais se pode chegar usando apenas a razão.
No entanto Locke acredita que, ainda no estado de natureza, todo e qualquer
homem já traz consigo essas noções.

Para Locke, o estado de natureza é um estado de igualdade, em que os homens


têm a “perfeita liberdade” de regular suas ações e dispor seus bens “conforme
acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão
ou depender da vontade de qualquer outro homem.” (LOCKE, 1988, p. 35).

Para esse autor, portanto, o estado de natureza não é um estado necessariamente


ruim, de “guerra de todos contra todos”, mas um estado de igualdade, em que
os homens convivem livremente, apoiados apenas em noções naturais de justiça.
Sob esta perspectiva, é possível inferir que os sujeitos possuem virtudes nesse
estado anterior ao civilizado; é possível inferir, por exemplo, que nele já existem
noções como o dever do respeito ao outro.

Todavia, se no estado de natureza, “qualquer um tem o direito de castigar os


transgressores da lei da natureza” (LOCKE, 1988, p. 36), Locke admite não ser
razoável que um homem seja eventualmente seu próprio juiz. Em Locke, tanto o
prazer como o desprazer motivam o ser humano, contudo essas não são
concepções aplicáveis a todos da mesma forma, sendo que cada um pode
preencher esses conceitos com conteúdo próprio. Surge, portanto, a necessidade
de uma autoridade externa, imparcial e impessoal, que possa julgar os homens

83
Capítulo 3

frente aos inconvenientes do estado de natureza: o governo civil (Estado). Isso


seria verdadeiro sempre, o que invalidaria aquela forma de governo em que um
homem só, “governando uma multidão, tem a liberdade de ser juiz no seu próprio
caso, podendo fazer aos súditos tudo quanto lhe aprouver, sem que alguém tenha
a liberdade de formular perguntas.” (LOCKE, 1988, p. 38).

Aí reside uma crítica explícita ao absolutismo, pois, na


justificativa de Hobbes, por exemplo, o monarca absoluto
O pacto Locke
dá continuidade à era, na Terra, seu próprio juiz, cabendo apenas a Deus
ideia de contrato julgá-lo.
social surgida em
Hobbes. Mais adiante, Para Locke, portanto, o indivíduo sai do estado de
Rousseau também natureza e ingressa no estado civil apenas para assegurar
o faria. Eis porque
os seus direitos naturais (vida, liberdade e bens), que, por
esses três autores são
comumente chamados sua vez, são inalienáveis. Tal ingresso ocorre somente
de contratualistas. mediante o pacto de que as leis civis sejam promulgadas
por um poder legislativo o qual tenha como única e
principal finalidade garantir seus direitos.

Mas como explicar tais direitos naturais? Aqui emerge uma questão central no
pensamento de Locke, que o alçou à condição de pai do liberalismo clássico: a
propriedade. Para Locke, propriedade não são apenas os bens adquiridos pelo
indivíduo, mas também sua própria vida e sua liberdade.

Em seu entendimento, Deus concedeu ao homem tudo o que há na terra para


seu sustento e conforto da existência, e ninguém possui originariamente o direito
de apropriar-se dos frutos da terra (inclusive os animais). Contudo deve haver
necessariamente um meio de se apropriar deles ou de fazer com que sejam
benéficos a um indivíduo em particular. O direito à posse, à propriedade de bens,
só passa a existir mediante uma condição: o trabalho.

Em suas palavras, “se cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa,
o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos são seus”, já que derivam de sua
pessoa. “A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos
produtos usa, constitui a sua propriedade.” (LOCKE, 1988, p. 37).

No estado de natureza, cada homem teria direito de apropriar-se somente


daquilo que é necessário à sua subsistência. O excedente ultrapassaria a parte
que lhe cabe e passaria a pertencer a outros. No entanto, pensando a partir
de uma perspectiva histórica – e não a partir de um experimento mental, como
Hobbes – Locke admite que algo aconteceu e esta lei tornou-se obsoleta. Surgiu
assim o direito de acumular propriedade além das próprias necessidades, o que
ocasionou a invenção do dinheiro.

84
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Portanto a propriedade de bens, segundo a concepção de Locke, não se alcança


unicamente pela apropriação da natureza; é necessário transformá-la, o que lhe
atribui valor. A partir do valor, gerado pela transformação da natureza, chega-se
à concepção do “meu” e do “seu”. Dessa forma, o trabalho pode ser entendido
como condição para o direito à propriedade de bens, isto é, como condição para
que o “meu” não me seja tomado.

Como o trabalho humano agregado à terra aumentou a produtividade e fez com


que os homens produzissem mais do que o necessário para a sua sobrevivência,
esses passaram, assim, a trocar seus produtos: o surgimento da economia
de mercado. Mais adiante, os homens encontraram uma maneira de realizar
permutas sem envolver diretamente os produtos, através de um equivalente
universal: o dinheiro.

Segundo Locke, uma economia baseada no dinheiro não requer um governo civil
ou um poder central (Estado) que garanta o valor da moeda. Em suas palavras,
“os homens tornaram praticável semelhante partilha em desigualdade de posses
particulares fora dos limites da sociedade e sem precisar de pacto, atribuindo
valor ao ouro e à prata, e concordando tacitamente com respeito ao uso do
dinheiro.” (LOCKE, 1988, p. 50).

Esta noção de que uma economia baseada no dinheiro autorregula-se,


ao lado dos princípios da liberdade individual e da propriedade, constitui a
base do chamado liberalismo clássico.

Tal noção é – como você pode imaginar – a mais polêmica e problemática não
só na teoria de Locke, mas em toda a ideologia liberal. Você verá mais adiante
que praticamente todas as críticas ao liberalismo concentram-se justamente
nesse ponto. Locke acredita que o objetivo do Estado restrinja-se a garantir a
convivência dos homens, julgando-os mediante leis civis devidamente criadas.
Para Locke, a economia independe do Estado.

A história mostra-nos, no entanto, que a economia é parte vital da sociedade


e está intimamente ligada à política. Em uma sociedade em que o Estado é
completamente alheio a assuntos econômicos, graves problemas podem ocorrer,
entre eles concentração excessiva de renda – o que gera desigualdades sociais –
e até mesmo crises estruturais.

A recente crise econômica internacional, iniciada em setembro de 2008, nos


Estados Unidos, pode ser visto como um exemplo de problemas que podem
ocorrer em economias totalmente desregulamentadas.

85
Capítulo 3

1.3 Liberdade e divisão de poderes em Locke


Todavia a argumentação de Locke não para por aí. Uma vez que o papel do
Estado é julgar os cidadãos de acordo com as leis civis, o autor preocupa-se
em elaborar uma definição de lei que seja bastante completa. Essa definição,
mais do que se integrar aos demais elementos da teoria do Estado que Locke
vem construindo no Segundo Tratado, pretende confrontar-se diretamente com a
definição de lei dada por Hobbes.

Para Locke, “a lei, em seu significado verdadeiro, é não só a limitação mas


a direção de um agente livre e inteligente para o seu próprio interesse e não
prescreve mais do que importa no bem geral dos que estão sob essa lei.”
(LOCKE, 1988, p.56).

Perceba que a lei, segundo essa definição, é algo emancipador, e não algo que
restringe e aprisiona; algo que limita a liberdade. Locke, a propósito, faz questão
de enfatizar que “apesar do possível equívoco, o objetivo da lei não consiste em
abolir ou restringir, mas em preservar e ampliar a liberdade.” (LOCKE, 1988, p.57).
Outra insistência do autor diz respeito à distinção entre licença e liberdade :

•• Licença é a liberdade entendida erroneamente como a capacidade


de “qualquer um fazer o que bem lhe apraz”.
•• A liberdade verdadeira é a liberdade “de dispor e ordenar, conforme
lhe apraz, a própria pessoa, as ações, as posses e toda a sua
propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais vive, sem ficar
sujeito à vontade arbitrária de outrem.” (LOCKE, 1988, p. 57).
Observe que o conceito de licença apresentado por Locke é muito semelhante
à liberdade definida por Hobbes, isto é, algo perigoso, que deve ser contido
pela lei. Aí, obviamente, reside outra crítica discreta ao pensador absolutista. Na
concepção de Locke, a liberdade, por outro lado, não é contida pela lei, mas sim
amparada por ela.

Os indivíduos, quando instituem a sociedade civil, pretendem garantir sua


liberdade, e não privá-la dela. Essa perspectiva de pensamento certamente
soou como música para os ingleses, cansados de séculos de arbitrariedades e
privações. A sociedade civil surge, então, quando “qualquer número de homens,
no estado de natureza, entra em sociedade para constituir um povo, um corpo
político, sob um governo supremo”, que recebe deles “a autoridade para resolver
todas as controvérsias”. (LOCKE, 1988, p. 67).

86
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Mas o que é necessário para que um grupo de indivíduos ingresse em uma


sociedade civil?

Locke defende que a constituição legítima de uma comunidade política pressupõe


o consentimento de cada cidadão pretendente, um consentimento que os
indivíduos nascidos sob um governo dão “tacitamente” (LOCKE, 1988, p. 80) ou
“expressamente”, cada um por si, quando atingem a maioridade. (LOCKE, 1988, p.79).

Esse consentimento, unânime, é necessário especialmente para que uma


sociedade civil seja fundada. No entanto, para que ela funcione, para que ela
se mantenha e progrida, não é necessário que todas as tomadas de decisões
políticas tenham um consentimento unânime, mas apenas um consentimento da
maioria. Portanto, Locke distingue dois tipos de consentimento:

•• o consentimento unânime, necessário para a fundação de uma


sociedade civil;
•• o consentimento da maioria, necessário para ratificar as medidas
tomadas pelo governo.
Assim como Maquiavel, Locke também retoma a tradicional distinção entre
as formas puras de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Ele o faz,
quando pretende estabelecer uma divisão de poderes no governo civil. No
entendimento de Locke, o governo civil deve ser constituído de:

•• um poder legislativo, que é responsável por elaborar as leis;


•• um poder executivo, ao qual cabe aplicar a lei;
•• um poder federativo, que seria responsável pela gestão da
segurança e pelas relações exteriores.
Observe, no entanto, que Locke não distingue um poder judiciário, pois entende
que a sanção jurídica das infrações também é uma maneira de aplicar a lei, e, por
isso, corresponde ao poder executivo.

Interessante nessa divisão de poderes defendida por Locke é o grau de


importância que o autor atribui ao legislativo e ao executivo.

Para Locke, apenas o legislativo é soberano. O executivo é, por ele, considerado


“príncipe”, mas não possui soberania. Isso significa que o executivo deve estar
sempre à mercê do legislativo, que visa garantir a liberdade dos indivíduos.
Porém, se o legislativo impuser uma lei que não seja razoável ou não possa
orientar a sociedade com segurança, o executivo terá à sua disposição uma
alternativa: a prerrogativa.

87
Capítulo 3

Nesse caso, com relação ao executivo, “tudo quanto se fizer manifestadamente


para o bem do povo e para o estabelecimento do governo sobre bases
verdadeiras é e sempre será prerrogativa justa.” (LOCKE, 1988, p. 98). É
importante compreender que esta prerrogativa também vale para abusos do
executivo, pois, assim como o legislativo, o executivo está sujeito a falhas e
incorreções. E, tendo em conta que o executivo representa expressamente o
poder coercitivo do Estado, ou seja, o poder de fazer uso da força, a possibilidade
de falha ou abuso torna-se ainda mais real.

E, caso haja uma falha no executivo, a quem recorrer? A


Grotius Hugo
Grotius (1583-1645)
partir dessas reflexões, Locke, divergindo de pensadores
é tido como um como Grotius, sugere que há a possibilidade de resistência
dos pensadores dos cidadãos frente ao soberano. Para Locke, numa situação
significativos no que
de revolta do povo, não há nenhum juiz na terra para resolver
concerne à discussão
sobre lei natural. A o problema, e a alternativa do povo não pode ser outra senão
ele atribui-se o início destituir a sociedade civil através de uma rebelião.
da discussão de lei
natural pós-doutrina Ao afirmar isso, Locke certamente admite que mentes pouco
escolástica. razoáveis possam encontrar em qualquer situação polêmica
um motivo para rebelião. Por isso, estabelece seis condições
para que haja um motivo real de rebelião. Analise.

1. O abuso deve ser evidente e trazer consequências.


2. Estas consequências devem ser graves.
3. Para que sejam graves, devem afetar a maioria do povo.
4. Esta maioria deve tomar consciência do abuso.
5. Consciente do abuso, a maioria chega ao ponto de não suportá-lo mais.
6. Ela decide, então, que é necessário buscar um remédio para o
abuso através da revolta.
Fazendo um balanço da teoria de John Locke, podemos concluir que, em sua
perspectiva, o Estado é apenas um instrumento à mão do povo, para que este
possa garantir seus direitos naturais. Caso a violência transforme o Estado em um
estado de guerra, o povo tem absoluta razão para abandoná-lo e voltar ao estado
de natureza, ou buscar reconstituir a sociedade civil. Na perspectiva de Locke,
os indivíduos, ao constituírem sociedade e submeterem-se a uma autoridade
comum, não perdem a liberdade. Ao contrário: é apenas sob o império das leis
que a liberdade se dá.

Por fim, algo importante a se frisar diz respeito à maneira como Locke combina
elementos republicanos e liberais em sua teoria. Como interpreta Pinzani (2009),
Locke mistura elementos genuinamente liberais (o individualismo metodológico,

88
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

o direito de propriedade, o direito de acumular riquezas, a limitação do poder


soberano, etc.) com elementos republicanos (o império das leis, a ideia de que
só na sociedade política há verdadeira liberdade), demonstrando como é difícil
operar distinções teóricas rígidas entre as duas tradições de pensamento.

O fato é que Locke soube tão bem aproveitar seu momento histórico, dialogando
com a tradição e elaborando justificativas precisas para os anseios do liberalismo
nascente, que o sucesso de sua teoria tornou a corrente do pensamento liberal
dominante até os dias de hoje e deixou o republicanismo em segundo plano no
debate político.

Seção 2
Rousseau: a vontade geral como fonte das leis
Figura 3.3 - Monumento a Jean-Jacques Nesta seção, você refletirá sobre o
Rousseau, de François Masson Estado na perspectiva de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), pensador
que marcou a história francesa,
principalmente no que concerne à
filosofia política. Rousseau sugere que os
seres humanos teriam liberdade enquanto
estivessem no estado de natureza.
Nesse estado, os homens seriam
originalmente bons, porém, à medida
que se organizaram em sociedade,
escravizaram-se, tornando-se desiguais.

Segundo este pensador político, tendo


em vista que já não existe a liberdade
presente no estado de natureza, e
sendo impossível retornar a tal estado,
ainda haveria uma perspectiva de
liberdade: a liberdade civil. Por isso,
Rousseau discorre sobre a necessidade
Fonte: Rowland (2006).
de igualdade entre os cidadãos, sobre
a possibilidade de que os membros
da sociedade possam elaborar as leis a que terão de obedecer, legitimando-as
assim. Nesse raciocínio, Rousseau chega a afirmar que somente a “vontade
geral” pode ser entendida como fonte de todas as leis e, inclusive, da moral. Isso,
entretanto, você verá com mais detalhes nas seções que seguem.

89
Capítulo 3

2.1 O indivíduo em busca da felicidade


O pensamento de Rousseau, que levou uma vida errante e foi uma figura
bastante controversa, oscilou dramaticamente não apenas entre liberalismo,
republicanismo e radicalismo democrático, mas, principalmente, entre utopia e
realidade. Suas ideias foram tão inspiradoras quanto perigosas, pois incitaram
os ânimos de toda uma geração a conflitos sangrentos em nome da liberdade, o
que fez de Rousseau um dos mais polêmicos autores políticos da história, alvo
de inúmeras críticas. Esta discussão, porém, vai além de nossas pretensões com
este livro. Concentremo-nos em sua obra.

Nascido em Genebra, cidade suíça de forte tradição democrática, Rousseau,


além de teórico político, foi também músico e escritor, tendo destacado-se como
um dos protagonistas do Iluminismo francês e um dos principais precursores do
Romantismo. Sua obra, além da Filosofia Política, tem grande repercussão na
Educação, na Literatura e na Música.

A produção de Rousseau foi vasta, entretanto podemos destacar os seguintes


trabalhos: o Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750, Emílio, de 1762, o
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
de 1753, e Contrato social, de 1762. Estas duas últimas proveem a base de toda
a discussão que faremos nesta seção. Para começar, portanto, é indispensável
apontar o elemento central não só da teoria política, mas de todo o pensamento
de Rousseau: o homem.

O homem está no centro de qualquer reflexão feita por Rousseau. Mesmo quando
fala em sacrificar os desejos pessoais em favor da comunidade, ele visa o bem-estar
do ser humano, certo de que os homens só podem chegar à felicidade como
membros de uma comunidade, apesar de todos os inconvenientes que isso lhes traz.

Da preocupação com o bem-estar pessoal decorre o principal problema presente


em sua obra: qual caminho deve ser percorrido pelo homem para chegar à
felicidade? Essa pergunta, ao mesmo tempo ingênua e radical, é o ponto de
partida de Rousseau em direção à sua teoria do Estado. Entretanto, é necessário
fazer uma ressalva: seu interesse é pela verdadeira felicidade, e não pela
satisfação fugaz que se obtém com fama, riqueza ou poder. Isso fica claro pelo
alto valor que Rousseau dá à educação, à virtude e ao patriotismo. Ele sugere
que, em estado de natureza, a felicidade perpassa pela satisfação de desejos
simples, como alimentação, abrigo e desejos sexuais.

A verdadeira felicidade consiste, primariamente, no


Autarquia Governo
de si mesmo simples gozo da existência. Esse sentimento caracteriza
(autogoverno). a vida dos homens em seu estado original: o estado de
perfeita autarquia.

90
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Avaliando a totalidade da obra de Rousseau, podemos afirmar que, para ele,


haveria quatro possibilidades para chegar-se à felicidade. Analise.

1. Como ser humano, no estado original.


2. Como cidadão de uma república bem-ordenada.
3. Como Emílio, personagem de sua obra homônima.
4. Como Jean-Jacques, personagem de Os devaneios do caminhante
solitário, sua última obra, escrita às vésperas de sua morte.
A primeira possibilidade seria praticamente inacessível a nós, nascidos no mundo
civilizado, pois, uma vez que deixamos o estado original, jamais poderemos voltar
a ele. Quanto à terceira possibilidade, descrita no livro Emílio, o ser humano,
embora seja obrigado a viver em sociedade, não chega a ser um cidadão, pois
constrói a sua personalidade fora do Estado; trata-se de “um selvagem feito
para morar nas cidades.” (ROUSSEAU, 1995, p. 265). A quarta possibilidade
corresponde ao ser humano decepcionado com a sociedade, que renunciou a ela
para viver em completo isolamento.

Tanto Emílio quanto Jean-Jacques têm algo do ser humano no estado original –
que deve ser tomado como referência ideal para encontrar a felicidade. Todavia
Emílio, embora busque preservar sua inocência sadia, tem de se adequar à
civilização para sobreviver. Já Jean-Jacques, embora se aproxime desse ideal em
seu isolamento, carrega uma profunda decepção com o mundo, o que o impede
de ser feliz. A segunda possibilidade, a vida enquanto cidadão, a que mais nos
interessa aqui, é talvez a mais difícil de realizar.

Rousseau, como já dissemos, também é visto como um autor contratualista, ao


lado de Hobbes e Locke, no entanto suas concepções de estado de natureza
e sociedade civil diferem substancialmente das noções defendidas por seus
predecessores ingleses. O interesse de Rousseau pela felicidade é bastante
significativo para entendermos essa distinção. Enquanto
Eudaimonista
Eudaimonia significa
a visão mecanicista de Hobbes apresentava-lhe um
felicidade em grego. homem ideal essencialmente hedonista, o homem ideal
Portanto, enquanto o de Rousseau é eudaimonista. Isso implica o desafio
hedonista se realiza no
que Rousseau se coloca, o qual, como afirmaram muitos
prazer, o eudaimonista
se realiza na felicidade. críticos seus, acusando-o de ingênuo, não é voltar ao
estado de natureza. Sendo assim:

O desafio de Rousseau é reparar a injustiça da sociedade atual e conceber


uma ordem social que proporcione aos homens um estado de felicidade, se
não igual, semelhante àquele existente no estado de natureza.

91
Capítulo 3

Sobre o estado de natureza, Rousseau, em crítica a Hobbes, sugere que não


haveria desejos e medos. Segundo ele, essas características estariam presentes
apenas em estágios complexos de associação, ao passo que considera esta
uma etapa em que nem a linguagem é presente. O próprio medo da morte, tão
significativo no estado de natureza para Hobbes, é desconsiderado por Rousseau
ao tratar do estado de natureza. Contudo, mesmo nessa etapa, menciona que a
piedade já se faria presente a partir do reconhecimento do outro. Em suma:

Rousseau considera o ser humano originalmente bom, porém, com o


desenvolvimento de novos desejos, da comparação com o outro e do desejo de
superá-lo, as perspectivas caminham em direção à corrupção do modo de vida.

Uma distinção básica entre o homem no estado de natureza – que vive em


autarquia, ou seja, que se governa a si mesmo – para o homem que vive em
sociedade – isto é, o homem que perdeu sua autarquia – está no sentimento que
rege um e outro: o primeiro possui amor de si mesmo, enquanto que o segundo
possui o que se costuma chamar de amor-próprio. Portanto:

1. O amor de si mesmo é “um sentimento natural que leva todo


animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido
pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a
virtude.” (ROUSSEAU, 2000, p. 146).
2. O amor-próprio está ligado àquele “desejo universal de reputação,
de honrarias e de preferências que nos devora, que excita e
multiplica as paixões.” (ROUSSEAU, 2000, p. 111).
O amor de si mesmo, portanto, está ligado à conservação, enquanto que o amor-
próprio está ligado à vaidade. O que nos levaria a perder o primeiro sentimento
e nos deixar tomar pelo segundo seria uma característica inerente ao próprio ser
humano: sua tendência à perfeição (a perfectibilidade), que é “a fonte de todos
os males do homem.” (ROUSSEAU, 2000, p. 65).

Em busca da perfeição, os homens deixam de se preocupar com o simples gozo


da existência e passam a sofisticar-se. Para Rousseau, uma vez tendo saído do
estado de natureza, os homens poderiam tomar dois possíveis rumos: a felicidade
ou a miséria humana.

Obviamente, ele acredita que a humanidade tomou o rumo da miséria. Propensos


à perfeição, os homens procuraram superar todo tipo de obstáculo que
encontraram em sua evolução e, assim, chegaram à invenção da linguagem, da
família e das primeiras comodidades, as quais rapidamente se degeneraram em
necessidades. O amor-próprio, aliás, bem como a piedade, surge exatamente
com a convivência: em contato com seus semelhantes por muito tempo, os
homens começaram a se comparar e deram, assim, “o primeiro passo tanto para

92
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

a desigualdade quanto para o vício.” (ROUSSEAU, 2000, p. 92). Ciente de que


seria impossível eliminar o desejo de reputação, decorrente do amor-próprio,
Rousseau visa convertê-lo em amor à pátria, de modo a proporcionar ao indivíduo
uma possibilidade saudável de realizar a felicidade.

2.2 A liberdade em Rousseau


Para Rousseau, o homem vive em uma condição de divisão interna, entre a razão e
os sentidos. Por conta disso, somente a partir do momento em que opta por agir na
busca da vontade geral de sua comunidade, é que o homem age livremente.

Em Rousseau, é possível falar da possibilidade de obrigar o homem a ser


livre, a partir da submissão à vontade geral.

Portanto, Rousseau não pretende anular as paixões humanas, mas, antes,


tornar os homens senhores de suas paixões, a fim de direcioná-las ao bem da
comunidade. Isso está diretamente relacionado ao conceito de liberdade, de tal
modo que o autor assume que:

Os cidadãos só se deixam oprimir quando, levados por uma


ambição cega e olhando mais abaixo do que acima de si
mesmos, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a
independência e quando consentem em carregar grilhões para
por sua vez poder aplicá-los. (ROUSSEAU, 2000, p. 110).

Nessa afirmação é possível ver de forma mais contundente as inclinações


republicanas de Rousseau. Suas ideias apresentam a liberdade como uma ausência
de dominação, e não apenas como uma ausência de impedimentos externos.

Essa distinção conceitual entre ‘liberdade como ausência de dominação’ e


‘liberdade como ausência de impedimentos externos’ é um dos pontos-chave
que separam o republicanismo do liberalismo. Os republicanos entendem que o
simples direito de ir e vir, ou seja, a simples ausência de impedimentos externos,
não basta para garantir a liberdade aos indivíduos, se eles não se sentirem livres
para ir e vir. Contudo, até hoje vigora em todas as constituições modernas a ideia
liberal de que basta uma pessoa estar livre de impedimentos para ser considerada
livre, não importa se alguém exerça algum tipo de dominação psicológica sobre
ela. O que você pensa a respeito? Um empregador, por ilustração, mesmo com
as atuais leis trabalhistas, não pode exercer alguma dominação sobre seus
empregados? Os empregados são completamente livres nessa condição?

Retomando nossa linha de raciocínio, é necessário observar que Rousseau

93
Capítulo 3

não vê apenas malefícios trazidos pelo amor-próprio, mas, também, alguns


benefícios. O amor-próprio fez surgir a identidade individual e, com isso, surge
sua identidade moral: a consciência, como amor pela ordem. Junto da moralidade
e da consciência, nasce também outro fruto da modernidade: o descobrimento
da intimidade, “esta esfera secreta, escondida dos demais, na qual cada um
pode encontrar refúgio e alívio das loucuras da forçosa vida em sociedade.”
(ROUSSEAU, 2000, p. 92). São essas qualidades da vida moderna que permitem a
Rousseau vislumbrar uma sociedade civil que contenha compaixão e solidariedade,
isto é, uma sociedade civil que conduza os indivíduos ao patriotismo.

Como não poderia ser diferente, Rousseau – que vivenciou o auge do liberalismo
clássico – chega a discutir, em seu discurso sobre a desigualdade entre os
homens, a propriedade, que, segundo ele, é a causa de toda desigualdade. Para
Rousseau, o desejo de superioridade decorrente do amor-próprio gera sempre
novos desejos, e, uma hora, chega-se ao ponto em que não é possível satisfazer
o próprio desejo sozinho. Com isso, surge a divisão do trabalho. Entre as
empresas humanas, a que mais colaborou para o surgimento da propriedade foi a
agricultura, a qual propiciou a posse fundiária.

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo


cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou
pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos
crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao
gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo
o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de
ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os
frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’.
(ROUSSEAU, 2000, p. 87).

Entretanto, assim como o amor-próprio, a propriedade também trouxe algum


benefício – e aqui se expressa a face liberal de Rousseau. Talvez o mais notável
seja o surgimento da justiça, que pretende “dar a cada um o que é seu.”
(ROUSSEAU, 2000, p. 95). Conforme a argumentação de Locke, Rousseau
admite que a propriedade do solo baseia-se no trabalho. Porém ele acrescenta
que os seres humanos não são e nunca foram iguais em suas faculdades
mentais. Naturalmente, com o tempo, os mais espertos encontraram meios de se
apropriarem de mais terras que os outros, e, mais do que isso, encontraram meios
de se apropriarem do outro, dando origem à escravidão. Com a desigualdade
acentuada a este ponto, os conflitos tornaram-se inevitáveis, e aí residiria o real
motivo que levou os mais abastados a quererem criar o Estado.

Para Rousseau, o Estado surge como uma forma (mascarada de justiça) de


proteger os mais ricos dos males advindos dos conflitos.

94
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Figura 3.4 - Charge de Angeli sobre a questão da propriedade privada

Fonte: Angeli (2005).

Já comentamos, por mais de uma vez, que não foram poucas as críticas feitas
à eventual ingenuidade da argumentação de Rousseau. Muitas delas são
infundadas, porém, neste ponto especificamente, cabe endossá-las. Como
entende Pinzani (2009, p. 107), há de fato ingenuidade nas categorias econômicas
e sociológicas de Rousseau:

Ele parte do pressuposto de que a quantidade de bens numa


sociedade permaneça constante e acha, portanto, que a questão
da desigualdade econômica pode ser resolvida simplesmente
através de uma redistribuição desses bens; fala genericamente em
“ricos” e “pobres”, como se não houvesse outros grupos sociais;
exalta uma autarquia extremamente difícil de ser realizada e
condena qualquer forma de comércio e de contato entre os países.

Todavia, por mais ingenuidade que possa haver em seu pensamento, sua
concepção de sociedade civil não deixa de ser interessante e inspiradora. As
modernas democracias, a propósito, devem em muito às ideias de Rousseau.

As ideias que discutimos até aqui estão contidas basicamente no Discurso sobre
a origem da desigualdade entre os homens, entretanto sua teoria do Estado
está expressamente formulada no Contrato social, obra sobre a qual nos iremos
deter daqui em diante. Você verá, por exemplo, que Rousseau atribui um valor ao
exercício da cidadania, como ninguém fizera antes.

95
Capítulo 3

O tema principal do Contrato social é a legitimidade das instituições políticas, que


mantêm “a ferros” o homem, que “nasce livre”. (ROUSSEAU, 1999, p. 53).

A existência de uma ordem social é algo que Rousseau admite ser superior ao
indivíduo, algo que existe mesmo antes que a humanidade pudesse manifestar
consciência, e que, por isso, constitui uma convenção
Axioma Um axioma
é uma premissa
incontestável – um axioma de sua teoria. A conclusão de
imediatamente evidente que a ordem social seja uma convenção universal passa
que se admite como por uma reflexão histórica: Rousseau considera as diversas
universalmente
formas que a ordem social assumiu ao longo dos tempos,
verdadeira sem
exigência de incluindo a família, o governo do mais forte e a escravidão.
demonstração. Mas conclui que nenhuma delas pode ser considerada
legítima politicamente, a não ser o pacto social.

A partir de tal premissa e sob uma concepção republicana de liberdade,


Rousseau levanta o seguinte questionamento prático, que corresponde ao
problema que o motiva a escrever o Contrato social: “como encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado
com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece,
contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes?” (ibid., p. 69).
A resposta é óbvia e remete ao título da obra: através do contrato social.

O contrato social consiste na “alienação total de cada associado, com


todos os seus direitos, à comunidade toda.” O associado, ao alienar-se à
comunidade, transfere a ela todos os seus bens, inclusive o maior deles:
sua própria vida. É por isso que a vida dos cidadãos é tida como
responsabilidade do Estado. Surge assim “um corpo moral e coletivo,
composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que,
por este mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade.” (ROUSSEAU, 1999, p. 71).

Poderes Rousseau,
Dessa forma, o ser humano, ao contar apenas com suas
após analisar algumas próprias forças (poderes individuais), associa-se com
teorias sobre a outros, a fim de unir suas forças em prol de uma defesa
legitimidade do poder,
mútua: tanto da “pessoa” dos associados quanto de seus
sugere que o mesmo
é legitimado por bens. Nesse sentido, busca consultar a razão antes de
convenção humana, impulsos individuais, uma vez que interesses coletivos
desconsiderando devem sobrepor-se a desejos individuais. O filósofo
a legitimidade por
reconhece que os desejos individuais não desaparecem
imposição divina ou
perspectivas naturais. do associado, mas salienta que, a partir desse ponto, o
associado escolhe quais desejos satisfazer; e virtuoso é o
que opta pela vontade geral.

96
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Rousseau, portanto, retoma a metáfora do corpo político, antes usada por


Hobbes. No entanto há uma diferença importante entre uma concepção e outra:

O corpo político, para Rousseau, não é formado apenas por meros súditos, mas
sim por sujeitos que são, ao mesmo tempo, autores e destinatários das leis.

Portanto observe que, para Rousseau, cada membro do corpo político, isto
é, cada indivíduo da comunidade, é soberano no momento em que toma
as decisões em assembleia; e é súdito no momento que cumpre o que foi
determinado pela assembleia soberana.

2.3 A vontade geral


A esta altura, Rousseau enfatiza a importância da assembleia popular enquanto
instituição política. Ou seja, o momento em que os cidadãos se reúnem para
tomar as decisões que importam à vida comum – a assembleia – representa um
elemento essencial de seu modelo de sociedade civil. Ao enfatizar a assembleia
enquanto instituição, Rousseau salienta que as decisões tomadas por ela devem
seguir a vontade geral, e não, necessariamente, a vontade de todos.

A vontade geral é a vontade do corpo político, que visa sempre e necessariamente


o bem comum. A vontade de todos representa simplesmente uma vontade
unânime, ou seja, é aquela vontade expressa no caso em que todos os indivíduos
de uma assembleia demonstram a mesma intenção.

A vontade geral está ligada àquele bom-senso universal, supostamente presente


no inconsciente coletivo: todos sabem, por exemplo, que a vida deve ser
preservada, que as crianças têm de ser protegidas, etc. A vontade de todos, por
sua vez, pode eventualmente ser contrária à vontade geral: a unanimidade de uma
assembleia pode decidir matar um indivíduo inocente, embora tal cometimento vá
contra a vontade geral.

Essa distinção, embora se tenha difundido amplamente entre os pensadores


políticos e entre os legisladores dos mais diversos países democráticos, é
absolutamente polêmica e contestável. Na prática, nada garante que a vontade
geral seja atendida e que a vontade de todos não seja uma decisão tirana, o que
configuraria uma ditadura da democracia.

Todavia, para além desta polêmica, Rousseau confere papéis bastante


específicos à assembleia no que diz respeito à divisão de poderes. Retomando
a metáfora do corpo, nosso autor lembra que, assim como em nós há um órgão

97
Capítulo 3

que comanda (o cérebro) e outros que executam os comandos (os músculos),


também deve haver similares no corpo político. Nesse ponto, embora empreste
a metáfora hobbesiana, Rousseau retoma algumas noções autenticamente
republicanas já propostas por Maquiavel. Confira.

1. A assembleia, que representa o poder legislativo, uma vez que


cumpriu o seu papel, deve ausentar-se, para que não haja
conflito de interesses. Conforme exige o princípio do império das
leis, “o que governa as leis não deve também governar os homens.”
(ROUSSEAU, 1999, p.110). O executivo, então, seria composto por
magistrados, que representariam o governo, ou o príncipe – termo
também empregado por este autor.
2. Um ponto que não pode deixar de ser frisado diz respeito ao
exercício do poder legislativo. Para Rousseau, é inadmissível que
um cidadão, ou um conjunto de cidadãos, seja representado por
outro em uma assembleia. Para que a liberdade e a vida política
realizem-se de fato, é imprescindível que cada cidadão se faça
presente no momento da discussão das leis. Referindo-se às
eleições para o parlamento inglês, que caracterizavam o sistema
político da Inglaterra em sua época, Rousseau chega a afirmar que
o povo inglês só é livre e soberano durante as eleições, mas volta à
escravidão depois delas, “já que com elas entrega a soberania aos
deputados.” (ROUSSEAU, 1999, p. 187).
Segundo a perspectiva de Rousseau, portanto, nós brasileiros, que vivemos
em uma democracia representativa, viveríamos em escravidão, à mercê da
arbitrariedade de nossos representantes no legislativo (vereadores, deputados
e senadores). No entanto, seria possível levar toda a população brasileira a uma
assembleia, por exemplo?

3. A resposta a essa pergunta traz outra relevante informação a


respeito da teoria política de Rousseau: seu modelo de Estado
é válido apenas para pequenas democracias participativas,
restritas aos limites geográficos de uma cidade – como a sua
cidade natal, Genebra, por exemplo. O governo de um país
de grandes dimensões geográficas não pode pretender ser
democrático à maneira como Rousseau imaginou, senão através de
uma democracia representativa.

98
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

4. Por fim, Rousseau – homem espirituoso que foi – retoma outra


noção maquiaveliana: a ideia de religião civil. O poder legislador,
representado pela assembleia, além de decidir qual é a forma de
governo mais adequada ao Estado, também deve fazer com que o
povo esteja preparado para reconhecer e aceitar a
Vontade geral Perceba
que aqui se manifesta vontade geral – que ela manifestará. Ademais, deve haver
mais uma vez a uma maneira de motivar os cidadãos a obedecer às leis.
problemática distinção Em ambos os casos, a religião servirá como instrumentum
entre vontade geral
regni (instrumento do governo), como entendia Maquiavel.
e vontade de todos,
pois, se, idealmente, Rousseau, a propósito, entende a religião como uma
todos participam da superstição que coloca em seus seguidores o medo de
assembleia (o poder serem punidos, caso não obedeçam aos seus preceitos.
legislador), é curioso
que o poder legislador
No entanto, a religião que deve estar associada ao Estado
tenha que convencer a não pode ser contraditória – como teria sido, por exemplo,
si mesmo. o catolicismo de sua época, que ultrapassava os limites de
cada povo e propunha “duas legislações, dois chefes,
duas pátrias discordantes”. (ROUSSEAU, 1999, p. 237).
A religião associada ao Estado, a religião civil, é um tipo de religião que
inspira nos cidadãos o amor pelos seus deveres. Trata-se de uma “profissão
de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar.” Tal religião deve
manifestar um sentimento de pertencimento à comunidade, sem o qual “é
impossível ser bom cidadão ou súdito fiel.” (ROUSSEAU, 1999, p. 241).

Provavelmente, ao ler esta definição de religião civil, você deve tê-la associado
a certas determinações feitas pelos Estados modernos em seus currículos
escolares, a fim de garantir a formação de hábitos civis adequados.

Alguns dos principais responsáveis pelo período do terror da Revolução Francesa,


por exemplo, os jacobinos Maximilien Robespierre e Louis de Saint-Just,
instituiriam o Culto da Razão diretamente inspirados por Rousseau, buscando
empregar seu ideal de religião civil. O Culto da Razão era uma doutrina religiosa
que foi instituída pelos jacobinos como forma de propor a razão como base para
a prática civil.

99
Capítulo 3

A ideia de uma doutrina de educação moral e cívica, que se fortaleceu em muitos


países, especialmente em momentos de nacionalismo exacerbado, deve muito à
proposta de religião civil, defendida não só por Rousseau, mas também por
Maquiavel, por exemplo.

Durante o período de ditadura militar


Figura 3.5 - Cartilha de Educação Moral e
Cívica, distribuída durante o governo do no Brasil (1964-1985), os currículos
ditador Franco, em Portugal
de educação básica também incluíam
a disciplina Educação Moral e Cívica,
que visava doutrinar os alunos para o
exercício da cidadania. Praticamente
todos os governos já impuseram
disciplinas semelhantes em seus
currículos oficiais.

Por essas e outras, podemos entender


por que a maioria dos intérpretes de
Rousseau afirma que raramente o
pensamento de um filósofo foi tão mal
entendido e suscitou interpretações
tão opostas quanto o seu. Afirmamos
na abertura desta seção que a obra de
Rousseau oscilou entre utopia e realismo,
entre ingenuidade e radicalismo. Talvez
possamos dizer que sua face utópica
prevaleceu, e aí reside uma verdade
inconveniente: toda utopia tem um lado
Fonte: Esteves (2011).
que eleva e um lado sinistro.

Seção 3
Montesquieu e o constitucionalismo
Se, no século XVII, Locke reformulou os elementos do pensamento republicano
a fim de dar as bases para o liberalismo, no século seguinte surgiria, pela
combinação de elementos republicanos e liberais, uma nova e perene corrente de
pensamento político: o constitucionalismo. Seu maior expoente certamente foi o
escritor e político francês Charles-Louis de Secondat, mais conhecido por Charles
de Montesquieu (1689-1755).

100
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Montesquieu foi um influente barão na França do século XVIII, tendo governado


La Brède (uma pequena cidade ao sul de Bordeaux, capital da província da
Gironda) e participado do parlamento de Bordeaux. A alcunha Montesquieu deve-
se ao nome do castelo onde viveu.

Figura 3.6 - Castelo de Montesquieu

Fonte: Carole (2007).

Montesquieu pertencia a uma família de aristocratas e cresceu habituado à vida


política. Aos onze anos, ingressou em um colégio mantido por padres oratorianos
– o Colégio Juilly, de Bordeaux – e lá recebeu sua formação iluminista. Já adulto,
passou a estudar em Paris, no Colégio de Harcourt, onde adquiriu os sólidos
conhecimentos humanísticos e jurídicos que o habilitariam a participar do
parlamento de Bordeaux. Entretanto, em Paris, Montesquieu também frequentou
os círculos da boemia literária, que lhe despertariam a vocação de escritor.

Século XVIII francês


Sua primeira obra importante não foi científica ou
A França iniciou o filosófica, mas literária: o romance Cartas Persas, de 1721.
século XVIII reinada Nessa obra de ficção, todavia, Montesquieu já expõe sua
pelo despótico Luís
veia política. O romance, como era típico dos escritores
XIV, o Rei Sol, que foi
sucedido por Filipe de moralistas da época, pretendia mostrar os absurdos e
Orléans, Luís XV e Luísvícios da sua própria sociedade. Para isso, Montesquieu
XVI respectivamente. escolheu como alvo de sua crítica o despotismo
decadente que marcou o século XVIII francês. Esse
repúdio pelo despotismo seria sua principal motivação para escrever sua obra
prima: O Espírito das Leis, de 1748.

101
Capítulo 3

A intenção de Montesquieu com essa obra é encontrar, como sugere o título, o


espírito que anima os ordenamentos jurídicos. Tal intenção está expressa em sua
principal tese: as leis são reflexo da sociedade e dos seus costumes. Contudo,
embora a obra tenha a pretensão de comprovar
esta tese, seu autor, como dissemos
Figura 3.7 - Folha de rosto da primeira
edição de O Espírito das Leis anteriormente, tem com ela uma segunda
intenção: apresentar o regime despótico (que
vigorava em seu país) como a pior forma de
governo possível. Exatamente por isso,
Montesquieu, logo no princípio do livro, dedica-
se a comentar as formas de governo,
começando pelo governo despótico.

Montesquieu discute inicialmente três espécies


de governo: o despótico, o republicano
e o monárquico. O governo despótico é
aquele Estado no qual um senhor absoluto
domina sozinho sobre os súditos de maneira
incontestada. O governo de Osman I, fundador
do Império Otomano, é citado com um exemplo
de governo despótico, mas é consenso entre a
crítica que esta espécie de governo, da maneira
como Montesquieu a define, jamais existiu.
O despotismo representa antes um tipo de
Fonte: Praefcke (2006).
conceito limite em seu pensamento, ou seja, a
forma extrema do pior governo possível, que
serve de referência para as demais.

A segunda espécie de governo tratada é o governo republicano. Diferente


da tradição, Montesquieu considera que tanto uma democracia quanto uma
aristocracia pode ser entendida como república. Em uma república, o povo (em
sua totalidade ou em parte) é soberano e legislador e pode exercer seu governo
diretamente (democracia) ou através de intermediários (aristocracia).

A terceira espécie de governo que Montesquieu aborda inicialmente é a


monarquia; ou, mais especificamente, a monarquia gótica, tal como o autor define
o tipo de governo presente na França, antes de sua fase absolutista. Em uma
monarquia gótica, portanto, o monarca governa não de forma absoluta, mas
com base em leis fundamentais (às quais o próprio rei está sujeito) e com o auxílio
de poderes intermediários: a nobreza, o clero e os magistrados.

102
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Montesquieu entende que cada uma dessas três espécies de governo possui um
princípio ou, em suas palavras, uma “mola do governo”. Da mesma forma que
Hobbes e assim como todos os principais pensadores políticos modernos,
Montesquieu refere-se às paixões humanas, que motivam os
Modernos Buscando
conter as intempéries governos. A paixão, ou a mola, que impulsionaria a
das paixões humanas, democracia (uma das possibilidades de governo republicano),
todos os principais é a virtude cívica. A virtude cívica seria sinônima de um amor
pensadores políticos
pela república ou pela pátria, isto é, um desejo de ver a nação
modernos tiveram a
racionalidade como próspera, saudável politicamente, o que acarreta a pureza dos
obsessão. costumes. Em última instância, a virtude cívica pode ser
entendida como um amor pela igualdade.

A mola do governo aristocrático (a outra possibilidade da república) é a


moderação. O corpo de aristocratas deve ter equilíbrio no exercício do poder,
ou seja, deve controlar-se. Uma aristocracia deve ser marcada pela polidez nas
atitudes, nas tomadas de decisão, nas reflexões e posturas.

Um monarca, por sua vez, é impulsionado pela honra. Tal como entende
Montesquieu, um governo monárquico pressupõe “preeminências, categorias e
até mesmo nobreza de origem” (1973, p. 53). Um monarca, levado pelas vaidades
da nobreza, jamais põe em jogo a sua honra, e isso – desde que ele tenha virtude
– o levará a querer garantir a saúde de seu Estado.

Medo O medo, Por fim, a mola do despotismo é o medo: em um regime


por exemplo, é um
despótico, todos respeitam o senhor, porque todos temem
elemento central na
teoria de Hobbes, o senhor. No despotismo, todos permanecem sob o jugo
defensor do do regime de terror do senhor. As virtudes de um déspota
absolutismo. consistem nas suas qualidades terroristas.

À altura do 11º livro do Espírito das Leis, Montesquieu vem a discutir uma quarta
espécie de governo. Esse certamente é o mais famoso dos livros que compõem
a obra, pois é nele que Montesquieu apresenta a sua célebre teoria da separação
dos poderes. Antes, porém, a fim de amparar sua argumentação, o autor
apresenta uma definição de liberdade política:

Liberdade política é entendida como “o direito de fazer tudo o que as leis permitem”,
o que é diferente de fazer o que se bem quer. Esta liberdade incondicional, a liberdade
de agir conforme a própria vontade, sem nenhum regramento, Montesquieu chama
de independência. “A verdadeira liberdade só se dá quando existem leis que
determinam o que o cidadão pode ou não fazer.” (ibid., 155).

A apresentação de tal definição neste momento da obra é estratégica, pois, logo


em seguida, Montesquieu afirma que a única espécie de governo na qual se pode
encontrar essa liberdade não é nenhuma das três descritas anteriormente, mas
uma quarta espécie por ele chamada de monarquia constitucional.

103
Capítulo 3

A monarquia constitucional difere da gótica por estar estruturada sobre três


poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário. Essa separação dos poderes
seria fundamental para que não haja abusos de poder, que são a pior ameaça à
liberdade: “para que não se possa abusar do poder é
Judiciário
Montesquieu refere-se preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o
ao judiciário como “o poder.” (ibid., p. 56).
executivo das coisas
que dependem do Toda a genialidade existente na teoria montesquiana está
direito civil”. (ibid., 156).
contida nesta formulação: é preciso que o poder freie o
poder. Montesquieu reitera exaustivamente que, enquanto
os poderes legislativo e executivo estiverem reunidos em uma mesma pessoa,
não pode haver liberdade, e – em seus termos – “tudo estaria perdido”, se os três
poderes forem exercidos todos pelo mesmo homem (despotismo), por um restrito
grupo de homens (aristocracia) ou pelo povo (democracia).

Montesquieu compreende, portanto, que não pode haver liberdade política nem
mesmo na democracia por si só, pois, se o poder estiver totalmente nas mãos
do povo, não haverá um elemento externo que regule este poder, impedindo
eventuais abusos.

Esta ideia do equilíbrio dos poderes não é nova. A noção de separação de


poderes já estava presente em Locke, em Maquiavel e, muito antes deles, nos
principais pensadores políticos da Antiguidade Clássica, como em Platão, por
exemplo. A originalidade de Montesquieu esteve em – usando elementos da
tradicional teoria republicana das formas de governo (representada por Maquiavel)
e da teoria liberal da divisão dos poderes (representada por Locke) – criar uma
nova e mais completa formulação para tal separação. Sua empresa foi tão bem-
sucedida que o seu modelo (a divisão tripartite do poder estatal em legislativo,
executivo e judiciário) foi aplicado na maioria das modernas constituições e vigora
até hoje em dia.

Seção 4
Reflexos das ideias nos fatos
Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau representaram momentos históricos muito
significativos para a consolidação do ideal de Estado. Tais momentos sinalizaram
a transição de um modo medieval para um modo moderno de conceber e fazer
política. O ápice dessa transição seria a realização de uma sociedade civil
regida por instituições, e não mais por pessoas, com suas arbitrariedades e
idiossincrasias.

104
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Com o passar do tempo, motivada pelas revoluções culturais e econômicas


que vinham acontecendo, a civilização ocidental caminhou para uma revolução
política decisiva, que condicionaria os rumos da história até os dias de hoje. Esse
acontecimento, eminentemente moderno, resultou no surgimento do Estado
como instituição soberana.

Entretanto, as pessoas não passaram a falar em Estado e a acreditar nessa


entidade maior e impessoal do dia para a noite. Naturalmente, como qualquer
verdadeira revolução que se processa nos hábitos e no pensamento do povo, a
aceitação e a manutenção do Estado deu-se através de diversos atores e eventos-
chave, às vezes concomitantes, às vezes isolados, quase nunca ordenados, mas
sempre consoantes com aquela grave mudança ideológica que ocorria.

Nesta seção, você estudará dois dos eventos políticos mais expressivos que
aconteceram no limiar do mundo moderno, os quais foram reflexo evidente dos
debates ocasionados pelas obras de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau: a
Revolução Francesa e a Primavera dos Povos.

4.1 O fim do Antigo Regime


As ideias de Rousseau, de modo especial, caíram feito luva para os anseios
não só da aristocracia francesa, já cansada dos abusos dos déspotas que se
sucediam no governo francês havia mais de um século, mas, principalmente,
da classe que, àquela altura, chegara a um nível de emancipação suficiente
para contestar a ordem vigente: a burguesia. A Revolução Francesa, iniciada
oficialmente em 1789, trouxe o povo efetivamente para o governo, como até
então nunca tinha acontecido na história. Isso fez nascer valores políticos
perenes, que perdurariam até hoje, e não é à toa que a História elegeu como
marco do início da Idade Contemporânea o mesmo ano em que se deu o princípio
daquela revolução.

Muitos estudiosos admitem, no entanto, que a Revolução Francesa, tão


importante para a Filosofia Política, iniciou-se, na verdade, dois anos antes, em
1787, quando Luís XVI (1754-1793) decidiu convocar a Assembleia dos Notáveis
(membros da nobreza e do clero), a fim de exigir-lhes uma maior contribuição
nos impostos. A alta aristocracia francesa, que já andava descontente, revoltou-
se completamente. Nos dois anos seguintes, os “notáveis”, pedindo apoio à
burguesia, articulam uma reação que culminaria em maio 1789, com a Assembleia
dos Estados Gerais – um ato extremamente significativo, o qual não era realizado
desde 1614. A convocação dos Estados gerais para uma assembleia sinalizava
uma evidente instabilidade no Antigo Regime.

105
Capítulo 3

Mas o que foi o Antigo Regime e quais eram os Estados gerais?

Naquela época, havia pelo menos quinhentos anos, o governo francês era
dividido em três ordens ou, como eram chamados, Estados gerais: o clero
(Primeiro Estado), a nobreza (o Segundo Estado) e o
Governo francês
A França chegou a Terceiro Estado (representado pela burguesia e os
constituir o maior camponeses). Esse período da história francesa
império do período compreendido entre os séculos XIV e XVIII, justamente por
medieval e preservava
anteceder o novo regime que seria estabelecido pela
sua autoridade política
ainda no século XVIII. revolução de 1789, ficou conhecido como Antigo Regime.
Daí a importância de
uma revolução como Embora os burgueses e os camponeses tivessem um
esta, que modificou reconhecimento formal enquanto grupo social no Antigo
suas bases políticas. Regime, na prática, o Primeiro e o Segundo Estado
governavam conforme a sua vontade. Durante o governo de
Luís XIII (1601-1643), entre os anos de 1610 e 1643, a França foi palco de conflitos
entre católicos e protestantes, o que fez gerar uma grave crise em sua aristocracia.
O sucessor de Luís XIII, seu filho Luís XIV (1638-1715), soube aproveitar aquele clima
de instabilidade geral para tomar o poder e afirmar-se absoluto no trono. Tendo
relegado a aristocracia a um segundo plano, Luís XIV demonstrou-se altamente
despótico no governo, cometendo abusos das mais diversas naturezas. Sua
conduta seria repetida por seus sucessores
Figura 3.8 - “O Terceiro Estado carregando a até o governo de Luís XVI, que enfrentaria
nobreza e o clero nas costas” (1790), de autor a ira de toda a sociedade francesa,
desconhecido
exausta de qualquer despotismo.

Durante o antigo regime, a população


francesa cresceu expressivamente,
chegando a nove milhões de habitantes
– um número considerável para a época.
Ao passo que a população cresceu, a
agricultura entrou em crise por conta
de geadas que abateram a produção.
Isso resultou em uma grande escassez
de alimentos, e a população do campo
viu-se forçada a buscar emprego nas
cidades. Lá, submetendo-se a qualquer
tipo de trabalho, vivendo em condições
miseráveis, aquele contingente que
avolumou a classe de trabalhadores
urbanos foi aos poucos nutrindo um
Fonte: Minor (2007).
desejo de mudança misturado a um
sentimento de revolta.

106
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Após a Assembleia dos Notáveis, quando a revolta começou a ser articulada,


a aristocracia, ansiosa por restabelecer-se no poder, decidiu pedir apoio à
burguesia. No entanto, ela o fez apenas como forma de ganhar força nas suas
reivindicações, como forma de ter maior poder de ameaça. Sua intenção real
não era colocar a burguesia no poder, mas simplesmente colocar-se de volta
no poder. O que os aristocratas não esperavam é que a classe de trabalhadores
urbanos se engajasse tanto na revolta, a ponto de querer tomar o controle da
situação.

4.2 A Assembleia Nacional Constituinte


No dia 5 de maio 1789, quando o rei Luís XVI declarou aberta a sessão inaugural
dos Estados Gerais, deixou claro que aquela assembleia não deveria tratar de
assuntos políticos, mas apenas da reorganização da economia, com vistas
principalmente aos tributos. Contudo, evidentemente, os deputados dos três
estados estavam interessados em limitar o poder do rei. De modo especial, os
deputados do Terceiro Estado estavam interessados em reformar o sistema
tributário, a fim de tornar a distribuição dos impostos mais justa e, assim, atenuar
a situação desgraçada em que viviam os seus representados.

Já nessa sessão inaugural, os deputados do clero e da nobreza perceberam que


a burguesia não seria apenas um reforço para as suas reivindicações, mas estava
disposta a afirmar-se definitivamente no governo francês. Por isso, tentaram
conter seus ímpetos reformistas, propondo que as decisões fossem tomadas
contando os votos de cada Estado. Assim, seus interesses iriam prevalecer, pois
seriam dois votos contra um. No entanto, os deputados do Terceiro Estado
criticaram esta evidente manobra, exigindo que a votação fosse individual, pois,
somando seus votos aos do baixo clero e aos da nobreza liberal, eles teriam a
maioria e seus interesses poderiam ser atendidos.

Diante dessa situação, ao perceber que a Assembleia tinha tomado um rumo


desfavorável e que os interesses eram inconciliáveis, o rei tenta dissolver os
Estados, impedindo a entrada dos deputados nas reuniões. Os representantes
burgueses, porém, invadem o Palácio de Versalhes, ocupam a sala do jogo
Jogo da pela Uma
da pela, e ali fazem um juramento: só se separariam
espécie primitiva de depois de votar uma nova constituição para a França.
tênis, muito praticada Estava instituída a Assembleia Nacional Constituinte, e a
na época.
Revolução conhecia um de seus momentos mais cruciais.

107
Capítulo 3

Figura 3.9 - “Juramento da Pela” (1791), de Jacques-Louis David

Fonte: Tablar (2006).

A este evento sucedeu uma série de conflitos armados


Bastilha Na Bastilha,
entre as milícias do Terceiro Estado e as forças reais,
símbolo do Antigo
Regime, havia um primeiro apenas nas cidades, depois por todas as regiões
calabouço, mas o da França. Esse período, que ficou conhecido como
prédio também servia fase do Grande Medo, teve seu ponto alto com a queda
como espaço de lazer
da Bastilha, talvez o evento mais simbólico de toda a
e depósito de armas do
exército francês. revolução. A fim de abastecer sua munição de pólvora, os
burgueses tomaram a fortaleza dos militares franceses,
comprovando o enfraquecimento do poder real.

Em agosto daquele mesmo ano, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou


a abolição dos direitos feudais, que aconteceria gradualmente e mediante
amortização. O nascimento, a tradição e o sangue não seriam mais privilégios.
Além disso, também foram confiscadas as terras da Igreja. Dali em diante, a
igualdade jurídica seria a regra.

Isso ficava evidente, por exemplo, no célebre texto de introdução à nova


constituição, mais conhecido como Declaração Universal dos Direitos do Homem
e do Cidadão. Nessa declaração, os ideais da Revolução foram sintetizados
em três princípios que simbolizariam os direitos políticos: liberdade, igualdade e
fraternidade. A atual bandeira da França surgiu com os revolucionários de 1789.
Suas três cores eram uma referência aos três princípios expressos na Declaração: o
azul simbolizava a liberdade; o branco, a igualdade; e o vermelho, a fraternidade.

108
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Outro documento importante, elaborado pouco depois da Declaração, foi a


Constituição Civil do Clero. Através desse documento, a Igreja foi oficialmente
separada do Estado francês. Esse foi um dos fatos que mais contribuíram para
que o Estado se tornasse uma instituição laica. A partir
Instituição laica de agosto de 1790, quando tal Constituição foi votada, os
Laico é o mesmo que
clérigos foram transformados em assalariados do governo,
leigo, isto é, algo que
não é religioso, que é a quem deviam obediência. Além disso, os bispos e
alheio aos assuntos da padres de paróquia seriam eleitos por todos os eleitores,
Igreja. independente de filiação religiosa. Igreja e Estado estavam,
assim, definitivamente separados.

Um ano depois, em setembro de 1791, a nova Constituição francesa ficaria pronta


e seria finalmente promulgada, consolidando as realizações da Revolução. Além
da já mencionada abolição dos direitos feudais, a Constituição de 1791 implantava
uma monarquia constitucional, limitando os poderes do rei, e criava uma efetiva
separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A população foi
dividida entre cidadãos ativos e cidadãos passivos. Eram considerados cidadãos
ativos os homens que pagavam impostos e possuíam dinheiro ou propriedades.
Mulheres e desempregados, entre outros, eram considerados cidadãos passivos.
Embora o voto fosse censitário, essa ampliação do eleitorado, sem discriminação
quanto à nobreza ou quaisquer outros atributos que antes eram valorizados, foi
um marco para a questão do sufrágio universal. Cabe observar que, antigamente,
o conjunto dos impostos que o cidadão pagava para exercer os seus direitos era
chamado de censo, daí a denominação “voto censitário”.

Em outras palavras, a Constituição de 1791 manifestava o surgimento


de uma sociedade burguesa e capitalista em lugar da anterior, feudal e
aristocrática.

Entretanto, como se repetiria muitas outras vezes nos processos democráticos


modernos, o que havia sido concebido tão perfeitamente na Constituição
encontrou uma série de obstáculos na prática. Por um lado, o rei e os aristocratas
negavam qualquer compromisso. Por outro, os pequenos burgueses sentiam-
se lesados, e os camponeses, que agora pagariam pela extinção dos direitos
feudais, estavam desesperados. O resultado foi outro período de violência
generalizada, que resultou na queda da monarquia, em agosto de 1792. A
revolução entrava em sua fase mais radical.

Após a deposição do rei, a Assembleia convoca uma Convenção Nacional, cujas


principais medidas foram a Proclamação da República e a promulgação de uma
nova Constituição. A principal mudança constitucional dizia respeito ao direito

109
Capítulo 3

ao voto: os constituintes aboliram a divisão entre cidadãos ativos e passivos,


incluindo os desempregados – que àquela altura eram maioria – no eleitorado.
Dessa forma, a pequena burguesia ganhou uma maior representação.

Chefiada por Georges Jacques Danton, Maximilien François Marie Isidore de


Robespierre e Jean Paul Marat, a Comuna de Paris – uma espécie de governo
provisório que tinha sido criada em 1789, logo que a Assembleia foi constituída
– assume o poder, esvaziando o poder da Assembleia: o Executivo voltava a
sobrepor-se ao Legislativo.

Os revolucionários, então, dividem-se em duas facções: uma mais moderada,


composta por membros da nobreza liberal e pelo baixo clero, e outra mais radical,
formada pela burguesia e pelos sans-culotte. Os moderados, por representarem
o Departamento da Gironda, ficaram conhecidos como girondinos, e os radicais,
que costumavam reunir-se no convento de Saint Jacques, como jacobinos. A
divisão que até hoje se faz na política, entre partidos de direita, centro e esquerda,
surgiu nesse momento da Revolução Francesa. Na mesa da presidência, à direita
sentavam-se os girondinos, ao centro os que não tinham posição definida e à
esquerda sentavam-se os jacobinos radicais.

Você já deve ter percebido que os revolucionários franceses recorreram


insistentemente à constituição de assembleias para deliberar os rumos do governo
e a regulação do Estado francês. Isso é reflexo evidente da insistência de Rousseau
na soberania dessa instituição – a assembleia. Esse fato legou à tradição ocidental
um apreço absoluto pela democracia que até hoje não se enfraqueceu. Todavia,
note que a Revolução Francesa expôs a fragilidade e o perigo da distinção entre
“vontade geral” e “vontade da maioria” estabelecida por Rousseau, pois, crentes de
que seguiam a dita vontade geral, a maioria cometeu abusos questionáveis.

A Revolução ilustrou, ainda, de forma sintética, o ciclo dos governos proposto pelos
antigos e resgatado por Maquiavel. Em pouco tempo, a França experimentou todas
as formas de governo possíveis, tanto as ditas puras quanto suas perversões.
O final do Antigo Regime é a perfeita representação da monarquia pervertida em
tirania. A cisão do Segundo Estado entre alta e baixa aristocracia, cujos interesses
começaram a não se conciliar, sugere a perversão da aristocracia em oligarquia.
Da mesma forma, os burgueses, especialmente os jacobinos, quando tiveram o
poder, demonstraram como a tirania da democracia pode pervertê-la em anarquia
generalizada. E, como ainda veremos, os franceses chegaram a conciliar as formas
puras em uma constituição devidamente estabelecida, tal qual o ideal republicano
do pensador florentino. Além disso, toda a argumentação dos revolucionários e
até mesmo seus atos ilustraram a tendência moderna de apreciar os problemas
políticos de forma mais pragmática, ao invés de moralizá-los – tendência
impulsionada por Maquiavel, especialmente por influência de sua obra O Príncipe.

110
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Os girondinos, lembrados da importância da França nas conquistas da Paz de


Westfália, propunham radicalidade apenas na política externa, a fim de
combater os países absolutistas, mas demonstravam
Rei da Áustria Quando
iniciaram os conflitos da compaixão ao rei, querendo salvar-lhe a vida, que estava
Revolução, em 1789, em risco. No entanto, foram descobertos documentos
a França foi invadida que comprovavam o comprometimento de Luís XVI com
pelo exército da Áustria.
o rei da Áustria, e os jacobinos, maioria em número e
Luís XVI teria facilitado
essa invasão, buscando fúria na Comuna, acusaram-no de traidor e ordenaram
apoio nos austríacos. sua execução.

Figura 3.10 - “Execução de Luís XVI” (1793), gravura alemã de autor desconhecido

Fonte: Schulenburg (2005).

4.3 Do Grande Terror à Napoleão


O governo jacobino converteu-se em uma ditadura da democracia, e começava,
assim, a fase do Grande Terror – a mais desastrosa de toda a Revolução
Francesa. Ao saber da execução do rei, os vizinhos absolutistas, indignados
e tementes que lhes acontecesse o mesmo, organizaram uma represália aos
jacobinos, formando uma coligação contra a França.

Essa coligação foi encabeça pela Inglaterra que, além de rival política, era a
principal concorrente da França nos negócios, e, por isso, também temia a
ascensão burguesa no mercado europeu. No Departamento da Vendeia,
camponeses contrários à Revolução tomaram o poder da Comuna local e
formaram uma frente contrarrevolucionária. No Comitê da Salvação Pública
– como se intitulou o governo jacobino – o líder Danton, considerado moderado,

111
Capítulo 3

foi substituído por Robespierre, que intensificou o terror. Além do rei Luís XVI,
milhares de pessoas – entre elas, sua esposa Maria Antonieta, o químico Antoine
Lavoisier, aristocratas, clérigos, girondinos e especuladores – também foram
guilhotinadas. O país estava imerso no caos.

9 Termidor De acordo Ameaçado pela coligação estrangeira e pela frente


com o calendário camponesa de Vendeia, e assistindo à falência da economia
instituído pelos
francesa, o governo jacobino foi aos poucos se esfacelando.
revolucionários, o verão
era dividido em três Em julho de 1794, os girondinos que sobreviveram ao Grande
períodos, o segundo Terror, aproveitando-se da situação, articularam um golpe
dos quais se chamava para derrubar o governo jacobino. Em uma manobra rápida,
Termidor. O golpe,
depuseram Robespierre e demais dirigentes jacobinos,
portanto, aconteceu
no nono dia do período que provaram do próprio veneno: a guilhotina. Essa reação
Termidor. ficou conhecida como Golpe de 9 Termidor, conforme o
calendário da Revolução Francesa.

A chamada Convenção Termidoriana elaborou uma nova constituição, que


retomava o voto censitário e reservava o poder à burguesia. Em 1795, o governo
foi assumido pelo Diretório, um grupo formado por cinco dirigentes eleitos pelos
deputados, que detinha o poder Executivo. O poder Legislativo, na época, era
formado por duas câmaras: o Conselho dos Anciãos e o Conselho dos Quinhentos
– uma conformação muito semelhante à que temos atualmente no Brasil. Tanto a
nobreza realista quanto os remanescentes jacobinos tentaram derrubar o Diretório,
mas seu governo durou, com razoável estabilidade, por cinco anos.

Embora os jacobinos já tivessem sido contidos, os vizinhos absolutistas seguiam


investindo contra o governo burguês da França. Além disso, a pequena burguesia
e a população mais miserável andavam descontentes, pois tinham sido
marginalizadas durante o governo do Diretório. Estes fatores trouxeram
instabilidade para o governo e, face à ameaça de uma nova crise violenta, os
políticos da alta burguesia começaram a cogitar a necessidade de uma ditadura
militar. O exército francês voltava a ter prestígio com o sucesso nas campanhas
contra a coligação absolutista, e o nome de um general destacava-se: Napoleão
Bonaparte (1769-1821).

Em 1799, Napoleão e suas tropas foram enviados ao Egito para tentar interferir
nos negócios da Inglaterra. No entanto, surpreendido pela marinha inglesa, sua
inventiva é fracassada. Ele, então, abandona os soldados e retorna à França,
trazendo consigo apenas seus generais mais fiéis. Em 18 Brumário (10 de
18 Brumário Tratava- novembro de 1799), já em terras parisienses, embora
se do 18º dia do tivesse fracassado no Egito, Napoleão sente o clima
período Brumário, a
favorável e decide trocar a carreira militar pela política.
fase intermediária do
outono no calendário Naquele que ficou conhecido como Golpe de 18 Brumário,
revolucionário francês. Napoleão Bonaparte suprime o Diretório e instaura o

112
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Consulado: um novo governo, agora encabeçado por apenas três homens:


Napoleão, que representava a classe militar, o Abade Sieyès, que representava o
emergente baixo clero, e Roger Ducos, o representante da alta burguesia.

Repare no nome do governo instaurado por Napoleão: ele dá a si e aos


outros dois o título de cônsules, com a nítida pretensão de resgatar o
modelo romano de república.

Napoleão, desde o princípio, preocupa-se em neutralizar tanto os conflitos


políticos internos como os externos. Sua primeira ação, por exemplo, foi fazer
um acordo com a Igreja, reconhecendo o catolicismo como religião oficial
dos franceses. Em troca, a Igreja aceitou tornar seus sacerdotes funcionários
públicos, como queria a Constituição de 1791, e o Papa renunciou às terras
confiscadas pela Revolução. Além disso, a fim de poupar a França das ameaças
dos vizinhos absolutistas, ele faz acordos de paz com seus principais rivais: a
Inglaterra e a Áustria.

Essas medidas favoreceram a retomada econômica da França, cuja indústria


voltou a crescer. Napoleão – conjugando a ideologia liberal com a burguesa (que
se tornariam sinônimas) – organizou o sistema financeiro. Foi ele o responsável
pela fundação do Banco da França, em 1800, e da moeda que circularia naquele
país até o final do século XX: o franco.

No entanto, a principal medida tomada em prol da institucionalização dos


valores burgueses foi a elaboração de um Código Civil, outorgado por Napoleão
em 1804. Esse documento, que ficou conhecido como Código Napoleônico,
regulava questões ligadas ao direito civil (como o registro civil e a propriedade).
Algumas de suas consequências foram a proibição das greves e a defesa do
direito à propriedade mediante o valor agregado pelo trabalho – exatamente como
defendiam os liberais.

Embora a intervenção de Napoleão na economia contradissesse a ideia de Locke


segundo a qual o governo civil não deveria interferir nos negócios econômicos (que
se autorregulariam), não há como deixarmos de associar a revolução burguesa,
de modo geral, e o Código, em particular, ao sucesso generalizado do liberalismo
clássico proposto pelo pensador inglês. A defesa do direito à propriedade mediante
o valor agregado pelo trabalho é o reflexo mais evidente, porém vemos, ainda,
no próprio governo que se configurou com Napoleão, os traços na monarquia
parlamentarista que Locke e a Revolução Gloriosa coroaram.

113
Capítulo 3

Além disso, conquanto Hobbes fosse defensor da monarquia absolutista, sua


noção de Estado, como uma entidade maior que absorvia os interesses de toda a
sociedade civil a fim de regê-la, esteve sempre presente na mente dos principais
atores da Revolução Francesa. Mais ainda, devem os revolucionários franceses – e
devem todos os ocidentais – à obra hobbesiana a noção de lei que, apesar de não
estar livre de contestação, vigora até hoje: uma fórmula simples e suficiente, que
determina a liberdade limitando-a.

O Código de Napoleão não foi o primeiro código legal estabelecido em uma nação.
Antes dele, na Baviera (em 1756), na Prússia (em 1792) e na Galícia (em 1797),
já haviam surgido códigos semelhantes. No entanto, nenhum deles obteve tanto
sucesso e exerceu tanta influência sobre resto do mundo quanto o de Napoleão.

Um código civil, tal qual o de Napoleão, não diz como as leis e normas
devem ser elaboradas, pois isso compete a uma constituição. O código
civil estabelece os domínios da lei, isto é, agrupa e sistematiza as normas
jurídicas esparsas no direito consuetudinário e no direito escrito.

Napoleão, portanto, conseguiu conferir rigor aos


História romana
Júlio César, após
ordenamentos jurídicos e minar quaisquer focos de conflito.
um notável sucesso Tamanho foi o seu sucesso na tarefa de consolidar as
à frente do exército conquistas burguesas, que, em 1804 (o mesmo ano em que
romano, aproveitou a
o Código foi outorgado), Napoleão, através de um decreto,
sua popularidade para
tornar-se o primeiro proclamou-se Imperador da França. Mais uma vez, portanto,
Imperador Romano, ele tenta fazer a história francesa e a sua própria história
transformando a nos moldes da história romana. Sua popularidade era tão
República em Império.
grande que, quando a proclamação do Império foi posta à
prova através de um plebiscito, obteve 60% dos votos.

A história do Império Napoleônico dura apenas uma década, mas nos mostra
um movimento de ascensão e queda jamais visto. Ao estabelecer o Império,
Napoleão partiu obstinado em busca de novas terras. Em 1812, chegou a
dominar quase toda a Europa Ocidental e grande parte da Europa Oriental.
O Império possuía, então, 150 departamentos, com cerca de 50 milhões de
habitantes: quase um terço da população europeia da época.

Uma das causas do sucesso do exército francês está diretamente ligada aos ideais
da Revolução. Se o povo era a fonte da legitimidade política, então lhe cabia também
a responsabilidade de defender seus próprios direitos de eventuais ataques. Assim,
“o direito de voto acarretou o dever do serviço militar.” (BOBBIT, 2003, p. 70).

114
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

4.4 A Primavera dos Povos


Napoleão foi preso e exilado pelos britânicos em 1815. No entanto, a Revolução
Francesa e o Império Napoleônico modificaram radicalmente o panorama da
Europa e de todas as suas colônias em todos os aspectos possíveis. Após a
sua derrota, as nações vencedoras reuniram-se no Congresso de Viena para
decidir os rumos do continente. O fim do Antigo Regime estava claro: todos os
países foram obrigados a adotar uma Constituição, pondo um fim ao absolutismo
desmedido. As inovações trazidas pela Revolução Francesa, apesar da
resistência dos chefes de nação, foram logo difundidas. As invenções políticas
burguesas foram, por exemplo, reproduzidas meticulosamente e implementadas
com vigor na Prússia.

A Revolução na França expandiu-se pela Europa, atingindo também um dos


maiores representantes do Absolutismo, a Áustria, onde o Chanceler Metternich
foi obrigado a renunciar. Até mesmo o Brasil pôde sentir os efeitos daquela
onda revolucionária, que inspiraria os rebeldes pernambucanos na Revolução
Praieira. Toda aquela onda de revoluções que aconteceram nos intermédios de
1848 recebeu o nome de Primavera dos Povos. Como analisa o historiador Eric
Hobsbawm (2002) no célebre “A Era das Revoluções”, o ideal predominante nos
demais países europeus onde houve revolução não foi o liberalismo, mas sim o
nacionalismo. Os revolucionários desses países queriam libertar seus povos da
dominação estrangeira imposta pelas decisões do Congresso de Viena.

Os principais núcleos revolucionários foram Paris, Berlim,


Budapeste, Viena e Nápoles, mas a atmosfera de agitação foi
igualmente sentida na região dos povos tchecos, em regiões da
Itália, Alemanha, Áustria, e até mesmo em Londres. A “Primavera
dos Povos” – como ficou conhecida essa vaga revolucionária
– marcou o despertar das nacionalidades – poloneses,
dinamarqueses, alemães, italianos, tchecos, húngaros, croatas
e romenos –, que exigiram dos impérios a concessão de suas
autonomias. A Primavera dos Povos foi a primeira revolução
potencialmente global, tornando-se um paradigma de “revolução
mundial” que alimentou rebeldes de várias gerações. Por
outro lado, o triunfo eleitoral de Luís Bonaparte mostrou que
a democracia, anteriormente relacionada com os ideais da
revolução, prestava-se também à manutenção da ordem
social. De 1848 a 1849, tanto as revoluções burguesas como
os movimentos populares tiveram um substancial impacto na
Europa, mas um pouco por todos os cantos do Velho Continente
estas insurreições não tiveram o sucesso ansiado, em grande
medida porque a burguesia não se posicionou do lado dos
operários e dos camponeses. (HOBSBAWM, 2002, p. 127).

115
Capítulo 3

Vale destacar, ainda, que a Revolução Francesa deu origem efetiva a dois
fenômenos extremamente caros à Filosofia Política: o sufrágio universal e os
movimentos sociais. Tanto um quanto outro têm seu marco inicial fixado no
período da Revolução.

O sufrágio universal consiste na garantia do direito de voto para todos os


cidadãos adultos. Menores e não cidadãos (pessoas que estão fora da lei) não
têm direito ao voto.

A instituição do sufrágio universal ocorreu pela primeira vez na História, em 1792,


na França, quando a Convenção Nacional substituiu a Constituição de 1791 por
outra, nova, que eliminava o voto censitário, dando direitos políticos à parcela mais
pobre da população. Embora esse direito tenha sido suprimido logo depois, em
1795, pela Convenção Termidoriana, e voltasse a ser garantido na França só muito
tempo depois, em 1848, a Constituição de 1792 teve um valor simbólico crucial.

O termo “movimento social”, por sua vez, foi usado pela primeira vez em
uma obra cujo título remete diretamente à Revolução Francesa: A História do
Movimento Social Francês de 1789 até o Presente, escrita pelo sociólogo alemão
Lorenz von Stein, publicada em 1850.

Figura 3.11 - “A liberdade guiando o povo” (1830), quadro de Eugène Delacroix

Fonte: Lewandowski (2009).

116
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Charles Tilly (2004) define os movimentos sociais como uma série de atos,
manifestações e campanhas através das quais pessoas comuns fazem
reivindicações coletivas. Segundo esse autor, os movimentos sociais – o maior
veículo para a participação de pessoas comuns nas decisões do Estado – têm
três elementos fundamentais:

•• campanhas: esforços públicos sustentados e organizados para fazer


reivindicações às autoridades cabíveis;
•• repertório: emprego de combinações entre várias formas de ação
política (criação de associações e coalizões com fins específicos,
assembleias, passeatas solenes, vigílias, comícios, manifestações,
abaixo-assinados, declarações nos meios de comunicação públicos
e panfletagem);
•• concerto: as representações públicas devem concertar (harmonizar,
conciliar) conveniência, unidade, números e compromissos tanto de
sua própria parte como da parte dos representados.
Todas estas características já existiam, isoladas, antes de 1789. No entanto, elas só
vieram a combinar-se e converter-se em um fenômeno político real com a Revolução
Francesa. Inegavelmente, o que propiciou o surgimento desses fenômenos é
também a principal conquista da Revolução: a garantia dos direitos políticos.

4.5 O utilitarismo de Stuart Mill


Os movimentos sociais, que tiveram forte inspiração nas ideias de Rousseau,
receberiam um combustível extra no século XIX, com as ideias de outro autor: Karl
Marx (1818-1883). Entretanto, pouco antes de Marx, enquanto as consequências da
Revolução ainda se faziam sentir na França, as ideias de outro importante pensador
político floresciam na Inglaterra: John Stuart Mill (1806-1873).

Stuart Mill, filho do político James Mill, foi discípulo do filósofo Jeremy Bentham.
Tanto seu pai como seu preceptor foram grandes defensores do liberalismo e
fundaram uma corrente de pensamento que ficou conhecida como utilitarismo.
Essa corrente defende que a essência da moralidade é o princípio da utilidade,
segundo o qual qualquer ação que contribua para a utilidade geral da sociedade
deve ser considerada boa, isto é, moralmente correta.

Esse princípio é ponto de partida de Stuart Mill no desenvolvimento de seu


pensamento político. Influenciado por Rousseau, Mill associa a utilidade à
felicidade: se, na visão de Rousseau, o indivíduo pode encontrar a felicidade
devotando sua vida à cidade, na de Mill a felicidade encontra-se na utilidade que
suas ações podem ter para a vida comum. Diferente de Bentham, Mill acredita

117
Capítulo 3

que a felicidade não se consuma nos prazeres físicos. Ele difere os prazeres
físicos – os quais chama de prazeres inferiores, dos prazeres intelectuais – os
prazeres superiores. Portanto, para chegar à felicidade, para chegar a realizar
ações úteis, cada indivíduo deveria desenvolver ao máximo suas faculdades
mentais, ou seja, seus prazeres superiores.

Se o Estado é responsável por reger a vida em sociedade, se a vida coletiva


requer que os indivíduos realizem ações úteis e se as ações úteis dependem
de faculdades mentais plenamente desenvolvidas, então o Estado deve dar
condições para que os indivíduos desenvolvam suas aptidões intelectuais. Além
disso, Mill também acredita que indivíduos – para que se preocupem com a
utilidade geral – devem sentir reciprocidade, isto é, devem sentir que são levados
a sério pela sociedade. Isso só pode acontecer uma vez que as relações sejam
equilibradas, uma vez que ninguém se encontre na miséria, e, portanto, a garantia
dessa condição também caberia ao Estado.

Assim, na perspectiva de Stuart Mill, o provimento da educação e de uma estrutura


social que impeça a miséria dos indivíduos é responsabilidade do Estado.

Figura 3.12 - Garantia de educação e dignidade: deveres do Estado para Stuart Mill

Fonte: Rusinow (2007).

Como um autêntico liberal, Stuart Mill defende a toda custa a liberdade


individual. Para Mill, o Estado não tem direito de intervir em nossa vida privada.
Em suas palavras, não cabe ao Estado intervir em nossa

118
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

[...] liberdade de gostos e atividades; de formular um plano de


nossa vida que esteja de acordo com nossas características; de
fazer o que desejamos, sujeitando-nos às conseqüências que
puderem advir, sem nenhum impedimento de nossos semelhantes,
enquanto o que fizermos não os prejudicar, mesmo se julgarem
nossa conduta tola, perversa ou errada. (MILL, 2000, p. 17).

Portanto, o Estado não pode intrometer-se na vida privada dos cidadãos,


exceto com uma única finalidade: proteger-se, isto é, proteger a sociedade.
Esta prerrogativa consiste no princípio da autoproteção. Nas palavras de Mill
(2000, p. 17), “a autoproteção constitui a única finalidade pela qual se garante
à humanidade, individual ou coletivamente, interferir na liberdade de ação de
qualquer um.” Sendo assim, “o único propósito de se exercer legitimamente
o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua
vontade, é evitar dano aos demais.”

No entanto, se, por um lado, Mill compartilha algumas concepções de Rousseau,


por outro lado ele repugna o lado mais radical daquela que se inspirou fortemente
nas ideias do pensador genebrino: a Revolução Francesa. A geração de seu pai
assistiu, da Inglaterra, aos terrores da ditadura jacobina e transmitiu aos seus
descendentes o sentimento de medo da ditadura da democracia. Stuart Mill,
educado entre aristocratas, absorveu bem este sentimento e devolveu à sua obra
críticas vigorosas à tirania política que a maioria pode exercer sobre a minoria.

Além disso, Mill opõe-se a Rousseau em um outro ponto crucial: ele rejeita a
noção de contratualismo. Em sua concepção, a sociedade não se funda sobre
um contrato. “Todos que recebem a proteção da sociedade devem-lhe uma
retribuição por tal benefício, e o fato de viver em sociedade torna indispensável
que cada um esteja obrigado a observar uma certa linha de conduta para com os
demais.” (ibid., p. 115).

Portanto podemos dizer que, para Mill, a sociedade funda-se sobre um


compromisso tácito, um tipo de comprometimento que advém do bom-senso.
Stuart Mill – assim como fez toda uma horda de intelectuais ingleses de sua época
– critica o modelo de democracia proposto por Rousseau, pois vê um grande
risco nele: ao garantir a todos o direito de voto, as classes inferiores, que sempre
são a maioria da população, podem impor a sua vontade às outras classes, o que
acaba por constituir um governo de classe, e não uma democracia representativa
propriamente. Por isso, Mill propõe um sistema eleitoral em que há, sim, sufrágio
universal, mas o voto das classes proprietárias tem maior peso do que o voto das
classes trabalhadoras. Além disso, os que não pagassem impostos não seriam
considerados cidadãos e, portanto, não teriam direito ao voto.

119
Capítulo 3

4.6 As teses políticas de Karl Marx


Mas, enquanto Mill buscava uma forma legítima de privilegiar a classe
proprietária, o alemão Karl Marx, ao lado de outro inglês, Friedrich Engels (1820-
1895), dedicava-se a criticar fervorosamente os seus privilégios, imprimindo em
sua teoria o mesmo tom utópico e apelativo que marcou a obra de Rousseau.
Marx acreditava que grande parte da filosofia política não passava de uma
glorificação do Estado. Assim como Rousseau, ele via o Estado como uma
simples invenção dos mais abastados para manter os seus domínios e proteger-
se das ameaças das classes mais desprovidas.

Para Marx, o Estado é simplesmente um instrumento de domínio. Como entende


Bobbio (1988), sua concepção de Estado é meramente técnica, em contraposição
às concepções éticas que prevalecem na tradição do pensamento político. Nas
palavras de Marx e Engels (1998, p. 10), “o Estado moderno não passa de um
comitê que administra os negócios da classe burguesa como um todo.” Para eles,
conceitos como “sociedade como um todo”, “interesse geral”, “bem comum” etc.
não passam de mistificações. Sendo assim, pode acontecer que os interesses de
toda a sociedade venham a coincidir, mas, “na maioria dos casos, e em essência,
esses interesses estão fundamental e irrevogavelmente em choque, de modo que o
Estado não poderá ser o fideicomissário comum deles.” (ibid., p. 11).

E exatamente por isso Marx não se dedica a discutir as formas de governo. De seu
ponto de vista, quaisquer que sejam elas, mais ou menos corretas, serão sempre
uma mera expressão dos interesses da classe dominante. Essa postura negligente
à questão do Estado levou a maior parte dos críticos a afirmar que Marx não dispõe
de uma teoria política. No entanto, como você verá, ele possui, sim, um
pensamento político interessante. Ocorre que tamanha foi a importância dada por
Marx à Economia em sua obra que seu pensamento político sempre pareceu estar
em segundo plano, por vezes até mesmo reduzido a categorias econômicas.

Situação ideal Marx Marx almeja uma sociedade sem classes, na qual,
teve como principal consequentemente, não haverá domínio de uma classe
influência o filósofo
sobre outra; na qual não haverá Estado. Essa situação
Hegel, fundador do
idealismo. Isso explica,ideal chamar-se-ia comunismo. Portanto, se o objetivo
em parte, as tendências final é encontrar uma conformação social que não possua
idealistas do marxismo. relações de domínio, estas relações, por sua vez, passam
a ser o seu principal objeto de estudo no que diz respeito
à Política. Portanto, sempre que Marx – em obra vasta, prolixa e um tanto confusa
– volta os olhos para temas políticos, ele se dedica a analisar como se deu a
conquista do poder.

120
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

Um de seus principais escritos políticos, o 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), analisa


todos os fatores envolvidos no golpe que consolidou a subida da burguesia ao poder,
aplicado por Napoleão ao final da Revolução Francesa. Sabe-se que Marx pretendia
concluir a sua principal obra – O Capital, escrito entre 1867 e 1883 – com um capítulo
dedicado ao Estado, o que não chegou a acontecer. No entanto, pelo conjunto da sua
obra, podemos inferir que, para ele, a estrutura econômica está na base do Estado.
Em seu pensamento, o regime econômico (as relações de produção) constitui a
base (a estrutura) da sociedade, enquanto que as ideias sociais (políticas, jurídicas,
filosóficas, religiosas, etc.) e as instituições políticas (entre elas o Estado) constituem
a superestrutura. Assim, a forma dominante de propriedade em uma determinada
época condicionaria o caráter das instituições políticas, isto é, a estrutura condiciona
a superestrutura. Isso leva Marx a afirmar que algumas leis econômicas do
desenvolvimento capitalista determinam o funcionamento do Estado.
Uma dessas leis seria a taxa decrescente de lucro: se o lucro da produção
começa a cair, é de usar o Estado (o principal instrumento político da classe
proprietária) para corrigir esta tendência e extrair o excedente dos trabalhadores.
Podemos afirmar, conforme Oliveira (2001), que as teses políticas de Marx
concentram-se em quatro pontos principais.

1. Como já dissemos, a forma do Estado e das demais instituições políticas decorre das
relações de produção, e não do desenvolvimento das ideias ou vontades humanas.

2. O Estado é a expressão política da dominação de classe e, portanto, está a


serviço da classe economicamente mais forte, não do desenvolvimento das
ideias ou vontades humanas.

3. O Estado tem origem na necessidade de controlar os conflitos entre os diferentes


interesses econômicos, como já afirmava Rousseau.

4. A fim de controlar os conflitos, o Estado exerce uma função repressiva a serviço


da classe dominante.

Entretanto, os argumentos destas teses – dados pelos seguidores de Marx, não


por ele próprio – não são tão fortes quanto o ímpeto de inúmeros movimentos
que, no século XX, justificaram o uso da violência com base nas ideias de Marx –
o mesmo que aconteceu com os jacobinos em relação a Rousseau. Um primeiro
argumento reclama que os cargos de comando do Estado ou sejam ocupados
por membros nativos da classe dominante ou por membros oriundos de outras
classes, mas recrutados pela classe dominante. Se olharmos para a realidade,
encontraremos muitas objeções para tal argumento. O Brasil dos governos de
Lula e Dilma é, ele mesmo, um contra-argumento à tese marxista.

121
Capítulo 3

O segundo argumento é o de que a classe dominante, por possuir o controle dos


meios de produção, é capaz de influenciar as decisões tomadas e as medidas
adotadas pelo Estado, por exemplo, através de greves de investimento, em que
os capitalistas subjugam a economia (e logo o Estado), segurando o capital. No
entanto, esse argumento também já recebeu muitas críticas, que se valem do
seguinte raciocínio: o Estado tem limites de ação. Nem tudo o que condiciona a
vida em sociedade depende do Estado. Há certas coerções estruturais que fogem
ao controle do Estado.

Um terceiro argumento está diretamente ligado ao argumento desta crítica: o


Estado, que representa a classe dominante, impõe limites estruturais através das
relações de produção. Esse argumento, no entanto, tem-se demonstrado fraco,
pois, nas últimas décadas, já assistimos a diversas manobras políticas feitas pelos
agentes estatais para escapar de armadilhas colocadas
Segundo setor
O setor das empresas por representantes do segundo setor. Todas estas contra-
privadas. argumentações levam-nos a uma interpretação crítica do
pensamento de Marx:

Embora o desenvolvimento econômico da sociedade condicione o Estado,


ele também tem a possibilidade de interferir no desenvolvimento econômico,
colocando-lhe obstáculos. Ambos interagem, portanto, em um processo
dialético, como queria Marx. Além disso, a visão economicista de Marx o fez criar
categorias políticas muito simplistas. A própria ideia de que a classe dominante
age de modo homogêneo, com um mesmo interesse na manutenção do poder,
é um exemplo disso. O poder de classe não é automaticamente convertido em
poder de Estado. A História mostra-nos que a burguesia, por exemplo, não foi
uma só; existiram e existem várias burguesias, e elas nem sempre se entendem.
Por isso, face à eventual discordância entre as classes dominantes, o Estado
precisa ter certa autonomia em relação a estas classes.
Assim, convencionou-se atribuir ao Estado uma autonomia relativa, que lhe
permite intervir não apenas em assuntos que afetam as classes dominadas, mas
também, de acordo com a conjuntura, agir contra os interesses desta ou daquela
fração da classe dominante. (OLIVEIRA, 2001).
Embora não dê importância à teoria das formas de governo, Marx chega a fazer
um exercício semelhante ao que fizeram outros autores políticos, como, por
exemplo, os contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau. Marx entende que, ao
longo da história, sucederam-se cinco tipos de formação social: a comunitária
primitiva, a escravagista, a feudal, a capitalista e a socialista. À exceção da
sociedade primitiva, cada uma dessas formações corresponde a um tipo de
Estado. Ainda que Marx almeje a extinção do Estado, ele vê a necessidade de um
Estado transitório entre o Estado capitalista e sua situação ideal: o comunismo.

122
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

O Estado socialista pretenderia, portanto, a construção de uma sociedade


sem antagonismos de classe, sem a exploração de seres humanos pelos seus
semelhantes. Por isso, todos os mecanismos socialistas deveriam visar a
liquidação da exploração. Todavia, tanto o próprio Marx quanto seus seguidores
sabiam que esse ideal só seria realizado, na prática, através de um regime
ditatorial. O proletariado, como Marx chamava a classe trabalhadora, ao chegar
ao poder e pôr em prática as suas boas intenções de um mundo melhor, ver-se-á
forçado a instalar uma ditadura:

Toda classe que aspira à dominação, mesmo que esta


dominação, como no caso do proletariado, exija a superação
de toda a antiga forma de sociedade e de dominação em geral,
deve conquistar primeiro o poder político, para apresentar seu
interesse como interesse geral, ao que está obrigado no primeiro
momento. (MARX, 1991, p. 49).
O progresso, isto é, a evolução para o comunismo, se opera
através da ditadura do proletariado, e não pode ser de outro
modo, pois não há outro meio que a ditadura, outro agente que
o proletariado tem para quebrar a resistência dos capitalistas
exploradores. (LENIN apud BRESSAN; PACHECO, 1987, p. 109).

Logo, defende-se a violência para combater a violenta exploração capitalista. De


alguma forma, a ditadura do proletariado defendida por Marx e pelos marxistas
não é outra coisa senão a ditadura da democracia, cuja tirania foi tão abominada
pelos autores clássicos. Assim, o bem intencionado Estado socialista não
passaria de um regime ditatorial.
Lembre-se dos comentários de Maquiavel sobre os ciclos das formas de governo:
a democracia, instável por natureza, caso não se degenere em anarquia, pode
facilmente transformar-se em tirania ou oligarquia com o tempo. A História
comprovou a insuficiência da utopia marxista: os mentores da Revolução Russa
– cujo valor esteve em depor o absolutismo retrógrado que persistia naquele
país, ainda no início do século XX – quando tomaram o poder e compuseram o
comitê central do partido socialista, logo caíram nos vícios do poder. O mesmo
aconteceu com todas as demais experiências socialistas: os vícios do poder não
permitiram que chegassem ao tão sonhado comunismo. Isso levou uma parcela
moderada do pensamento marxista às seguintes conclusões:
•• de fato, todo Estado burguês é antidemocrático e opressor em
relação às classes dominadas, mas não se pode dizer que todos
sejam igualmente antidemocráticos;
•• assim, não se pode negar que o Estado capitalista democrático
ofereça melhores condições de organização e luta para o proletariado;
•• há uma diferença qualitativa entre os regimes democráticos e os
regimes autoritários:

123
Capítulo 3

[...] os últimos sempre assumem como primeira tarefa a


destruição das organizações de defesa da classe trabalhadora –
sindicatos, partidos, cooperativas, associações, etc. Os regimes
democráticos burgueses, por outro lado, têm de aceitar essas
organizações. (MILIBAND, 1977, p. 88).

Portanto, se podemos apontar reflexos positivos do pensamento marxista na


política moderna, estes se encontram justamente nas mencionadas organizações
de defesa, que têm nas ideias de Marx seu suporte ideológico. Tais organizações
foram, certamente, uma invenção muito saudável para as democracias modernas,
pois converteram-se em instituições que protegem os indivíduos da dominação
alheia e arbitrária, garantindo-lhes a liberdade.

124
Capítulo 4

Tópicos de política
contemporânea

Habilidades Com a leitura deste capítulo, você desenvolverá


as habilidades de: sintetizar os conceitos básicos
que dão base à Ciência Política; compreender
as gerações de direitos humanos em paralelo ao
processo de consolidação do Estado moderno
e identificar tais direitos; reconhecer os dilemas
contemporâneos que se apresentam à participação
dos cidadãos na vida política e analisar alternativas
possíveis; conceituar as políticas públicas e aplicar
métodos para geri-las.

Seções de estudo Seção 1: Síntese de conceitos básicos

Seção 2: Gerações de direitos humanos

Seção 3: Dilemas da participação política

Seção 4: Políticas públicas e métodos de gestão


de políticas

125
Capítulo 4

Seção 1
Síntese de conceitos básicos
Conceitos hoje comuns a cientistas políticos, a gestores públicos e ao público
em geral emergiram na história da humanidade e foram ganhando (ou perdendo)
sentido de acordo com as condições de cada época, em cada comunidade.
Nesta primeira seção, antes de abordar alguns tópicos de grande relevância para
a política contemporânea, você poderá conhecer ou recapitular alguns desses
conceitos básicos como forma de sintetizar o “estado da arte” da Ciência Política.

1.1 Governo, autoridade e legitimidade


Comecemos pelos conceitos de governo, autoridade e legitimidade. Governo
refere-se à representação regular de políticas, decisões e assuntos de Estado por
parte de servidores que compõem um mecanismo político. É muito importante
ter consciência de que governo é uma coisa, e Estado é outra. Muitos falam de
Estado referindo-se a governo, e vice versa.

O governo nada mais é do que um corpo de pessoas que temporariamente


se encarrega de dirigir o Estado, enquanto que o Estado é a expressão
permanente da sociedade civil.

O Estado também pode ser entendido como o local onde reside o poder político
legítimo. Portanto, quem dirige o Estado tem autoridade para exercer o poder político.

Autoridade é o emprego legítimo do poder. Quando se fala em legitimidade,


entende-se que aqueles que se submetem à autoridade de um governo
consentem nessa autoridade. Logo, se há consentimento, há legitimidade.

O conceito de auctoritas (autoridade), para os romanos, representava a reunião


da política com a religião, implicava a veneração das famílias e, portanto, dos
antepassados. Um auctor (autor) era o fundador ou o iniciador de qualquer coisa –
fosse uma cidade, uma família, ou mesmo um livro ou uma ideia. Se o senado foi
a mais importante instituição romana, é porque seus membros eram considerados
os autores daquela sociedade. Daí o respeito que qualquer cidadão tinha por um
senador, confiando a essa figura a condução da res publica (a coisa pública). O
estandarte do exército trazia o símbolo militar da nação, a águia, e a sigla do seu
lema principal: Senatus Populusque Romanus (Senado e Povo Romano) – um
sinal da estima que o povo tinha por esta instituição, o senado.

126
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

1.2 Poder e soberania


Partindo dessa ideia de que política implica autoridade ou governo, vários
cientistas políticos buscaram definir a Ciência Política como uma disciplina que se
dedicaria ao estudo da formação e da divisão do poder. Bobbio (1987) percebeu
três formas clássicas de abordar esse fenômeno: as abordagens substancialista,
subjetivista e relacional.

Na abordagem substancialista, o poder é concebido como algo que se tem, uma


posse, e que se usa como um outro bem qualquer. Uma típica interpretação
substancialista do poder é a de Thomas Hobbes (1651 apud BOBBIO, 1987,
p. 77), segundo a qual “o poder de um homem [...] consiste nos meios de que
presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro.” Tais meios podem
ser os mais diversos, desde a inteligência, até a riqueza.

Na abordagem subjetivista, cujo principal representante foi o filósofo John


Locke (1694 apud BOBBIO, 1987), o poder não é um bem ou uma posse, mas
a capacidade que o sujeito tem de obter certos efeitos através de sua vontade.
Conforme o exemplo de Bobbio (1987, p. 77), “o fogo tem o poder de fundir
metais [...] do mesmo modo que o soberano tem o poder de fazer as leis e,
fazendo as leis, de influir sobre a conduta dos súditos.”

Por fim, pela abordagem relacional, o poder existe mediante as relações sociais. O
indivíduo (aquele que possui o poder) obtém do segundo (que não possui poder)
um comportamento que, caso contrário, não ocorreria (BOBBIO, 1977). Dessa
abordagem, podemos extrair os conceitos de poder econômico, ideológico e político.

O poder econômico vale-se da posse de certos bens necessários, ou percebidos


como necessários numa situação de escassez, para induzir os que não os
possuem a adotar certa conduta, que consiste principalmente na execução de
um trabalho útil. Para Marx (1998 [1848]), teórico clássico do poder econômico, a
posse dos meios de produção é uma enorme fonte de poder por parte daqueles
que os possuem contra os que não os possuem, exatamente no sentido
específico da capacidade de determinar o comportamento alheio.

O poder ideológico diz respeito à posse de certas formas de saber, doutrinas,


conhecimentos, às vezes apenas de informações, ou de códigos de conduta,
para exercer influência no comportamento alheio e induzir os membros do grupo
a realizar ou não uma ação. Conforme Foucault (2012 [1979]), desse tipo de
condicionamento deriva a importância social daqueles que sabem, sejam eles os
sacerdotes nas sociedades tradicionais ou os literatos, os cientistas, os técnicos,
os assim chamados “intelectuais”, nas sociedades secularizadas, porque
mediante os conhecimentos por eles difundidos ou os valores por eles firmados
e inculcados realiza-se o processo de socialização do qual todo grupo social
necessita para poder estar junto.

127
Capítulo 4

Por fim, o caminho mais usual para diferenciar o poder político, que nos
interessa particularmente aqui, das outras formas de poder remete ao uso da
força física. Em outras palavras, o detentor do poder político é aquele que tem
exclusividade o direito de uso da força física sobre um determinado território.
Quem tem o direito exclusivo de usar a força sobre um determinado território é
o soberano – lembrando que, nos tempos modernos, o detentor da soberania é
o Estado. O sociólogo alemão Max Weber (1999 [1920]) foi quem observou essa
especificidade do poder político. Em sua fórmula clássica, Weber define o Estado
como detentor do monopólio da coação física legítima.

Como você pode perceber, o conceito de poder político está direitamente


relacionado ao conceito de soberania. Ao menos desde a Paz de
Westfália, território e soberania estão diretamente relacionados quando se
trata de política: dizer que um Estado é soberano significa dizer que, dentro
dos limites do seu território, ele é absoluto na direção dos seus negócios
políticos e que nenhum outro Estado pode interferir neles.

1.3 Cidadania e patriotismo


Nas sociedades antigas, a maior parte da população tinha pouco ou nenhum
direito político. Nelas, normalmente apenas as elites tinham a sensação de
pertencer a uma comunidade política. Já, nas sociedades modernas, a maioria
das pessoas que vivem dentro dos limites de um sistema político é cidadã. Os
cidadãos possuem direitos e deveres comuns e se consideram parte de uma
nação: isso caracteriza a cidadania. Embora algumas pessoas sejam refugiadas
políticas ou apátridas, quase todos os que vivem no mundo de hoje são membros
de uma ordem política nacional definida.

Os estados-nações estão relacionados ao crescimento do nacionalismo, que


pode ser definido como um conjunto de símbolos e convicções responsáveis
pelo sentimento de pertencer a uma única comunidade política. Assim, ao
serem britânicos, norte-americanos, canadenses ou russos, os indivíduos têm a
sensação de orgulho e de pertencer a essas comunidades.

Sob certo ponto de vista, se a política dos gregos baseou-se na razão, a dos
romanos baseou-se no amor – um amor ao país, um amor à própria Roma. Os
romanos, de fato, inventaram o patriotismo, e esta é uma das grandes chaves de
seu sucesso. Eles consideravam-se uma espécie de família e viam em Rômulo, seu
fundador, um antepassado comum. Talvez tenha sido Agostinho de Hipona (mais
conhecido como Santo Agostinho), um dos maiores pensadores cristãos, que viveu
durante a fase final do Império Romano (354-430 d.C.), o primeiro a perceber o
patriotismo como a paixão orientadora dos romanos, em parte porque viu nela uma

128
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

prefiguração do amor que animava os cristãos. No entanto, é do poeta Horácio (65-


8 a.C.) o verso que, por muito tempo, representou o mais nobre dos sentimentos
políticos: “dulce et decorum est pro patria mori” (morrer pela pátria é maravilhoso
e digno). Esse sentimento perde seu valor após a Segunda Guerra Mundial, devido
aos horrores causados pelo patriotismo exagerado dos nazistas.

Agora que você pôde conhecer ou rever alguns dos principais conceitos que
compõem o repertório da Ciência Política, vamos passar a abordar alguns tópicos
de especial relevância no mundo contemporâneo, começando pela discussão
sobre as gerações de direitos humanos.

Seção 2
Gerações de direitos humanos
O surgimento do Estado moderno, além de ter revolucionado as formas de
governo, deu origem efetivamente ao que hoje chamamos de direitos humanos
ou direito universais. Entretanto, os chamados direitos humanos não surgiram
de uma hora para outra, de uma só vez, como se fosse um pacote de direitos.
Esses direitos foram sendo gerados e efetivados gradualmente, de acordo com
condições específicas pelas quais o mundo ocidental (notadamente a Europa)
passou ao longo dos últimos séculos.

Hoje em dia, é muito comum referir-se a “gerações de direitos humanos”, mas


pouca gente dá crédito ao autor dessa ideia. Em 1979, em uma conferência do
Instituto Internacional de Direitos Humanos, Karel Vasak propôs uma classificação
dos direitos humanos em gerações, inspirado no lema da Revolução Francesa
(liberdade, igualdade e fraternidade). Sua ideia é a de que a Revolução Francesa,
grande símbolo da consolidação do Estado moderno, prenunciou os direitos
humanos, mas não os gerou imediatamente. Como dissemos, eles foram gerados
gradualmente de acordo com circunstâncias históricas.

2.1 Os burgueses e a primeira geração de direitos


A primeira geração dos direitos humanos ocorreu na fase de resistência aos
poderes dos monarcas absolutistas, em decorrência da luta da burguesia por
prerrogativas básicas: a vida, a liberdade e a propriedade. Aliás, a reivindicação
social é a pedra de toque do reconhecimento dos direitos humanos, pois
estes “emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria
emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas
produzem”. (BOBBIO, 1992, p. 32).

129
Capítulo 4

O marco histórico documental dessas faculdades civis é a Declaração dos


Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Francesa,
em 26 de agosto de 1789, cujo processo de formação foi influenciado pelos ideais
da Revolução Francesa, expressos pela tríade liberdade, igualdade e fraternidade.
O documento, logicamente, também contemplou o direito de propriedade, o qual
foi qualificado como sagrado pelos franceses.

Muito embora esta carta de direitos tenha sido cronologicamente antecedida pela
Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de 1787, foram
os ideais revolucionários nela expressos que inspiraram os norte-americanos.
Tanto que, inicialmente, a Constituição Americana não previa uma lista de direitos
civis, a qual só foi inserida através de emendas, por pressão de alguns dos treze
estados independentes, ex-colônias da Inglaterra, para aderirem ao pacto que
daria origem ao Estado Federal.

A relevância da Declaração Francesa deve-se, ainda, ao fato de ela ter um caráter


mais abrangente do que as demais cartas de direitos que lhe antecederam, pois
não se dirigia a uma camada social específica ou privilegiada, mas sim a todo o
gênero humano. Por isso, a universalidade é a característica que lhe faz ascender
ao patamar de marco inicial para a evolução dos direitos fundamentais, como
baluarte da primeira geração dos direitos do homem.

A Declaração Francesa foi aprovada no cenário histórico em que a classe


burguesa adquiria importância política em razão de sua ascensão econômica,
de modo que os detentores do poder estatal viram-se forçados a outorgar-lhe
cada vez mais direitos, assegurando-lhe prerrogativas. Esta primeira geração de
direitos corresponde às liberdades elementares do homem perante o Estado,
expressando contenções à atuação dos governos, de modo a viabilizar que a
sociedade civil prossiga com as suas pretensões, desde que respeitadas as iguais
faculdades dos demais.

Diante desse quadro histórico, concluímos que os direitos de primeira geração


possuem como característica principal o objetivo de assegurar uma defesa
da pessoa em face do arbítrio dos governantes, conformando uma esfera de
liberdade do particular contra as ingerências estatais. Essa proteção traduz-
se principalmente na preservação de sua vida, na sua livre deambulação, na
viabilidade do amplo exercício profissional e na possibilidade de constituir
patrimônio, sem que este seja confiscado pela exigência de tributos excessivos.
Daí se extrai outra peculiaridade dessa modalidade de direitos: a sua natureza
preponderantemente individual e subjetiva.

130
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

2.2 Os trabalhadores industriais e a segunda geração de direitos


A segunda geração dos direitos humanos também emergiu das lutas sociais
em prol de maior resguardo das condições indispensáveis ao desenvolvimento
pleno da humanidade, mas seus protagonistas foram as classes trabalhadoras
do início da fase industrial do capitalismo, que buscavam melhores condições
laborais e também prestações estatais nas áreas de educação, saúde e moradia.

Cabe destacar que enquanto os direitos humanos de primeira geração estão


ligados à burguesia e à Revolução Francesa, os de segunda geração relacionam-
se com as classes trabalhadoras e com a Revolução Industrial. O comércio,
força matriz da fase mercantilista do capitalismo, foi gradativamente cedendo
espaço à indústria como atividade preponderante no cenário econômico. Na
medida em que os burgueses aplicavam os lucros obtidos com o comércio no
setor produtivo, principalmente na Inglaterra, as indústrias prosperavam e se
proliferavam. Consequentemente, a industrialização acarretou o aparecimento
de uma nova classe social nas cidades europeias, que migrava do campo para
trabalhar nas fábricas recentemente abertas: a chamada categoria operária.

As pessoas integrantes da classe trabalhadora da indústria, embora tivessem


formalmente asseguradas as liberdades básicas referentes à primeira geração
de direitos humanos, tinham sua força de trabalho amplamente explorada pelos
detentores do capital, pois careciam de proteção jurídica adequada em face das
imposições quanto à remuneração e à jornada de trabalho ditadas livremente
pelos seus empregadores. Além disso, sua qualidade de vida nas cidades era
muito precária, principalmente quanto ao saneamento básico de suas residências,
ao acesso à educação e ao atendimento médico e hospitalar.

Nesse cenário histórico, os trabalhadores urbanos organizaram movimentos


esparsos para a afirmação de suas prerrogativas sociais. A classe trabalhadora
reclamava melhores ambientes de trabalho, redistribuição de rendas e o
fornecimento de serviços públicos de saúde e de educação. Além disso, também
reivindicava a interferência estatal no âmbito social, para privilegiar a igualdade de
direitos em detrimento da liberdade econômica.

Por isso, faz sentido a analogia de Karel Vasak, segundo a qual enquanto
os direitos de primeira geração estavam ligados ao ideal francês de
liberdade perante o Estado absenteísta, os direitos de segunda
geração, por sua vez, exprimem o símbolo da igualdade de um governo
intervencionista.

131
Capítulo 4

Notadamente, as pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto


do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da
sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel
ativo na realização da justiça social.

Pelo exposto, podemos afirmar que a atuação prestacionista do Estado é uma


marca característica dessa geração de direitos, no sentido de que a intervenção
estatal é imprescindível para a implementação real das prerrogativas referentes à
saúde, educação, lazer e trabalho no seio da sociedade.

Entre as principais manifestações dos direitos de segunda geração, podemos citar


a encíclica papal Rerum Novarum de 1891, a Constituição Mexicana de 1917, a
Constituição Alemã de 1919 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e
Explorado de 1918. Ademais, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma ampla
incorporação dos direitos sociais em diversos ordenamentos jurídicos.

Todavia, apesar de constarem formalmente das constituições promulgadas após


a Primeira Guerra, os direitos fundamentais de segunda geração ainda não se
realizam plenamente no aspecto social, principalmente pela insuficiência de
recursos para que o Estado confira eficácia a eles, o que inicialmente os relegou
à esfera meramente programática. Os países em desenvolvimento, por exemplo,
enfrentam grandes dificuldades para encontrar condições econômicas que
permitam desenvolver a proteção da maioria dos direitos sociais.

2.3 Os interesses difusos e a terceira geração de direitos


A terceira geração dos direitos humanos, ao contrário das duas antecedentes,
não apresenta uma clara identificação de seus agentes operadores, exatamente
porque emergiu de reivindicações espraiadas na sociedade massificada, visando
à preservação de interesses coletivos ou difusos. Tais interesses estiveram
relacionados com:

•• a proteção do meio ambiente;


•• a preservação do patrimônio histórico e cultural;
•• a promoção da qualidade de vida nos ambientes urbano e rural;
•• a harmonia nas relações de consumo;
•• a tutela sobre a comunicação social (mídia);
•• a bioética;
•• a participação na condução das finalidades políticas estatais
(ampliação dos direitos políticos);
•• a autodeterminação dos povos;
•• o conflito entre o amplo acesso à informação;

132
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

•• a preservação da privacidade, dentre outras situações que


demandam especial proteção à personalidade.
Seguindo a trilha histórica, esta geração de direitos tornou-se identificável
principalmente a partir da década de 1960, quando as alterações nas
conformações políticas, os desequilíbrios ecológicos e, com maior destaque, os
progressos tecnológicos da atualidade apontaram novas situações conflituosas,
em que a esfera jurídica das coletividades (por vezes, indefinidas e abstratas)
apresentava-se desprotegida. O fortalecimento das grandes corporações, que
ultrapassaram as fronteiras nacionais, a dinamização dos meios de transporte
intercontinentais, a expansão dos mercados e os recentes avanços nas
tecnologias de comunicação, capazes de interligar pessoas dispersas pelo globo,
entre outros fatores, acarretaram o advento de novos conflitos sociais.

Por exemplo, o uso inadequado dos recursos naturais por indústrias compromete
o meio ambiente para todos, indiscriminadamente, com reflexos em direitos
inerentes a uma determinada comunidade ou mesmo a todo o gênero humano.
Ou, ainda, a disseminação inescrupulosa de fatos inverídicos por órgãos de
reprodução de notícias acaba gerando transtornos de difícil superação para
quase toda a população de determinado país. Ambos os exemplos revelam fatos
que se proliferam na sociedade massificada e, assim, ensejam reclamações
coletivas ou mesmo difusas, no sentido de preservar a integridade de aspectos
inerentes à condição humana.

Logo, mesmo que os direitos das gerações anteriores ainda não estejam
plenamente concretizados, o processo civilizatório fez com que o homem se
deparasse com uma vasta gama de novas situações em que a sua personalidade
era atingida, ensejando a enunciação de novos direitos. Gradativamente, tais
prerrogativas jurídicas estão incorporando-se aos diversos ordenamentos
jurídicos, no plano infraconstitucional ou mesmo nas leis fundamentais, à medida
que ocorre a sua maturação.

Seção 3
Dilemas da participação política
Assim como a sociedade massificada ensejou a terceira geração de direitos,
os chamados direitos da coletividade, ela também agravou os dilemas da
participação política. Em um mundo superpopuloso no qual o regime democrático
– independente do sistema de governo – tornou-se uma tendência predominante,
a participação dos cidadãos nas esferas de deliberação política representa um
problema central.

133
Capítulo 4

Rousseau, a propósito, foi um defensor fervoroso da democracia e só admitia a


participação direta de cada cidadão na assembleia, reprovando qualquer forma
de representação. Em seu entendimento, para que a liberdade e a vida política
realizem-se de fato, é imprescindível que cada cidadão se faça presente no
momento da discussão das leis. Referindo-se às eleições para o parlamento
inglês, que caracterizavam o sistema político da Inglaterra em sua época,
Rousseau (1999, [1762], p. 187) chega a afirmar que o povo inglês só é livre e
soberano durante as eleições, mas volta à escravidão depois delas, “já que com
elas entrega a soberania aos deputados.”

Segundo a perspectiva de Rousseau, portanto, nós brasileiros, que vivemos


em uma democracia representativa, viveríamos em escravidão, à mercê da
arbitrariedade de nossos representantes no legislativo (vereadores, deputados
e senadores). Contudo, seria viável levar toda a população brasileira a uma
assembleia, por exemplo?

A resposta a esta pergunta traz uma relevante informação a respeito da teoria


política de Rousseau: seu modelo de Estado é válido apenas para pequenas
democracias diretas, restritas aos limites geográficos de uma cidade – como
a sua cidade natal, Genebra, por exemplo. O governo de um país de grandes
dimensões geográficas não pode pretender ser democrático da maneira como
Rousseau imaginou, senão através de uma democracia representativa.

Isso configura um grande dilema, pois, ainda que a democracia direta mostre-se
cada vez mais inviável, os modelos de democracia representativa existentes não são
totalmente satisfatórios, pois fazem com que os cidadãos sintam-se muito distantes
do poder político e impotentes diante das instâncias que decidem como vai ser
a sua vida pública. Além disso, esses modelos também alimentam classes de
políticos profissionais que se perpetuam no governo e passam a reconhecer a coisa
pública como coisa privada, apropriando-se dela. Ou seja, favorecem vícios.

Para atenuar os problemas da democracia representativa, os Estados


contemporâneos vêm tentando aperfeiçoar aquilo que atualmente se chama
de democracia semidireta. Ou seja, trata-se de uma democracia na qual o
poder é exercido por representantes, mas o Estado prevê canais pelos quais
qualquer cidadão pode exercer uma participação direta – alguns compulsórios
(como o voto nas eleições de representantes), outros facultativos. Hoje em dia,
praticamente todo Estado democrático consiste numa democracia semidireta; a
questão, então, passa a ser o quanto de participação direta cada modelo permite
e como se dá essa participação.

134
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

3.1 Institutos de participação direta


A Constituição brasileira, por exemplo, prevê alguns institutos de participação
direta, tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa direta.

O plebiscito ocorre quando uma proposição é levada diretamente para a


decisão do eleitor. Isto é, ainda não existe uma lei que atenda a determinado
interesse público, os representantes do poder legislativo não têm certeza sobre a
pertinência desse assunto, e, por isso, o governo realiza essa forma de consulta à
população para verificar se de fato deve ser criada uma lei para regular a matéria.
Um exemplo no Brasil foi o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo,
que aconteceu em 21 de abril de 1993. Após a redemocratização do país, uma
emenda da nova Constituição determinava a realização de um plebiscito no
qual os eleitores iriam decidir se o país deveria ter um regime republicano ou
monarquista controlado por um sistema presidencialista ou parlamentarista. Cabe
notar que a Lei nº 8.624, promulgada pelo presidente Itamar Franco em 4 de
fevereiro de 1993, regulamentou a realização do plebiscito.

O referendo ocorre quando uma proposição, já aprovada indiretamente por


representantes, é levada ao eleitor para que ele expresse confirmação ou
rejeição. Ou seja, no referendo, a lei já foi proposta, mas o legislativo não tem
certeza se o povo quer que ela seja implementada e, por isso, consulta-o. Um
exemplo é o referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e
munições, que aconteceu em 23 de outubro de 2005. Como resultado, a maioria
não permitiu que o art. 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826 de 23 de
dezembro de 2003) entrasse em vigor. Tal artigo apresentava a seguinte redação:
“Art. 35 - É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o
território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.”

Já a iniciativa popular é uma alternativa da qual o povo dispõe quando o


legislativo não atende a determinado interesse e sequer se manifesta sobre
ele. Nesse caso, um número mínimo de eleitores apresenta uma proposição
para que seja legislada. Ou seja, existe uma demanda latente em determinado
setor da população, mas o legislativo nunca se expressou em relação a essa
demanda. Por isso, a própria população pode se mobilizar e propor a lei por
iniciativa própria. No Brasil, são necessárias as assinaturas de 1% dos eleitores
de todo o país, distribuídos em pelo menos 5 estados, para configurar iniciativa
popular. Quatro projetos de lei por Iniciativa Popular já foram aprovados e se
transformaram em leis no Brasil. A primeira foi a Lei 8.930, de 7 de setembro
de 1994, tipificando novos crimes hediondos. O caso mais recente foi o projeto
Ficha Limpa, ocorrido em 2010. Apesar de inúmeras outras mobilizações terem
acontecido, os projetos encaminhados pela iniciativa popular em geral são
adotados por um parlamentar ou pelas comissões, que garantem sua tramitação
no Congresso Nacional, assumindo assim a autoria do projeto.

135
Capítulo 4

3.2 Outros meios de participação direta


Além desses três institutos, existem outras medidas adotadas por governos de
todas as esferas (federativa, estadual e municipal) que viabilizam a participação
direta dos cidadãos, especialmente no que se refere a ações do poder executivo.
A mais conhecida dessas medidas – da qual ainda trataremos com mais detalhe
na próxima seção deste capítulo – é o orçamento participativo. A maneira como
a participação da população acontece na deliberação no orçamento varia. Em
Florianópolis, por exemplo, o governo da gestão 2012/2016 está implementando o
projeto “Orçamento no Bairro”. Nesse projeto, uma comissão organiza assembleias
em diversas regiões da cidade e apresenta aos participantes um conjunto de
propostas de obras a serem feitas naquela região. Os participantes podem optar por
dois dentre os projetos apresentados e fazer sugestões. Independente do modelo, a
ideia básica do orçamento participativo é fazer com que os cidadãos fiquem cientes
e possam participar das decisões que determinam o destino dos recursos públicos.
Outro exemplo de medida governamental comum no Brasil que possibilita a
participação direta são as assembleias organizadas nas cidades para elaborar
ou reformar os planos diretores. Em geral, essas assembleias (intituladas
audiências públicas, pois nelas o governo se propõe a “ouvir o povo”) também são
organizadas por bairros ou regiões, e nelas os participantes opinam sobre como
querem que o seu bairro venha a ser urbanizado (ou não), considerando a demanda
de equipamentos públicos, índices urbanísticos e o zoneamento de atividades.
Obviamente, a participação política não se limita aos meios oficiais. As
manifestações civis que ocorrem por meio da imprensa e desencadeiam reações
no governo são um exemplo de participação extraoficial. Os diversos canais
de comunicação, reivindicação e mobilização existentes na internet também
proporcionam uma potencial participação política. Além disso, associações livres,
como conselhos de bairro, conselhos de pais e mestres, conselhos de classes
profissionais etc., também configuram meios disponíveis de participação direta.

Seção 4
Políticas públicas e métodos de gestão de políticas
Em primeiro lugar, nunca é demais esclarecer que, em português, podemos
usar o vocábulo “política” para falar do fenômeno político ou, ainda, para falar
de medidas adotadas por um governo a fim de atender a demandas populares.
Neste último caso, falamos em política pública, por exemplo, ou políticas
públicas. Em outras línguas, há um item lexical para cada sentido. Em inglês, há
politics (para falar da política como um fenômeno geral) e policy (para falar de
uma política pública).

136
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

A propósito, em inglês há também o termo polity, que designa uma entidade


política ou uma esfera governamental. Portanto, aproveitando essas distinções
lexicais que a língua inglesa oferece, podemos propor uma classificação útil para
entender o que são as políticas públicas. Segundo essa classificação, haveria três
planos destinados à ação política hierarquicamente organizados:

•• o plano constitucional (polity), o mais alto nessa hierarquia, consiste


no espaço de distinção entre a esfera da política e a esfera da
sociedade, podendo a fronteira entre as duas variar conforme os
lugares e as épocas;
•• o plano da atividade política (politics) refere-se à atividade política
em geral, como as disputas partidárias, a competição eleitoral etc.;
•• o plano das políticas (policies) designa, enfim, a política pública,
ou seja, o processo pelo qual são elaborados e implementados os
programas de ação pública.
Portanto, no plano constitucional, uma sociedade civil dá as diretrizes mais
gerais que indicam o que é e o que não é admitido no seu Estado de Direito.
No plano da atividade política, respeitando as diretrizes presentes no plano
constitucional, os atores debatem entre si para definir quais são as prioridades
a serem legisladas e atendidas em cada momento histórico. Por fim, no plano
das políticas, uma vez definidas e legisladas as prioridades daquele momento
histórico (as quais respeitam as diretrizes constitucionais), o governo da situação
define o processo por meio do qual implementará as ações que atenderão aos
interesses públicos definidos como prioridades no plano da atividade política.

4.1 Decisão política e política pública


Essa distinção entre o plano da atividade política (politics) e o plano das políticas
(policies), a propósito, é extremamente útil para distinguir também uma decisão
política de uma política pública. Uma decisão política é uma escolha a partir de
um leque de alternativas (permitidas pela Constituição), conforme a hierarquia
de preferências dos autores envolvidos (preferências manifestas no plano da
atividade política), expressando certa adequação entre os fins pretendidos e os
meios disponíveis. Uma política pública geralmente envolve mais do que uma
decisão e requer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar
as decisões tomadas.

Portanto, uma política decorre de decisões que visam a atender às demandas


públicas daquele momento. Para pensar nas demandas e em como ocorre, na
prática, a definição de prioridades, é útil classificar as demandas públicas em
demandas novas, demandas recorrentes e demandas reprimidas.

137
Capítulo 4

As demandas novas provêm de novos atores no plano da atividade política


(como, por exemplo, a bancada evangélica) ou de novos problemas (como, por
exemplo, a questão ambiental). As demandas recorrentes provêm de problemas
não resolvidos ou mal resolvidos (por exemplo, a reforma agrária). E as demandas
reprimidas são aquelas que ameaçam fortes interesses ou contrariam códigos
de valores estabelecidos (como, por exemplo, a causa gay ou liberação da
maconha). As condições econômicas e culturais influenciam muito a emergência
e o atendimento (ou não) dessas demandas, o que implica o privilégio dado a uma
ou outra. Naturalmente, como as condições econômicas e culturais mudam com
o tempo, também as demandas alternam-se ou se renovam.

4.2 Captação de demandas públicas


Os atores que protagonizam o plano da atividade política – em especial, os
representantes do legislativo e, em geral, os gestores públicos – devem estar
atentos às demandas da população. Para isso, podem e devem servir-se de
ferramentas. São ferramentas úteis para a captação de demandas públicas
os indicadores em geral (dados quantificados sobre setores públicos), as leis
e jurisprudências, os informativos de classes profissionais, as estatísticas
geopolíticas, entre outras. O Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), por exemplo, é um instrumento muito usado por parlamentares e gestores
brasileiros em geral.

Atualmente, os governos têm investido em projetos inovadores para captar


demandas públicas. No Rio de Janeiro, por exemplo, as informações geradas por
todos os órgãos públicos da prefeitura foram recentemente integradas, tendo em
vista um motivo principal: antecipação de possíveis desastres causados pelas
chuvas. Hoje, há um centro de operações inteligente que oferece uma visão
holística (do todo) e melhorou o tempo de reação da defesa pública em 30%.
Em Dubuque (Iowa, EUA), o Prefeito Ruy Buol implementou um programa de
monitoramento de água e energia. O monitoramento é “transparente”: todos os
cidadãos têm acesso aos dados. Com esse programa, houve um aumento de
716% na detecção de vazamentos. Em Honolulu (Havaí), o Prefeito Peter Carlisle
implementou um programa de captação de problemas (demandas) que torna os
cidadãos verdadeiros fiscais públicos. Trata-se de um portal na internet ao qual
todos têm acesso e podem postar fotos e vídeos (com seus smartphones etc.),
comunicando problemas na cidade. Assim, a prefeitura avalia essas “denúncias”
e pode tomar providências de modo mais eficiente.

138
Ciência Política e Teoria Geral do Estado

4.3 Planejamento tecnocrático e planejamento participativo


Uma vez que, no plano da atividade política, as demandas foram legitimadas,
agora, no plano das políticas, o governo tem que tomar decisões e partir para a
implementação das políticas que atenderão às demandas legitimadas. Podemos
dizer que, para isso, há basicamente dois métodos: o planejamento tecnocrático
e o planejamento participativo.

No planejamento tecnocrático, embora o processo ganhe em racionalidade,


ocorrem, muitas vezes, sérios problemas de legitimidade, e nem todas as
variáveis podem ser consideradas nesse processo de planejamento. Nele, o
gestor toma decisões com um grupo de especialistas para definir a melhor forma
de atuação. No fim de 2013, em Florianópolis, o governo municipal usou esse
método para redefinir as tarifas do Imposto Predial Territorial Urbano, o IPTU. O
grupo de tecnocratas estabeleceu novos critérios, a partir dos quais, em algumas
regiões, o IPTU sofreria um aumento de mais de 200%. A população, por não
ter participado desse processo, imediatamente se revoltou e vários setores se
organizaram para contra-atacar o governo municipal, o que surtiu uma série de
efeitos em cascata.

O planejamento participativo apresenta menos problemas de legitimidade. O


Brasil tem vivenciado várias experiências desse tipo de planejamento nas últimas
décadas. Nele, os atores envolvidos na política são chamados para decidir, junto
ao poder público, as soluções. Entretanto, o processo de decisão é muito mais
moroso e geralmente perde em racionalidade, o que pode gerar efeitos negativos
na avaliação da política.

4.4 Avaliação de políticas


A avaliação de uma política pública que passou por um processo de planejamento
e foi implementada pode ser feita com base em diferentes critérios: pela eficácia,
pela eficiência ou pela efetividade.

Quando se avalia uma política pela sua eficácia, o foco é a relação entre os
objetivos estabelecidos e instrumentos utilizados versus resultados efetivos. Por
exemplo, se uma política pretendia oferecer livros para estudantes de escolas
públicas e, por causa dela, depois de determinadas ações, os estudantes das
escolas públicas de dada localidade portavam livros, então a política foi eficaz.

Quando se avalia uma política pela sua eficiência, o foco é a relação entre o
esforço empregado versus resultados obtidos (custo/benefício). Por exemplo,
considerando aquela mesma política que pretendia oferecer livros aos estudantes:
se ela foi eficaz em fornecer os livros, mas os estudantes não passaram a lê-los,
então a política foi ineficiente.

139
Capítulo 4

E quando se avalia uma política pela sua efetividade, o foco recai sobre os
impactos e resultados (sucesso ou fracasso na mudança das condições de vida).
Voltando ao exemplo dos livros, se a política foi eficaz em fornecer os livros e
eficiente porque os estudantes passaram a lê-los, no entanto, dentro de um
certo prazo, não se observaram mudanças nos índices de avaliação educacional
(principalmente no que se refere às habilidades de leitura e compreensão de
texto), então a política não foi efetiva.

140
Considerações Finais

Caro(a) estudante,

Com as noções introdutórias apresentadas neste livro, espero que você esteja
mais bem-informado(a) do que estava antes e, portanto, mais apto(a) a fazer suas
próprias escolhas – não só quanto ao que leu aqui, mas quanto ao que lerá depois
e, principalmente, quanto àquilo em que acreditará. A partir de agora, você dispõe
de um primeiro mapa, bastante pontual, com os possíveis caminhos oferecidos
pela Ciência Política.

Indiretamente, também pretendi ampliar sua consciência política, pois, somente


através dela, podemos aspirar à dignidade humana e à integral condição de
cidadão. Onde quer que esteja hoje, onde quer que você venha a estar, se, após a
leitura deste livro, você conseguir olhar à sua volta e enxergar as relações de poder
que o(a) envolvem, bem como os reflexos de um grande projeto cívico, já estarei
absolutamente satisfeito.

Meus melhores votos,

Prof. Luiz Henrique Queriquelli

141
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Sobre o professor conteudista

Luiz Henrique Queriquelli


É graduado em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), e em Letras-Português, pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci
(UNIASSELVI). Também pela UFSC, é mestre em Estudos da Tradução e,
atualmente, doutorando em Linguística. Como pesquisador, seus trabalhos mais
importantes estão ligados à crítica e tradução de literatura latina antiga, à história
das ideias e à linguística histórica. No currículo, conta com diversas publicações
ligadas à teoria política, além de uma vasta experiência docente no Ensino Superior.

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