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EXIGÊNCIA DE PROGRAMA DE

INTEGRIDADE NAS LICITAÇÕES

FERNANDO VERNALHA GUIMARÃES


ÉRICA MIRANDA DOS SANTOS REQUI

1 Introdução
Tivemos na última década avanços importantes na legislação
anticorrupção, culminando com a edição da Lei Anticorrupção, em
julho de 2013. Um dos pontos de maior importância no contexto dessa
legislação é o programa de integridade, constituído de um conjunto de
regras e procedimentos implementados na estrutura corporativa com
vistas à detecção de práticas e eventos de corrupção. Esse programa,
também conhecido por compliance integridade, já vem sendo utilizado
em diversos países1 como uma ferramenta eficaz para estimular os
agentes do mercado não apenas ao exercício do autocontrole e da
autolimitação no que diz com atuações que possam expor a empresa

1
Exemplificam essa afirmação as diretrizes para elaboração de sentenças dos Estados Uni-
dos da América (United States Sentencing Commission Guidelines Manual), que disciplinam
a consideração de programas de integridade na aplicação de multas contra pessoas jurídi-
cas, prevendo expressamente a atenuação de penalidades caso reste comprovada a aplica-
ção efetiva de medidas de integridade (BRASIL. Ministério da Transparência, Fiscalização
e Controladoria-Geral da União. Manual de responsabilização administrativa de pessoa jurídica.
Brasília: CGU, 2016. p. 77. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/responsabi-
lizacao-de-empresas/manual-responsabilizacao-pj-1.pdf. Acesso em: 4 nov. 2016).
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ao risco de corrupção, mas a dedicar-se à investigação e à punição dos


agentes envolvidos nesses eventos.2
Pode-se afirmar que o culto ao compliance reforça uma tendência
de partilha de papéis do Estado com a sociedade no combate às práticas
de corrupção, quando os privados passam a atuar de modo mais efetivo
para investigar, apurar e repreender corruptos e corruptores. No âmbito
do mercado, as empresas que adotam seus programas de integridade
passam a ser vistas com distinção, gerando a percepção de que grupos
aparelhados para o combate à corrupção não só se veem menos sujeitos
ao envolvimento em escândalos de corrupção (reduzindo-se o risco
de prejuízos de imagem), como favorecem economias importantes
para toda a sociedade. Com isso, os programas de compliance vão se
tornando elemento obrigatório nas transações corporativas, exigidos
como condição para que empresas possam transacionar com terceiros.
A relevância do compliance e sua difusão cada vez maior nas
transações do mercado vêm suscitando a discussão sobre sua exigibi-
lidade como condição de participação em licitações públicas. Exigência
dessa ordem pode tanto ser examinada em sua dimensão extrínseca à
contratação pública, como um instrumento de política estatal para o
estímulo à disseminação do compliance no âmbito do mercado, como
na sua relação de pertinência com os fins primários da licitação: a exi-
gência do compliance vista aqui como uma aferição apta a contribuir
para a seleção da melhor proposta na licitação.
No primeiro caso, a referida exigência cumpre uma função ex-
traeconômica na licitação, quando o processo de contratação pública
passa a perseguir outros objetivos que não exclusivamente a seleção da

2
No âmbito internacional, a OCDE possui diversas diretrizes a respeito e, inclusive, re-
comenda a adoção de programas de integridade nas compras públicas. Em 2011, aliás,
foi publicada a Avaliação do sistema de integridade da Administração Pública Federal brasileira
realizada pela OCDE, na qual foram analisadas a implementação e a coerência de instru-
mentos, processos e estruturas de salvaguarda da integridade na Administração Pública
Federal brasileira A análise baseou-se em quatro conjuntos de princípios desenvolvidos
pela OCDE: (i) Princípios para a Gestão da Ética no Serviço Público (Principles for Managing
Ethics in thePublic Service); (ii) Diretrizes sobre a Gestão de Conflitos de Interesses no Ser-
viço Público (Guidelines for Managing Conflict of Interest in thePublic Service); (iii) Princípios
para o Fortalecimento dos Contratos e das Licitações Públicas (Principles for Enhancing
Integrity in Public Procurement); e, (iv) Princípios de Transparência e Integridade nos
Processos de Intermediação de Interesses (Principles for Transparency and Integrity in
Lobbying). A Avaliação da OCDE sobre o sistema de integridade na Administração Pública Federal
brasileira pode ser consultada em OCDE. Avaliação da OCDE sobre o sistema de integridade
da Administração Pública Federal brasileira. 2011. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/
assuntos/articulacao-internacional/convencao-da-ocde/arquivos/avaliacaointegridade-
brasileiraocde.pdf. Acesso em: 4 nov. 2016.
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EXIGÊNCIA DE PROGRAMA DE INTEGRIDADE NAS LICITAÇÕES
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proposta economicamente mais vantajosa. Assim se passa com objetivos


associados à autossustentabilidade ambiental ou ao desenvolvimento
de micro e pequenas empresas, já erigidos pelo legislador como pautas
a condicionar os rumos da licitação. Pretender utilizar-se da contratação
administrativa para estimular o mercado à adoção de programas de in-
tegridade significará atribuir uma finalidade extraeconômica à licitação.
O segundo enfoque pressupõe uma abordagem voltada ao
enquadramento do compliance como um requisito de participação que
se legitima nos objetivos econômicos da licitação, compondo o rol de
exigências e parâmetros voltados a delimitar a maior vantagem perse-
guida pela Administração nos casos concretos.
O presente texto pretende oferecer algumas abordagens sobre o
assunto, sem qualquer pretensão de exauri-lo.

2 O combate à corrupção como um fim extraeconômico


da licitação
Não é novidade que o Estado tem se utilizado da contratação
pública para fomentar interesses extrínsecos aos benefícios econô-
micos derivados do processo de licitação. A contratação pública tem
siso utilizada, por exemplo, para desenvolver empresas de menor
porte e para estimular a preservação do meio ambiente,3 pautas que
interessam ao Estado e à sociedade, mas que não se relacionam com
a “vantajosidade” (por assim dizer) inerente à licitação. Ao contrário
disso, a busca por interesses extraeconômicos da licitação é sempre apta
a torná-la economicamente menos vantajosa. Afinal, a promoção de
interesses extrínsecos se faz mediante condicionantes de participação,
restringindo-se o universo de ofertantes. E toda a redução do universo
de ofertantes vem em prejuízo da competitividade, desafiando a efici-
ência e a economicidade da licitação.

3
“O texto original do art. 3º da LGL estabelecia duas finalidades essenciais: o prestígio à
isonomia (direito-garantia dos licitantes) combinado com a contratação mais vantajosa à
Administração (interesse público primário). Com a redação dada pela Lei 12.349/10 (oriunda
da MP 495/10), a norma passou a ser integrada pelo dever de promoção do desenvolvimento
nacional sustentável. Está-se diante de nova configuração do processo licitatório, a qual não
envolve apenas a inserção de outro objetivo, mas sim a compreensão mais abrangente e
integrada dos fins da licitação – isto é, o dever de ser instalada a escolha pública que traga
a promoção do desenvolvimento nacional respeitoso da sustentabilidade” (MOREIRA,
Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de
Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 2. ed. rev., atual. e aum.
São Paulo: Malheiros, 2015. p. 99).
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Aqueles condicionantes que se legitimam nos parâmetros para


identificar a maior vantagem da Administração relativamente a dada
contratação não se revelam ofensivos à competividade, mas delimitam o
universo de ofertantes que interessam à contratação. Já os requisitos de
participação desconectados dos fins intrínsecos da licitação afiguram-se
restritivos por prejudicarem a competitividade. Diz-se que condicionar
a participação para além do mínimo necessário a garantir a segura exe-
cução do objeto é impor a redução ilegítima do universo de ofertantes.4
Mas há hipóteses em que o Estado se vale da licitação preci-
samente para fomentar objetivos alheios àqueles voltados à seleção
da melhor proposta. Nestes casos, há condicionantes desligados das
finalidades imediatas da licitação, mas que se justificam no interesse
estatal em promover outros valores sociais. Está-se, nestes casos, dian-
te de requisitos que acabam por impactar os benefícios econômicos
diretos derivados da licitação, mas que nem por isso são inválidos ou
ilegítimos. Desde que assim tenham sido acolhidos pelo direito, serão
requisitos válidos e que encontram legitimidade no fomento de outros
interesses estatais. Trata-se daquilo que se convencionou chamar do
uso extraeconômico da licitação.
Egon Bockmann Moreira e Fernando Vernalha Guimarães já co-
mentaram a transcendência dos objetivos clássicos da licitação a partir
da consagração legislativa do desenvolvimento sustentável como um
fim a ser buscado pelas contratações públicas:

A proposta mais vantajosa não mais pode ser tida como apenas aquela
que, respeitosa da igualdade entre os concorrentes, conjugue melhor
técnica e menor preço. Ao interior destes objetivos, a instruir a sua
compreensão e assim direcionar a escolha pública, está o dever ativo
de promoção do desenvolvimento sustentável. O legislador instalou
uma externalidade positiva a ser obrigatoriamente perseguida em todas

4
“Todos os requisitos de habilitação serão demonstrados pelos licitantes segundo o princípio
de que o máximo exigível deve ser o mínimo necessário. É o que decorre do inciso XXI do
artigo 37 da Constituição brasileira. Apenas serão admitidas exigências aptas a garantir
que a execução do contrato seja minimamente segura e satisfatória – aquelas sem as quais
se sabe, de antemão, que o contrato não poderia ser executado a contento. Ou seja: a fase
de habilitação destina-se a verificar se os licitantes detêm capacitação mínima para executar
o contrato de modo satisfatório. O limitador imposto pelo texto constitucional reside na
relação existente entre a amplitude do universo de proponentes e a vantagem (econômica,
inclusive) buscada pela Administração. Quanto menos severa a exigência de habilitação,
maior será a amplitude do universo de ofertantes e mais intensa a competição entre os
interessados, fomentando-se a maior vantagem para a Administração” (MOREIRA, Egon
Bockmann; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei Geral de Licitações/
LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 2. ed. rev., atual. e aum. São Paulo:
Malheiros, 2015. p. 294-295).
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as contratações públicas. A vantagem da proposta precisa ser aferida


de modo interno e externo à futura contratação: ali, sob a perspectiva
tradicional dos benefícios econômico-financeiros daquele contrato
(objetivo imediato da contratação); aqui, num patamar superior e
diacrônico, pertinente a medidas político-administrativas que tragam
consigo o desenvolvimento sócio-político, ambiental e econômico da
nação brasileira (objetivo mediato da contratação).
Agora de forma explícita e normativamente cogente, a análise de
um projeto de contratação pública e respectivos custos não é tema
circunscrito ao contrato, mas possui a dimensão de política pública
a ser implementada na economia local e nacional (preservação do
meio ambiente, distribuição de renda, prestígio ao ser humano e bens
culturais, alocação de recursos públicos, investimentos de infraestrutura
etc.). Isto é, os contratos administrativos são instrumentos qualificados
de promoção do desenvolvimento nacional sustentável – em diferentes
graus e níveis de eficácia. O assunto, portanto, é mais delicado e
complexo do que à primeira vista possa parecer.5

Logo, é legítimo que o Estado se valha da contratação adminis-


trativa para, em determinados casos, fomentar o desenvolvimento de
certas políticas de interesse social, desde que assim autorize o direito.
E nestes casos o “subsídio” indireto ao financiamento dessas políticas,
retratado no sobrecusto (por assim dizer) derivado das exigências ex-
travagantes, é arcado pela Administração – pelas suas receitas gerais,
que advêm de diversas fontes, mas principalmente do pagamento de
impostos.
Mas não se pode dizer que a integração do compliance como
condição para contratar com a Administração seja necessariamente
custosa para a contratação administrativa. Exigir o compliance, nestas
situações, pode corresponder a um interesse intrínseco à licitação e
ao contrato administrativo. Pode, inclusive, favorecer economias ao
processo de contratação.

3 O combate à corrupção como um objetivo econômico


da licitação
Para além de constituir-se num objetivo extraeconômico, na acep-
ção de se traduzir num fim apto a fomentar interesse sociais extrínsecos,

5
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Licitação pública: a Lei
Geral de Licitações/LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 2. ed. rev., atual.
e aum. São Paulo: Malheiros, 2015.
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o interesse em contratar com empresas que estejam aptas a reduzir


práticas de corrupção pode também afigurar-se um pressuposto válido
para tutelar a economicidade da contratação administrativa. Afinal,
as estruturas de compliance tendem a reduzir os riscos de corrupção,
inclusive em relação à licitação e ao contrato administrativo. Reduzir
o universo de ofertantes àquelas empresas que possuem programas de
integridade eficazes significa reduzir o risco de prejuízos econômicos à
licitação derivados de corrupção (conluios, cartelização etc.).
O compliance funciona, dessa perspectiva, como uma ferramenta
a prevenir esses riscos, sendo potencialmente um elemento contributivo
da economicidade e da eficiência da licitação. Pode-se afirmar que as
economias geradas com a redução da corrupção tendem a ser maiores
do que os prejuízos derivados da perda da competitividade.
Análise desta natureza tende a considerar pelo menos três
elementos: (i) as economias potencialmente percebidas à contratação
administrativa com a redução da corrupção; (ii) o potencial incremento
de custo nos bens e serviços derivado de investimentos e custos com
a implementação e manutenção da estrutura de compliance; e (iii) os
prejuízos econômicos derivados de eventual perda de competitividade
na licitação.
Em primeiro lugar, a exigência do compliance nas licitações pú-
blicas pode acautelar a Administração quanto a riscos de corrupção
que lhe imponham perdas na contratação. Há, aqui, um potencial
benefício econômico à contratação administrativa derivado do fato de
o contratado exercer o autocontrole com vistas à redução de práticas
lesivas de corrupção. A existência de um programa de integridade efi-
caz por parte da empresa contribui para reduzir espaços para conluios,
corrupção e práticas de cartelização que imponham à Administração
preços ilegítimos, tanto na esfera da licitação como no âmbito da alte-
ração e da renegociação de contratos. Desta perspectiva, o programa
de integridade é um elemento que acautela a Administração quanto a
perdas econômicas relevantes, afigurando-se uma exigência plenamente
justificável à luz dos fins primordiais da licitação.
Mas o compliance poderia acarretar, por outro lado, a elevação no
preço de bens e serviços, uma vez que a criação dessas estruturas pode
ser apta a elevar o custo empresarial, refletindo-se no preço dos bens
e serviços. Afinal, a implementação e o funcionamento do compliance
importa despesas adicionais aos orçamentos das empresas. Logo, seria
conclusivo afirmar que os preços de bens e produtos ofertados por
empresas que mantenham essas estruturas tendem a se elevar.
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Isso, contudo, não necessariamente se verificará em muitos casos,


visto que as estruturas de integridade, pelas economias e externalidades
positivas que podem gerar à própria empresa, podem ser compensa-
tórias. Não apenas a redução dos custos da corrupção em si, mas os
ganhos de imagem, as oportunidades de mercado etc. podem favorecer
economias compensatórias das despesas incorridas com o compliance.
Lembre-se de que a incorporação dessas estruturas nas corporações
privadas tem sido uma tendência mercadológica, o que induz à com-
preensão de que se trata de um investimento economicamente vantajoso
para muitas empresas.
Ademais, é certo que as empresas tenderão a possuir estrutu-
ras de compliance proporcionais à sua dimensão e caracteristicamente
adequadas à extensão da zona de risco gerada pela natureza de sua
atuação. Essas estruturas tendem a ser eficientemente customizadas
para cada tamanho e perfil de empresa.
Por fim, a restrição no universo de ofertantes nas licitações, deri-
vada da exigência de compliance como requisito de participação, tende
a ser cada vez menor à medida que o compliance se dissemina como
um elemento quase necessário para que as empresas transacionem
no mercado. Os custos com a restrição de ofertantes, por isso, tendem
a se reduzir cada vez mais, em virtude da crescente popularização e
disseminação do compliance corporativo.
A análise do impacto econômico da referida restrição dependeria,
é verdade, de certos levantamentos, com vistas a identificar o percen-
tual de empresas, em cada nicho mercadológico, que passa a adotar
estruturas de integridade. Mas é possível reconhecer uma tendência
mercadológica, de origem inclusive internacional, à popularização do
compliance, visto cada vez mais – como se disse ao início – como uma
ferramenta que habilita as empresas a transacionar com terceiros.

4 A exigência de compliance no sistema de contratações


públicas e a experiência internacional
A preocupação com a exigência de programas de integridade nas
contratações públicas já vem permeando diversas guidelines e diretrizes
adotadas por entidades e administrações públicas internacionais.
A respeito da necessidade de reforçar a integridade nos proces-
sos licitatórios, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) já destacou que o processo licitatório como instru-
mento político está relacionado ao volume de recursos envolvido: nos países
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membros da OCDE, os processos licitatórios respondem por 4% a 14% do PIB.


No Brasil, as estimativas mais conservadoras sugerem que esse valor gira em
torno de 8,7% do PIB. Em virtude dessa característica, muitos governos de
países membros da OCDE estão adotando medidas para reforçar a integridade
dos seus sistemas de compras. Tanto que o papel da integridade nas lici-
tações foi reconhecido pela OCDE no documento intitulado Principles
for enhancing integrity in public procurement, cujo Princípio 6 enuncia:
“Incentivar uma cooperação estreita entre o governo e o setor privado
para manter padrões elevados de integridade, particularmente na
gestão de contratos”.6
Nesse sentido, o documento ainda indica que podem ser ado-
tadas medidas no processo de seleção para considerar as políticas
de integridade dos potenciais interessados, tais como declarações de
integridade em que eles testemunham que não foram envolvidos em
atividades corruptas no passado.7
Esse mesmo raciocínio norteou a formulação do documento
intitulado G20 principles for promoting integrity in public procurement,
publicado em 2015.8 O Princípio 8 deste relatório estabelece que os pa-
íses do G20 devem promover uma cultura de integridade nos contratos
públicos entre os fornecedores. E uma das medidas indicadas para tanto

6
Em tradução livre do original: “Principle 6. Encourage close co-operation between
government and the private sector to maintain high standards of integrity, particularly in
contract management” (OCDE. OCDE Principles for integrity in public procurement. Paris:
OECD, 2009. Disponível em: http://www.oecd.org/gov/ethics/48994520.pdf. Acesso em: 4
nov. 2016).
7
“Several options could be considered for taking into account integrity considerations in
the selection process. For instance, potential suppliers may make declarations of integrity
in which they testify that they have not been involved in corrupt activities in the past.
Alternatively, governments may also lead by example by using “Integrity Pacts” that
require a mutual commitment by the government and all tenderers to refrain from and
prevent all corrupt acts and submit to sanctions in case of violations. [...] It is also the
responsibility of the private sector to reinforce integrity and trust in its relationship with
government through robust contractor integrity and compliance programmes. These
programmes include codes of conduct, integrity training programmes for employees,
corporate procedures to report fraud and corruption, internal controls, certification
and audits by a third independent party. They should apply equally to contractors and
sub-contractors. Voluntary self-regulation can be undertaken by individual suppliers or
members of an industry or a sector, which pro-actively engage in the adoption of integrity
measures, in particular by committing to anti-corruption agreements. It is essential that
the information is accurate and maintained up-to-date to ensure the effectiveness of
voluntary self-regulation by the private sector” (OCDE. OCDE Principles for integrity
in public procurement. Paris: OECD, 2009. Disponível em: http://www.oecd.org/gov/
ethics/48994520.pdf. Acesso em: 4 nov. 2016).
8
G20. G20 Principles for promoting integrity in public procurement. Turquia, 2015. Disponível
em: http://g20.org.tr/wp-content/uploads/2015/11/G20-PRINCIPLES-FOR-PROMOTING-
INTEGRITY-IN-PUBLIC-PROCUREMENT.pdf. Acesso em: 4 nov. 2016.
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é justamente incentivar os esforços dos fornecedores no sentido de desen-


volver controles corporativos internos e medidas de conformidade, incluindo
programas de competição e anticorrupção e procurar maneiras de reconhecer
devidamente os fornecedores que têm controles, medidas e programas efetivos.
Bem assim, a edição da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento
Europeu e do Conselho de 26.2.2014,9 a qual dispôs sobre regras apli-
cáveis aos procedimentos de contratação adotados por autoridades
adjudicantes relativamente a contratos públicos, foi permeada pela
mesma preocupação com os controles da integridade. Ali se estabele-
ceu o incentivo ao acolhimento de regras nos processos de contratação
que avaliem a fiabilidade do proponente, bem como à avaliação dos
mecanismos de autossaneamento ou self-cleaning, que compreendem
a adoção de padrões de conduta e controles internos.
Todas essas regras e diretrizes exemplificam uma forte preo-
cupação dessas entidades e organismos com o aperfeiçoamento do
mercado público na direção da adoção de práticas voltadas ao controle
dos desvios de integridade.

5 A exigência de compliance como requisito de


participação na licitação à luz do regime jurídico
nacional
No direito nacional, a legislação e a regulamentação ainda não
trataram do assunto de modo específico. Lembre-se de que nem a Lei
Anticorrupção nem o Decreto nº 8.420/2015 disciplinaram a possi-
bilidade de exigência do programa de integridade nos processos de
contratação pública. A Lei nº 8.666/93 e a legislação especial que regu-
lamenta as licitações e contratos administrativos no país também não
elegeram o compliance como um requisito necessário para condicionar
a participação de empresas às contratações públicas.
Bem por isso, tem-se visto diversas inciativas relevantes nos últi-
mos meses e anos com o propósito de regulamentar a questão. Sirva de
exemplo a proposta da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe),
consolidada na quinta reunião da Ação 5, realizada no dia 28.6.20106
em Brasília/DF, que visa à alteração da Lei nº 12.846/2013 para tornar
obrigatória a exigência de programa de integridade para a contratação

9
DIRETIVA 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro
de 2014. EUR-Lex. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/
TXT/?uri=celex%3A32014L0024. Acesso em: 30 nov. 2016.
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com a Administração Pública. A proposta da Ajufe consiste em acres-


centar à Lei Anticorrupção o art. 2º-A, determinando:

chamamentos de licitação, como editais, avisos e demais comunicados


de ordem oficial, para a contratação com a Administração Pública
deverão prever incentivos aos que possuam programas efetivos de
integridade, comprovados pelo interessado-contratante mediante cer-
tificação por empresa reconhecidamente idônea, nos termos de Ato do
Poder Executivo.10

Mas enquanto a legislação não é atualizada, a discussão que


se estabelece, neste particular, diz respeito à viabilidade jurídica em
se exigir programa de integridade nas licitações públicas no Brasil. A
questão está em saber se a ausência de indicação legislativa explícita
do compliance como requisito de habilitação ou de participação (ou os
limites e parâmetros impostos para esse fim) impede a sua exigência
nos casos concretos.
Lembre-se, primeiramente, de que a política de integridade para
os negócios públicos está diretamente relacionada com os princípios
da moralidade e da probidade administrativa, que norteiam o pro-
cesso de contratação pública. A busca de um mercado saudável para
a contratação com o setor público pode pressupor em muitos casos a
verificação da vocação das empresas para o controle da integridade.
De um ponto de vista finalístico, não há dúvida de que a exigência de
compliance como requisito de participação em licitações é perfeitamente
coincidente com os valores prestigiados pelo regime de licitação e de
contratação pública.
Aliás, a recente Lei nº 13.303/2016 – a Lei das Empresas Estatais –
acolheu disciplina específica sobre o código de conduta e integridade
da empresa pública e sociedade de economia mista (art. 9º, §1º), esta-
belecendo como uma das diretrizes para o regime de contratação das
estatais a observação da política de integridade nas transações com
partes interessadas (art. 32, inc. V).
Mas a previsão de requisitos dessa ordem nas licitações regidas
pelo regime geral (Lei nº 8.666/93) deve estar harmonizada com as regras
que estabelecem as condições de participação e os requisitos de habi-
litação para contratar com o Poder Público. Neste particular, há uma

10
AÇÃO 5 da Enccla discute programas de integridade em contratações públicas. Boletim
Enccla, n. 28, jul. 2016. Disponível em: http://enccla.camara.leg.br/boletim/Boletim
EncclaN28Julho.2016.pdf. Acesso em: 4 nov. 2016.
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EXIGÊNCIA DE PROGRAMA DE INTEGRIDADE NAS LICITAÇÕES
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compreensível preocupação do legislador em evitar condicionamentos


que limitem o universo de ofertantes e prejudiquem a competitividade
na licitação. Por isso é que toda e qualquer exigência dessa ordem deve
encontrar fundamento normativo e guardar pertinência e relevância com
o fim pretendido. Isso vale tanto para os requisitos relacionados com a
proposta (solução) como para aqueles adstritos às condições pessoais
do interessado (condições de participação e requisitos de habilitação).
O programa de integridade não está relacionado com a solução/
produto que será ofertada/ofertado na proposta de negócio da Admi-
nistração Pública, mas sim com as condições pessoais do interessado.
Em relação a isso, a Lei nº 8.666/93 traz um rol taxativo dos
requisitos de habilitação, admitindo residualmente outras exigências
como condições de participação, que se relacionam a demonstrações
de outra natureza.
O rol limitativo abrange a demonstração de:

I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV - regularidade fiscal e trabalhista;
V - cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição
Federal.

Essas espécies abrangem diversos requisitos que podem ser


exigidos para o fim de participação na licitação e contratação com o
Poder Público. Como referido, o elenco dos tipos de habilitação, assim
como dos requisitos exigíveis, é limitativo. Isso significa que os editais
não podem inovar na delimitação dos requisitos de habilitação, intro-
duzindo novas espécies e/ou requisitos mais exigentes do que aqueles
explicitados na legislação.11
Desse prisma, portanto, pode-se entender que não há atualmente
na legislação geral sobre licitações e contratos previsão explícita à exi-
gência de demonstração de programas de integridade como requisito
de habilitação. Também não se poderia acolhê-lo como mera condição
de participação, pois, uma vez que se relaciona com as condições

11
Ademais, no entendimento do Tribunal de Contas da União, o rol de condições de ha-
bilitação é taxativo. Veja-se: “É irregular a inabilitação ou a desclassificação de empresa
licitante por não ter indicado os seus dados bancários, pois tal informação, além de não
estar prevista no rol taxativo dos arts. 27 a 31 da Lei 8.666/1993, que estabelecem os docu-
mentos que podem ser exigidos na fase de habilitação, pode ser obtida mediante simples
diligência” (TCU, Primeira Câmara. Acórdão nº 5.883/2016. Rel. Min. Bruno Dantas).
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particulares do sujeito que pretende contratar com Poder Público,


equipara-se a requisito de habilitação. Enquadrá-lo como mero requi-
sito de participação com vistas a submetê-lo a outro regime poderia
significar uma fuga de sua disciplina própria.
No entanto, e como referido anteriormente, a exigência de pro-
gramas de integridade como condição para disputar a licitação e para
contratar com a Administração não se afigura um requisito a restringir
indevidamente o universo de ofertantes. Ao contrário, pode equivaler
a um condicionamento perfeitamente alinhado com o objetivo de per-
seguir a contratação mais vantajosa. Afinal, a detença de programa de
integridade pode concorrer para gerar economias importantes para a
Administração e acautelá-la quanto ao risco de eventos de corrupção.
Exigências desta natureza são bem-vindas e concorrem para
melhorar o ambiente concorrencial e aperfeiçoar o sistema de contra-
tação pública. Mas para que possam ser instituídas nos editais como
maior segurança jurídica será importante que sejam incorporadas na
legislação.
Nada impede, contudo, que a comprovação da existência de um
programa de integridade possa figurar como critério de pontuação de
propostas técnicas, em licitações que funcionam sob critérios de técnica
e preço ou melhor técnica. Será perfeitamente admissível que exigências
assim possam constar dos editais de licitação, com fundamento no inc.
I do §1º do art. 46 da Lei nº 8.666/93.
Uma questão secundária que deve ser considerada com vistas
a comprovar a pontuação técnica para esse fim é a forma de aferição
desse requisito.
Atualmente, considerando que não há – ao menos em número
suficiente – instituições aptas a certificarem os programas de compliance
instituídos pelas empresas privadas, caberá aos editais estabelecer os
parâmetros de avaliação do programa de integridade. A avaliação do
cumprimento desta condição de participação no certame poderia ser
realizada mediante a submissão de declaração do licitante, acompanha-
da de seu programa de compliance, o qual seria avaliado pela Comissão
de Licitação, segundo (por exemplo) os critérios do art. 42 do Decreto
Federal nº 8.420/2015.
Ou, na hipótese de o licitante ainda não ter instituído seu progra-
ma de compliance, poderia apresentar declaração comprometendo-se a
fazê-lo na hipótese de ser contratado. Nesse último cenário, a avaliação
do programa de integridade pela comissão de licitação constituiria
etapa prévia à celebração do contrato. Foi exatamente nesse sentido
que o Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei nº 7.753 de 17.102017,
FERNANDO VERNALHA GUIMARÃES, ÉRICA MIRANDA DOS SANTOS REQUI
EXIGÊNCIA DE PROGRAMA DE INTEGRIDADE NAS LICITAÇÕES
317

que estabeleceu a exigência de um programa de compliance de seus


licitantes como requisito contratual.12 O Distrito Federal, na mesma
linha do Rio, promulgou em 2.2.2018 a Lei nº 6.112, que também torna
obrigatória a implantação do programa de integridade nas empresas
que contratarem com a Administração Pública do Distrito Federal, em
todas esferas de poder.13
Em ambos os casos, aqueles que celebrarem os contratos enqua-
drados nos parâmetros estabelecidos pela legislação devem implantar
programa de integridade no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias
corridos, a partir da data de celebração do contrato. O não cumpri-
mento desta obrigação contratual, para além de multa moratória,
pode determinar a impossibilidade da contratação da empresa com a
Administração.
Em suma, considerando a importância da ferramenta do
compliance para reduzir os riscos de corrupção e gerar mais eficiência
nas contratações com o Poder Público, é plenamente possível o seu
acolhimento pelos sistemas de licitação e de contratos administrativos,
seja como fator de pontuação de propostas técnicas, seja como requisito
de habilitação e condição para a celebração do contrato. Mas, neste
último caso, a exemplo da legislação específica do Estado do Rio de
Janeiro e do Distrito Federal, exigência dessa ordem dependeria de
uma atualização na legislação e na sua regulamentação com vistas a
delimitar o âmbito e limites dessa exigência.

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GUIMARÃES, Fernando Vernalha; REQUI, Érica Miranda dos Santos. Exigência


de programa de integridade nas licitações. In: PAULA, Marco Aurélio Borges
de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Coord.). Compliance, gestão de riscos e
combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2020. p. 305-317. ISBN 978-85-450-0761-6.

12
Nos termos da lei, exige-se o programa de integridade das empresas que celebrarem con-
trato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a Administração
Pública direta, indireta e fundacional do estado do Rio de Janeiro, cujos limites em valor
sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência, sendo R$1.500.000,00
(um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$650.000,00
(seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo que na forma de pregão
eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias (art. 1º).
13
O programa de integridade é obrigatório para empresas que celebrem contrato, consórcio,
convênio, concessão ou parceria público-privada com a Administração Pública do Distrito
Federal, em todas as esferas de poder, cujos limites de valor sejam iguais ou superiores aos da
licitação na modalidade tomada de preço, estimados entre R$80.000,00 e R$650.000,00, ainda
que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 dias.

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