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A ÉPOCA DA RAZÃO

1 – SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: uma obra completa e atual sobre a trajetória da igreja
cristã desde as origens até o século XXI; tradução Giuliana Niedhardt – 1.ed. – Rio de Janeiro: Thomas
Nelson, 2018. KINDLE

[1-6959] “A época da Reforma foi marcada pelo debate cristão sobre o caminho da
salvação; já a época da razão destacou-se pela negação de toda religião sobrenatural,
e o apreço pela ciência e pela razão humana substituiu a fé cristã como fundamento da
cultura ocidental. Muitos protestantes enfrentaram essa crise de fé não com
argumentos, mas com a experiência de conversão sobrenatural, uma vez que a fé se
baseava menos em dogmas e mais em experiência. Esse cristianismo evangélico
difundiu-se rapidamente apenas pelo poder da pregação, e muitos cristãos
perceberam que o apoio do Estado não era mais essencial para a sobrevivência do
cristianismo; sendo assim, os cristãos modernos poderiam aceitar a liberdade
religiosa.”

Grafico do livro

[1-6980] “Se o ódio contra o fanatismo religioso e uma veneração à tolerância de todas
as opiniões religiosas nos soam familiares. Isso se deve ao fato de que as posturas da
época da razão não são coisa do passado, isto é, continuam presentes nos valores do
mundo ocidental.”

[1-6980] Chamamos essa revolta de época da razão – ou, como alguns preferem,
Iluminismo – quando, nas palavras de Charles Willians, “os interesses nacionais e o
relaxamento mental excluíram da cultura a metafísica”.
O espírito da época da razão era nada menos do que uma revolução intelectual,
uma maneira totalmente nova de olhar para Deus, para o mundo e para si
mesmo; podemos dizer que esse foi o nascimento do secularismo.
[1-6996] A Idade Média e a Reforma foram séculos de fé no sentido de
que a razão servia à fé, de que a mente obedecia à autoridade – no caso
dos católicos, a autoridade, a autoridade da Igreja; no caso dos
protestantes, a autoridade da Bíblia. Em ambos os casos, porém, a
palavra de Deus tinha primazia, e não os pensamentos humanos, e a
preocupação básica do homem nesta vida era sua preparação para o
porvir.
A época da razão repudiou isso, substituindo a fé pela razão, e a
preocupação básica do homem já não era mais a preparação para a
próxima vida, mas a felicidade – não as emoções, mitos ou superstições.
[1-6997] Como esse novo espírito criou raízes e cresceu? Suas sementes
provavelmente foram lançadas na época da Reforma, em um movimento que
os historiadores chamam de Renascença. A palavra significa renascimento e
refere-se à recuperação dos valores das civilizações clássicas grega e romana
que foram expressos na literatura, na política e nas artes. Em certo sentido, a
Reforma não seria possível sem a influência do humanismo renascentista, que
busca a prosperidade humana, o indivíduo equilibrado com um conjunto
completo de habilidades e virtudes. A leitura de textos clássicos das gloriosas
épocas romana e grega era considerada um passo crucial para uma boa vida, e
o ato de ler tais obras era entendido como uma conversa com um autor
famoso, um encontro prático tanto com o autor quanto com sua cultura. A
leitura do texto em seu idioma original, por sua vez, era o nível mais elevado
nessa iniciativa de edificação da alma. Todos os principais reformadores
adotaram essa abordagem humanista renascentista aos textos e passaram a
acreditar que precisavam ter contato com a Bíblia em seu idioma original.

[1-7012] “As diferenças entre a Reforma e a Renascença estão justamente nisto, na


visão que tinham do homem, uma vez que os reformadores pregavam o pecado
original do homem e viam o mundo como um lugar caído em relação ao plano original
de Deus, ao passo que a Renascença tinha uma visão positiva da natureza do homem e
do universo em si. Essa confiança no homem e em suas capacidades floresceu e
espalhou-se pela atmosfera do Iluminismo.”

[1-7028] O Iluminismo foi, na verdade, uma série de “iluminações” que


influenciou a Inglaterra, a França e outros lugares antes de finalmente chegar a
Alemanha. Seu conceito básico foi captado pelos primeiros pensadores
iluministas franceses, que fizeram várias observações a partir de experiências
fascinantes que tiveram na Inglaterra, onde eles viram mais prosperidade e
mais liberdade, uma vez que o governo e a Igreja atuavam menos em sentido
de restringir os cidadãos, os quais desfrutavam de um nível mais elevado de
liberdade para pensar por si mesmos. Esses diversos elementos foram
finalmente reunidos em uma crença central: se os indivíduos não fossem
limitados e restringidos pelo fardo das tradições culturais e fossem autorizados
a pensar por si, desfrutariam de prosperidade, uma vez que a liberdade de
pensamento, independente de tradições, produz verdade e prosperidade. Essa
percepção foi, então, expandida de inúmeras maneiras.
[1-7043] Por fim, a época da razão brotou de uma nova fé na lei e na ordem. A
ciência moderna surgiu nos séculos XVI e XVII e encheu os homens de
perspectivas quanto a um novo tempo de paz e harmonia. Os pioneiros dessa
ciência moderna forçaram os homens a pensar de uma nova maneira sobre o
universo: Copérnico (1473-1543), insistindo que o sol, não a terra, era o centro
do universo; Johann Kepler (1571-1630), concluindo que o sol emitia uma força
magnética responsável pela movimentação dos planetas em suas respectivas
órbitas; e Galileu Galilei (1564-1642), provando a aceleração constante de
corpos que caem por meio de um telescópio que ele mesmo construiu para
examinar os planetas.
[1-7044] Todas essas descobertas, entretanto, precisavam ser unificadas
em um único princípio que explicasse o movimento dos corpos celestes
e apresentasse o universo como uma grande máquina que operava por
leis inalteráveis, façanha esta realizada pelo cientista mais ilustre da
época da razão: Isaac Newton (1642-1727).
Em 1687, Newton publicou sua grandiosa obra, Principios matemáticos
da filosofia natural, em que todas as leis de movimento, tanto de corpos
celestes quanto terrestres, foram harmonizadas em um principio
superior para o universo: a lei da gravidade.
O público leitor da Europa estava fascinado pela maravilha da máquina-mundo
de Newton. O mundo medieval de espíritos invisíveis – anjos e demônios –
parecia menos plausível e até mesmo supersticioso e, em seu lugar, surgiu um
universo centrado no Sol e operado por leis da física, por sua vez explicadas e
justificadas pela matemática.
No novo modelo, o Sol tomou o lugar da Terra como centro. Alguns
acreditam que a humanidade havia perdido sua posição de ápice
supremo da criação no mundo formado por Deus, outros sentiam que o
próprio Deus havia perdido sua posição e parecia menos necessário para
sustentar o mundo diante do fato de que o mundo opera por leis
discerníveis. Os leitores de hoje, contudo, devem ser lembrados que o
surgimento da ciência moderna dependeu absolutamente de convicções
cristãs e que os responsáveis por sua continuidade foram mentes
treinadas em ambientes e instituições cristãs. Também vale observar o
novo enfoque sobre Deus nessa época, que nas discussões dessa época
costuma ser tratado como mais um ator no palco, não como o Senhor
majestoso dirigindo todo o projeto.
[1-7060] Esse acesso repentino aos mistérios do universo pareceu
engrandecer o papel da razão humana. Se o universo é uma maquina
estável com todas as peças coordenadas por um grande projeto, então o
homem precisa apenas pensar com clareza para encontrar o sentido da
vida e a verdadeira felicidade. Essa ideia fundamental de que o homem
tem a capacidade de encontrar a verdade pelos sentidos e pela razão
deu origem ao nome do período: época da razão.
O cristianismo não pôde escapar das consequências dessa revolução
intelectual. Durante 1200 anos, as ideias de Agostinho haviam
dominado a cristandade, segundo as quais o homem era um pecador
escravizado que necessitava, sobretudo, da graça sobrenatural de Deus.
E no intuito de garantir a disponibilidade dessa graça por meio da Igreja
Cristã, Deus ordenara os poderes do Estado para proteger a verdade e
punir o erro.
[1-7076] Agora, porém, os intelectuais argumentavam algo diferente: o homem
não é pecador; ele é uma criatura sensata e aparentemente precisava mais de
bom senso do que da graça de Deus.
Os cristãos vivenciaram duas atmosferas contrastantes. No início,
durante os anos finais do século XVII, alguns cristãos, especialmente na
Inglaterra, tentaram harmonizar razão e fé, alegando que o cristianismo
eras totalmente racional, mas algumas verdades vêm pela razão, e
outras, por revelação. Algumas coisas, como a existência de Deus, vêm
pela observação do céu; outras, como a ressureição de Cristo, pelo
testemunho das Escrituras.
Com o tempo, entretanto, após o começo do século XVIII, essa
atmosfera mudou. Na França, a confiança na razão crescia, e os cristãos
perceberam que muitos intelectuais consideravam todas as declarações
em favor da revelação das Escrituras meras tolices supersticiosas. O
clima era obviamente mais hostil.
O melhor representante da primeira geração foi John Locke (1632-1704), um
filósofo influente que nunca minimizou a importância da fé. Em sua obra Ensaio
sobre o entendimento humano, ele não apenas demonstra o funcionamento da
razão, como também indica que a existência de Deus é “a verdade mais óbvia
que a razão pode desvendar”.
Um exame mais aprofundado, entretanto, mostra que o Deus
considerado por Locke pouco tem em comum com o Deus do Êxodo ou
com o Deus da ressureição de Jesus, até porque tentativas de justificar o
cristianismo de modo racional infelizmente costumavam adaptá-lo ao
que parecia ser racional no momento. Uma antiga e profunda sabedoria
cristã é esquecida. Os cristãos não chegam à convicção cristã como
conclusão de um longo argumento; eles creem por causa do relato das
primeiras testemunhas oculares que foi poderosamente validado pelo
poder contínuo de Deus. O Novo Testamento é um livro de testemunhos
poderosamente validados da ação divina, não um livro de lógica
dedutiva, portanto, a razão pode servir à revelação, mas nunca
substituí-la.

[1-7092] Muitos na geração seguinte, a primeira do século XVIII, já não se


sentiam em dívida ao passado cristão; portanto, em vez de tentar harmonizar a
natureza com as Escrituras, eles simplesmente colocaram a revelação de lado.
Muitos intelectuais alegavam que as partes da Bíblia que estão de acordo com a
razão são claramente desnecessárias; já as partes que contradizem a razão – os
mitos, os milagres e a lenga-lenga sacerdotal – são simplesmente inverídicas;
essa postura mais militante com relação à fé evidenciou-se de modo especial na
França.
[1-7108] Em Paris, um grupo de pensadores e escritores conhecido como
philosophes levou a época da razão ao seu auge. Eles não eram filósofos
dedicados a uma disciplina acadêmica, mas sim homens das letras, alunos da
sociedade que analisavam seus males e defendiam reformas, além de
disseminar conhecimento e emancipar o espírito humano.
Curiosamente, o ateísmo não era moda nessa “sociedade educada”. A maioria
dos “infiéis” que ridicularizavam o cristianismo durante o século XVII acreditava
em um ser supremo, mas considerava uma atitude supersticiosa defender que
ele interferia na maquina-mundo. Essa crença passou a ser chamada de deísmo,
um movimento especialmente popular em meio a anglófonos que estava a
metade do caminho do ateísmo. Defendia ser possível sustentar a ideia de Deus
e rejeitar o conceito de que Ele se envolve ou interfere no mundo.
O Deus dos deístas é, por vezes, chamado de Deus relojoeiro, pois criou
o mundo assim como um relojoeiro fabrica relógio, depois deu corda e o
deixou funcionando. Uma vez que Deus era um relojoeiro perfeito, não
havia necessidade de interferir no mundo depois. Por essa razão, os
deístas rejeitavam qualquer coisa que se assemelhasse a uma
interferência divina no mundo, tal como milagres ou revelações
especiais registradas na Bíblia.
Os deístas acreditavam que sua religião era a religião original do homem
e dela todas as demais religiões haviam derivado por distorção, as quais,
por sua vez, eram obra de sacerdotes que inventavam as teologias, os
mitos e as doutrinas das diversas religiões em busca de aumentar seu
próprio poder.
[1-7122] O propagandista mais influente do deísmo foi Voltaire (1694-1778),
que personificou o ceticismo do Iluminismo francês e, acima de todos os
outros, popularizou a ciência de Newton, lutou pela liberdade do indivíduo e da
imprensa, e difundiu o culto da razão. Ele produziu um número prodigioso de
obras (história, peças teatrais, panfletos, ensaios e romances) e, por meio de
correspondências, estimadas em 10 mil cartas, ele disseminou com perspicácia
as virtudes do Iluminismo e atacou ferozmente os abusos da época.
Voltaire alcançou sua maior fama por ser o critico mais implacável das
igrejas estabelecidas, tanto protestantes quanto católicas, visto que se
mostrava indignado com a intolerância do cristianismo organizado e
desgostoso com as rixas insignificantes que pareciam monopolizar o
tempo de muitos sacerdotes e clérigos. A despeito de sua crítica mordaz
ao cristianismo, entretanto, seu objetivo não era destruir a religião,
tanto que certa vez ele disse que, se não houvesse um Deus, seria
necessário inventar um.
Voltarie tinha muitos discípulos, mas seu único concorrente na propagação do
deísmo era um conjunto de livros: a famosa Enciclopédia francesa, editada por
Denis Diderot (1713-1784). Os dezessete volumes da Enciclopedia constituíam o
principal monumento dos philosophes e anunciavam a supremacia da nova
ciência, defendiam a tolerância, denunciavam a superstição e expunham os
méritos do deísmo. O artigo de Diderot sobre o cristianismo professava grande
respeito pela religião de Jesus, mas seu efeito era produzir no leitor um
profundo desprezo por suas falhas sociais.
Ao contrário da maioria dos críticos anteriores da Igreja, os philosophes
não eram hereges ou dissidentes que atacavam em nome de Cristo; na
verdade, esses homens lançavam seus ataques de fora da Igreja. Além
disso, não dirigiam seus ataques a um único dogma, mas ao fundamento
de toda a verdade cristã, e seu propósito, evidente a todos, era demolir
a cidadela.
[1-7138] O cristianismo, insistiam os philosophes, era uma conspiração
perniciosa destinada a entregar a terra para os poderes opressivos de uma
casta sacerdotal, e a religião revelada era nada menos do que um esquema
para explorar os ignorantes. Voltaire gostava de referir-se ao cristianismo como
a “coisa infame”, e sua acusação mais impiedosa contra a fé descrevia milhares
de vítimas da intolerância da fé cristã. Ironicamente, os críticos do cristianismo
mediam o comportamento cristão por padrões que chamavam de humanos e
ignoravam o fato de que tais padrões humanos eram, na verdade, legado do
ensino cristão.
Os intelectuais julgavam o cristianismo pelos simples padrões humanos
do bem e do mal. Se a Igreja, em nome da pureza da doutrina,
sancionava a carnificina sangrenta dos próprios cristãos – como havia
acontecido nas guerras religiosas –, o cristianismo, longe de ser sagrado,
era uma instituição perversa, uma vez que impedia a paz, a harmonia e
o progresso nos povos da terra.
A principal arma apontada para a Igreja era a verdade. “Pensamos que o maior
serviço a ser feito pelos homens”, disse Diderot, “é ensiná-los a utilizar a razão,
a considerar como verdade apenas aquilo que verificaram e comprovaram.”
No entanto, os padrões de verdade excluíam a doutrina cristã desde o
início e, quando os ortodoxos tentavam argumentar com base em suas
premissas básicas, os infiéis apenas zombavam porque se recusavam a
levar em consideração argumentos extraídos da autoridade ou da
tradição, fosse a Bíblia ou a Igreja, argumentando que eles
simplesmente não eram “razoáveis”.
[1-7155] Esses ataques contra as convicções cristãs exigiam uma resposta vigorosa e
fundamentada por parte dos cristãos ortodoxos, mas, infelizmente, nos países
católicos, como a França, a reação foi inadequada. Os líderes da Igreja não estavam
indiferentes à crescente onda de infidelidade, mas tentaram controlá-la por meios
tradicionais, isto é, recorreram às autoridades seculares para censurar os livros
“perigosos”. No entanto, elas geralmente desconheciam as principais questões
apresentadas pelos escarnecedores.
Na Inglaterra foi diferente. Vários homens escreveram eficazmente contra o
deísmo – nenhum deles, porém, mais do que o bispo Joseph Butler (1692-
1752), cuja obra monumental, Analogia da religião, praticamente encerrou o
debate para os pensadores. Conflitos persistiram por anos, mas, depois de
Butler, ficou evidente que as questões fundamentais haviam sido resolvidas.
Os Deístas, com seu otimismo confiante, supunham saber tudo sobre a
sabedoria e o propósito de Deus, e extraíam todas essas informações do
padrão da natureza, ao passo que Butler via com clareza desarticulante
que a vida é cheia de enigmas e perplexidades.
[1-7171] Ele não tentou provar a existência de Deus, pois deístas jamais
negaram tal premissa, tampouco rejeitou a razão; pelo contrário,
aceitava-a como luz natural do homem, mas desafiou sua soberania. A
razão, disse Butler, não fornece um sistema completo de conhecimento
e, na vida comum, pode oferecer-nos apenas probabilidades.
Assim, Butler minou a fortaleza do deísmo, sua confiança na razão. A
natureza, afirmou, não é um domínio onde a razão impera, mas está
repleta de obscuridades e mistérios inexplicáveis.
Por fim, o deísmo acabou desmoronando por suas próprias fraquezas,
pois estava fundamentado em um falso otimismo e não dispunha de
explicações para os males e os desastres da vida. Uma vez que as leis da
natureza eram claras e imutáveis, os deístas presumiam que as escolhas
morais do homem também eram simples e imutáveis.
A rejeição final do deísmo, entretanto, não recolocou o cristianismo no
lugar central da cultura ocidental, e o esforço negativo da época da
razão perdurou. A cultura moderna – sua arte, sua educação, sua
política – estava liberta da influência cristã formal. Os homens fizeram
uma tentativa deliberada de organizar uma civilização religiosamente
neutra, e isso significava que a fé deveria atuar nos âmbitos particulares,
limitados à Igreja, ao lar e ao coração, justamente o que encontramos
hoje nas sociedades modernas seculares.

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