Você está na página 1de 2

/,952'20È6

O Livro da Paz da mulher angolana, as heroínas sem nome

Heroínas
sem nome
Angola é um país cortado em dois, para usar
uma expressão de Frantz Fanon. A geografia social
que se desenhou no pós-guerra separa e hierarquiza
dois mundos diferentes. A fractura passa por uma
realidade económica e social que mantém a maior
parte da população na base da pirâmide social.
MARGARIDA PAREDES

É    ,
organizado pela angolana Dya
Kasembe e a moçambicana
Paulina Chiziane, ambas escritoras, e reúne
em volume pequenas narrativas de mulhe-
do as mulheres angolanas manifestaram a
sua insatisfação pelo limitado reconheci-
mento da participação das mulheres nos
vários processos de paz. A iniciativa e fi-
nanciamento do projecto foram assegura-
pabilizações e vitimizações deste ou daque-
le lado da guerra. Este projecto é nobre e
inscreve na memória colectiva e na história
de Angola, Heroínas sem Nome, estes acto-
res periféricos cujas experiências de vida são
res angolanas que sobreviveram à guerra dos pela APN, Ajuda Popular da Noruega, quase sempre silenciadas pelo discurso do-
para contar as suas histórias. Resultado de ONG responsável pela desminagem de minante da História. Não sem resistência
um trabalho multidisciplinar de uma equi- uma parte do território angolano. como testemunham as palavras de uma
pa de dezoito pessoas, as entrevistas foram Esta equipa desenvolveu uma metodo- guerrilheira que reconhece a sua contribui-
efectuadas em seis províncias do país, Bié, logia que Helena Zefanias, da APN, iden- ção no processo da construção da nação
Cabinda, Huíla, Kwanza Sul, Luanda e tifica como os textos terem sido trabalha- «Eu entrei na mata quando era menina.
Malanje durante um ano e daí resultaram dos individualmente «com cada uma das Cresci. A força que eu ganhei ninguém a
oitenta narrativas que dão voz a mulheres co-autoras, na qualidade das histórias e nas derruba. Eu participei na história. Eu fiz a
que pertenciam aos dois lados da guerra técnicas de entrevista», o que indica que as história, agora, pertenço à história!»
civil, sem identificar o lado da guerra ao narrativas foram co-construídas pelas en-
qual as memórias pertencem. trevistadas e pelas entrevistadoras. Uma Livro de muitas leituras
No processo de recolha destas biogra- equipa heterogénea que incluiu escritoras,
fias as entrevistadoras foram surpreendidas professoras, jornalistas, artistas plásticas, Sem banalizar a experiência da guerra, o li-
pelo facto de as entrevistadas falarem so- empresárias, activistas dos direitos huma- vro permite muitas leituras. Cada uma das
bretudo da guerra quando o intuito do li- nos e políticos desenvolveu este projecto entrevistadas contribui com uma história
vro era falarem da paz. A ideia surgiu após no intuito de contribuir para a construção pessoal, única. Histórias que têm de ser li-
a realização da Conferência Internacional da Paz em Angola. A manipulação ideoló- das nas entrelinhas dos não-ditos. São várias
«Mulher e Participação Política e Pública» gica foi feita para apresentar versões conci- as que estão carregadas de sofrimento: «Sou
em Outubro de 2006, em Luanda, quan- liadoras de memórias em conflito sem cul- filha da guerra. Nasci no capim. Aqui me

88 )(9(5(,52²É)5,&$
chamam Cangila, nome que dão a todos os lheres mais velhas, viúvas de guerra ou do das armas foi sempre o santuário dos
que nascem no caminho ou no céu coberto abandonadas, há quem tenha casado com homens. Eles defendem-no. Até parece
de pólvora. Meu pai morreu na tropa e de- um homem mais novo porque «só os jo- que têm medo que as mulheres penetrem».
pois a minha mãe […] Fiquei órfã. A outra vens é que estavam livres e eu queria um Outras recordam com nostalgia o tem-
coisa que me dói é a mina que me tirou a homem só para mim». po da guerra: «A vida nas matas era dura,
perna. Mulher mutilada parece que perde A leitura destas narrativas coloca as mas as pessoas eram mais humanas e a soli-
nome de mulher, fica só a mutilada». mulheres em dois lugares tradicionais nas dariedade era maior. Nas negociações de
Não foram só as minas a serem utiliza- guerras. Como “vítimas” passivas ou como paz, quando registaram os desmobilizados
das como armas de guerra, o sequestro, o activas “heroínas da resistência”. Os senti- escreveram apenas os homens e nos disse-
estupro também foram utilizados como mentos e emoções dos leitores são apanha- ram que fomos incluídas nos grupos sociais
armas de humilhação e inferiorização: dos facilmente na dicotomia desta armadi- das mulheres vulneráveis. Sinto-me magoa-
«Naquele tempo os mais velhos andavam a lha. Solidarizam-se com o sofrimento das da, traída». Nestes casos as mulheres partici-
apanhar raparigas de 10 até aos 20 anos “vítimas” e projectam-se na resistência das param ao lado dos homens nos combates.
para carregar armamento e servir a eles “heroínas”. O título tenta ultrapassar esta «Enquanto estávamos na guerrilha éramos
como mulher», conta uma das entrevista- dicotomia considerando que todas as nar- todos iguais e éramos úteis. Hoje, os meus
das que não quer mais recordar o tempo radoras são Heroínas porque sobreviveram antigos subordinados passam por mim em
em que punham as meninas numa fila e as à guerra e têm coragem de narrar as suas bons carros, realizados, porque são homens,
obrigavam a cantar «Vamos ou não vamos? histórias, o que é verdade porque este livro a guerra terminou e nos ignoram».
Vamos. Caminha ou não caminha? permite exegeses menos polarizadas. Este livro fala da guerra, do desespero e
Caminha. Se sair fora da fila, apanha por- Muitas Heroínas recusam o discurso da da desilusão das sobreviventes, mas tam-
rete ou não apanha? Apanha». vitimização e a guerra parece ter sido uma bém do amor à vida debaixo de um céu
Outras histórias, pelo contrário, reve- coberto de pólvora. Ao dar voz a estas
lam como algumas mulheres superaram a
dor, «um dia fui raptada e levada para as
matas. Aí amei outro homem, que me deu
outro filho. Eu sofria ao pensar nos filhos
“ Este livro fala
da guerra, do desespero
e da desilusão das
Heroínas sem Nome esta obra mostra as
mulheres angolanas como uma forte e cria-
tiva comunidade unida por um sofrimento
partilhado. Uma obra inspiradora contra o
que tinha deixado do outro lado. Por causa sobreviventes, mas também esquecimento que ilumina uma comunida-
dessa dor eu cantava baixinho e a mágoa do amor à vida de de mulheres sobreviventes a lutar pela
desaparecia. As pessoas começaram então a paz social, por uma cidadania mais igualitá-
pedir-me: canta. Canta! Nesse ambiente eu
debaixo de um céu ria, por uma maior virtude cívica e renova-
coberto de pólvora


descobri o poder da minha voz. Posso até ção social, utilizando as armas da emancipa-
dizer que foi a guerra que me fez cantor». ção feminina, do conhecimento, do empre-
Este livro está cheio de soluções criati- oportunidade, sobretudo para as comba- endorismo, do associativismo e da solidarie-
vas para resistir e sobreviver à guerra, histó- tentes: «durante a vida militar não sofri dade social. Estas mulheres dizem através
rias de mulheres emancipadas, «chamam- nenhuma discriminação da parte dos ho- das suas práticas e dos seus discursos que
me Maria tudo só porque consegui defen- mens, militares como eu, nem dos superio- não aceitam ser secundarizadas nessa gran-
der os meus direitos» e ir contra a tradição res ou subalternos. Graças ao meu empe- de narrativa colectiva que é a construção da
que permitia que os bens das viúvas fossem nho e à minha coragem demonstrada em nação. Nesta óptica este livro de memórias
saqueados pela família do marido, conta combates, ganhei o curso de comunicação é um livro político.
uma delas. Outra, casada com um homem em Luanda e agora tenho um cargo de di-
muito mais velho resolveu arranjar um se- recção». Pelo contrário, há outras que O Livro da Paz da mulher angolana,
gundo marido mais novo, protegendo usando uma retórica feminista acusam as As heroínas sem nome
sempre o mais velho – «Vivi assim, debaixo estruturas militares: «A discriminação exis- Dya Kasembe e Paulina Chiziane
do mesmo tecto, com dois maridos». Num te em todo o lado, mas é no exército que se (entrevistadoras)
mercado sentimental que penaliza as mu- faz sentir com maior intensidade. O mun- Editorial Nzila, Luanda 2009

É)5,&$²)(9(5(,52 89

Você também pode gostar