Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
jrodrigorodriguez@gmail.com
(Universidade do Vale dos Sinos/CEBRAP, Rio Grande do Sul, Brasil)
Resumo: Este artigo apresenta a construção Abstract: This article presents Franz
conceitual de Franz Neumann elaborada no Neumann’s conceptual framework present in
texto “O conceito de liberdade política”, the text "The Concept of Political Freedom",
cuja finalidade principal é diferenciar poder whose main purpose is to differentiate power
e dominação. Para Neumann, a teoria política and domination. For Neumann, political
deve consistir em uma reflexão sobre a theory should consist of a reflection on
efetivação da liberdade em formas legítimas the effectiveness of freedom in legitimate
de poder, as quais se caracterizam por forms of power, which are characterized by
garantir a efetivação da liberdade humana. A ensuring the realization of human freedom.
liberdade, na visão do autor, é composta de Freedom, in the author's view, is composed
três elementos historicamente construídos, of three elements, the legal, the cognitive
o jurídico, o cognitivo e o volitivo, os and the volitional, which allow to identify
quais permitem identificar seis patologias six pathologies of freedom that result from
da liberdade que resultam da valorização excessive appreciation or depreciation of
excessiva ou da desvalorização de cada each of its elements; respectively, autocracy
um de seus elementos; respectivamente, and legalism, fear and naturalization,
autarquia e legalismo, medo e naturalização, alienation and voluntarism. With the use of
alienação e voluntarismo. Com a utilização this conceptual apparatus Neumann analyses
deste aparelho conceitual Neumann analisa specific political problems such as the
problemas políticos concretos como o McCarthyism in the 1950s United States of
Macartismo que marcou os Estados Unidos America.
dos anos 1950.
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v22i1p115-138
1.Introdução
115
José Rodrigo Rodriguez
A segunda abordagem do poder, por sua vez, está preocupada com a correção,
com a justiça, com a definição de fundamentos para o seu exercício. Como diz
Neumann, de maneira muito eloquente, uma visão puramente descritiva, que encare
o poder apenas como uma estratégia, repele o homem comum. De acordo com o
autor, os homens e mulheres comuns acreditam que o poder deva ser exercido com
base em valores considerados justos, valores que contemplem os interesses de todos
e de todas aqueles e aquelas submetidas ao poder.
sente profundamente que sua preferência deve ser parte de um sistema de valores
universalmente válido, um sistema de direito natural ou de justiça, de interesse
nacional ou mesmo de humanidade (Neumann, 2013, p.109).
vista que se situam os autores inspirados pelo pensamento produzido pelo Instituto
de Pesquisa Sociais de Frankfurt. Ganhou destaque entre estes autores Jürgen
Habermas e sua obra Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade, livro
responsável por recolocar a política e o direito como elementos centrais para este
campo da tradição crítica. O livro aborda o problema do poder de forma semelhante
àquele desenvolvido por Franz Neumann, qual seja, promove uma reflexão sobre os
mecanismos e critérios capazes de proporcionar um exercício legítimo do poder, não
a mera dominação de uma parte da sociedade pela outra.
A preocupação com a qualidade do poder, tanto em Neumann quanto em
Habermas, parte de diferentes diagnósticos de seu tempo histórico e guardam
diferenças conceituais evidentes: Habermas utiliza os conceitos de agir comunicativo
e agir instrumental para diferenciar regimes políticos democráticos e autoritários.
Neumann fala de liberdade e objetificação. No entanto, em linha gerais, os dois
estão preocupados em criticar a predominância de uma visão puramente descritiva
do poder no campo da teoria política e apontar para a centralidade da democracia,
justamente em uma época em que fenômenos de dominação, ou de avanço do agir
instrumental, de grande envergadura estavam se desenrolando diante de seus olhos.
Com efeito, a falta de preocupação da teoria com o fenômeno da dominação
deixa os estudiosos sem instrumentos para criticar os acontecimentos de seu tempo
e abandona os homens e mulheres a si mesmos na tentativa de elaborar as razões de
seu sofrimento, produzindo uma abordagem da política que tende ao conformismo,
à mera aceitação do poder em sua forma atual.
No caso de Franz Neumann, como veremos a seguir, sua preocupação central
em “O conceito de liberdade política” era o avanço do Macartismo e suas práticas
de poder autoritárias. Para Jürgen Habermas de “Direito e Democracia”, o problema
era o avanço do processo de globalização neoliberal nos anos 1990, processo que pôs
em xeque o poder dos estados nacionais, em especial os estados sociais europeus,
tirando dos cidadãos e cidadãs o poder de determinar o rumo de suas vidas, fatos
aos quais o autor faz alusão no prefácio de seu livro.
Diante de fenômenos desta magnitude, deixar de praticar uma teoria política
crítica, incapaz de diferenciar objetivamente poder e dominação, como diz Franz
Neumann, significa compactuar com a última. Para Neumann, diga-se, dominação
significa objetificação de homens e mulheres; sua redução a meros objetos passivos
do poder. Como veremos a seguir, essa objetificação pode se dar no campo do direito,
no campo do conhecimento e no campo da política. Na linguagem de Habermas,
estamos diante do avanço do sistema sobre o mundo da vida, o agir instrumental
sobre o agir comunicativo.
Os dois autores buscam maneiras de pensar o exercício do poder político
com fundamento em critérios universais em um contexto moderno, ou seja, em
2. Os elementos da liberdade
2.1. As liberdades e as patologias sociais da liberdade.
O elemento negativo não pode ser ignorado – isto levaria a aceitação do totalitarismo
– mas ele, por si mesmo, não explica adequadamente a noção de liberdade política.
Traduzido em termos políticos, o aspecto negativo da liberdade necessariamente
conduz à fórmula do cidadão contra o Estado (Neumann, 2013, p.110).
O sistema jurídico liberal tem para Neumann uma função moral, uma
função econômica e uma função política. A função moral desse sistema “consiste
nos elementos intrínsecos de igualdade e segurança que a generalidade do direito
pressupõe”, pois o estado deve tratar todas as pessoas da mesma forma e só pode
agir com fundamento nas leis. Como acabamos de ver, todos devem saber com
antecedência como seus atos serão avaliados pelo estado; se eles podem ser punidos
ou não. Daí decorre, também, a proibição de leis retroativas.
Como afirma Neumann, “parece correto dizer que esse mínimo ético é
inerente a essa estrutura formal”, ou seja, “se o soberano pode decretar medidas
interferindo nos direitos de um indivíduo, o papel do juiz passa a ser aquele de um
policial ou de um fiscal. A generalidade do direito é, portanto, a precondição da
independência judicial, a qual, por sua vez, torna possível a realização daquele
mínimo de igualdade e liberdade inerente à estrutura formal do direito” (Neumann,
2013, pp.118-119).
Além disso, o direito liberal exerce uma função econômica, pois uma
economia competitiva é estruturada com fundamento em contratos, que devem
ser respeitados para que o sistema funcione bem, evitando-se também qualquer
interferência sobre os direitos de propriedade por meio da elevação de impostos ou
restrição da atividade empresarial:
Penso ser claro que nossa vida política, social e econômica não consiste somente em
relações racionais – ou seja, calculáveis. O sonho do período liberal era justamente
que isso fosse possível. Do final do século XVIII à primeira metade do século XIX, a ideia
de uma sociedade racional assumiu, seria possível dizer, características utópicas.
Todas as relações relevantes deveriam ser consideradas jurídicas, o direito deveria
ser universal em caráter, o juiz era somente a “boca da lei”, aplicando-a por meio
de um processo lógico de subsunção. O positivismo jurídico não é somente, como
geralmente pensado, a aceitação do poder político tal como ele é, mas também a
tentativa de transformar as relações do poder político e social em relações jurídicas
(Neumann, 2013, p.123).
por meio de leis. Não haveria mais uma fonte transcendente de poder a garantir
a reprodução da sociedade e sim um processo de criação autônoma de normas
levado adiante por determinadas instituições. Evidentemente, tais normas seriam a
expressão de escolhas sociais, seriam a expressão de determinados valores, mas não
de valores transcendentes e sim de valores produzidos pelo processo de interação
social, ou seja, valores resultantes de uma determinada facticidade.
Mas Neumann mostra que um regime com tais características é uma utopia
impossível: “O elemento não racional, poder, e o elemento racional, direito, estão
frequentemente em conflito” (Neumann, 2013, p.123). O direito é incapaz de
racionalizar totalmente o poder, deixando sempre espaços por exemplo, para a
atuação discricionária do Poder Judiciário na interpretação e aplicação das leis.
Neumann se refere a estes espaços como domínios em que se pode decidir com base
na equidade, o que por sua vez forma padrões decisórios que não se pode definir
racionalmente de uma vez por todas: “mas como é possível definir racionalmente
esses padrões (standards)? Eles podem ser exemplificados e descritos, mas nunca
definidos. Nem poderíamos fazer de outro modo, sob o risco de uma rigidez extrema”
(Neumann, 2013, p.125).
A equidade também é utilizada no campo das liberdades civis, o que exige
que se especifique com mais acuidade o que exatamente estas liberdades garantem.
Nesse sentido, Franz Neumann fala da importância do que ele chama de “direitos de
comunicação” (Neumann, 2013, p.127): direitos individuais que o estado de direito
garante, a par dos direitos civis clássicos. Para o autor, há três tipos de direitos, os
direitos pessoais, os societários e os políticos. Os primeiros são aqueles garantidos
aos homens como sujeitos isolados, direitos que garantem sua segurança, seus
documentos, seus pertences, o direito a um julgamento justo, o direito a buscas e
apreensões razoáveis.
Os direitos civis societários são aqueles que só podemos exercitar em relação
aos demais membros da sociedade, por exemplo, a liberdade de religião, a liberdade
de reunião e de expressão, o direito de propriedade. São direitos que exigem a
limitação do direito dos outros e, por isso, são intrinsecamente comunicativos.
Claro, sem a segurança individual da pessoa não pode haver comunicação livre:
indivíduos sujeitos a buscas e apreensões ou prisões arbitrárias relutariam em se
manifestar livremente.
Finalmente, os direitos políticos são aqueles que derivam da estrutura
política dos estados e, no caso das democracias, consistem no direito de liberdade
de concessão e acesso a todos os cargos públicos, inclusive o direito ao sufrágio, e
a igualdade de tratamento em relação a essas ocupações, profissões e nomeações.
O exercício destes direitos, evidentemente, pressupõe a liberdade pessoal e os
direitos societários.
Montesquieu são autores importantes para este processo, em uma estrada que leva
até Hegel e Marx.
Neumann deixa claro que a liberdade política só pode ser efetivada pela
própria ação do homem “ao determinar os métodos e os objetivos do poder político”
(Neumann, 2013, p.145). Um ditador ou um monarca podem conceder a liberdade,
segue Neumann, mas também podem tirá-la a seu bel prazer. Por isso mesmo, a
democracia é o único regime político que institucionaliza a liberdade e pode evitar
a alienação política: “o sistema político democrático é o único que institucionaliza
o elemento ativista da liberdade política, ele institucionaliza a oportunidade do
homem de realizar a sua liberdade e de se sobrepor à alienação do poder político”
(Neumann, 2013, p.145).
Para o autor, a democracia é o único regime capaz de efetivar os três elementos
da liberdade ao proteger as minorias e a opinião dissidente, permitir que o sistema
político acompanhe o processo histórico e afastar o medo diante do mundo externo:
O ostracismo social pode muito bem ser o resultado de uma demissão – ou recusa
4. Conclusão
O objetivo deste texto foi expor o modelo crítico esboçado em “O conceito de
liberdade política” de Franz Neumann, o qual consiste na construção de uma teoria
política crítica que se orienta pelo objetivo de realizar a liberdade, superando uma
série de patologias que podem ser identificadas com a análise de seus três elementos,
o jurídico, o cognitivo e o volitivo.
Toda esta análise apresenta uma série de conceitos críticos capazes de
detectar casos de supressão da autonomia em diversas âmbitos sociais, sejam elas
as patologias do direito, a autarquia e o legalismo, as patologias do saber, o medo e
a naturalização, e as patologias da vontade, a alienação e o voluntarismo. A meu ver,
o texto apresenta uma agenda de pesquisa bastante extensa que pode vir a integrar
reflexões sobre o direito, sobre as ciências em geral e sobre a ação política em uma
análise interdisciplinar que reflita criticamente sobre as possibilidades realizar a
liberdade em cada momento histórico.
A exemplo da análise de Neumann sobre sua situação histórica no contexto do
Macartismo, este modelo crítico pode ajudar a organizar abordagens que consigam
integrar fatores de naturezas diversas em uma visão multicausal capaz de produzir
avaliações críticas dos avanços e recuos da liberdade em nossa realidade histórica.
Tenho desenvolvido uma parte desta agenda ao desenvolver uma tipologia própria
para as patologias do direito, sob a denominação genérica de perversão do direito
(Rodriguez, 2016). Os resultados que tenho obtido podem vir a ser integrados,
com inspiração neste modelo de Franz Neumann, a resultados obtidos por outros
pesquisadores dedicados a pesquisas em outras disciplinas, ou mesmo servir de
Referências