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SEVERINO ELIAS NGOENHA

O RETORNO
DO
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.· eo·M · · sELVAGEM
Uma ·.-. P~r?P~Ç~~Yª filq?9f.içª~ªfr~çªpª · · .
· do problema ecológico

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Eor.çõE~ ·SALESIAN~s
P O H T O ... Jqqbf
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) DEDICATÓRIA
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APRESENTAÇÃO
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j À ·minha esposa
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Moira Laffranchini-Ngoenha • A filosofia ocupa-se dos problemas gerais,
j nos quais está implicada a humanidade inteira.
J Traduzido em problemas de "hoje• a filosofia
) ocupa-se da ecologia, do desemprego e da
divisão norte-sul~ Contudo, estes problemas são
tratados como um todo. De facto, o aumento do
desemprego no norte provocou o nascimento de
partidos de extrema-direita, o que acentuou a
divisão norte-sul. ················ ·············· ······ ················· ··
As terapias sociais prospectadas - acordos
i do Gatt - não compreendem os problemas e as
J
_) ....
preocupações dos países do sul; mQs quando se
trata de problemas ecológicos, os pobres são os
J mais solicitados a carregarem sobre si os
J desequilíbrios provocados pelos países ricos.
) Se a África e o .terceim mundo tiverem de
} .. ..... ............. ......... ........... . ·I aceitar todas as d_escargas tóxicas e . nudeares,
tiverem quer manter florestas e animais em
) 1
! nome de um equilíbrio ecológico; ao mesmo
1
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y tempo que diminui o seu orçamento da educação
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i e da saúde - que são as mais baixas do mundo
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.......................... ..·-···· ........ .! ... . . .... . . =para ,sçit,isfiazer DS RIQg_ramas dó FMI e d.o .B_M,______
os no:Ssos Jifüos .e stão .çc:mdenad,o s a serem os
.,.) futunn ·11,farzciii:s~i, . a ,s€rnem .os · Ju.tur.os .:bons
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) 1 selvagens.

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A Segunda Natureza

O sofista Protágoras pretendia formar bons cidadãos.


Sócrates interroga-se quanto à verdadeira possibilidade de
ensinar a virtude~ Protágoras responde com uma fábula:
· . Depois de terem criado as espécies mortais, os deuses. .
( en'carregaram Prometeu e Epimeteu de distribuir por todas as
espécies, as características necessárias à própria sobrivência.
Epiineteu ficou encarregue de faier a distribuição. Este deu a
. S · -Cada ..espécie·. os meios necessários à própria sobrevivência: a
'-,...'.\

l .... t . JJ.TDª$ a força, a outras· as . asas para fugirem ou os abrigos


~
~-s' subterrâneos para se esconderem; protegeu-as das intempéries
0 por meio de carapaças, de coiros e de cascos. Deu a cada
§ .. espécie, umas carnívoras e outras herbívoras, as alimentações
. respectivas.
..~ .

~-
Infelizmente,· Epimeteu esqueceu:.:se dá espêde· Hümaná:
~
Quando mais tarde, chegou Prometeu, constatou que todos os
animais estavam equipados com .as condições necessárias à
própria sobrevivência, .enquanto o Homem permanecia nu e
§ sem defesa. Des~sperado, Prometeu rouboü aos ôeuses o·:fogo
.~.-. -....-.. .-....-....-. ----~~. -...-....~:::g~çqpf:igc:!rngntq J~çniçg ~ pglJ::P~ .aQ~.Homens.. Então· os
······ ······ ···· ·~ Homens honraram os deuses, adquirindo o uso :da pala-
-~ vra, .aprendend() a construir casas; a confeccionar vestuário ·e .
~ a cultivar a terra. Mas como viViam .isolados :e afastados uns
~-- dos outros, fiçavam à mercê. dos animais selvagens. Raltava-
--~---------·------------------~---~"""'~--~-lt.i.es-airicla-o- -saber ~político.---'que fües ~teria permitido Cl:}flS'- .... --~~
,-----·------ - - - -..
----·-----~
~ - trttmem-se em cidade~(polis)7Zeus preocupado .com a
csbbr·evivênda d~ ~~~s~p~ç1e, ,-:en~arregou·. l}e-rmes ·~q~ . ô.ar ;p.os
Homens o ·sentido do res;J?.~ito 1p,ela justiça..
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)
A Fábula de Protágoras mostra de uma maneira eloquente, Os biólogos concordam que sem a construção· de habitações,
) que o Homem é, por natureza, desprovido de qualidades sem a confecção do vestuário, sem cozinhar os alimentos e
: _) naturais. Enquanto os outros animais estão, naturalmente, sem uma organização social conscientemente constituída, a
.) equipados para sobreviver, - e vivem aquilo que hoje se chama espécie humana não poderia sobreviver, pois não tem quais-
uequilíbrio ecológieo» - , o Homem deve a sua sobrevivência quer instintos conservadores que lhe regulem a vida.
J ao saber empírico', técnico e moral que adquire por etapas. Até há .relativamente pouco tempo, a «segunda natu-
'
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)
"A descqntinuidade entre o reino da cultura-e da natureza reza» existia em todos os.. países do mundo, entre limites
J é universalm~t;lte reconhecid~ Não existe nenhuma sociedade, muito restritos. Em todas as esferas. culturais e em todo o
_)
por mais popre que seja; que não dê grande valor às artes da mundo, a «segunda natureza» limitava-se a rectificar os defei-
civilização, cujá descoberta e uso, permitiram à humanidade tos mais evidentes do ambiente natural, mas no essencial
_) libertar-se da animalidade.
,
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imitava~o. A agricultura, isto é, a ocupação principal da maio-
) " E próprio do Homem afastar-se do "domínio natural ~ 8 ria dos Homens, respeitava o ritmo da terra e das estações.
·_) Contrariamente aos animais, o Homem tem uma relação com t:'l Alternando as colheitas, apliçando o repouso bianual ou
o Mundo através de mediações simbólicas e técnicas. Por assim ci trianual, usando fertilizantes naturais, a agricultura conser-
dizer, á característica da Humanidade, é de não estar sempre -;:; vava a força regeneradora · da . terra. A força motriz era
'_) ~resente nela própria, - para utilizar uma expressão par- ~ fornecida pelos Homens e animais, pelo verito e pelas
.) tlcularmente feliz de Rousseau, mas que este utiliza errada- ~ correntes de ágÜa. . · ·· ................ ...............
mente para distinguir o Homem civilizado do Homem sel- ~ · :-. ~O progresso cientifico e ·a tecnologia moderna, - ·. que
J
vagem. ~ ~ atingiram certas civilizações __::: ·, rompeu este equilíbrio De
_)
Para se afirmar completamente, o homem produz uten- ~
1) ~ certa maneira, o Homem ocidental libertou-se ·das forças da
'j · sílios e instn.iffientos, que são de certa maneira.um prolon- ·.s:; :-- ~:2 naturez~ Mas· ao mesmo tempo, não .só está a consumir o .
_) . gªf.11~D~9 sepan;tclQ clQ se.u próprio corpo. ~ ----=-~::" património .natural a· um ritmo vertiginoso, mas também est~ .............. .
A Humanização do Mundo passa, portanto, pela media- · ·. . . a modificar de uma maneira irreversível . a composição do
) ção de objectos materiais e de objectos simbólicos: ou. ai~da <. -~ ambiente. As fábricas, os carr.os e as casas, · utilizando o
J através de uma combinação infinitamente diversificada . de g â ..,...:? petróleo e o metano. de carbono, como fontes de energia .e
J «gestos e de palavras», - utilizando o título do livro magistral S ~ --.. de aquecimento, · expelem -todos os dias para a atmosfera
de Leroi-Gourhan. ( ) 1
d ·ç; · milhões de toneladas de anidrido carbónico, de enx,ofre e de
)
j
A vivência Humana consiste no distanciamento pro- -$. ···~· ··························· ... chúmbo, cóm corisequêridas fricalcúlbveís'; ntlo para
falar no ......;

gressivo e acentuado do ambiente natural e social Nesta ~- ~ problema das descargas industriais.
J perspectiva, toda a evolução Humana tende a colocar o v·~ : ~ . · Nos países tecnicamente avançados, a «segunda natureza»,
) Homem fora do Home:n (o h?m:m fora dele _mesmo). . J"; § já não se Hmita ap~n~s a imi~ar a 11pri1:1ei:a natureza», ~on~trói
l - ~:= ., Para... o Homem a 1mportanc1a da cu.ltura .: tal,_gue faz~~-~-.__ -~g~nd~ as sua_s i_?e1a~ ª. f1n:1 d<: ating~r. os _seus obJect1vos
dela a·sua segunda natureza , sem a qua'I,, aliás, nao pode viver,. '-'-< " ~ arbitrários. A cnaçao tecrnca )_á n ao irectifica :;1mpl~srnente as
·--::J ~ lacunas da primeir,à, mas substittti,,-se a .ela, d:;iegand-o .. mesmo
( ) L.eroi·üouran, 1. 9~ 5, p . 222. ~; a constituir uma «segunda natur:eza>> oposta à primelr.a.,,
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contrário, num regime onde prevalece a «segunda natureza»,
· ·.Enquanto ~ «primeira natureza» é única e só a concebemos·~ . ::~ este princípio deve ser reformulado.
como exclusiva, as i<segundas naturezas», que dependem da -~ ~ ,J Contudo, se é fácil falar de auto-regulamentação, é muito
capacidade inventiva do homem, são m~tas, di~ersas, ~uase ---~°"'0~'' difícil realizá-la, não unicamente porque a razão Humana é
ilimitadas~ sucederam-se no tempo e coexistem amda hoje em "'" .._.~
. AIiás, outras «segundas nat urezas» sao - ~
limitada, mas também porque não é omnisciente nem omni-
diversas áreas cultµrais. <:.:._ . ~:--. . '.>
potente. Essencialmente porque a «segunda natureza», perma-
possíveis e concebíveis, talvez até ao infinito, mas não arbi- ~-~ nece sempre uma natureza, isto é, algo que nos aparece como
trariament~. Por conseguinte, como homens,. não podemos
dado adquirido, algo que se subtrai largamente à influência do
negligenciai as consequências do nosso comportamento social, Homem e portánto algo que nos transcende. Não basta,
económicc{;,,_ cultural e político. De facto cada tipo de «segunda portanto, um postulado da razão para ordenar aquela natureza,
natureza» éh ustentado por uma série de acções, de reacções, que a própria razão produziu, é necessária como que uma espé-
de correlaÇões e de interdependências entre as diferentes par- cie de «astúcia tecnolpgica da razão» para vencer as resistências
tes determfnantes. Devido à sua pluralidade, as «segundas da natureza e domar os seus mecanismos..
naturezas» estão desprovidas daqueles mecanismos reguladores A «segunda natureza», que a · actividade racional fez
que mantêm o equilíbrio e asseguram a sobrevivência do emergir da primeira, revela o seu carácter de verdadeira
género Humano. Eis a razão pela qual o género Humano i:ião ·natureza, opondo-se à actividade racional e condicionando-a, ,'-.)
pode continuar a confiar simplesmente na providência da mãe- no momento em que tem necessidade da sua intervenção
-natureza para ·sobreviver: · ··· ·
reguladora. . .. . . . . . .... .
0 Um olhar superficial poderia levar-nos a concluir que os As resistências aa·«següridá riafureza~ pooem ser 'de' três ·-"
mecanismos . da «primeira natureza» foram simplesmente tipos: •
substituidos pela razão Humana, que através da ciência, prevê 6) A «segunda natureza» é constituída sobre a base da
.e constrói para fins decididos pelo Homem. Porém, racio- · .. primeira. Todo o material, isto ·é, os recursos energéticos,
nalidade científica· e · racionalidade Humana não coincidem . .... ...... . . -como as matérias-primas, provêm da «primeira natureza». Por
necessariamente. Apesar das·· sua,s ·ràdoriaHdades . respectivas, · · . .isso, as possibilidades da <tprimeira natureza» condicionam as
a ciência e a técnica não dão nenhuma garantia do seu uso possibilidades da «segunda natureza». Eis os limites de desen"' . .·,__,
·. racional. A razão instrumental do «homo faber» pode ser volvimento de que fala o relatório do Clube de Roma. ·
terrivelmente irracional. B~sta p~nsar que a par das grandes ~ Os produtos da «primeira natureza» ~o reciclávei~, ~ .
· conquistas da ciência e dos progressos inaudíveis da técnica, ,enquanto os da segunda - pensemos nas. escónas. e . napo~wcc . ... .
Vivernosnumplanetacheio"de bombas, de guerras: de desas- ção não o são, e produzem, portanto, uma autêntica ··
tres ecológicos, de famintos, de miséria, etc. A regulação da natureza morta, que ameaça asfixiar-nos.
«segunda natureza», parcialmente <Oposta · ~ prirrieir.él, tem, por ~ Como na «primeira natureza», também na «segunda
isso mesmo, a funçao e o dever de substituir-se aos ·mecanismos n atureza» tudo é interdependente. A <~primeira n~tureza» ~um
____· 'reguladores- da mesma. - - - -· . ,_ .......... ; ................ .,. . . . . . ·· ··· ·· ···~····· ······· ~=- siStemO:..de-dei;)eiid.ê-r-1G.Ias.,-Oe~G0-r-i:e-la~0e-5.,.-aEla13t~ée-5-foo-·-~
- - - -·-.-isto-stgnifroa~rre a razao tecno]õg1c;a ôeve d1sc1phnar-se. ' p rocas, que em filosofia ieorética se chama finalidade ;e .que
. Num regime condicionado ,pela i<pricrneira natureza», n princípio compreende a finalidade externa unida a um ,cosmos total. Na
supremo da moralidade podia .$€r u~git seçundo n atura»• Pelo
13
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, J · «segunda natureza» os fins são impostos pela vontade calcula- II
dora do Homem. e A interdependência que . carecteriza a
«segunda natureza» resulta de uma· inter{erência entre os
( ) determinismos naturais e os determinismos histórico-sociais~ Primeira Natureza
0 Se na primeira natureza o Homem é idêntico aos outros
,' )
seres naturais, na segunda- afasta-Se deles, ao mesmo tempo e Segunda Natureza (Cultura)
que se diferencia dos outros homens através de uma cultura
1
J específica& 4-- ·
' ) A este nível, poderíamos interrogar-nos quanto à atitude
r) das culturas {segunda natureza) em relação às outras cultu- o debate sobre a primeira e segunda natureza {cultura),
, _) ras {segundas naturezas). Contudo. interrogamo-nos prioritaria- fez reaparecer uma série de questões, que ficaram ainda sem
mente sobi:e. as diferentes atitudes das «segundas naturezaS» resposta. Duas merecem .uma atenção particular.
,' j (culturas)- para com a «primeira naturezawp A primeira, respêitante aos «primitivos», assinalada por
r) . Existem «segundas naturezas» {culturas}, como é ·o ca5o da Claude Lévi-Strauss em último lugar por ordem cronológico no
i J cultura indiana, que de tal maneira sacraliza a natureza, que texto reeditado na <<Antropologia Estrutural Dois», pode ser
não come .carne de vaca, não bebe o seu leite, nem sequer assim formulada:
:J . utiliza os se~ .~~~".é.l:9~~, !9:!~.. C::.<:?.!:!.1:9 .9 iogurte. Além disso, a A concepção que muitas sociedades primitivas têm da
_) sacralidade da vaca impede que ela seja tocada, lavada, o que relação entre a natureza e a cultura exprime também, algumas
: J faz dela . um meio impoi:tante de transmissão de doenças. resistências ao··desenvolvimento. Com ... efeito, ... elaimplica o .. .
r_) . Perante o que sabemos, por um lado, da capacidade nutri- reconhecimento de uma prioridade incondícionai da natureza
tiva da carne da vaca, do leite e dos seus derivados, e por outro, sobre a cultura. · ·
'_) . da fome de que padecem .milhões de indianos, podemos per- . \· ' à • Segundo Lévi-Strauss, .nos povos «primitivos», a noção de
j gµntar-nos, · se esta .. cultura . não .terá uma atitude demasiado .. i .... ....... Jl~1:t.lr.~za tem sempre um carácter ambíguo. A natureza é pré-
)
c<sacralizante» da natureza.. . . 1 -cultural e sobre-cultural; mas é sobretudo o lugar no qual o
. ~ Existem outras culturas, como é o caso da cultura Ociden- l Homem pode esperàr erifrár em cóiitacfü com os antepassa-
tal_, que baniram da natureza toda a sacralidade, que vêe~ nela ! dos, os espíritos e os deuses,, Existe~ portanto, na natureza uma
simplesmente um meio para fins utilitários decididos pelo 1 componente sobrenatural, e .e-sta sobrenaturalidade está acíma

J · · · · â8~!g?o~~~~f~~~'4ü~~~%êl~=f~~t:S~ª~~~~r~~j~~~~~sr:~~=
!'
~:ia~~'!:~~ ~~:~mq~~~ o ~~~~: s~~r=~~~~'.·~;t~r~du~~~ · ·· ··· · · ·· ·· ·· ··· ·········
0 5 l
_) ras, como a fome, .· a mortalidade ínfanti~ muitas do€mças e técnicos .e ·os objectos manufacturados são desvalorizados. (2) ·
:J epidemias, não é menos verdade que .a sua atitude piiorita- Daqui resulta que a concepção das culturas primitivas resiste
... ) .riamente utilitarista arrisca a perdição de todos . nós ri urna ao desenvolvimento.
r J catástrofe ecológica. . ..
Qual é ent~o à boa atitude cultur,al p.ar_a_ c_o_m_ a_n·-,a-t-u-re_z_a_,------.,,.- -- (~ C. Lévi -Srau~s , J\n trop.o Jog.ie ·structu.r e lle d eux, P ar:is, :Plon , 1973,
.:) .a c1super .sacralidaqB» GU 'O <cSUper utilitarismo»? . p.p.. '.°iT3-:3 75. . . . -
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_) 14 15
.... , .'. ........... _ .
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A segunda questão (respeitante ao mundo industrializado) natureza cultura, do lugar do Homem na natureza, não
refere-se à técnica. Mediação indispensável nas trocas entre a depende simplesmente da política, da técnica, do social ou da
natUreza e o Homem, a técnica moderna parece impor às biologia• Uma simples mudança de comportamento; se bem
transformações- um progresso incontrolável. Esta mutação que necessária, não é suficiente para fazer face ao perigo que
afecta igu~lmente as relações humanas com os outros orga- ameaça a vida do Homem, desde crenças supersticiosas que
nismos vivos e com a natureza. provocam fome, má nutrição e doenças, até às catástrofes
Segunpo Serge Moscovici, assiste-se hoje, no Ocidente, gerais que os problemas ecológicos ameaçam provocar. O nível
ao fim de ~~ _ sociedade baseada sobre na acumulação interna de compreensão., de análise e de decisão deve descer até às
(
e sobre cotjflitos de classe; assiste-se ao fim de uma civilização. raízes profundas da crise, isto é, às 'dimensões simbólicas e
-lAs soêiedacles ocidentais estão rigidamente submetidas às espirituais das culturas.
relações entre a colectividade e o seu habitat (ambiente), à e Isto implica que, se as atitudes culturais em relação à
acumulação do poder e da riqueza. Por isso, estas inventaram natureza são perniciosas, seria ainda mais pernicioso continuar
um antagonismQ-! entre a sociedade e a natureza, entre o o mesmo processo de relacionamento com a natureza sem um
pensamento nobre e o trabalho servil, entre a civili_zação e a momento de reflexão8 Mas o debate · das culturas sobre a.
técnica.l As sociedades que estão . a nascer, basea1TI-Se, pelo natureza, à imagem desta, deve necessariamente
. -
ir para além
contrário, na ciência e na técnica; e nelas a questão natural das fronteiras geo-económicas e abrir-se a .um diálogo entre.
--------- substitui a questão social. (3) - todos os habitantes desta terra ... ·
Estas razões fazem com que os problemas sociais de hoje
se tenharn tomado em problemas naturais. Por conseguinte,
o problema capital é o lugar do Homem na natureza, contr-
nuamente transformado pela sua prática~
• Quer para as sociedades, ditas primitivas, quer para ·as
sociedades industrilizadas;···a relação -·entre ·· a · ccprimeira>i "·e ·a
ccsegunda natureza» está no ceritro do debate 0 Uma atitude
demasiado m:istica, ou uma atitude radicalmente instrumenta-
1 '
lista resultam perniciosas pàra a natureza, e por consequência,
para o próprio H omem. · -- 1

-De facto, quando se fala de ambiente, faz-se referência 1


a_o ambiente humano, e todos os argumentos para a defesa
1
de tal ou tal parcela da natureza, têm uma razão de ser, no 1
quadro de uma teleqlogia humana e de uma vontade de sobre- . j
vivência. PQ! consegUinte, o problema_do ambiente, da rel~ção_ __.
---------~------------ ··- - ----;-

'(~ -IS. Mçiscoviq,~J:_eimandsme .et 'la~ql!l~~ti0n ·natUrelle, ir:i Ho{Tlmes ê omestiques


et horiímes sa\)V~e5; :Raris, 1 o;.ra; PP· 14Sc232.
;· ..

2
17
')
')
) III
)
') Visão Africana
) da Relação Natureza-Cultura
·)
fJ
'. ) --·
.0 A
diversidade que está no centro da investigação antro-
')
pológica, interessa-se doravante pelos problemas do desen-
(J 1. volvimento A «África Fantasma» de Michel Leiris, ccOs Tristes
') Trópicos» de Claude Lévi-Strauss ou ccA África Ambígua» de
{ _) Georges Balanaier, encontram-se depositadas nas prateleiras
tj das bibliotecas. Uma nova questão alimenta a curiosidade dos
antigos antropólogos, perturba o sono desses novos técnicos
( _) do social e da economia - os peritos de cooperação. Ela já
) não se identifica com pessoas, com grupos, com objectos ou
éom costumes irredutivelmente diferentes; abandona o terreno
de uma pretensa objectividade (o que se chamava e se chama
ainda cultura material) para mergulhar no terreno da relação.
O desenvolvimento como relação, eis no que se torna cada
······ vez· mais; ·o objecto de ··estudoda ·antropologia ·modema; ·Tal .
é a nova configuração; confusa e multiforme da diversidade
J antropológica.
! _) A diversidade já não se identifica com o exótico, ela
1' j reaparece juntamente 'Com a percepção do sentido, que as
) sociedades · produzem, com a finalidade de inscrever es seus
valores e as suas instituições, numa ordem que ultrapassa as
.)
contingências .das pr~ticas quotidianas. Assim, o desenvolvi-
(j mento como relação supõe, necessariamente, o aparecimento
') de situações confütuosas entre tradições diferentes, muitas
) ----- -----------~---r-----·!lezes3'.iíf1ci\.ttien:t~cômp:atlueis::==~-....- - - -
o pensamento afric.ano a partir da segunda guerra mun-
~ dia'l, afasta~se de uma Vi·são mística da natureza, e orienta-se
,._)
' _) 19
· ) , -· - '.I
J
J
em direcção a uma visão instrumentalista. Por sua vez, o Senghor definiu a cultura como a «Constituição psíquica»,
pensamento ocidental a partir dos.an.os tri~ta-quarenta •. influen- que em cada povo explica a sua civilização. Por outras palavras,
ciado pelas catástrofes que a sua atitude mstrumen~ahsta pro- é uma certa maneira própria de cada povo sentir ou pensar,
vocou vê-se obrigado a repensat ~-xio de relacionamento exprimir-se ou agir. E esta certa maneira, este carácter é a
do H~mem Ocidental com a n g B :o -..,.ha por teorizar simbiose das influências, da geografia e da história, da raça
a passagem de uma visão instrv ff ff f f. IS- g .l> .., "' mística. e da e.tnia.
-:t7 Q. "' o Õ" ::_:; b ...)
i1{ .§'"' JJJJ/)· A análise senghoriana da psicologia negra funda-se sobre
1 ~ ~ k> Cl> OJ :f.·n.O
A partir dos anos cmquf )

À e. iP Q "' r,;
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o estudo do ccambiente natural» que a condiciona, mas defi-
& ~~ &~5'8
curso sobre <<O espírito da e;· f J: [-; gf ne-se sobretudo na oposição à psicologia do Homem branco,
-africana» (4) ' - , que a l 3 : ; ~ ..õJ tJ ii e resume-se no famoso paradoxo: «A emoção é negra como
iJ OJ4! O~Cllm
preliminar para a liberta? g ff_·~ ~li j 1f> a razão é helénica». (5)
osescr ea Af ~ : g ~ti'!§.·~ ~ Para Senghor, -o Branco europeu, é o Homem de von-
~ Qj• ~a.fig· ~
e Abril de 195~. Sengl)' : '§ .rr ;;; tS- g; :r: . tade guerreira, que utiliia :as coisas para os seus fins utilitários,
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Congresso precedente., ' ~;;e:"'º ~"'
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Q&-fJJ ~
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. eco Africano é um homem da Natureza». «Vive tradicionalmente
.P lesmente um a.s pect, r' ,,
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fJ d.a terra, com .:a terra, no cosmos e através dele». É sensual,
necessário sabei sob/ ~
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sujeito e o§jecto. A razão do negro não é discursiva 1 é sintética;
puramente oc1ºd e17 i~ tS-J '8 B
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·~ ·,,,:r;;·"'E 1a :nãg;é afífagonjsta; é simpática. «A razão negra não émpobrece
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la-se no coração vivo do real». A razão europeia é analítica
Dakar, o primei'
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f .~ l ! para a utilização, «a· razão negra, intUitiva para a participação~>. J
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&-'ti IS- ~ ..,. .. liT I: do .... J
a reunir os afrir ~ tJ-6 ~~ ~ :di º .un • ESta teoria· sofreu modificações e. rectificações importan-
. .num .amplO ..th... _ rn cs!]8. R~ õJ. Ílif~ :t ~:o . .ícional
;:o"' . tes. Contudo, quer . o Negro se associe ao objecto, quer o ...J
it~!~ ção no
africana, com vista a - ; ff $. ~ ·· objecto se associe a ele, o Negro é. sempre caracterizado pela
contexto da vida moderna .... "~ ff; ,;ai. Este · .faculdade emotiva, que não é negação da. razão, mas sim uma
li
festival cultural, ql}e .se r:ea ~av? pb..... . .
9
~ff ~ !!J num . solo . outra forma de conhecimento. O que comove o Negro, não
1

independente da Africa, era uma homena~..... . . .J~mo cn~- '\"' · .é o aspecto exterior do objecto, ~ _af~~liçf9qg ~Qq\,;@JJQ..Jªl,.,
- ~~:::if~i:,;e~·ia~~~~o~~!~ :~~~~~~a:;~i;aç~~ ~~~~~~~;:~:~ ·
Do passado era-nos desvela~o, :-im mundo u~itário e fech~a~o -
em si mesmo, .como Dubo1s tmha pressagiado numa visao
fantástica.
1

J
. . . ·················· ·-··
· · 0u foeihor; ·:a·süá surrealidade: · · · · · · · ··· · · ·
Através da .emoção, o conhecedor e o conhecido sintoni-
..zam-se naquilo que Senghor definiu ·Como «a dança do amor 11 •
Segundo o sistema 'filosófico de Senghor, o universo é com-
bosto· tle energia, ou melhor ·de · for<&L vitãis ,_J.stp_ e ...,,.de._ _ _ ._.)
.J

1(4) Senghor, L. S., G ·espfoit0 da·d11ilizaÇão .ou .as l?is ;da -cultura ;hJ?gr:0,africana, .(S) Senghor, L:S. in •Présem:e Africaine., êspecial 'XXl·XV, T.L, P,aris, 1 959,
:pp. 1'2 3. p, ,2;35.

20 21
)
')
) ondas, ritmos. No centro do sistema está a existência, isto é, celebrado pelo sacrifício ritual». Este pacto não foi feito em
J a vida. O Negro identifica o ser com a vida, mais exacta- nom~ pessoal, mas em · nome de toda a comunidade que ele
J mente com a força vital. A sua metafísica é uma ontologia incarna. «A família, a povoação, a tribo, não são portanto
existencial. ~ proprietários da terra, mas beneficiários». (')
)
Existe no mundo uma outra força vital, semelhante ao -~-'-_ Daqui dedriva a estética negro-africadna,fque se fundamenta
) H ornem, que anima todos os objectos dotados de um carácter ~- no conceito e um universo composto e orças, de energias,
) sensível, desde Deus a um grão de areia. O Negro estabeleceu · ~-;·'. · de· ondas e de ritmos. A arte negra é explicação e não
uma hierarquia rigorosa de forças. No cimo Deus, único, não ~~ . .. descrição. Aliás, a arte é um instrumento do conhecimento.
)
_)
criado e criador, aquele que dá força e potência por ele mesmo.
Ele dá existência, subst~ncia e acréscimo · às outras forças. 1.
t Senghor põe na boca do negro: «Sinto o outro, danço o outro,
portanto sou. A arte toma-Se uma ciência, uma técnica de
DeJ90is dele vêm os antepassados, e, em primeiro lugar, os -~ . participação sensitiva da realidade».
j fundadores dos clãs. Mais abaixo encontram-se os vivos que, .Ã Através da emoção, o negro descobre as ligações m~gi-
') .por sua vez, são ordenados segundo os costumes, mas sobre- ' cas que o unem ao universo e põe-se em sintonia com ele.
tudo segundo a ordem geneológica. No fim encontram-se os A emoção é portanfo ·consciência do · mundo ·e conhecimento
1 _)
animais, as plantas e os minerais·~ (6) ~ dele; e conhecimento integral, porque sujeito e objecto estão
A ética africana consiste, portanto, no «reconhecimento ' unidos naquilo que Senghor chama . «a · dança de amor».
da unidade do mundo» e do agir para manter o equilíbrio das 1\. ;, Tais são, segundo Senghor, a:s características funda-
forças, da ordem e da estabilidade. Desta concepção deriva a ········· ..... .1 ........... .. . mentais do mundo negro: o .dom particular da émoção, uma .
') ideia do sagrado, fulcro de toda a vida africana, onde .cada ser, ·ontologia existencial e unitária que se .:d esenvolve num ·
.) cada coisa, possui uma força vital de energia divina. «O homem surrealismo místico, numa arte impregnada e funcional, colec- 1·
' _) :st! ~ado à planta, aotrani?1adl, ª~ts seu~t
slemelhDantes, vi'!OS
9 Qs, g éiQ <::O$m9s .Q ;,ive$ .. o n mo VI çi. , e a eus através
1
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tiva actual. r h d Se h .. Al
a mesma m a e ·. ng or, assane
Nd f•
aw a irma que
l ·1
~1 ·
I _)
do sacrifício ritual». · · . contrariamente .à epistemologia ·ocidental, -:- que ·para .h_ri .. .
J Para Senghor a religião africana está centrada .,~ no sacií:: . . . ... . conhecer a_s propiiedades do mundo material recorre à obser-:
11

( _) fício, que determina a comunhão dos vi~os e dos mortos, . vação sistemática e. à expériência - , a epistemologia africana 1
.._
l1'
porque a força vital do animal- sacrificêlt!o flui , -..através do , ··. · considera a natureza corno um córgão vivo e procura desvendar
sacrificador em direcção ao antepassado e deste, de novo, em f , os seus segredos .recorrendo a mitos. (8) . .1

~ :~r:~ !~º:°fn~!~ed~ri: ~~"::~· ~~~:P:So~:. eos . . . . .'~~i~~~e:~:~T~~Ti~~tr~~~~";:~ ~~~=~:, ~:e~~~~:r!~!~· . .. 'i\ . ..


'J · · ·Pela .sua concepção «animista», "º
africano faz da terra em união com ·ela, é estar no seu interior e abordá-la a par- j
,) uma pessoa, um génio». "º
antepassado tribal, o primeiro tir daí. Do exterior, nunca se podem conhecer as coisas .~;

j -· . . cultivador .. e..ocupante . d a. .terra, faz com este génio um pacto, , na_s~a_,e_ss_ê_n_~ia . Para conhecer essas mesmas c~_
__ is_
a~_
nã_o_s_e_____

-) . '(~) SeAghor,, L'S., ü ·e spírito .da ·eivilização •ou as 1leis da culturoa neg~o~africana, 1 Ç') 1hidem,, ,p. 13i
' (8) A.lassane Ndaw, :PP · 83, 92 , '93.
(j pp. 1'28. '~~~ .
j
~ 1 23 .i
'
·~ ';'' '. \. . ~, . ili'· .
1 :s:
deve dissecá-las, mas antes de mais uni-las. É em função desta «O nosso-país tinha três inimigos: o primeiro é o Homem
união que aparecerá o seu significado( ... ) Para conhecer, deve branco, o segundo é a miséria e o terceiro é o passado. Quando
ir-se ao coração das coisas. cheguei, pensava ter de enfrentar só um inimigo: o Branco.
A relação do africano com a natureza é a expressão de Mas a partir do momento em que me desembaracei dele, os
. uma simbiose consciente. Nas poesias inspiradas pela caça, o outros inimigos surgiram mais fortes e perigosos do que o 0

caçador não se orgulha das. suas proezas; em relação à presa, Branco. Em comparação com esses dois, o Brarico quase
ele exprime simplesmente louvor e respeito. O caçador e a parecia um aliado. Pois bem, fiz dele um aliado-, que luta ao ._J
presa desempenham os seus. papéis no drama da existência. nosso- lado contra a miséria. Actualmente o Branco trabalha
Portanto, a natureza não é umainimiga que se tem que vencer e constrói para nós, de maneira que aqueles. que vierem depois
a qualquer preço. O africano ·sente-se parte integrante da de nós terão pão para comer e um lar para viver. Há agora J
natureza e· a sua acção· inscreve-se num sistema· de relações no nosso país. escolas.e hospitais. Os rapazes e raparigas saem
com o cosmos; com as plantas, com os animais e num sistema do seu torpor. Por que razão pensais que gastei tanto dinheiro
de relações sociais. A epistemologia negro-africana ignora a a mandá-los para o estrangeiro? Porque preciso que se unam
\ separação entre .a «ordem do conhecer» e a «ordem do ser». · a mim para lutar contra o nosso terceiro irÜinigo, o pior de
lO conhecimento é um ser e não só .um instrumento ao serviço todos: o passado (.:.) Cumpri formalmente os ritos do ju-ju,
~Homem. participei nas cerimónias de sang_ue, prostreFme perante os
~ --o Homêm negro, desde sempre se apercebeu que · no ;:/; ~;~ altares dos nossos .antépassad9s. Agora ·já não necessito de o
f h f d
: .qzgr~ ...Açt.µªJ.m~nte., .. .. ..á..Já . . u.m... .nú.m.~ro . . .su. jcle.n.t~mente gran e
11 .,..
W
J íntimo
· dos s - "d 1· d ·t d
eres res1 e a go e mw o po eroso que os .anima, · ........... H .. .. :~ ... ........... ......
;>e que não pode ser descrito. Esta é a razão pela qual a religião H de jovens que pôs ·de . parte essas super?tições caducas~ ·
'~: africana foi-intitulada animista: para o africano tudo é sagrado. ii doravante posso insurgfr-me contra tudo o que há de horrível
i Tudo é habitado por uma alma, uma força activa. (9)
1 no nosso passado. E tu, Selina, e tu, Adhebory, que outrora
amei corno irmãos, vocês ' são o . passado.
· Abater-vos-ei! · São vocês que impedem a evolução da
No seu romance «Uma coroa para Udomo» (publicado em . . . .. . T;. grande África». (lº) · ·
195.3)-, Peter Abrahams conta a história de µdomo, dirigente ,.; . No drama «The Dance of the Forest», _Wole Soyinka faz
nacionalista africano, que 'começou a sua acção em Londres · ~~ re_viver aos próprios pr9 ta:gonistas, em tr?nse, a vida cie alguns
,e ascendeu ao-poder em «P~máfrioa», estado :autónomo e ·ainda i
'l antepassados Jjlortos, e esta experiência levava-os a descobrir
- - -n.-'ã_- o-in.~ e:.I1-'S\. ec_n_êente~.~Para- .à.0v
::;)
_erna .r-, manter-se no · Pod. "-r
'
'°' e ··· ··········· nos··antepassados···-as····suas · pr6prias ·- misérias····humanas;·· · · ··e· a·.·.· · · .-.. .... ....:.....
'reafüàr"C) seu programa, teve de enganar e até sacrificar., devido compreender -que .nos .iludimos sempre numa falsa imagem do
às .exigências· políticas, alguns dos seus amigos. Acabou por passado. (11) ·
· chocar com wna oposição
1 de -
c arácter tribal e tradicionalista. No romance «Th~ lnterpreters», Soyinga apresenta um
Algu~~ _hora~s ante: de~s~e_r_a_s_s_as_s_in_a~d_o_,_r_e_v_e_Ia_a_o_s_:s_·e_u_s_a_.rn
_·_ig_o_s_________g_.!}!I2o de jovens int~lectuais e artistas negro-africano.s_à J'.:)ro_<:ura_ _
- - -..-.. . -.. .- t· odo- orn~crpensa:m~nto: ..

'( 0') f>der Abraham,, Uma ~or.õ a para Udomo, pp. 78 e 79.
1

~ 11) MJóle Soyinka, The iD.a~~e of the Forest, pp. 122 e 128.

25
_)
)
j do sentido da vida. Entre eles está um pintor, que desenha, «As divinidades encontram-se em relação aos vivos na
j num grande quadro, o panteão Yoruba. Os seus amigos posam mesma situação em que os antepassados se encontram em
j para ele e são interpretados como divindades antigas. Esta relação aos que ainda não nasceram; obedecem às mesmas
espécie de identificação com as personagens misticas da leis, conhecem as mesmas agonias e as mesmas interrogações
religião antiga, leva-os a descobrir os impulsos secretos dos · e angústias». (13)
,) seus desejos e das suas acções. Este tipo de interpretação Este sentimento de mistério, de inquietação e de angústia,
J não permite nenhuma idealização dos costumes tradicio- surgido do confronto com o cosmos, deve aguçar a nossa
nais africanos e ainda menos um esforço para restabele- curiosidade e incitar-nos a mergulhar nele para melhor o
' J cê-los ... (12)
compreender. Esta atracção do Homem pelo cosmos, contra-
_) Segundo Soyinga, na história africana foi forjáda uma riamente ao postulado do primitivismo europeu e da negritude,
_) visão do mundo, que não se reduz a uma ideologia politica nem não leva à fusão do sujeito com o objecto; pelo contrário, i
;. ·
1j . a uma ideologia religiosa ou literária, e que permite aos. reforça a consciência do sujeito. Este pertence ao cosmos e
,J africanos. conhecerem-se perfeitamente e pensarem o seu deve-· a não ser que ele se afaste do princípio da realidade
posicionamento no mundo. - ter ·em conta, que a sua: condição de Homem depende,
·_) · Esta visão de mundo· existe através da observação e da exactamente, da sua relação com o cosmos. E é ·justamente
' _) análise das manifestações culturais e religiosas. Todavia, esta a consciência desta, que se va:i ojjor à fusão do sujeito com
\ .:
J visão não constitui nem uma doutrina nem um saber que · se o objecto. . · - · · ·· · ·
j oferecem ao sujeito, aos quais ele poderia aceder através da·· · \
......
································TooaVia;···este saber···não ··ê dado sob· fõrtiia d~intuição
educação recebida no seio da sociedade. primordial ou de revelação, ele constiti.tl~se progressfvemente,
1
_j Apoiando-se especificamente na cultura Yoruba, Soyinga baseando-se ao mesmo tempo nas propriedades do real e do
1
_j mostra que o mundo antes de ser um objecto de conhecimento, espirita humano. . ·. . . ·
, J ........é.uma.experiência .devida,.continuamente.renovada e _geradora

,J
J
de inquietação e de incerteza. ·
O Homem encontra-se mergulhado na imensidade .cós-
mica, teatro de conflitos entre forças destruidoras e criado-
L \
Soyinga reivi:ndica L1m pensamento ·autóctone africano.
..... Contudo este «self-apprehension)) não é uma apologia da
tradição, nem sequer é um -apelo -ao irracional. O Homem é
conVidado a reflectir, a não se contentar nunca com o que tem ·
i
ij

,) ras, visiveis e invisíveis, aos quais os próprios deuses estão 1i ·,.,.•' à sua· disposição, a lutar por compreender sempre melhor.
_) submetidos. 1 .
nªº : . . ,.•.·.·•. ·······\
Contudo, o Mundo . cotn .•. o.qµªL0Ji.orn12.m..~....çonfrqntªoo .
_) Esta. experiência .essencial da realidade cósmica não cu!- é plenamente inteligivel.
. mina .num . saber. Ela leva o homem simplesmente a tomar · O enigma que o cosmos constitui , impede que o
"_) consciência de que, como os deuses , ele é um «no man's land» considerem como a expressão clara de uma lei, na qual seria ·
'J da transição entre o passado dos antepassados, o presente dos suficiente ínspirar-se, .quer sobrê o plano da acção, quer sobre .·
•J :.:::··.==IDiz:o S::.e=n::f.utum : .::dos:.: :que:.:::aJnda:.: :.n ão:.: :.nascer;am ..-·--.-~---·--- o- p1a.no- do-'-co.nheciniento.. --·~~-

~
1
(_) .( 2) W ole S9Y.Jnka,, 'T he lr:iter,pieter:s; ip. 111. (1 3) '!.~idem, p . 122.

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2'6 27
/ _).

_)
l '.
1
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r '
cheias, saudava estas festividades. que vinham interrom~.r o
Para ultrapassar o conflito tradição/modernidade, do quéfl curso dos dias, mas para encorajár a actividade criadora e a
o Homem de África parece estar prisioneiro, C:...P~a~e~·\ .· . .. .
economia, precisamos hoje, de uma ideologia completamente
ª. fricano propõe ho"e un.animemente a mesma res osta: hberta · diferente e mais exaltante. A nossa sociedade deve ser for-

--
o ornem a ncano e permitir-lhe reencontrar a sua capacidãc , çada a aceitar as exigências de um desenvolvimento económico
<:riãã~ .·- --- . . .. - . .. ... ---'00 ... :,,,._~... ... . - ,,s:z
rápido, através de modificações das nossas relações sociais e
\ - O projecto de libertação e de auto-determinação do dos costumes; em caso de necessidade, devem ser modificadas ..)
Homem africano passará necessariamente pelo domínio da por lei.
ciência e da técnica. Foi certamente a falta destas que deixou Nkrumah apela à responsabilidade individual. Vê, por-
a África à mercê do imperialismo ocidental_. tanto , no individualismo - um individualismo criador e activo,
1
' M. Towa (14) foi, sem dúvida, o filósofo africano que evidentemente diferente do simples egoísmo - uma condição
exprimiu com maior intensidade esta verdade: fol devido à ··S:·•
1
necessária para o desenvolvimento. (15}
nossa inferioridade técnica que a Europa nos subjugou. Por Para Nkrumah, o Consciencismo· P.retende assegurar o
isso, a necessidade de introduzir em África o segredo da vitória desenvolvimento .d os indivíduos, mas de · maneira a que as
europeia, isto. é, a ciência e a técnica. O domínio da ciência condições do desenvolvimento de todos1. se tomem a condição
e da ,técnica e a constituição de um poder material africano de desenvolvjmento de· cada ·indivíduo. ·
são para Towa os pressupostos da autonomia espiritual. . \ . À tradicionêÍl .·.?e~gunta -sobre a.
·existênciã . da filosofia ..
Segundo K. Krumah, o sistema ec<?r.i9r.r:ii.C:9. ..t.r.ª<:l~ç~9~ ·-······· ..,.Jf: . . ~1afncana1 l::lountorn;lJi
.
contrapoe
.
outra.pergunta:
.
o que se deve
na! africano foi no passado, útil e louvável, quando a socie- ';entender por filosofia africana? Isto porque para Hountondji ·
dade era mais ou menos estagnada. Mas actualmente constitui \a questão do sentido deve preceder a questão da existência,
um travão ao espírito de iniciativa e ao esforço. Os costumes 'uma vez que da r.esposta à primeira questão, . depende a
da família africana impedem o desenvolvimento das cé1paci- resposta da segunda. ·. , ·· ·
dades; opõem-se ao profundo · sentido -de responsabilidade Para Hountondji, a prática filosófica é inseparável da prá-
individual, necessário num períódo de reconstrução· nacionaL · tica científica. ci nascimento de uma filosofia .africana, depende
Sobretudo, impedem os aumentos de produtividade e levantam necessariamente do ·desenvolvimento da dência. A África tem
obstáculos à poupança, dóis factores es.sénciais _ao desenvol- neces5idade antes de mais · de ·ciência. A filosofia pode ser
vim~nto.
importante, unicamente na medida em que a.:J1:19é:i ê,i :.<:i~:?~t . ....,.,,.1
Na vida ,e conómica de um país subdesenvolvido, as brochar; rió.Córitiriente,ümáverdadefrá.frad!Çao teórica, uma
economias gastas em despesas de ostentaç.ão, na celebração tradição cientificamente aberta, senhora dos seus problemas e
· de festas ·religiosas tradicionais, em extravagantes cerimónias 1 •
dos seus temas.
i
. de casamentos e de fonerais, s'ão, nem mais nem menos, ! Hountoridji não· hesita :em fazer da filosofia uma teoria da
. · dinheiro~ançado ao rnar. A sociedade tribal, {;;uja mmwtG-- ciência, uma teoria._ila_llii.fureza_e__1las__cQndiÇfie~s._rle_pos.S.~·::_ _~·.._)
=....;:: .. u ii-i'a~ó méia" :quebrada "pe.io nascer ·e pôr=âo-sol <
' .. e pelas .luas
'(1'5) K -Nkruma-, Consciencismo, P'P· 67 e 6'8.
(i 4} Çf. M. Towa, L, '.j~~e .d'une philosephie negro-afri:ame, ]~p. '87, 8 8.
1

29
j
')
)
bilidade do discurso científico; isto é, uma simples. epistemo- IV
logia científica. (1 6)
J A reflexão filosófica africana orienta-se em direcção a uma
') técnica moderna, a uma ciência dinâmica e a uma economia
O Ocidente e a Técnica
1J competitiva, tudn isto no quadro de uma configuração política,
'j democrática e liberal. A África quer, a todo o custo, abandonar
uma perspectiva cultural que impede o desenvolvimento, -
' _)
como a definiu·Levi-Strauss. - , devido a uma visão «sacrali-
' ) zante» da natureza, para trilhar o caminho do desenvolVimento
no qual a natureza é apenas um instrumento. A segunda questão refere-se à técnica. A partir dos anos
'. J trinta-quarenta, inicia-se no Ocidente um processo sistemático
1 _)
contra a técnica, acusada de escapar ao controlo do Homem
e de atentar contra a sua liberdade.
() Para o escritor francês Georges Bernanos, «As máquinas
_)
não foram produzidas e multiplicadas segundo as necessidades
do Homem mas segundo as necessidades da especulação{... ).
íj Se a máquina tivesse permanecido simplesmente um meio e
-_) não um fim, não teria transformado radica.lrriente a_V:ida::do
(_J ··· · ··Homerri; ·nãose·· tena·· apooeradó ae quase tooás as·energias ··
humanas e tornaria mais bela a vida humana, serri ·U.Surpar riada
')
às outras artes, porque ela mesma se teria tor'nado uma arte.
•) · A especulação universal serve:-se da máqllina como instru- .
' _) .... .. menta da sua potência( ... ). A civilização da máquina, no início;
_)
.... Jaz.pensar num .ccgang» que se agrupa para explorar siste- .
maticamente todo o mundo e-depois, pouco a pouco, organiza
IJ o Mundo à sua imagem (... ).
) As máquinas não limitaram a sua intervenção sobre o
'. ).·.······ ·· mundo, mas agredira,m sobf.e.tuôo o.Hoi::n.em, . transformando::a ... .
')
O Homem fez a máquina, e a máquina tomou-se Homem,
através de urna inversão diabólica do mistério da incarnação.
(
Vejo constrllir-se um Mundo no qual, ai de mim, não é
!'J exagerado afirmar que o Homem não pode continuar a viver,
(_) - - - - - -- - -- - - - - - · - - - - - - ---+-~----~-não-ser-que..-.se-torn.e-.menoS-l:Iomem....-( 17,1---------------·
y { 1 ~) \Hountondji, Sur la 'Ph'ilosophie .Alricaine, :p. 98. 1(17)· G. Bemaii0s, Lo .Spínlb êurqpilo e il mondo .delfe rnacchine, pp. 154-55.
1 _)

() 3.0 31
f'

,,
O sociólogo Jacques Ellul, fala de uma técnica autônoma, e -do cérebm e o -surgimento de máquinas aptas a executar
que só depende de si mesma, que decide o próprio caminho, tarefas no passado reservadas ao Homem. A técnica ganha .
que se auto-determina e fixa os seus objectivos. Para mais, a progressivamente a aparência de um corpo exteriorizado que
técnica hodierna- não aceita nenhum juízo nem nenhuma limita- se define por oposição aos individues.
ção, julga-se a si mesma segundo o «paradigma moral» da O lugar da técnica na sociedade é completamente modi-
eficiência. «A técnica é o· Deus que salva», ela é boa por essên- ficado. Ela deixa de constituir um dominio entre outros, na
cia e é riisto que fundamenta a sua legitimidade. A unidade existência Humana e fagocita todos os outros domínios. Com
técnica é possíveJ. graças à circulação intensiva da informação efeito, não há nada que não seja susceptivel de tratamento
)
que permite criar condições, à associação e à cooperação de técnico. Leroi-Gourhan pergunta-se até onde pode ir esta
diferentes sectores técnicos. exteriorização do ser Humano. ...)

Segundo o .paradigma técnico, tudo o que se pode fazer Na época tecnológica, a relação entre o Homem e a
deve ser feito. A técnica estende-se a todos os domínios e natureza inverteu-se. De servo da natureza, o Homem tor-
elimina progressivamente tuçlo que não é •<tecnizável». A técnica nou-se seu patrão, não um patrão sábio e prudente, mas um
cria novos valores e desenvolve-se no mundo inteiro através patrão a"stuto. Armado de técnicas e instrumentos sempre mais
da transferência de tecnolog_ias; ela é responsável pelas soiida- poderosos e refinados, de passivo consumidor de produtos que
riedades. técnicas; mas sobre:tudo pelas dependências inten- a natureza punha à sua disposição, .o Hon:iem tomou-se um
cicmais. (18) .. · -~gr_essor prepotente e um explorador exigente. Na época
Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a técnica não tecnológica o Homem .agride a natureza e esvazia-a de tudo:
é um fristrÜmentO .I1eúfr0 que: o Homem usa segundo o seu ferro, carvão, petróleo, minerais, água, ar. Em vez de cultivador ··············· 0
arbítrio. Ela resulta de um processo através do qual; o Homem, sábio, o Homem do século XX tornou-se um explorador ...)
esquecendo· o ••Ser», se agarra cada vez mais às coisas. Por selvagem da natureza. J
consegwnte. p · Homem assumiu perante a realidade, uma . As consequências deste novo tipo de cultura são.terriveis.
atitude de domínio e de exploração; uma atitude que nem ·· - · No planomaterial; provocouumacriseenergética muito.grave, ..)
sequer respeita as bases da Vida, as suas condições bioló- e torna incerto e obscuro o futuro da Humanidade.
gicas e genéticas, sobre as quais a técnica teride a impor o Estas razões fozem com que o problema primordial, quer
seu· domínio necessariamente totalitário .. Portanto, ter fé na · das sociedades ditas primitivas, quer das sociedades desen-
-~-
técnica, significa . depositar a :p rópria confiança num pro- voluidas, seja o .lugar do Homem na natureza.
...c~ss~::r(ie ,.,domínio, ..'c ujo ... objectivo ....f!. . . subordinar ..tudo..'a sL ······.····· .·
. mesmo. (19) Segundo Ser,ge Moscovici, assiste-se hoje ao fim das
Leroi-'Gourhan mostrou que a condição humana encontra sociedades baseadas ria acumulação interna •e nos conflitos de ~
'o . seu fundamento numa dupla «Objectivação simbólica e dasse; ao Jirn de uma civilização. As sociedades .que -estão a
técnica». !rata-se do que ele chamou «exteriorização» da mão nascer baseam-se na dência .e na técnica; são culturas e não J
-------------------·----------·------1---····_
· ····.,·:-=-1vfüzaç0esFf!tle:'::e~stãe.::Je:str.urur-.aea-s::::pe.r...:::aetiVià-aEles-e-nãe--p0r - - · -J
· - ~l1 ~ · ~J- "'i5{1µ1, 1J: · ii1 .- .. ordens. _Nestas ..sociedades a ·questão -n atural substitui a ques-
1 9l ~'M : He'kr'egger,
1
-;pp. 14, 19, 74, 1.f3 . tão- :social. )

. 32 3
33
)
')
) Nestas sociedades a vida depende cada vez - mais da tenham tomado problemas naturais; é justamente por esta -
_) exploração de recursos naturais feita pela ciência ~ pela razão que o problema capital dos nossos tempos, seja o lugar
técnica, pela programação e pela organização. do Homem no ccmjunto natural, continuamente transformado
Esta transfonnação de existência social e dos mecanismos pelas suas práticas. (2º}
de desenvolvimento destruiu, segundo Moscovici, a concepção
da sociedade que se opõe à natureza e vice-versa, como a Edgar Morin aponta uma via para entrar no terreno
' _) forma se opõe ao conteúdo e o pensamento ao obj~cto. Para minàdo ·das relações natureza/cultura. O novo paradigma
Moscovic~_, as condições de trabalho não determinam directa- consiste em evidenciar a lógica do ser vivo, desvendando as
mente o 'tipo de sociedade, mas pelo -contrário, um modo articulações entre o natural e o cultural, o biológico e o antro-
') particular de constituição da natureza. Não existe uma natureza pológico, sublinhando a unidade da natureza, dos seres vivos,
1 __) em si, que Homem modelaria com os seus untensílios e as suas e fundado sobre a auto-organização e sobre a complexidade.
J máquinas. A natureza é um mcxlelo de conhecimento e .cada O paradoxo deste paradigma, que faz da vida um sistema
estado de natureza substitui o precedente à medida que o de organização permanente, fundado sobre a _lógica da com-
J · cónhecimento sobre .a matéria aumenta. Toda a · referência a plexidade, foi explicado por Morin nestes termos:
J uma natureza, como idade de ouro ou como estado primitivo ««Repentinamente -desaparece o antigo paradigma que
obscuro, definido fora da práxis humana, é puraideologia e opõe a natureza à cultura. _A evolução biológica e a evolução
corrompe a análise sociológica. Um estado natural é um estado cultural são dois aspectos; dois pólos de desenvolvimento.inter-
J . - :. ·· ..
de conhecimento, de técnicas e até mesmo de filosofia, -relacionados e inter-reforenciados, do fe~óméno -total da
considerada como teoria de conhecimento e portaiifo fambem - - - -- - - hóriiiriizaÇâii A evoliiÇaà bí616gica~ á pàrtfr de. um primata
. ~
da natureza. Um estado natural é um nível de criação. inteligente e da sociedade já complexa,' prossegue numa mofo-
0 tra'Qalho Humano tem duas faces: é o elemento de um génese tecno-sócio-cultural, a . qyal relança e estimula uma
sistema de trocas, de uma organização económica e de relações evolução biológica que rejuvenesce .e celebra( ... ). Tudo se passa
rJ ···- sociais; mas é também e .sobretudo, criação e reprodução de como se a soeiedade se comportasse como um ecossistema
__) um estado natural. Obviamentê, Moscovici tentou reconstr:uir - - - - - ·-· · · -·----- - - · · · · ·------------------- social organizador e organizado, fazendo uma pressão selectiva
' _) estes estados naturais e de um mcxlo particular três: o sistema e integrativa sobre os desenvolvimentos onto-genéticos que vão
.__) orgânico, definido pela filosofia e pelo artesanato grego; o ':_ no sentido de uma complexidade crescente. · · _
sistema mecânico, que triunfou desde Galileu até Newton; o _í - O papel do ecossistema natural ,é anulado. Pelo contrtirio,
'J sistema cibernético, iniciado com as ciências experimentais e 9.de$e.nvolvimento da complexidade sociaLestabelece relações... . .. ,_ _,_,
'_) com a _descoberta da química e da eletricidade. sempre mais alargadas, profundas e complexas, com o
?J _ _ . A sociedade de hoje baseia-se na ciência, na técnica e nas ecossistema natural. Toda a economia social depende cada vez
transformações da vida social. A imagem do Homem que mais da ecologia social, toda a mudança ecológica tem reper-
'J
- refie.de esta sociedade está ligada à criação de um novo cussões sobre a economia ·e faz sentir as repercussões · 'Ç:Ías
~ j '"==' ""airibíénte"ffafufal::=ifd'õ"tõnhetimeflto-eie-atí-fie0-,-Eies- r:>r-eà-1:1-tes- - - - - mod.ifaca.9ões-Glà-eGGt-:10mia--S0!3re--{ooa--a-seE-iedae€-:---~Mas_:._a---- ---~
0

y da síntése e da lnterven~ãe activa no pwoesso ibiológico . T0oas


lj .e$tas razoes fazem com QU€ OS problemá.S SOcià'is de hoje se '(
2
0) S. Moscovici, opus :êit, 'PP· 145-223.

35
~ . .! ' ,-~- . ~
. ,...·
Cultura adquire uma relativa autonomia, isto é, uma · cul-
tura complexa... pode manter a sua complexidade num novo público. Serres denuncia a pretensão dos Homens de (<querer
am..biente
. ... (21)
. continuar a viver e pensar entre eles, ignorando comple-
tamente ·o mundo natural esmagado pela sua empresa>>. (22)
. Existem hoje duas escolas antitéticas: uma que celebra a ((Com o contrato exclusivamente social, abandonamos o
cordão que nos liga ao mundo, o cordão que liga as ciências
. '· ·i,iênc!a e .o progr~ss~, . ?.utra que professa--umraTüratiSmo---
' eactivo. Para a pnmeira escola, a exploração da natureza faz s.ociais ~s ~iências do universo, que liga a história e a geogra-
:·arte da ordem normal das coisas. E necessária uma expio- fia, o dtre1to e a natureza, a política e a física» . (23) Daqui
. ação em nome-de um certo equilíbrio; da raridade de recursos, · deri~a ~ necessidade de um contrato natural, capaz de devolver )
~a variedad~, da.div~rsi~c.ação do culto da beleza. Nesta óptica a dignidade absoluta deste sujeito moral que é a natureza.
Mas o que é o contrato natural, se não uma auto- J
I° desenvolVJmento c1entíf1co e o-progresso Humano são «abso-
lutos» e valores fundamentais: · . · -pr~scrição de uma série de restrições? Tal contrato é desejável,
/ Para a segunda escola, existe uma ascendência . da realizável e somos nós capazes de honrá-lo? A ordem natural )
,;/natureza sobre a sociedade. A natureza tem direitos primor- . é separável da ordem social?
diais, ela é a nascente da vida. Para esta escola, a natureza
é um valor em si mesmo; .reconhece-lhe, portanto, direitos . Qual das duas atitudes culturais se deve escolher a cultura
inalienáveis e faz do ecoss.istema, .. Jenómeno... complexo de pró-natureza, ou a cultura anti-natureza? A contem~lação ou
interacção, um sujeito moral. Invoca-se a interdependência das a instrumentalização? Esta escolha não pode ser feita, sem
espécies ~ de todos elementos _do eéossistema (geologia, fisica, emitir um juízo sobre as culturas. Mas é possível julgar ·uma ·- · ···· ·--··
meteorológia, biologia, etc.) para rejeitar a vontade -Humana cultura? Uma tal operação é legitima? Muítos pensadores
de domínio sobre a natureza, para celebrar a capacidade da nega1:° a sua Ie.~~timidade, ao mesmo tempo que a afirmam,
.·natureza Humana se reproduzir de · maneira autónoma no atraves da elevaçao do modelo cultural Ocidental a u.ma dimen- .J
tempo. · - _ ... ...... . sã.q Pêl.D:-Jlll.ri:têl.I1.él., é;liDcia.qµ~ a.cimitindo a necessidade de subme-
· Os adeptos desta escola, pretendem que as obrigações tê-lo a algumas modificações.
humanas para com a natureza derivam exclusivamente do valor Se a cultura é a Humanidade em grande; :e6 Homem.pOde
da natureza enquanto tal; da-sua dignidade de sujeito moraL ser sujeito ao juízo moral através das suas acções, da mesma
Doravante, a riàftireza não poae ser objecto de exploração, ~orma, a sociedade nas suas acções, nos seus produtos, isto
............ .uma .v.ez ..que ..a ,.sobrevivência da espécie Humana.depende·do - e, na sua cultura, é susceptível de apreciação ética .
.. . _: _/
seu futuro harmonioso. Portanto, éindespensável regulamentar Mas a quem compete a avaliação moral de uma cultura?
_]
as interacções entre o Homem e a natureza. •· . ' · . Quem podef dizer se ela é boa ou má? Existem critérios abso-
Segundo o sodôlogo Giovanni Busino, Michel Serres ·- ~ ·1utos para ormular um juízo deste género? Imaginemos que
com o seu livro intitulado «contracto natural» -· , membro da "i, todos concordem em dar ao filósofo a missão de emitir um
· - -ÂGademia-F--ranGB$a- d-i-fa1i::idiu-estaS-:--:-ideias-junto- do--:g.r andé·· .....•............. ············'·· ::J uizo . .de . . valor..sobre a cultura. Onde vai o füôsofo buscar .o
_____,_~,_~ ..v~7.~.,~~~---,~ ...~-~~-=-~
..-~-~--~--~-~
.. -.~---~--~-~.~-~--~...~
.. ~.--
~.~~.~~-~.~--~-::__~~~_)

·'(2 1) .E. Morin , L!? pãraâigme pe rdu, PP- 78-79 . ,.(22) G. Busino, '.in -•Revue .europeéne des sdences sooia'Íes•, p. 7.
(23) M. Serres, Le contratt social, p. 76. )
\1·

.3 6
37
')
')
j
' )
critério para ·u1 ar uma· cultura? Vai procurá-lo na potência, V
ria e 1ciência, na be e , progresso ou na riqueza? ,
\ _)
j -Apesar da sua pertinência teórica, este problema não tem
pertinência histórica, uma vez que toda a história do pensa-
' -~«
A Africa Face aos Impasses
rJ
mento africano, e sobretudo todo o seu percurso politico,
consiste num esforço de adequação e de integração no sistema
da Modernidade Ocidental
') sócio-juridico europeu.
( _) O que é importante é que, a partir dos anos trinta-quarenta
se iniciam dois movimentos antitéticos. Um, afrieano, que parte
,- )
( _)
t de uma posição cultural, digamos mistica da natureza, em
direcção a uma visão tecno-científica e marcantil. Outro, oci- ··~
A posição do pensamento africano, que pretende guiar
o povo de todo um continente em direcção a uma visão instru-
~ {'~.,:.

l
,-j dental que começa a denunciar a «invasão» sistemática da mentalista da natureza, não é anacrónica, vista sobretudo em
técnica na vida social e acaba propondo uma visão, por assim função da mudança de atitude do pensamento ocidental e das
_)
dizer, mística da natureza. .,
.e ameaças do desequilibrio, cada vez mais fortes no ecossistema?
I _) :."•
-, ·Se as teses anti-técnicas desenvolvidas ontologicamente
!.J por Heideggar e sociologicamente por Jacques Ellul fossem .·
lj correctas, então a posição _africana não seria simplesmente - . ·s-
anacróniq1, ___ rna$ .tªmpgm ___ir.rn$PQD.$<\.V~l, __J>qr.~m•.. ªntg$ _ _ Çg
(.J condenar pura e simplesmente o elan africano em favor do ·
r.J desenvolvimento, devemos interrogar-nos quanto ao signifi:..
(J caci.o da técnica e ao seu ·verdadeiro lugar no seio da cultura
Ocidental que está na sua origem.
"J . . A técnica é resultante de um desenvolvimento simbólico
_) da civilização Ocidental e mais precisamente a ·partir do evento
) da ciência galiliana. Ela está, portanto, na raiz e na génese d~ .
) modernidade eurqpeia. Não 5e pode condenar a técnica, sem
pôr em causa o evento da modern1dade.
' j' I~'' ..

Com o evento da técnica moderna; todas as obrigato- ··· ·······


') riedades tradicionais destinadas a manter a sociedade desa-
(J pareceram, ·e a soc1edade não se desintegrou e nem sequer
'j se assistiu a uma sucessão de explosões sociais. Na realidade,
.......................,......................................~ ..... .: .......................... ......................... .. ... ._.... .
as re,gras sociais são ditadas hoje de uma forma diferente pela
~) -- --------~-- -
~-- --técnica-=--Porquê?--:A-resposta---mais--prottável;-é--:que--ai-anti-- -------
y gas barre'ir:as cerjer,8:tn O ili.ig~r â ttO"'âS' ~bar:relras ;guiadas pela
1

(_) técnica. ·
j
39
'. .J . ...
-- . . _, - ... ~- -
( _)
.,-_)
()
Contrariamente ao que comummente se diz, a técnica não particular da novidade simbólica e culturaL Cultura, portanto ..J
destrói o símbolo, mas transfere-o. Contudo, a técnica não
representa um sector entre outros da actividade social, sim-
a «segunda natureza» do Homem. o
Quer o capitalismo, quer a democracia - como outrora o
bolicamente subordinado, mas tornou-se o elemento organiza- comunismo- acreditam que a técnica- isto é, o conjunto de
dor de µma das vertentes das relações sociais, a divisão do instrumentos produzidos com base na racionalidade científica,
trabalho: Assim, ;ela situa-se no interior de uma lógica de um que hoje asseguram a sobrevivência do Homem sobre a terra e
desdobrament0'. normal de toda a sociedade. _Por outro lado, cujo monopólio permite aos povos ricos o domínio no Planeta-
a sua inflµência;ctnscreve-se no quadro de um conflito simbólico é o instrumento através do qual se realizam .os valores. que eles
'
entre valores de, igualdade e de liberdade por um lado e de ,
se propõem produzir. E verdade que a democracia se apresenta
hierarquia por outro. - como procedimento formal e como instrumento neutro em
Como sustentou Marcel Gauchet no livro ccDesenchan- relação aos- valores. É também verdade que o çapitalismo é
tement du. Monde», {24) o que aoonteceu foi a exclusão da neutro em relação à quota do proveito não reinvestido. Mas a
religião, mas esta esclusão não- criou nenhuma sociedade democracia e o capitalismo ·concebem esta neutralidade em
autónoma, senhora dela mesma; pelo contrário, produziu uma _refação aos valores, como· o super-valor que deve ser reali-
metabolização:da função religiosa, uma recomposição sobre o zado mediante a super-neutralidade do instrumento tecnológico.
modo puramente profano da economia da diferença. ' ·sustenta.:.se que a técnica-não descobre valores, e que ela é um
O que é importante é saber como se produziu a tran- -simples insfrumentO para realizar valores que reéebe dõ exterior~ . .. (j
sição entre a determinaçãq_r?1igio~.c:i9 sqçialg a obje.ctivação ''' Esta profunda convicção não é ao mesmo tempo uma
técnica da produção·. Sob que impulso se produziu esta ilusão profunda? · ·
metamorfose? A objectivação das relações sociais no quadro ·A democracia como autogoverno .do povo, pressupõe a
da produção, toma p9ssível uma organização de relações fora capacidade do povo e dos indivíduos de se tomarem indepen~
da produção, fundadas sobre o princípio de igualdade univer- ' .:·:-
dentes -dás estruti.rras e dos procedimentos da técnicçi, Pa.rél. . .
sal dos hidiVidüós. ·O· que não refuta o evento da demo- .·Simone Weil (25) a definição de .democracia está exactamente
cracia moderna, nem a originalidade ·d os· desenvolvimentos na subordinação da ·estrutµra social ao individuo humano;. é
recentes do individualismo democrático. Deve acrescentar-se a · nec~ssário salvar o Homem da ccdesumanklade» da técnica. Pelo
tensão inerente a uma sociedade construída sobre dois 2prin- . . contrário, certos- tecnocratas; basta pensar em B. F. Skinner
dplos .contr~dltórios, -:Um f~vo~àvel a uma extensão da estru-
---~--'----- · · .- retêm que se devem salvar as estruturas da ciência e da
tura técnica do social, oü.tra inclinada a estender até à ordem ········ ·· · "" · ·· · · ±éórika aa 'frradonanaa.ae ao rriêiivkhio húffianü: A dênêlâ e
de produção, o modo democrático e igualitário de· !regula- .· a técnica salvam o Homem, exactamente porque não são
mentação; humanas, isto é, estão livres dos vícios do Homem. São, por-
O problema não é tantõver na técnica um perigo e uma ta.11to, «desumanas», quer para os seus adverS"ários, quer para
ameaça para a :liberda.de do Homem .e para a conservação do os :seus amigos. ____________ ----~_)
===rfiiefo=arnbtent~qoa-ntoaboJtla-cr--:a1técnica como uma espec1e-----....:.- ---
. ~~
. : és,) _Cf. Simone We"il, in ~J1,rchives :!'Je P hilo.sqphi?•» Janvie~-Mars 197 4. Tome
'(2~) lM. Ciiuchet, Le desemchailt!O!ment du monde, p.p. 87, 1Q7 ·e 129. ?-7,, ~p. 19;5.

. -· ~ 41
·-
J
)
) Hoje está cada vez mais em voga a ideia segundo a qual Sendo assim, a técnica ao mesmo tempo que ameaça cada
1 _j o modo actual de produção está a destruir a terra. Ora, a vez mais a existência da democracia, é para o capitalismo de
' ) destruição da terra é a destruição da base natural da produ- uma importância capital. A inovação tecnológica toma-se
1)
ção económica, e portanto da destruição da produção capita- . assim a condição sem a qual o capitalismo se encontraria no
lista. O capitalismo está a auto-destruir-se, está a fazer aquilo ,... dilema mencionado acima. O futuro deste depende do futuro
que nem o marxismo nem o comunismo conseguiram fazer. ' ';(

técnico. Assim, o capitalismo é obrigado a adequar os seus.


A partir do. momento em que o capitalismo se dá conta _,.:
objectivos à eficiência do aparato tecnológico que tem a tarefa
' _)
do seu q;trácter destrutivo e auto-destrutivo, ele procede a urna de os realizar. O objectivo do capitalismo não deve ser um
mobilização de formas de energia alternativa - · que são .; . .{-j, obstáculo à eficiência do instrumento que tem a finalidade de
')
possíveis graças ao desenvolvimento tecnológico - , que : ~ ,.-; realizar o objectivo. Assegurando a inovação tecnológica
.J diminuem a quantidade de poluição e de destruição. Para . assegura simultaneamente o decréscimo da destrutividade da
) sobreviver o capitalismo recorre à técnica. Se não pudesse produção económica.
_)
recorrer à inovação tecnológica e perpetuasse a forma . actual Não obstruir significa adequar-se; isto é, subordinar-se à
de produção com o emprego de formas de energia actualrnente eficiência daquilo que, subordinando a si o objectivo do capita-
r _) utilizadas, o capitalismo encontrar-se-ia diante do seguinte lismo, se toma o verdadeiro objectivo do capitalismo. Assim,
{: _) dilema: ou impor à sociedade perpetuar as formas de produção ,, .... () .y~~q9q~~~q 9~j~ç!_iy9 c:Io capitalismo deixa de ser o proveito
1.J que ela pratica actualrnente, próvocandcr . realmente a •des- : \ :
. e passa a ser a renovação contínua da tecnologia, isto é, a
................... truição.da.terra.ourenunciar àprodução . com. vista.ao .proveito Tecnocracia. (26)
r .J - que é a finalidade do capitalismo --:-:-:-. , e produzir com Vi~ta
' .J à sobrevivência da terra. No· primeiro caso, a produção Ora, este problema é tanto mais importante, quanto o
J económica ou chega realmente a .destruir a base natural e capitalismo não parece ter hoje, na mente de muitos líderes...
· portanto a destruição de si mesma, ou então, de tal maneira políticos -.. .. e não só - alternativa possível. ·
alimenta a convicção do seu ca.rácter destrutivo, que o capita- . Diante···desta ··· configuração;··· pode · a ··· filosofia ·· africana·
'J ·· usmo ·é recusado pela sociedade. No segundo caso , o permitir-se ignorar a técnica? Imaginemos mesmo que para a
•) .capitalismo, é obrigado .a assumir corno übjectivo prirná,río a sobrevivêricia do planeta -nós tivéssemos que usar energias
j sobrevivênda da terra e portanto a renunciar ao· seu objectivo alternativas e não poluentes; e~sas ~nergias não se pod_em
primário (o proveito) ·e pefa mesma razão a renunciár a si conhecer, obter e utilizar sem o domínio da técnica. E se a
() ··· , .,., , ,, '" , , técnica necessáriapara-um des'-envoMmento-durável tivesse que
mesrno;··Ocapitalismoou destrói · a ·terra ;·e·· portanto ·se destrói
a si mesmo, ou atribui-se . uma finalidade diferente, também nos provir do. bom gosto e do c<altruisrno» proveniente da
neste caso se autodestrói. necessidade do" Ocidente, então ·isso seria assinar a nossa
Este dilema subsiste apenas, se Q capitalismo não recorrer dependêncía perpétua. .. . ·
à inovação tecnológica que; assegurando-lhe energia cada vez Dito isto, podemos peguntar-nos, ·.se a razão última da
~-ma africana, correspon(fo' auma" Viªo ,(fa" têcilicaHm&iema H
- - -- -
menos «pol uente» e aesffüfiva-;-ü0e1xa manfer como o5jedivo ·-e-s- co
o proveito) sem alimentar as condiçôes que levarrrà destruição
1 _) oa T~rra. (26) .Cf. ',j ::mmanuelle :Severirae , J_;a ·fine d ei •c apitalismo, p. '8 9 .

43
)

A «grande real» qualifica a cultura dos estrangeiros como


como paradigma intrínseco do humanismo moderno; ou a
técnica como instrumento de sobrevivência ·num mundo de «a arte de ganhar sem ter razão». Uma tal análise· suscita nos
dirigentes um dilema sério, que o chefe dos Diallobé exprime
concorrência cínica, sem escrúpulos nem piedade?
Cheikh Hamidou Kane na «Aventura Ambíqua)) (27} propõe nos seguintes termos:
uma imagem da sociedade africana, que estigmatiza um «Se digo aos diallobés para irem à nova escola, eles irão
processo de secularização, sob a pressão de factores culturais em massa. Vão· aprender a arte de ligar a lenha com a lenha.
trazidos pela colonização· europeia. Assiste-se então, à decom- Mas aprendendo eles também vãq esquecer, porque não se
posição mais ou menos rápidà da ordem antiga fundada no pode aprender isto, serri esquecer aquilo. Mas o que vão
primado do religioso sobre o· social e o político, no primado aprender vale o que irão esquecer?
dos anciãos.sobre os mais jovens, e no primado da comunidàde Se não lhes digo para irem à escola, não irão. As casas
sobre o indivíduo. A brutalidade: desta transformação provoca deles cairão em ruínas. A miséria vai irtstalar-se n"os seus lares,
rupturas e traumas, não só na vida social e nas instituições, as suas crianças- morrerão ou serão reduzidas à escravatura.
mas antes de mais e sobretudo nos espíritos e nas menta- A miséria vai instalar-se nas suas vidas e os seus corações
!idades. ficarão .cheios de ressentimentos».
)
Na primefra parte o romance narra as discussões , entre . Entre, por um lado, a fidelidade. fl. tradição - mas com
os principais responsáveis do grupo, s9bre a atitude a adoptar o risco de degeneração sinónimo. de servilismo material
perante ós valórés esfràrigeiros;··e de uma maneira particular definitivo, até mesmo de uma extinção da comunidade e da
sobre a escola colonial. cultura diallobé ·-···· e;···por·outro,··a··cónversão·à··modernidade ········ · _,_)
· Conforme uma visão antropológica clássica, que quer que ocidental, com o risco para a África 9e perder a sua alma, o
o religioso e o político, o sagrado e o profano, o espiritual mestre e o chefe parecem abster-se,··
·e o temporal sejam confundidos e unidos nas sociedades tradi- Assim vistas as coisas,. a avenfu.ra ambígua, não serve
.cionais, o mestr~ . c:l~ .~SC:?lé:l C:<:>~~f.liC:(:l ~ <:) C:i:i~f~. c:l<:> P?Y.<? Qiélll91::>~ . .apenas para definir o encontro dramático e trágico entre o ·
são apresentados como «alter egos». Estes dois homens emi~ a
Ocidente e África, qy~ c:l!?~~QI,! ~?t~_.(lltir.:riq social e cultural . )
nentes encontram-se. desconcertados; não tanto pela novidade durável, mas é talvez, também e sobret\Jdo a definição do tipo
da sítuação, qüanto pela . consciência da incapacidade do específico de contribuição ocidental, qÜ.~ é de <<per si» ambíguo
mtindo tradicional-cont~r os assaltos mortais de uma moder- ·e dúplice; ao mesmo tempo um bem -e um m'al.
ni4~ção~óega, uma vez que a vitória da morlemidade sbbre a o · - b. bat El · ·
····· tfãdiÇão; 'não slgnifiCá díscUtir o car.ácter justo das escolhas e estra~h~s:~ ~=~~a: :~t:; e~~~z:~i:~ s~~~~ :;bê~ ,~~~~
dos rncxlelos da tradição. Pelo contrário, o progresso mate- com a mesma arte. Onde provocaram desordem, susdtaram
rialista sob ·a direcção do Ocidente, parece UÍn eql.iívoco histó- uma nova ordem. Eles destruíam e constniíam».
-rico, cuja e.mpresa e sedução sobr,e a Humanidade tem a ver
_. O resultado de tudo isto, foi a divisão no seio dos diaHobé, .
mais com a paixão e coma 1mpos1çãob,w.taldo q~~:comuma .. _······ = -~:_ 't···_····_
· -entre-adeptcs--e--acl'7ersárlos-da-:-mtidanÇà~Be-um-laclo0J:campe--·- - J
escolha reflectida. ·
~ -dos conservadores dirigido pelo mestre e · pelo .chefe, e do
outn:~, o :c ampo dos -reformadores ôú 'progressistas :dirigido por
.:;Ç . [H~midou Kape, Aventur;a 'Arnblgua, i.;2 capítülo.
;·(21) '•·-·::-··
. · "-' - •.. r_.,.,·:-.c--? -,- . -· · e_ : ·

45
. 44
)
_) .

j uma mulher denominada «A grande real» que era a irmã mais universo dé referência.. Uma cosmologia constitui não um
velha do Grande Real. . objecto de investigação mas., pelo contrário, um conjunto de
Contudo, conservadores e progressistas concordam que referências a partir das quais a realidade e os eventos são
, _)
doravante nada será como antes. Mas se enquanto o chefe vai interpretados.
: _) meditando e recordando com melancolia os tempos em que A colonização modifica profundamente a ordem das
r _) o pais vivia de Deus. e das tradições, a Grande Real, por seu coisas, uma vez que ela faz recuar as fronteiras do mundo e
1 _)
lado, declara sem nostalgia: uNós teremos cada vez mais os colonizadores não obedecem às ordens. éticas e simbólicas
· de fazer coisas que detestamos, e que não são os nossos -píé-existentes. Os põvos coloríTzàoosfõramõsprimeiros aser
_) costum~..-11-------- -· - --··--· . . _. ___ _ ___ -·-- _____ _____ submefídõSã>grande prova de planetarização, à acção de forças
') ,.,-rt( modernidade é, em primeiro lugar, umã realidade cuja origem se situava espacial e intelectualmente no exterior
, _) ,lspacial. Está ligada à famosa descob~rta da América, à dos seus universos de referência e mesmo de conhecimento.
descoberta do caminho maritimo' para a India e, portanto, ao (A quinhentos anos de- distância, os povos colonizados ainda
_)
· fim do mundo limitado. A descoberta da planetariedade da . não superaram a distância que os separa deste desafio
_) ( terra, veio juntar-se à revolução. heliocêntrica por · obra de ·; simbólico.
_) .,Çopémico. · · Os conquistadores refazem a carta do mundo, e este é
t Como mostrou T. Todorov na obra 11A descoberta da. ·· · invadido pelo comércio de escravos, do ouro e das espécies.
J América», o que interessava a Cristóvão ColombO e..~ · sua O mundo viu o nascimentoeadecadênciademuitos impérios,
'_) comitiva, era a terra, o ouro, as plantas, os animais, etc~ Por viu passar muitos conquistaciores, mas desta vez afirma-se algo
_) ·côrisegüirite; ·a pfifüeifá córiiiiiikáÇãó irifer=piarietafià é ······· · :~ :. ········· de irreversível. Muitas. conquistas, destas ou daquelas potências
•_) (ecológica?). Da América os espanhóis levam para a Europa - :~ :~~ europeias, ficarão sem futuro, mas a conquista ocidental sobre
o milho, a batata, o tomate, a mandioca, a batata doce, o . ::;, o planeta será definitiva. O planetarismo equivale de facto à
)
cacau, o tahaco, etc.; em contrapartida, eles levam para . .,. · ocidentalização do mundo.
América o cavalo, a vaca, os cereais, a vinha, o arroz, o café, . : ;o A conquista não é apenas militar e política; nem sequer
_) a cana de açúcar..... ,. só roubo e divisão. A submissão comercial, financeira e mesmo
_)
As primeiras relações inter-culturais com · importància '~ a exploração produtiva, porquanto sistemática, não podem
histórica realiiam-se pori intermédio de vírus e micróbios que ·exaurir completamente o sentido. A empresa colonial faz
') provocam a varíolçi, a tub€rcúlose, a gripe, o herpe.s entre os também parte do projecto do domínio total da natureza. Depois
() ameríndios, Estas novas doençª$Plªn?tAriª~çl!?iillªrnrn . Jit?rnJ:· . ... .. .......... ... do.....sucessó:. .marltimo . do",século ...XVl, seguiu-se o ·sucesso
() mente uma quantidade enorme de pessoas, entre os nativos científico do século XVIII. Depois da ,conquista das riquezas,
(_)
da América. Os negros capturados como escravos ~iveram de seguiu-se um inventário encidopédico do cosmos. -A viagem
os .substituir, primeiro, na exploração 'Colonial, e depois, como torna-se filosófica: trata-se de acumular observações e conhe- ·
( _) ' mão-de-obra escrava nas grandes plantações. cimentos; de saber tudo sobre tudo. A dominação sobre a
'. _) _____· As-.--eu.Jtur:a.s- tr:a.ciid-G-na-is--a.fa:.ica.1'.laS--que-.e:Sta- ,emprksa- - ----na-tur:ez-a-é-1;:i,m-'r>-r0j.eGtG>-iétal,-:01:1--JnaU=ioF-tGtali-tár-iê;:-g:;r:{e:G:e.:.ssáf'ie===:=·~
y . colonia'J, veio destruir, eram rnunC!os totais, onde .todos os _desenhar cartas .preçis~s, fazer o reçense_a mento qo~ recursos
membros partilhavam a mesma cosmologia; isto .é, o mesmo naturais, inventariar '(os usos e costumes; nasce assim .a

47
• 1 ~
)

etnografia. Napoleão parte para o Egipto com um corpo de . «A nova escola m~.tará nos nossos filhos, o. que nós
cientistas e de instrumentos científicos. justamente amamos e conservamos com zelo. Talvez até se
Durante dois séculos a Europa continuou a assimilar tudo esqueçam de nós e, quando voltarem da escola, não nos
isto. Depois nasceram os Estados-Nações e a economia capita- reconheçam. Temos de aceitar desaparecer na memória dos
lista. O mundo, já sumariamente subjugado pelo Ocidente e nossos filhos e deixar o nosso lugar aos·estrangeiros que nos
por ele controlado, foi de novo subdividido segundo as estrutu- venceram».
rações da economia-mundo e da organização polifónica do Mas o que os nossos filhos vão aprender na nova escola,
«concerto europeu», depois pela sociedade das Nações. vale o que eles vão esquecer? Pode aprender-se isto sem se
' ' esquecer aquilo? O que aprendemos vale o que esquecemos?
Cheik Amadou Kane acrescenta: (28} Se nós aderimos a este mundo, não obstante as nossas
Caàa hora que passa acrescenta um suplemento de água no reticências, a que · projecto preciso de sociedade corresponde
centro onde se funde o mundo. Não temos o mesmo passado, a nossa adesão?
mas teremos necessariamente o mesmo futuro. O tempo dos
destinos singulares está ultrapassado. Neste sentido o .firri do Quando em 1855, Seattle, o ~hefe indiano da tribo
mundo já chegou para cada um de nós, porque ninguém. pode Duwamish foi intimado a vender a terra da sua tribo, respondeu
continuar a viver da sua auto-preservação. Mas a partir .dos ·. ao presidente Franklin Pierce com um discurso famoso:
nossos longps e múltiplos amadurecimentos,. vai nascer um filho . · ·· :"OgrandechefedeWashington manda-nos dizer que quer
novo para o mundo. · . · · · · comprqr as nossas terras (... ) vamos considerar a sua oferta
· · · ·· · · · · · · · · · · · · · N6s ·aceitamos·este flifur:o ·emandamos os nossos fühos pois sabemos que, se não a vendemos, o homem branco virá'
à escola dos recém-chegados, comei penhor. Eles vão contribwr confiscá-las, com as suas armas. Como é possível comprar ou
para a construção do novo mundo. Devem contribuir não como vender o céu ou o calor da terra? Esta ideia é-nos estranha.
·estrangeiros, mas como artesãos responsáveis dos destinos da . (. .. }Cada parte desta terra é abençoada para o meu povo,
cidade (polis mundial}. · cada ·grão·de · areia; cada·· tronco· da ·· f!oreSfi:f;···cada··ihsectó·· é ..
. .. . . . . . . . . . Toda a filosofia afrícana consiste· num esforço sociológico sagrado no pensamento e na experiência do meu povo. Os )
de adequação a um «status quo» .já teorizado. Nenhum de nós '. -~.<
nossos mortos nunca esquecerão esta terra maravilhosa, pois _)
se propôs teorizar sobre o que ê ºser homem, o que é o mundo, . ~ ·, .
ela é como a mãe do homem vermelho. Nós somos parte desta
~-:
o ·que é a "transcendência; nenhum de nós teorizou sobre a maravilhosa terra, e ela é parte de nós. As flores perfumadas
•. I ·,_.,

forma .de organização.sociaLLutamos para .entrar. a .fazer parte ... .~:. ~.!:·:.
são nossasirmãs; ·'O cavalo e a águia são nossos irmãos. As
da cidade (polis mundial) como artesãos da sua vida. montanhas, as colinas, as planícies e os planaltos pertencem
Contudo, a filosofia africana, ao mesmo tempo que adere à família do homem.
.às grandes linhas do pensamento ocidental, demonstra também A água que corre nos rios, não é ~penas· água., mas tam-
uma grande inquietação, que Chiek• Amadou Kane exprime bém o sangue dos nossos .antepassado~ . Se vos vendermos esta
------a-ssim;--~--~-----~--------- --teFFa,-deveis-saber-ei1:1e-el-a::::é-=sàgrada=e::::a:evefo=enstfrá~lfr=a:::6~ :.::· · ===-
· ··· -..J
vossos .filhos ~{ ... ). Peveis dizer aos vossos filhos, que :cada
reflexo "da água dos _lagos conta a história e as tradições da )

4
49
)
_)
j vida do meu povo. O murmúrio da água é a voz dos meus O homem branco, porque · t~m provisoriamente o -poder,
j antepassados. Os rios são nossos irmãos - eles matam-' a nossa pensa já que é Deüs, ·a quem pertence a terra~ Como é que
'~)
sede. Os rios levam as canoas e alimentam os. nossos filhos. um ser humano pode possuir a sua mãe? Continuai a sujar
Se vos vendermos as nossas terras; deveis recordá-lo e a vossa cama, e um dia caireis no seu lixo.
' _) ensinar aos vossos filhos, que os rios são nossos- e vossos Deus deu-vos poder sobre os animais, as florestas e sobre
') irmãos. Deveis respeitar e considerar os rios como os outros o homem vermelho por uma razão precisa - mas esta razão
/) irmãos. é um mistério para nós. Talvez pudéssemos compreendê-la,
Nós sabemos que O homem. branco não compreende a se conhecêssemos os sonhos e as esperanças que o homem
: _)
nossa maneira de ser. Para ele uma parte da terra é como branco conta aos seus filhos durante as longas noites de
') qualquer outra, uma vez que ele é um estrangeiro que chega Inverno, as visões com que ele emprenha as suas imaginações,
t) de noite e leva da terra tudo o que ele necessita. A teHa não para que eles possam esperar o dia seguinte com impaciência.
é sua irmã, mas sua inimiga. Ele trata a sua mãe, a terra, e - Mas nós somos selvagens e ignoramos os sonhos do homem
_)
seu irmão, o céu, como coisas que pode comprar, conquistar, branco». (29)
() roubar. A sua ambição vai engolir a terra e deixar atrás dele É um discurso claro na sua análise e na sua precisão, na .. \·

_) um deserto. sua tristeza e na consciência da sua impotência. Ele põe em


_) Nós vamos reflectir sobre a vossa oferta. Se a aceitarmos _contraste a majestade e a santidade da criação, a religiosidade
_)
será com uma só _condição: que o homem branco se o
dos selvagens, cqm a alienação e ódio egoísta do .h omem
comprometa a tratar os animais desta terra como seus irmãos. branco. Para s€attle os brancos não pOct~m ter uma fé ver-
j Eu vi muitos búfaios- que apodrecém~ abandonados pelo -dadefra em üeús~ uma vez que eles se posicionam a eles
) homem branco, abatidos por um comboio que passava. O que próprios como deuses, -no centro do mundo, e servem-se da
' _)
é um ser. humano sem os animais? Tudo o que acontece aos - _ sua devoção para se distinguirem dos outros povos e civili-
animais, acontecerá muito -proximamente também ao homem. - _zações. __
( ) --
. Todas as coisas estão ligadélS entre si. Seatlle pensava que, para compreender o homem branco;
1j - Ensinai aos vossosfi . - sue ,ateiraé nossa mãe. Se os fosse necessário conhecer os seus sonhos, as suas esperanças
j homens cospem sobre a terra, cuspirão uns so re os outros! - e suas visões.
A terra, não pertence ao homem, é o homem que pertence _ Se Seattle co_nhecesse melhor o homem branco - diz
)
à terra. Tudo está ligado como o sangue que une urria famí- Eugen Drewermann - , (30) teria compreendido com horror,
') lia( ... ). Ü ser humano não ériOU ·O tecido davida., .ele ,é . . uma ------- - --------- . --- a verdadeira . razão . de .. toda ...esta . devastação ..do .homem e da
') simples fibra da vida. Tudo o que fazeis contra este tecido, o ' natureza: o homem branco já não tinha sonhos e esperan-
fazeis contra vós mesmos. ças para contar, tinha apenas programas, planos, cálculos ...
Pensais poder fazer da terra tudo o quereis, só porque o - Na quinta parte do discurso .do método, sobre o ponto
(j
homem vermelho assina_um pedaço de papel e o dá ao homem _ de vista de teoria de conhecimento, Descartes reduz a nada
( J . :_------ --·--branco?-S-e-não--posstúmos-a-frescttra -elo-a r- e-o-br-Hhe-cl-a-á§tta-- ---~. .,----- -· -- - ....... . ············-··-··"·
---'--------
'--:} como -podemos iSer ·felizes? P.ode1_s vós ,c ompra r o búfalo · (2 9) H. Zirnrner , Myths .anâ Symbols, )n Jndian Art and d >.;ilization, ·p . 456 ..

(_) quando o último ior morto? ( 3 °} E. 'b rewe rrna nn . Le progres meurtÍier, -p. 69. -

50 51

r '
o conjunto do mundo, para depois ressuscitá-lo, a partir da
dúvida metódica. Em seguida fala da essência do . homem e porque o Estado garante por contrato e sanciona por leis as · ·
propõe a sua tese segundo a qual é impossível encontrar uma espécies que se devem considerar animais domésticos. '
diferença entre a máquina e o animal: Por outras palavras, o Homem tem em princípio todos
. <<Se existissem animais com os órgãos e a figura de um os direitos sobre os animais; a questão é simplesmente de saber
macaco ou de um outro animal sem razão, ele não se distin- de que maneira os homens repartirão entre eles a «tutela» dos
guiria enii: nada desses animais. Contrariamente aos homens animais. Os animais domésticos são à priori «propriedade»,
que .poss.µem a palavra e a razão, os animais são reduzidos enquanto os animais selvagens que não estão sob «tutela» de
a autórriatos . . Assim o pensamento de Descartes ignora ninguém, têm que ser considerados bens. públicos. (33)
completqmente a natureza e toda a dimensão de obser-
vação». (3 1} . Para o marxismo, a maior ideologia do século XX, o lugar
Espinosa, - que no entanto tinha reconhecido seqtimen- do conhecimento do homem é doutrina (teologia ou filosofia)
tos aos animais. - , declara que os homens têm o direito de onde ele figuraria como um elemento do mundo e em
se servir dos animais como eles entendem e de matá-los harmonia com ele. O marxismo define o hom~m ·de maneira .J
segundo as suas conveniências, uma vez que os animais têm püramente antropocêntrica através da socioiogia e da história
e no interior destas pqr leis da economia e de exploração da
u
sentimentos diferentes do homerri.: (32) )
A certeza de que os animais têm sentimentos completa- natureza. A relação do homem com o mundo que o circunda
mente diferentes dos nossos, destrói a «comunidade)I entre o é concebido - na linhà de Hegel- , como ·siinptes _áltéridade,
hof!1em e o animal e permite naturalmente toda a esj:füde·de ··· Como · negação da ·natureza; ·a tar~fa; o próprio sentido da )
maus tratos sobre os animais. existência humana COf!Siste em tran~formar a natureza pelo seu . )
J. G. Fichte, na sua doutrina de direito natural de 1796, t_rabalho pa~a adaptá-la às suas necessidades. Em termos hege-
consagra· no contexto do «direito de propriedade» algumas hanos, abolir a natureza enquanto natureza, para rest(3.bele-
· -páginas ..aos-animais, B:ctstem .. animais, . constata o filósofo cê-la num presumido nível su~rior. ·.
alemão na sua filosofia de direito, cujos «acidentes» são de uma · Por conseguinte, e mesmo contra a filosofia hegeliana, o )
grande utilidade para o homem e portantq, estão submetidos homem deve .conceber a natureza consoante o que dela . tiver
aos seus fins. Existem outros cuja substância é de grande obtido através do seu trabalho. E pela mesma razão a natureza
utilidade, enquanto o homem consome .as suas carnes é será dominada, transformada e--assirriilada ·pelo .s'aber domi- .
trabalha .as suas peles. Se estes animais, por causa da sua nador do homem ~· O homem abordará a natureza como
substância ou dos seus acidentes, são submetidos pelo homem
··········eStrangeira; ·c:omo:·:um ····0utra, ····e ··· a: ··nna:naade·· · a05·· ··selisesfor~ · · ···.·.· ······ · ··· ············ ·
co.r11 .vista de uma utilização r.egular, o direito de proprie- ços não será conformar-se a ela, mas conqtiistá-la como um .J
.. •dade . resulta deste acto de domesticação, não porque .ele inimi,go e submetê-la à sua vontade. A luta da humanidade
represente a verdadeira razão jurídica do proprietário, mas contra a natureza, constitui, segundo esta visão, o motor mais
importante da história.
---:---=========::-------·-------·-----~-----~·

· \(31 ) _;J;i)e$cartes., Dis,cours., Gamier"Flamâtlon, Hl9i, p , 57.


33
(ª2) · ·B, Espinosa, Énca ·(167'1). IJll parte, -p, 46-5. . · ( ) J. G. F.ichte, ·«3rundlage :des Naturrech.tes nach Prinzipien der
W,issenschaft.Sleben, '.Jéna-Leipzig, 1796, ,p. 217. )
_)
52
53 ,.J
_)
- )
)
)
É possível que no futuro sobrevivam simplesmente os Mas Brahma respondeu de novo:
j «Não, pois tarde ou cedo, o homem explorará o profundo
predadores da natureza, uma vez que os povos, que se posi-
j cionaram face à natureza com menos violência e autocrítica, dos oceanos, e certamente um dia ele encontrá-la-á».
) foram até agora todos destruídos com sucesso. Então os deuses continuaram:
Pode ser, também que a crise actual leve à modificação «Nós não sabemos onde escondê-la, uma vez que parece
J não existir sobre a terra ou no mar um lugar onde o homem
das atitudes.geralmente existentes. Então se deverão questionar
J uma série de lugares comuns, inerentes à representação do não possa um dia encontrá-la». ·
_) homem na sociedade Ocidental. O pressuposto ·necessário Então Brahma disse:
) deste processo, será a negação do homem /como medida de «Eis o que vamos fazer da dividade do homem, vamos
todas. as coisas, teorizado por Protágoras e ·por todos os antro- escondê-la no mais profundo dele mesmo, pois é o único lugar
1j
pocentristas. antigos e modernos. _ . onde ele. nunca pensará procurá-la,..
j A questão da relação do homem com a natureza, impli- A _lenda conclui que, depois desse evento, o homem fez
) citamente transformado ·hum problen;ia de compreensão da o giro. da_ terra, explorou, escalou, cavou, à procura de algo
narureza e do posicionamento humano no mundo, acaba em que se encontra nele.
J
definitivo por ser . uma interrogação sobre a imagem .que o Nós aderimos à técnica, queremos imitar o Ocidente, por-
j que ele representa a nossos olhos a grandeza iluminante do
'hóIJlein tem_ de si mesmo. ·A relação errada do homem com
) a natureza, é o resultado dauina atitude que o homem.adopfoú - domínio sublime do mundo. Somos testemunhas da grandeza
j --- -·em relação a ·si mesmo: da segunda natureza Ocidental no domínio do mundo. Por
outro lado, somos também teaj:gmunhos do seu desprezo peio
j
Uma velha lenda Hindu conta que em tempos muito homem, da traição dos seus próprios princípios de hwnanismo
j e de liberdade. Sabemos que tributo ele pagou, a violência a
longínguos todos os homens eram deuses, mas eles abusaram
dos seus pÓderes dívinos. Brahma, o mestre dos deuses, d~çi(:jiµ. mentira, a falsa _consciência, a má-fé, a razão cínica. Sabe-
_) retirarAhes as prerrogativas do poder divino e escondê-las num .· -rnos · a p~~i:r da nôssa -própria história; · que -o··domínio das
lugar, . onde- O homem não . as pudesse encontrar. Ü grande leis da nattireza pelo Ocidente, começou com a redução do
_j problema foi encontrar · o · esconderijo. _ homem a objecto, refüiÇão essa -que nós conhecemos desde
J - Quando todos os deuses '-menores. foram convocados em há quatro séculos, nó_s que fomos transformados não simples-
.) mente em objectos, mas também ~nulados no nosso prbprio
J · _<:.911:?elho
seg:Uinte: -para r.esolver ...........
este. ..........problema,
. ........ . .-. · . . . .. . ...........eles
........_ ..........propuseram
.._. . ........ ._,,._._ .-.-.-.-.-.-.-.-.-.-...-.-._. _,._,.o.
ser pela escravatura, pela c oloraizã.Ção e ainda hoje pelo sistema
«Enterremos a divindade do homem na terra». neocolonial.
'J Mas Brahma respondeu: · -&bemos que monstro de desumanidade o Ocidente fez
J ••Não, isso não chega, pois o _homem cavará e encon- surgir neste Século, desde a primeira guerra mundial até as
f j - ..:.:- --tráda=á»-- - - · .. ~-~~~5~~ I"l~~!e~res actuais~ passando por Hiroshima, Nagasaki,
Então es ,de.u~~s _y:_ep1!cara_m: --~....:c:.:c:.=:::.::e:-::::AuscnwitzXOrihecêrii6"tiotla~oarbandaâe ,âa-orctem mun-
r _)
«Nesse caso, lancemos a divindade no mais profurydo dos dial 'Broque Vivemo_s:, ·tedo :o alf~beto -do mal q~e a or:g arfüação
' _) .oceanos». 'do mundo pelo ocidente provocou. Conhecemos os conflitos
J
55
-· "' ···
_)
_)
( ,
a grande cadeia de gerações, cuja totalidade 11legal» é müito ·. ·.
racional· na natureza e na história; nesta primeira fase das suas superior à lei das partes.
investigações científicas, Kant prefere seguir o esquema ebdó- Kant não parte do Adão decaído ou da «communio
mico da sagrada Escritura. sanctorum», mas do homem civil que pode e deve pôr em
No escrito sobre «Determinação do conceito de uma raça acção a lei da racionalidade autónoma para a constituição de
humanal•, de 1 785, Kant prossegue o programa do ensaio do uma óptima constituição jurídico-política. Portanto, percurso
ano precedente, isto é, deduzir a unidade do género humano do homem civil ao homem racionalmente ideal e não do pri-
das características estruturais e climatológicas dos tipos mitivo ao evoluído.
humanos nosdnco continentes. O prindpio fundamental surge O que significa, para Kant, interpretar a história partindo
agora da seguinte forma: só o que numa espécie humana se do homem civil? Recusar a visão da inocência arcádica dos
reproduz hereditariamente pode contar nela por características habitantes da terra e apoiar a ideia do- intervalo crítico entre
distintivas de classe. a existência de facto e o valor moral da cultura. O homem
No escrito intitulado ldeia de uma história universal do
11
não é um animal preguiçosamente feliz, mas um ser dra-
. ponto de vista cosmopolita» (ldee zu einer allgemeinen Ges,. maticamente racional, que realiza dificih:nenté o exercício da
chichte in weltburrgerlicher Absicht), contra Herder, Kant liberdade. A dignidade.· do homem .racional reside essencial-
sustenta que não sé pode saber nada acerca do destino da vida mente na sua capacidade de .criar .çultura .. A-história. é lugar
futura do individuo, recorrendo a uma analogia com a natureza de exercício da liberdaçle; ·a refl~xão sobre -.a história é_ análise
visível; quando muito pode avançar-se qualquer conjectura ética da liberdade humana. ·o drama da liberdade humaria deve
recorrendo a motivos morais. ·· · ser·· cortsideradó"em·· relaÇãoã espetie~ .
Recenseando a segunda parte da obra herd(niana, Kant Muitos pensadores ·e intelectuais de hoje reclamam-se do
refuta vigorosamente o fantasma da felicidade. como finalidade kantismo, ao mesmo tempo .que ·avançam teses .mais afins a ·
da história. Segµndo o filósofo de Konigsberg, não se pod~ uma espécie de «homo homini luptis» .cultural e económico. De
assumir o conceito de felicidade como parâmetro de com- facto os direitos do homem, ·à democracia, à dignidade da
· · · · ' pr(úiriSão hlstónca; ·umà vez ' qli~ eia 'mi.idacoín a sensibilidade pessoa humana, vieram sempre depois dos interesses econó-
psicológica de cada individuo e revela-se con~oante as dife::: · micos. · No mundo, assim, dito moderno, o humanismo foi e
rentes épocas históricas. Esta é a razão pela qual Kan~ continua sendo periférico. Adam Smith é mais ,qualificado que .
interpreta a-relação progresso-felicidade em -função do utilita- Kant para falar dos p-rincípios que o governam.
rismo smithiano. O critério de interpretação histórica deve ser
submetido a um critério que tenha um valor absoluto, inde-
pendentemente do que o homem possa sentir. Esta norma
· . coincide :com a autonomia do homem ·que actua racionalmente.
o.resultado de tal acção racional será a constituição política
fundada sobre o direito. Portanto, o fim da história rnside· no
0

e
.iJ~qg r~ssi~0·· ~€~~nto ç;~-s~údação de uma ordem jurídica
!}niversal. Por cohseg.uinte, qi:Iein re.alita o côrripúto do destino
~utnano~ é .a espéde .enão o inc:liVíduo, ..:entendendo·por espécie
1

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60
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1
) \
VII
J
j
O Preço da Modernização
)
_)
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..../

) Hoje, muitos intelectuais, pensadores e investigadores,


_) preocupados com os problemas do mundo, tendem a ver nos
) valores universalistas, como a liberdade e a igualdade, verdades
absolutas. Autonomia individual, democracia e . direitos do
)
homem constituem, ·muitas vezes, o ún.ico ·universo de refe-
__) rência para considerar, quer as próprias realidades sócio-
) -culturais, quer sobretudo as .dos outrós. Assim, omitem uma
_) componente essendal da modernidade, susceptível de .relativi-
zar consideravelmente os pÜntos de vista do Oddente, conven-
) ··· ············ da0 ··ae···possufr·· a ···úriica chave pàra. ·r:esolvef:. os diferentes
) impasses, que ameaçam a: ·humanidade no seü conjunto.
\
__.)
Esta componente deriva dçi. esfera técnico-científica e mer- .
)
cantil. Ela traduz o imperativo càrtesiano, de querer tornar-se
.. ...... .........
mestre e senhor da natureza, para satisfazer as necessidades
.J ditas infinitas.do horriem, tributário de uma natureza perniciosa.
__) Basta constatar a ofonsiva do -liberalismo em todo o mundo;
J tudo parece pronto para a v!tórla final do liberalismo, graças ·
aos produtos da ciência e da técnica mais avançadàs e da força
.)
.............. toda poderosa .do . mercado...Hoje lala::se.do . . liberalismo.plane.':•··•· . ...... . .·.· · · · · .· .·.··.·.·.·· 1
tário cuja 16g'ica depende da circulação internacional do capital.
) Prisioneiro deste jogo de dominação, o próprio homem arris-
l' ca-se a perder a sua autonomia pessoal 1e cultural.
•1 Nesta perspectiva, ·a modernidade aparece como a
.-; .: -- --:manrfe13ta-çã-o-U-e- ama-tadon?-Hdade- gene:r--ali-2fü:l-a--;--e1:tje- fesl:±l- - ·
· tado poderia '.Ser, de uma mà•Piéil'a d.et4nfüva, 'ª -destl'µiçao do
mundo.

63
1
.J
.)
Entre as instituições constitutivas da modemjdade, 0 grande progresso no campo dá genética, a prática da mater-
mercado e as tecnociências ocupam hoje no mundo, submetido nidade de substituição tomou-se tecnicamente possível'. Se hoje
a um processo forçado de ocidentalização, um lugar prepon- é ainda verdade para todos, ou quase, que procriar é dar vida, ·
derante, . a ponto de constituir um modo de organização que é também comprar e vender. Falar de alugar ventres, de mães
condiciona cada vez mais a sociedade no seu conjunto. O mer- portadoras, até mesmo de mães vendedoras é hoje uma reali-
cado e a tecnodência tomaram-se inexoravelmente pontos de dade comercial. A mulher ocidental ccemancipada e livre» pode,
referência universal. Todas as sociedades são obrigadas a defi- portanto, oferecer no sentido económico do termo, serviços
nirem-se em relação a estas institUições - por esta razão, não úteis e por conseguinte ser assimilada a uma coisa, ao mesmo
é surpreendente que os pensadores africanos definam os seus nível que uma máquina que também oferece os seus serviços.
projectos de sociedade em função e em relação à ciência, à Assim um órgão humano, o útero, pode ser utilizado como
técnica e à economia. uma coisa, pode fazer-se com ele um contrato de aluguer,
Entre a ciência, ~ técnica e a economia não existem hoje como se fosse alguma coisa de separado da pessoa. Circui-
conflitos de valoi:es. A ciência encontra-se submetida às tos financeiros criam verdadeiros mercados de crianças, quer
exigências técnicas, cujos produtos passam necessariamente para vendê-las,: quer para vender um dos seus órgãos a quem
pela sua valorização através do mercado. A ciência como paga mais.
procura da verdade, como prática de um saber desinteressado, ·.•Uma tat' posição. libertadora de todas as barreias morais
cede progressivamente o passo diante do poder ascendente da .concorre para . pôr . em acção uma .. verdadeira economia . de .
ciência como instrumento realizador de objectivos que lhe são procriação, . combinando fecundação. àrtificial, produção de
externos. ... ..... . .. .. .... . émfüJões e aliigüer de ventres. Se o cori)o é uma coisa, ele
O duo tecno-científico em conjunto com o mercado, como p·ode ser objecto·de um contrato e os Órgãos que o constituem
modo de organização social privilegiado, aparecem como as podem servir de peças sobressalentes. Nesta lógica de proveito,
únicas realidades capazes de conduzir o homem à felicidade .. nada impede o indivíduo de usar a sua liberdade para vender
.terrestre. Eles constituem a última fase da evolução terrestre. ··.. partes do seu corpo ou para as alugar. . . .......__./.

Hoje, o merc(:lQQJJª.Q ? simpk~smente considerado como O mercado parece a única .instituição capaz de permitir
uma técnica para a repartição de bens e de serviços, mas como · os direitos individuais nas suas formas mais ásperas. A teoria
a única maneira pos_sív.el de organizar a sociedade. O próprio do capital faz · do homem .produto dele mesmo, a partir dos
homem e a natureza, submetidàs ão domínio técnico, encon- dados genéticos. b ,homem já não é simplesmente uma coísa,
tram-se cada vez mais condicionados p:elas rngrns do mercado, ·. .. . J..lmJnstrumento para os o:utros, . comtodas asJormas possíveis
que oferece à sociedade . os valores culturais dominantes. . de exploração, mas também para si próprio. Cada um tor-
o homem na sua própria integridade encontra-se hoje ,·na-se factor de produção para as suas próprias satisfações.
subvertido pela r,elação monetária. No contexto económico '. Cada indivíduo .é proprietário do seu capital humano. O direito
actual, a bio-'iecnolo,gia, sob a pressão da .:ideologia liberal, '. de propriedade do próprio corpo é o · fundamento da nossa
aurnenta..as...suas..lriteruençõe~ohr:€4-h0mem.-:Q-.0l3je&tive-ffã""'
. o------1~--11oor:Elaee-e__,àa-'flessa-a1:1:1:0Remia-inàiviclual .
~ ~ª _experimentaç~o _rnédiça edentífica ,sobre _
o rcorpo humano , Ü. homem ;QOisa, homem iaO mesmo tempo Gapital .e
mas pelo contrário, ;a sua 1µtilização .comerdai. Graças :ao objecto de consumo durável, ;pela :sua submissão as leis

5
65
'j
_)
) económicas, é um autêntico valor de ·troca, mensurável pelo o desenvolvimento pelo mercado toma-se assim um processo
seu preço. Já, segundo Hobbes, citado favoravelmente por selectivo. Só as regiões capazes de se inserirem num processo
j
Marx, o valor de um homem é, como todas as outras coisas, de trocas são visadas. Para a maior parte, confrontados com
) o seu preço. as necessidades mais estritas da existência e mesmo de sobre-
) Existe nisto algo de substancialmente novo? Até ao fim vivência, a exclusão é sem apelo.
do século passado, a partir de uma pretensa legitimidade de A relação de desenvolvimento, longe de ser o resultado
)
uma desigualdade natural entre os homens, a ·escravatura de um encontro ou de um choque cultural, é uma oportunidade
_J caracterizou-se, entre outras coisas, por um comércio interna- sempre inédita, sempre aferrada e nunca criada, no curso da
'j cional de mercadorias humanas. -Em mllitas declarações, o ser qual os africanos mobilizam um número indeterminado de
' ) humano reduzido ao estado da escravatura é rigorosamente elementos. do seu saber. O africano, personagem que todos
identificado como um objecto, portanto despojado da totali- procuram e ninguém vê, é hoje o verdadeiro actor da história
)
dade da sua dignidade e _do seu ser. africana. Para pensar a relação de desenvolvimento deveria
J No Ocidente, existe hoje um «consensus». O capitalismo pensar-se numa lógica mista, em vez de pensar-se numa lógica
J como distribuição generalizada de mercadorias, está indisso- de sincretismo. · - -
ciavelmente ligado à democracia como o único sistema possivel Todo o acto de conhecimento depende das condições
para toda a humanidade. A derrota do sistema de planificação históricas da sua concepção, assim como do contexto no seio
J como meio de regulamentação, na Europa central e oriental, do eiual o seu -objecto de -estudo se constr(>L Esta ê a razão o-·
) · é considerado por muitos como a vitória final do capitalismo __. . .. Pl?lª q1::1ªl L.1:1!.1ª- -r~f!E?xão de conhecimento se arrisca a ser ;
_) liberal. · absolutizada no exacto momento da si.la concepção, sobretudo
__,l
A África é literalmente fagocitada por este movimento a
em épocas como ºnossa, cuja característica é a aceleração
tj _ _ liberal generalizado. A maior parte dos nossos paises não têm da história. Não obstante o risco, o princípio do valor de uma
escolha possivel. São obrigados a integrarem-se cada vez mais rdle~~o. sobre o valor do conhecimento permanece · válido . ..
· J . nas economias do mercad.o internacional, de uma maneira ou · ·. A razão é evidente. A relação do desenvolvimento é·
J de outra. Em muitas sj:tµªções, o impacto do mercado sobre · ·constantemente modificada pelas estratégias utilizadas pelos
o conjunto da vida social provoca consequências trágicas, actores implicados; quer eles·sejam pooerosos (os que" dispõem
claramente ilustradas pela politica de ajustamento estruturaL de meios- económicos), ou fracos (os que são desprovidos
O desenvolvimento é póssivel, simplesmente para os ·desses meios).
) individuos que não hesitam em desembaraçar.::.se das suas . .......... Apartir.decentros.prestigiados.de .i nvestigaçãoeconômica
.) tradições e lançar-se em busca do proveito, .e m detrimento de nos Estados Unidos ·d a América, a vaga de ajustamento
muitas obrigações morais e sociais. Muitas vezes, uma escolha instrutura'I cai pesadamente no continente africano , como uma
) radical exige o sacrifício da solidariedade co1ectiva, ,e m favor autêntica peste. Ela pretende trazer benefícios de muitos anos
( da liberdade individual. Este par,ece ser o preço a pagar por · de esforços para constituir · uma infra-estrutura social no
.. J- ==se_env.er:edar_..pela--llla-iio-desenvDl~m~:i::ito. - - - - - - · domínio\la-sa8.cl-e-;-e!a--edtie-aÇã~etc. - _- - - - -
._ Muitos do:s nossos pa1ses _não estão à altura de se envol- 0 ajusta.me.fito, sinónimê de- auste-rielade.;-é um conj1m -to
~ ver num processo de trocas utilitaristas com os países ricos . de disposições económicas 1CQncêbidas. a, partir dá 1deoJogia
_)

\) :613 67
_) -
_)
.
liberal, visando principalmente a diminuição do déficite da
balança de pagamentos, a reconstituição de stocks de divisas ser negociado no quadro dos programas de ajustamento
a fim de permitir a diminuição de um mínimo ·de importaçã~ estrutural, a partir dos postulados definidos e impostos pela
de bens essenciais, mas sobretudo a possibilidade de honrar Banca Mundial e pelo fundo monetário internacional. ·
os prazos do pagamento da dívida externa. O ajustamento estrutural que se quer de dimensão
Os peritos do Fundo Monetário Internacional estão con- humana, recusa, paradoxalmente, olhar para os homens e
vencidos de que esta política é a única capaz de criar as bases reconhecer a face humana dos homens directamente tocados
de um relançamento do crescimento económico. por esta política. O que sabem os peritos, sentados· em sofás
Uma vez que o pensamento liberal está na moda, são raras confortáveis em Nova Iorque, Londres ou Paris, das práticas
as análises que ousam contestar radicalmente este ponto de dos agricultores africanos perante a redução massiva da
vista. Tudo o que se ousa afirmar é que o ajustamento arrisca importação de produtos químicos ou de sementes seleccio-
deteriorar ulteriormente ·as condições de vida das popula- nadas, consequência do ajustamento? Designadbs como
ções e dos grupos mais wlneráveis: aumento do desemprego últimos, estes homens e estas mulheres serão incltúdos na
urbano, em tempos breves e longos, aumento de mortalidadé categoria dos moribundos, por causa da fome considerada
por causa das carências no domínio das infra-estruturas inevitável. Que sabem eles sobre a utilização dos conheci-
. sanitárias e no domínio do fornecimento dos bens essenciais. mentos e das técnicas locais no domínio terapêutico, dos
<? que na. realidade é . l1m trfüµ1:o h1rmano. da .recessão, .tor- fármacos ditos tradicionais? Designadas como vulneráveis,
. na"'Se cust6 social do ajustamento. O que se esconde por de estas populações serão induídas numa categoria estatística de
traz. da noção de tributo .humano ou de custo social? Ninguém mortos, uma vez que o país, por causa do ·esforço de 'reestru-
sabe de uma maneira certa. Tudo o que fazem os nossos peritos turação da sua economia, não pode importar infra-estruturas
é imaginar a partir de dados estatísticos, cuja fiabilidade é modernas de saúde.
fortemente contestável. · . . . .. A polfüca de ajustamento estrutural, inscr~e-se no mesmo
Pelo seu intervenCionismo,o.programa estrutural está . . ~~pírjt9 .<:léls .c:>W.:.r~s. . pqlíti.cas absolutistas, que ignoram quase
rompendo o frágil equilíbrio sócio-económico a que tinham totalmente as realidades hurn.anas e sociais, sustentadas por
dificilmente chegados os nossos Estados post-coloniais, atra- uma v1sao ideológica das populaÇões àfdcàrias~ · qúé se
vés de uma síntese ·~mtre o sistema .de obrigatoriedade impos- designam como sujeitos passivos da história.
tas pela economia íntemaeional; e as eXigêricias e a estrutura Os analistas mais críticos referem que, o verdadeiro
objectivo do ajustamento estrutural é a criação a médio prazo
......... s.ocj9l loCé}l. .....~:. ............ ............ ...... . .......... . . ......................... .
C A.
prioridade .. africana é ~o)e lutar pela sobrevivência e de um mercado destinado à expansão das economias das
· sociedades altamente industrializadas, e que portanto, o destino
. ..... oJ.

· 0?nt~a a sua marginalização internacional. Isto pressupõe urna


vitôna no sector da prcx::lutividade e de urna relação positiva .• do pequeno produtor (quase 90% da população) .ê ·examinado
com o mercado inte·macional. Porém, estes objectivos não no quadro de uma retórica humanitária, .cuja função verdadeira
- -- Podem---.ser- alrançados--'t=10-q1Jãdrn---das-fx:>llt-iGas-<àe--aj\::ISt-ameF1te ··········==· . .é...esconder....as .estrat~ias das potências .econômicas.
~stt\.ltural. O conflito com o ni.ercado internacional :não pode . No plano sociológico, estes analistas sublinham .que :uma
·ter ··uma sentença ;em favor do ,continente se e'le ,continua a tal polftica visa na realidade, .o estabelecimento de refações de
-aliança objectiva entre centros <lo poder :económico (]os países

69
-·-·.-:.. _, .. _...i· ...

. ·.
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'

do Norte e uma burguesia local em vias de consolidação, cuja . os recursos disponíveis. Ela é condição imperativa para manter
J missão seria favorecer a realização de um crescimento econó- o desejo de riqueza. Por outras palavras, o ser humano
()
mico à custa das populações rurais. · esforçou-se por escapar às imposições naturais e sociais para
Como pensar diferentemente esta rectificação e esta se tornar um individuo independente, Claro, uma tal inde-
mercantilização em relação aos valores universais, como a pendência não tem nada de absoluto, o ser humano, ser inde-
dignidade de <•toda» a pessoa humana, ou o respeito de «toda» pendente graças à expansão generalizada do mercado, ser livre
'_,,) a pessoa e da natureza. e de acção voluntária está cada vez mais envolvido na relação
rj Segundo uma posição liberal ortodoxa, uma eyqlução mercantil.
progressiva · fez-nos passar de um mercado estritamente Uma vez mais, Adam Smith exprime claramente o que
IJ limitado a um mercad0-sem limites. Isto significa que o mercado poderíamos considerar como «a verdadeira humanidade» e a
. _) e o comportamento mercantil são então a via universal em «boa sociedade»: Para ele, de maneira particularmente reve-
lj direcção à verdadeira humanidade. !adora, «mesmo que entre os.diferentes membros da sociedade,
1 )
Como avaliar nesta definição mercantil o que é o-homem? . não exista nem amor nem afecto, a sociedade, .e mbora pouco
/
O valor de urna tal definição repousa sobre uma ideia larga- . feliz e agradável não se dissolve necessariamente. Pode subsistir
mente divulgada de uma contradição constitutiva da condição ·. entre os .homens, como subsiste entre as mercadorias, através
humana. As condições infinitas do homem, opõem-se radical,.. · · · · do . seritimerito de utilidade, sem nenhuma ligação de amor
mente aos recursos limitados da natureza. Assim os seres · redpr.o co .e de afécto entre os membros: ·Se ninguém tem a
humanos nunca estão satisfeitos, independentemente do . nível .............. mínima: obrigação, não somo.s obrigados a nenhuma gratidão,
da abundância material. Nesta visão do mundo, a humanidade, · .a sociedade pbdemanter-se· com a ajuda de trocas interessadas
. _) obrigada pela sua própria natureza a viver num universo finito de serviços, segundo um valor combinado. {34)
í) e lim,itado, esforça-se por ter um controlo sempre mais efectivo . O ser humano .deve simplesmente ·participar nas trocas
sobre a natureza e a sociedade. A grande epopeia capitalista ·mercantis. Eis a raião porque os pobres, é ·particularmente os
' ) é à história da emancipação do homem a partir da sua . . rião ·senam realmente
mendigos culpados pela sua preguiça, ...
j concepção original: humanos e , por consequência, seriam desprezados, enquanto
Durante grande parte da ·sua existência, a humanidade · {Í os ricos sedam admirados. Ser homem significa poder exercer
encontrou-se fechada no se.µ ambiente natural Ji.initado. ~, r os seus direitos-individuais, par:a acumular bens num contexto
Contudo, com o grande desenvolvimento da revolução indus.:· . cultural competitivo .. Esta modernidade mercantil resulta de
,r_/
triai do século XIX, a promessa fantástica de libertar toda a
1
e
. uma mudança simbólica étiCa''. '' Â ideia prevalecente hoje, é
humanidade da sua primeira condição começa a difundir-ie · ' que todos nos deveríamos 'C omportar como mercadores, para
j pelo mundo fora . Só o capitalismo parecia capaz de trans- ·. nos afirmarmos como seres humanos.
)
formar radicalmente as sociedades tradicionais, e de condúzir Simmel, na sua çélebre obra «a f.ilosofia do dinheiro», des-
assim a human1dad€ , da pobreza extrema a uma riqueza creve parficulamente bem esta transformação. Para ele «as~~l.:i~ , .
Ilim1taaa: - - - - - - - -·- - - - çoes do homem mooemo com o s .'que o circundam, o esen- --:--- - -
para acr~ itar numa taI quimera, deve-se aceitar.·a verdade
ab_solutq. çlo des~qUilíbrio fundamenta:l entre as necessidades ,e 34
'( ) Adam Smith, A riqlJe:ui das naç~s, p . 3 2 1.

' \

70 71
·: ,.

volvem-se normalmente de maneira t~l, qu~ .se afasta do grupo nalidade de ideias e práticas africanas., não ocorre sequer a
mais próximo, para se aproximar dos grupos longínquos. mínima reflexão. Estamos a nível de preconceitos. racionalistas.
A dissolução crescente das relações familiares, o sentimento Isto porque a modernidade constitui o verdadeiro critério para
de aproximação insuportável, quando ele está perto do grupo dissociar radicalmente, no domínio individual, social e cultural,
mais íntimo, onde a lealdade é muitas vezes. tão trágica quanto- o verdadeiro do falso, até mesmo o bem do mal. Em que se
a libertaçao, fazem com que o acento seja posto cada vez mais baseia este critério de apreciação?
sobre a if.idividualidade, que se afasta nitidamente dos seus A modernidade, instituída no século XVIII, equivale, como
próximos ·'imediatos. A perspectiva global· do quadro . que se muitos pensadores já o mencionaram, à secularização, isto é,
apresenta, significa um distanciamento crescente de relações à perda daquilo a que podemos chamar garantias meta-sociais,
internas autênticas.; e um distanciamento atenuado de relações que tinham como função legitimar a sociedade. Assim a
externas». (35} ·~:~ · · sociedade liberta das 'suas relações seculares - quer sejam
Nesta mentalidade mercantit dominante, nós. somos par- Deus, os antepassados. ou mesmo a tradição - , é submetida·
cialmente homens. Renunciando a uma parte essencial da às exig~ncias da razão, que se manifesta numa dupla via, a
nossa humanidade, constrÚímos uma sociedade centrada sobre racionalidade instrumental e a racionalidade humanista.
as trocas utilitárias entre os indivíduos e os grupos, todos à O primeiro caso identifica-se com o .·leitmotiv cartesiano
·procura. dos seus próprios. interesses. Cada um de nós, para de se tomar rnestre e senhor da natureza, para satisfazer as
usar ? expressão de Marcuse,: é ·üm ser unidimensional: necessidades infinitas do homem. Uma tal antropologia
... ..... .... _I:: il!lPQr:t:ªDtE? interr.og.ªrmo-nos sobre o significado da naturalista parece subsituir-se a toda a referência transcen-:-..
modernidade, antes de nos servirmos dela como instrumento dental. Mas como afirma Heidegger, para submeter a natureza,
conceptual para estabelecer discriminações discutíveis entre a técnica submete o próprio homem. O único ideal que conta
seres e sociedades. Em particular, como componente essencial . -~· - é a manipulação e a dominação; a única exigência que impõe
do universo de referência própria do desenvolvimento; ela :1;1: a todos é o cálculo num universo utilitarista.
opõe-se necessariamente à tradição, categoria que é peicebídá ... ' ~ 'l ······ · ···· . . . . u deserivolVimêrifo córistifüi üma manifesfaçãó da moder-
à priori de maneira negativa: : Falar da tradição, .equivale nidade à escala planetária, mas essencialmente através da sua · · ·· ········ ··~
. normalmente a estabelecer uma Verdadeira amálgama de vertente tecnO-económico. Por outras palavras, o desenvolvi-
costumes, de. práticas, de ideias, de crenças, todas desva- mento aparece como um processo inelutável, heterónorno ao
. .· lo.rizadas e muitas vezes rejeitadàs fora dos limites da razão , qual as pessoas e os grupos devem submeter-se.
;isto é,. -classificadas de óbscuràntisrno: Com este termo parti"' ·· · Porquê este desenvolvimento unilateral? Porquê a moder-
cularmente pejorativo, decreta-se que toda a distância com as nidade · social e política, a dos sujeitos autónomos e das
· lições recebidas dos filósofos ,das 'luzes, consfütii um at~ntado 1-- estrutur~s democráticas não se encontra, ou encontra-se assim
à verdade absoluta da rnzão .e do progresso. i pouco, no· desenvolvimento? Para responder a estas interro-
Hoje, todos as ddeias ,e práticas que vão .contra os valores l ·gações, dever.ia começar-se por reflectir, sobre a natureza da
trctô~ntals, sao ooscurantismo. ~Paf~CClecre1ar esta não-r- ac-i~
o--·----~i-.. ~_..._. ._ refaÇào enfre esfos. .ôOls ,aspecfosCia mO<lerrnôacie., na história---~
.. ._. . ·~····-
:da sociedade que ,9- originou ,e na ~ua .actualidade. Ora,
35
( ) G. Simmél., Filo~~ja do pinhei.ro,, p. 126. pooe_mos constatar facilmente que ·os ~dep.is de zjlemncracia

73
')
)
tenden:i a ~nfraquecer-se, diante da verdade toda poderosa da impor-se a mais de metade da humanidade. O colonial~smo e
. . . . .. .
.)
tecnoc1ênc1a e do mercado. . ,, depois 0 desenvolvimento não seriam esforços para ajudar a
)
Esta ~erdade ~ as s;-i~s leis constituem assim, uma força
-~1ta
. ·.i natureza humana a realizar-se?
I )
1r::epreens1vel que a umca via possível do desenvolvimento, Em muitas obras recentes e bem diferentes entre elas,
') nao obsta~te as d1f1culdades e os muitos insucessos. A solução encontra-se uma convergência de pontos de vista para dizer
(j dos problemas afri~anos ~ do resto dos países pobres do pia- ~
, · 0 que deve ser uma boa sociedade e uma verdadeira huma-
neta, paSS.il pela via do liberalismo económico. ,; nidade. Aqui, também o Ocidente serve de modelo para ~
;J
. Qua~go :e trata de desenvolver os outros-, existe simptes- :; transformação do- mundo. Trata-se contudo de um Oci~ente
' ) m:nte a fe ocidental na racionalidade técnica e mercantH. Não purificado dos efeitos. perversos de um mercado generalizado
.J exis~e, portanto nenhuma surpresa ao constatar que 0 desen- '1· e portador de um projecto de autonomia das pes:_oas. .
) volvimento é uma prerr9gativa reservada aos economistas ,1 Mesmo criticando o Ocidente pela sua degradaçao, mU1tos
J O des:nvolvirnentó, é portanto, antes. de mais. e sobre~ '. autores continuam a professar que a sociedade. ocidental é
) tudo, · c;resc1ment~ económico. Do mesmo modo, 0 problema ; detentora da verdade universal. O Ocidente ainda não se liber-
j essenaal da c1êOC1a económica é o aumento da riqueza material tou da velha pretensão daquilo que seria a sua missão civili-
. ou ~ais lar~~mente, monetária, com a subordinação das . zadora. Primeiro o colonialismo, depois o desenvolvimento
) re1açoes sociais a um· tal objectivo. '; ortodoxo, no prolongamento de um pensamento naturalista e
.) · . · .· O meicado mundial é 'liffi SiStêffiá--iiilfi:i'Oijjãriizador que evolucionista. J~ nem sequer se discute a superioridade politica
,I . P:odµz ele mesmo as suas próprias regras. Mas a economia e moral da Europa, além de não discutir.a sua g1p~ri<>ricJacJe .
nao_. pod~ · ser ~onsiderada urna entidade fechada. Apesar de
) ser.uma mstânc~a
autónoma, depende doutras instâncias socio-
científica e técnica.
- . · Questionar este universalismo exagerado, até ao ponto de
"_) lógicas, culturais e políti.cas, também elas autónomas mas uma centralizaçãó cega nos próprios valores, não significa o
' ). depeAi:deen:t.oensoummi_aasfadltaas jousu-ttaramse. n· t·e·· · u··m·· a·· · ·r·e··,a·· ç··a:.·o·· · ·c· o· ·m·· · · ·o·· · ·n· ·a~·o·· ~· · · ·
- - '
l . ·1~~0 seria cairnum
recurso a uma via mundo"
simétrica e inversa, a do relativismo
de confl.lsão, ctbsoluto.
maquiavelicamente
J -econ6n:1co .. A matematização e a formalização da ciência 1: · sustentado pelas ideologias da nova direita;· que tend_:m a -········ · · ····
J económica e sempre rig~rqsa
e sofisticada; mas estas quali- apr,esentar o relativismo como um valor de compreer:isao do
) dades comportam o defeito de uma abst - f mundo e como uma maneira aberta de pensar e agir sobre

:_)' · :::r:.:~~~~~~:n:!~~a(ii~~~ f~~:i~:i:;


cendo a complexidade da situação real, isto é, que esquece~do · '!
1 um rt~~~~~I ~~c~~~~~tí:,:s ;~e~~{'.:,.~~)::~ai!~tre um
universalismo extremo , a partir .do qua1 o desenvolvtmento
~epende se . ' ,equivale a uma projecção estrita de verdades culturais ociden- 1

depende do que dela própria. A economia que


fec~a no econ~m1co, toma~se incapaz de prever as pertur-
1)

J l · tais devido ao seu valor , e um relativismo também extremo,


, J--~aço_es e~ deVI~~ toma-se ce a ·~--J~!:.Q.Qria econQffiia,,. L . 91!.e exag.era ,a? g~f~r~Dças, com vista .a um uso ldeo'lógico com-
. C?<:Jesenvolvtment? depe1:1de d~ ·1:1rna 0 são simplista ·Ô.9. pleta!Uente inaceitável e irrea ista?
--:) ~1s.t6na, fr:1t9 d~ um progr~ssó linear das condições m ate-
,'_) na1s ©a exi~ênc1a . Mas este progresso suposto natµra!, deve
75
\ , '\ .
\ \

VIII
Filosofia Africana
e a Modernidade

..A filosofia tomou sempre posições em relação aos pro-


blemas do próprio temp~ Sócrates, Platão, Agostinho, Descar-
tes, Kant, Nietzsche e Heidegger são testemunhas de uma tal
atitude. A análise filosófica do próprio tempo chega ao seu
vértice no idealismo alemão com Rchte e Hegel. A filosofia
de Rchte - basta pensar no livro «As característica~ do·tempo
presente - é uma confrontação com o próprio tempo; e Hegel
......... tenta - como atesta sobretudo a fenómenologia do espírito -
situar a propria época em relação ao desenvolvimento histó- ...
rico. A filosofia é, como afirma Hegel no prefácio aos delinea-
mentos da filosofia do direito, ••o próprio tempo apreendido
pelo pensamento».
., .
A análise filosófica do próprio tempo, na sua forma tradi-
• 1
.. cional;pertence··ao ··passado. ·· Em · prirneiro ··1ugar,··porque ·o
.' filósofo do passado compreendia o próprio presente sobre a
base de um projecto complexivo do ser. Tal projecto não era
condicionado pelos tempos, mas pelo contrário, tinha um valor
1 )
incondicional, apoiando-se sobre uma metafísica. Em segundo
·-· ~ lugar,, o trabalho que o filósofo devia realizar, baseava""'.se no
pressuposto de que a filosofia pudesse fundar, quer no sentido
formal quer no conteúdo, todo o reino do ,espírito e, sobretudo,
a ciência. A 'encidÓpédia das -ciências de Hegel foi concebida
nesta · base.
nH Qj·A fik;)SôÍiã4'fITfCáhà'':é""â."'1Jfii'ca=que:::.:p:ooe"-aindâ-tR~Je-fazer - - - - -- -- -..__,
a análise do próprio tempo c omo o fazia a filosofia pré- .._,
-kantiana.4 E isto é devido .a um defeito maior: o Ocide.nte

77
)
_)
) constitui para ela, apesar de algumas reservas secundárias, _0 mesmo que isso seja em detrimento da vida de milhares de
·) principal projecto de ser a imitar. seres humanos .•
À parte esta lamentável excepção, no mundo de hoje, O que está a acontecer, é que acabada a guerra fria, o
(\ completamente dominado pela ciência, pela técnica e pelo verdadeiro inimigo tomou-se o Sul. Todas as estratégias mili-
,) \i mercado económico!.a filosofia não tem nenhuma competên- tares são hoje orientadas para uma intervenção rápida nos
( j ~.r eia particular~ _ países do Sul. Ora esta adversidade não provém de nenhum
1 ) ' Depois da queda do muro de Berlim, Fukuyama fazia-se contencioso ideológico. O .terceiro mundo e a África em par-
_,, porta voz do grito-de vitória do liberalismo contra os sistemas ticular não propõem nenhuma ideologia -universalista; nem
de economia planificada, e decretava o fim da história, enten- sequer apresentam um projecto de sociedade para a África e
/" ) dendo o fim de uma maneira diferente de pensar o homem, para os países singulares, oposto à visão ocidental. A única
o mundo e a sociedade fora do liberalismo. D~pois desta coisa que pedem, é pão para os próprios filhos, é uma escola
exultação, o problema do desemprego não cessa de aumentar para educá-los, um hospital para curá-los, etc. Ora quando se
nos países do Norte, assim como nos países do Sul - aqui aponta para um tal Sul como o verdadeiro inimigo a combater
J agravados peios problemas. de ajustamento estrutural - , sem neste fim do século, saFse necessariamente de uma perspectiva
j que os maiores adeptos do liberalismo saibam dar receitas para ideológica - esquerda direita -_ , abandona-se a perspectiva
U __ sair _desta crise 1 que provoca situações sociais muito trágicas. política e entra-se num estado de eugenismo social.
Como alguém tem de ser culpado, surgem em quase todos _ '6l O Ocidente, depois de ter expulso a religião, a filosofia,
) Os países europeus -partidos de extrema clireita, que acusam a moral, ataca-se a política. Porquê? A política sem ser moral ,
r) - litéfaimerite ó e_sfrangeiro de ser o principal responsável desta é de qualquer maneira moralizante0 Os debates moralizadores ------------------ ------------------
-...) situaÇão. Sob a· pressilo de uma opinião pública em pa.nico e que ela suscita, tendem muitas vezes a pôr em causa, se bem
/" ) - _sempre mais con_ivente com posições de extrema direita, os que teoricamente, os privilégios que os países ricos foram -
próprios parlamentos, ao mesmo tempo que adoptam leis de adquirindo em detrimento dos países póbres. Os novos rnovi-
, ) - - abertura no interior da Europa (acordos de Shenguene); fazem - mentos políticos que nascem no Ocidente, desde o candidato
_J outras mais ferozes contra o estrangeiro, contra o negro, o americano às eleições presidenciais, Perot, passando.pelasJigas ____ _
árabe, o turco, -sem que ninguém se interrogue seriamente da Lombardia e de Veneza na Itália, da-liga dos ticinenses na
sobre _a razãó ·da presença dessas pessoas na Europa. Suíça, até os movimentos neo-nazis na Alemanha e a Frente
1
Há já algumas décadas - pensemos na conferência de Nacional da França, não são ,guiados por nenhuma orientação j
) ~ªDQIJ.D.g, Dª$ gµer.rª$ .Qe libertação.,. nas .dé.cadas-de . . sessenta, ideológica, não se interessam por nenhuma orientação política;
1 _) setenta, na conferência de Puebla, etc. - , que a pressão dos as pessoas que votam nestes movimentos abandonam o campo
"danados da terra» sobre os «eleitos» se faz sentir. Porém, antes puramente político. Trata-se neste caso de proteger o nível de
')
da queda do muro de Berlim esta pressão era velada pela vida, que o presidente americano Bush disse que não era
') guerra fria. Caído o véu -da guerra fria, descobriu-se que a _ -negociável.
1
) -
0ve-r-ElaElei-r-a~oontr-a-pesi~ã0- Ele-ste-fim-à0-sée1::1:l e-,---é,- -na-r-e-a:liElaEle, .:. · ·- ---·- ------ _ --.-- : "== ·-.: . · =:.:::=A::.a-r:itiga:::RD:A~a-::.Rússia,,-a--Eolónia,Jii.. !l=lui:ig.r:ia-i..:etc')~a-pesar- - - - - - - -
ª contraposição entre aqueles que .lutam pela sobrevivência e :das suas dificuldades actup_is não fazem -p:a-rte .do Sul. Mais çedo
aqueles que lut~rn para aumentar os próprios privilégios, ou mais tarde vão entrar no dube dos ricos; no clube daqueles
' _)
j
78 79
r_) -1 ,

j
J
que nos consideram inimigos, simplesmente porque queremos o resto do . mundo os efeitos «inquinantes» e destrutivos da
ter direito a Viver. Então, todas as armas que o Norte produziu produção económica. Mas para que isso fosse possível e, por
no contexto dá guerra fria, vão virar-se contra nós. exemplo; para que as empresas norte americanas pudessem
De facto, todo o arsenal bélico que os ocidentais exibi- implantar fábricas inquinantes na América Latina, na Ásia e
ram na guerra de Golfo foi construido no quadro da guerra na África, poupando o território americano, era necessário que
fria, mas usado na primeira empresa norte-sul. Não existe nos. países pobres a legislação ecológica fosse muito mais
nenhuma dificuldade em bloquear economicamente a Ubia, permissiva do que nos EUA e na Europa.
antes mesmo de.ser provada a culpabilidade dos seus cidadãos 1~ É verdade que os fenómenos como o efeito de estufa, as
acusados. A Somália é um terreno de férias ao sol para di
.j'
chuvas ácidas e o buraco de azono destroem toda a terra .
militares ocidentais, em nome humanitário ... ~. t Mas. é também verdade que as zonas mais inquinadas da terra
Qual era de facto o sentido da afirmação de Yeltsin quando ' - são, por agora, as zonas habitadas por povos pobres, que
''
propunha a G. Bush fazer um escudo· único para proteger a tendem sobretudo para o arranque .económico e não podem
terra? (36) Era para se proteg~r dos extraterrestres como ironi- permitir~se ao luxo de se concentrarem sobre a devastação da
zou o então presidente dos EUA ou dos extracomunitários-, que natureza e da saúde, que tal arranque comporta. É exactamente
são de facto os países pobres? f . nestas zonas que as empresas dos paises inquinantes; isentas
: 1
A esta ruptura entre o Sul e o Norte e o aumento cons- · ' de taxas e de vinculos, podem investir com maior proveito,
.Jª.Dt? ~ .$Í.$t~mático do desemprego, ajuntam-se os problemas vender os seus produtos perigosos e transportar as desca_rgas -
ecológicos, que a conferência de Rio de Janeiro não conseguiu tóxicas da produção efectudas na terra mãe. ·
dar respostas, realistas e sobretudo aceitáveis e convenientes ················Mliifos espedaifafas· acredit:affi.C}üe . a··rêcUJ)eraÇitü ecünó~ ·
para os interesses económicos das partes. mica virá com a aplicação dos acordos do GATI e a 'Conclusão
Com efeito, a afirmação inicial de Maurice. Strong, do Uruguay Round. Acredita-se, portanto, que a soluçao dos
.segundo a qual <<nenhum lugar da terra pode esperar ficar uma problemas dos homens e das sociedades depende simples,
... ilhade . prosperidade . num: oceano . de - miséria»,(37) . seguiu~se --a· · .~ ~- . mente dos acordos económicos .
afirmação categórica do então presidente dos EUA Jorge Bush: '!
Contudo, na. nova ordem económica que se desenha à
o· nosso nível de vida n.ão pode ser objecto de negociações. (38) escala planetária, caracterizada por uma Intensificação de
Mas ao m~$mo tempo, Bush afirmava que os EUA tinham trocas .entre a Europa, a América do Norte e a zona da Ásia-
a melhor legislação ·existente sobre a ecologia. Isto quer dizer ..:paçífico, a África é completamente excluída, ou então parti-
. ., , qµg,, ª _prnocupação essencial dos EUA era de salvaguardar o cipa num plano subalterno, sob .o patrocínio dos programas ....• •!':.

próprio ambiente natural. Para tal, eles tinham de impedir que de ajustamento estrutural.
as aspirações ,ecológicas ganhassem muito terreno no mundo. Ao mesmo tempo que a África não é chamada para
Assim os países ricos podiam .continuar a descarregar sobre partilhar as .riquezas do mundo, é a mais solicitada para
partilhar ,as suas misérias. Com efeito, quando se tr.ata de
\( 36) Cf. Monde Dipl~~~tlq~~. N~~ i982, - - - - ----------~ . ----fJl'0e'lem·as--eee:l駷iees,-e-t0reeir-e--mttflele---e-a--Áfrk:a~em­
-cJb)kfom.
{3 '1) i . .:particular - , deve .carregar aos seus ombros todG o peso do
{38) . 1l::lidem. . intervencionismo e instrumentalismo ocidental sobre 'a natu-

·se 81
) /
_)
j reza. O Ocidente não aceita contribliir com o O, 7 do seu PNB Hoje fala-se muito de descargas como realidades de natU- ·
·J para a causa ecológica, nem sequer aceita mudar as regras das reza técnica. A poluição tomou-se uma dimensão objectiva da
trocas económicas e comerciais com o· Sul. (3 9) produção industrial e de con$umo de massas, e as descar-
J
Diante da crise ecológica cada vez mais ameaçadora e da gas tornaram-se coisas que se podem medir, valorizar, com-
' ) acentuação do desequilíbrio económico entre o Norte e o Sul prar, adicionar como bens. Estas descargas recuperam-se,
!j são possíveis três cenários: reutilizam-se, reciclam-se.
f) 1. O Ocidente muda as suas práticas de produção e de
2 Analogicamente, a poluição e as descargas não são sim-
intervencionismo instrumental sobre a natureza, o que signi- plesmente problemas técnicos de adaptação entre uma natu-
ficaria o fim do sistema capitalista. reza ameaçada e uma cultura ameaçadora; a realidade pro-
'J 2. 2 O terceiro mundo, e a África em particular, unem-se funda das descargas hoje, é de ordem simbólica e humana.
J e obrigam os países de Norte a uma relação de trocas econó- tf O que são os negros dos ghetos de Nova Iorque, os árabes.
micas mais equilibradas, o que significaria o fim do sistema de U na Franca, os turcos na Alemanha? O que é a África no pen-
trocas desiguais. f sarnento a na vida internacional de hoje? ·
J . 3.º Os países do Norte não modificam nada, impedem . -~ . Como se aplica as verdadeiras descargas, nós também
j a unificação dos paises do Sul, e tudo continua na mesma, com somos recicláveis. Ora esta reciclagem ou purificação é eficaz
' _) a agravante de o Sul pagar um tributo suplementar para a através do estabelecimento. de normas: que perrriitem distinguir
ecologia. de maneira absoluta o· n~rrhal do-anormal; o. puro .do.impuro,
J ti· •

Se esta terceira hipótese, a mais provável, Se !~;:lli;1:_ªf.~. ~-~ti:l-:- . . . :_ jf . Q .li.f.D.PQ qq_-~µjQ -~ Q QQITt qq_t:!.lªµ (f.ªÇª, paj~ 1 continente,
mos diante do retorno do ubom selvagem». Uma Africa ... religião, passaporte, riqueza ...). .. · .
pressionada ao Sul do Mediterrâneo, dimint.iindo sistemati- ~ A norma permite pÔr cada coisa e cada pessoa rio seu
camente o seu nível de vida, que é o mai~. baixo do mundo, '.} próprio lugar, e posicionar todos e cada um em função da
para satisfazer as leis. do ajustamento estrutural, diminuindo ó própria norma. Isto permite recuperar, reciclar. Com efeito
,-) · · ·· óiÇàirieritó' da saúde (mais baixa· no mundo), da educação (mais alguns de nós são professores nas universidades europeias;
' _J baixa do mundo), num sistema de trocas internacionais que nos · · · ·············· outros são funcionários em organizações.internacionais, outros
_) fazem morrer literalmente de fome, absorvendo as descargas têm a respeitabilidade_ diplomática, ~outros, enfim, são os bene-
( _) nucleares, conservando as florestas e pJeservando os animais. ficiários africanos e terceiro-mundistas .do processq de estru-
Neste cenário, os nossos filhos arriscam-se a ser os novos turação, pelo qual padece mais de noventa por cento da
_) utarians»; vivendo em simbiose total com os animais .e as -população africana; tal .como certos países do Sul benefeciárn ., "
_) plantas. O novo turismo ecológico enriquecer-se-á desses de tratamento de favor na sua relação com os países do Norte.
') ·«novos animais»; os homens do Norte, uma vez por ·a no, ' '
· , O desemprego, a ,divisão Norte-Sul e a crise ecológica,
. mesmo duas ou três com a diminuição das horas de trabalho \ são sem dúvida nenhuma, os maiores problemas deste fim do
·) 1
que se prospecta, honrar-nos-ão com as sua visitas ecológicas, !?éculo e provalmente também do início do próximo mi.lénio.
J ··• = ~=· -rnàqwna46fr:ígr~flcawjap<frrés:a.:..·na-mão-:-.-:-- ----- -- - - - -- - - -- -- - --Para-:mttito~pens-acler-es,--a-pes-s-Feifü'l·acle-ée--fee-t10i-r-tài~.- - - - -
-:;) tra111-sfor-mqções -e })'l'bb'lemas .a uma ·e x:pr.€-ssão ,c0nç,.eptuaJ
: _)
(39) Cf. Monde Diplomatique, Nov 1982. adequada ·é problemática. Pretende-se que a super-estrutura,
)
83
:),, ..... •-,;.

-j

J
· · de natureza ftmdamental!l"lente tecnológica, sufoque, quer a
possibilidade da acção singular, quer o seu horizonte de com- parte, se pretendemos ir à sua raiz e, portanto, estar à altura
preensão . .E quando se crê na necessidade de dar uma orien- de dar respostas exaustivas. Não vivemos num mundo apenas
tação ao nosso tempo, conclui-se que a filosofia não tem nada de determinações, estabilidades, repetições e ciclos~ O nosso
a dizer de essencial a tal propósito. mu~do está também cheio de perturbações, de choques, de
Pelo conlrâ'rio, o que é comummente admitido, é que os novidades e mesmo de incertezas quer teóricas, quer empíricas
grandes problemas e as grandes opções de hoje concernem ou mesmo teóricas e empiricas simultaneamente. Por conse-
não um 'país ou um grupo de paises mas- todo o mundo; as guinte, um procedimento divisional que corta o que liga as
suas consequências fazem-se sentir mais imediatamente e de partes entre elas. e produz um conheeimento mutilado, não
,;.,
'

uma maneira dramática nos países mais . pobres. Ora ePara pode ser o mais apto a resolver os nossos problemas.
estudá-los; .'temos também necessidade da .filosofia, uma vez Os problemas do mundo não podem encontrar a sua
que eles põem em causa os mais altos valores humanos 41 ~olução global· numa perspectiva economicista e liberal.
'- A filosofia não tem nenhuma competência especial para E necessária uma· visão mais humana do homem ~ O desen-
solucionar este tipo. de problemas. Mas exactamente por isso, volvimento deve ser concebido de uma maneira antropológica.
pode olhar para as coisas com maior distanciamento, e talvez O verdadeiro desenvolvimento é o desenvolvimento humano• ·
.de um ponto de vista algo mais elevado. Se o olhar para os A noção de desenvolvimento deve tomar-se multidimensional
detalhes.desvanec.e.,... abre:::se.~lhe, porém, uma visão de conjunto ultrapassar as barreiras não só económicas mas tambê~ .· ·
·que · sih.la os fenómenos singulares num contexto mais largo civiliza~ionais e culturais eurocêntricas, que pretendem fixar 0
. . e . num horizonte de problemáticas no qual as ciências seu sentido e· as suas ·normas. ···· - . · ·· · · ··
1 particulares, por causa do seu olhar muitas vezes demasiado Economicamente deve-se ultrapassar uma lógica de
afim, são conscientes de uma forma marginal. ~ produtividade, para partir da lógica das necessidades. É verdade
Na análise do nosso tempo, não se pode filosoficamente que as necessidades .só podem ser satisfeitas através da
destacar O·problema···núrnero···Um que subordinaria ·todos ·os prpdução. Porém, é diferente partir das necessidades e rede-

~~~ ~~~~~=~~~~~~~~~~~~~~ri{a~~~~r.it~isc~~t~~~::S :!~~ .


outros. Não existe apenas um único problema vital, mas muitos
~. ·~
''
0
problemas, antagonismos e crises, processos incontroláveis,
crises gerais do planeta; que constituem o problema vital ~atisf~Itas o mais depressa possível, enquanto estratégia mais ·
importante. · · ·
número um.~Trata-se portanto de Ultrapassar a forma habitual
•• 1 ;:·:::d~;~::P·ªª$.Pf.,. . . . .Qµ~. .. . .~upõe., ~que .a todos- os problemas se podem . . . ............ ........ .. ................... .. .................... ................... ......... ........ ... ... . -~

dar respostas claras e distinta~ Ao método cartesiano que diz,


dividamos os -problemas e tratemo-los um por um, responde
um outro método para .o qual o conhedrn~:mfo das part~s tem
sentido simplesmente se o ligarmos a um todo: que .enquanto
- , - --todo.,-:merece--.ser- estudado.::por:: : éle=,mesrno:::::::.:::::::: · ··· · · · ··· · · ······· -
_ ,.- O:s problemas i :lo _mundo _rle hoj_e s~o .c0mp1exo$, e ·esta
complexidade fa;'.? ·C Qm que não os possamos tratar '})arte por

84
85
()
{j .
' _) ---IX
1) ,
lj Africa e a Ecologia
fj
(j
(_)

'. )
fJ O filósofo francês, Luc Ferry, diz que o nosso século depois.
(_J de ter visto passar a libertação dos negros e das mulheres, - seres
e culturas que sempre respeitaram·a natureza, - deve abrir-se
(j
à libertaç~o da. natureza.
1 _j
Trata-se do reconhecimento de mérito às mulheres e às
' _) culturas negras? Não, não é possível reconhecer valor as essas
'.)
culturas. Então a ecologia que· é um problema de todos os
humanos, que põe- em perigo a vida dos pobres e dos ricos,
_) dos brancos e dos negros, eni vez de ser uma oportunidade
(j . .......................p.ara um dfaíogo autêntico entre. as comunidades humanas e
''__) as culturas,. transforma-se numa oportunidade subtil para
. continuar o racismo, o eug·enismo, a divisão e o «apartheid»
1J
planetário por outros meios.
(j .. .. .•. •. . •. - ..... - . . .
· Se a reencarnação como é professada pelo mundo oriental
1_) existisse, e se rios fosse dado escolher o animal em que
.'
1.J quiséssemos encarnar para -víver plenamente ·a modernidade,
não há sombra.de dúvida de que muitos negros hoje escolheriam
·j
o -cão, o' _gato oµ mesmo qu~lquer planta -exótica . .De fado,, ·ao
') .... .. mesmo-ternp0 que as:··b:àrre1ra$ :Norte~Sul caurnentarn a sua
() '; altitude, no momento em que o tadsmo adquire dimensões do
lj i passado, no mesmo momento :e m que m11hams de çrianças .. _ .
~· morrem literalmente de fome, porque os seus -governos acei- ·· 1
') ·~ taram os planos de «modernização» definidos pelo FMI.e pe'la BM,
') t-- - milJ:iares-e-mU-J:iares-Eie-'f.amíl-ia-s-em-tooO.,!Q-OGic:l.ente-ga~tarr'l-PQ~------ -
~
.~ di.a .çom'umAc9i.o,, -O\il-";UIP ;g<>.to;; "'ointr~i:rp ~qµe pooeda aliin$3{lli aL
quatro ou ·cinéÔ ç:r'iãl'\Çã's no terc:efro 'mundo.
1_ )

' _)
87
\ _)_~·,---~. -~ ' ~ ·-~ - '/"· ._, '~ .-'(; . '---( "r'' ,-_-

'j
·J
Os animais e as plantas não têm necessidade de vistos . . Contudo, se a solidariedade diacrónica merece todo o
---para- viverem-rro-mundo-,-rrãu-estã:o-soje-itus-as-leisctorMI---;e~--"11; m_•·. - - -res·peito- e- ebgio-;-ela-não-pode-realizar-se- em-detr-imente-da-
da BM, não são vitimas do racismo, pelo contrário, todos estão
prontos a dar o próprio afecto, o próprio acolhimento...
~
; t.
1 solidariedade sincrónica. Não se podem exigi~ sacrifícios-a toda
a geração actual de homens, mulheres e cnanças do Sul do
Se como parece fazer entender Luc Ferry, os negros tive- ~ 1 mundo, em nome de uma solidariedade, no entanto necessária,
ram oportunidade de se libertarem antes dos animais e das 1 ~- para ,com as gerações futuras. .
plantas, hoje deveríamos ter ciúmes deles, seres doravante <i E necessariamente falaciosa, uma ética que se preocupa
chamados a partilhar a felicidade do mundo... .' Í com.ª vida das gerações.futura_s, com hoi:-ien~ de amanhã'. mas ·
O século XX é, provavelmente, o século das primeiras des- ; ~. que ignora os homens de hoje. Para nao dizer, que exige o
cobertas do futuro, e esta descoberta poderia constituir o seu f ~. sacrifício da vida dos homens de hoje, em nome da vida dos
progresso peculiar. Mas esta ideia tende; como todas as homens de amanhã. Não se trata de conservar a natureza
concepções humanas, a carregar-se de ansiedades e de pro- esquecendo os homens, trata-se de gerir a natureza de maneira
jecções do consciente e do inconsciente. O inconsciente é a assegurar aos homens da nossa geração e a todas as gerações
levado a bloquear o discurso .desde o seu início.· O consciente futuras a pos~ibilldade de se desenvolverem, e talvez mesmo
procura ligar-se ao modo actual de agir; justificando este facto simplesmente de viverem. ..
11
como.o melhor modo de resolver quer a responsabilidade, quer 'l É importante obser\iar a existência de uma lei geral dos
a · preocupação par~ com o·.futuro.. . . \ ·· · ... eventos humanos, segundo a qual é até mesmo contra Maquia-
. O relatóiio de clube de Roma, que foi o ~erdadeiro ·sinal de... ..1 vel, o fim não justifica os meios. Enquanto nasce e se desen-
aoslfrnites dodesenvoivimenfo,
álárrne não implica necessaria- l ·~· volve - um grande evento histórico - ' à descoberta do
mente que a nosSa geração e a geração imediatamerite posterior futuro , no qual e talvez pela primeira vez na sua história, a
à nossa terão problemas graves ligados à poluição irisuportável humanidade inteira está, toda implicada de uma maneira
do ambiente oi.la escassez de energia; nem sequer é cert_o .que solidária, o uso de todas os meios parece consentido, deSde
daqui a cinquenta: anos, o buraco de azono e a explosão demo- · ·· a · criação· de empresas especializadas em exportação de
gráfica irão ao ponto de impedir o·desenrolar normal da vida dos descargas nucleares em direcção aos países ·do Sul, até à . ........ ._J

homens. Trata. .se de facto de um problema moral. Trata-se de chantagem que consiste em dizer, eu empresto-te tanto, na
saber como projectar <?futuro deixando espaço ·à liberdade do condição de que tu conserves aquele equil\brio ecológico que
futuro; ou se quisermos, ao futuro da liberdade. eu não cesso de uma maneira consciente e deliberada de pôr
· · · ····· Existe uma.solidariedade diacrónica para com·ás·gerações em perigo. Que isso vá .em detrimento de milhares de crianças
futuras. Esta é a única maneira de introduzir o longo termo em todo o terceiro mundo, que importa, o fim mor.ai da nossa
na reflexão sobre a economia dos recursos e ·. o seu emprego acção é demasiado .importante ...
para o desenvolvimento. Esta ,e também uma maneira de Se em nome da vida do futuro dos filhos do Norte,
introduzir .a pêrspectiva ;ecológica, uma vez que velar pelós ~stiverrnos dispostos a sacrificar :gerações inteiras ·do Sul, a
- "-:--€Ellli·líbri0s-eeolégiees--a-leng0-termo-não-é-otrfra-coisé-se-não~ -.. - - ecôlôgiâ=ooe>::::Sér~á=:EiJ:)efttlfi.iêáEle=fjara=va.10r-i:z-ar-l:lma... . :àime..fl.s~G--- -
as·s12gurar. à s '1lJ,.€cH1ções futuras -a 3J:5óssibilidade êe se ~etica nas relações entre Indivíduos, Estados '.e continentes, mas
desenvolverem e talvez mesm<?, "Simplesmente de viver. pelo contrário, será uma oportlli1idade para valorizar .correntes

88 B9
()
() · ~ ~ ('

() eugénicas, que na realidade nunca abandonarão estratos do \ I Quando o biólogo se ser\te do termo de comportamento,
1J Norte do mundo. · ; ·~ ou mesmo de relação social, ele exprime de uma maneira geral
Recai-se então no darwinismo histórico e social segundo · i .~ a ideia de aptidão dos animais e dos homens ou de um instinto
l j
o qual o homem continua num estado de luta pela existên- ; ~·. de agregação largamente consensual. Neste nível muito parcial
( _)
eia e de selecção natural, más com meios novos e mais subtis. :r de compreensão, o biólogo pode insistir, por exemplo, na
( J O fim é a · sobrevivência e a hegemonia do mais forte e ao evolução quantitativa ~ contínua do cérebro animal até cérebro
( _) mesmo tempo dos mais adaptáveis. humano. Ete pode tainbém procurar um código químico de
Não é exactamente para isto que tendem as correntes comportamento. Pode ser também levado a ter em conta, não
(j
sociobiológicas - estudo científico das bases biológicas de todas só os mecanismos internos de comportamento, mas a adaptar
( _) as formas de comportamento social de todos os seres viventes - em relação a eles um ponto de vista determinista.
(J que não cessam de aumentar nos diferentes países do Ocidente? Desta maneira, o biólogo envereda em direcção a uma
( _)
Para a sociobiologia, as instituições, as práticas sociais e as .: :,; via de extrapulação perigosa e duvidosa, reveladora de uma
representações colectivas explicam-se, não tanto pela cultura e · ·' ~ empresa ideológica sobre o saber científico especializado, e na
( _)
pela história, mas pelas tendências do animal humano, formado · ;, defesa doutrinal de um modo de organização social que estaria
'J no decurso da evolução biológica e pertencente à herança adequada à constituição biológica do homem ocidental. Esta
-_) genética da e~pécie. Por conseguinte, o conhecimento profundo . 1', tese coincide com a tese de certos economistas americanos,
das sociedades humanas depende dosrnodelosedateorianeo- í~ defensores de teses sócio-biológicas.
)
-darwinista da evolução para a selecção .11atural. ;J Assim, a relação social seria a emanação ..de ..urn.instinto... ........... .
S · beSde ii:, publicação, em 1975, do livro i<Sociobiology; the t de conservação. O liberalismo não seria uma teoria, mas a
, ) ·. new synthesis•i (40) de Wilson, · as teorias sociobiolôgicas são expressão natural da sociedade humana, ou de maneira mais
1
consideradas, por alguns, um evento científico de grande { explícita, a verdadeira expressão do velho cérebro, do riovo
imporfü.ncia; e por outros, como uma justificação ideológica e das suas combinações. O socialismo seria uma téoria que
() das opções políticas existentes: . .................... .............. :. ç .frifogrà símplésiTiente a parle nova do cérebro, e se teria
r_) · .Contudo, depois da publicação do livro de Wilson, novos ,. esquecido do cérebro de conservação. Assim lutar contra o
r _) livros vieram· enriquecer o domínio da sociobilogia. O neu- ;( racismo é lutar contra o espírito de conservação; por
r) rofisiólogo franc~s ; Changeux, (41) vê na biologia o saber por '. ~' conseguinte, a luta contra o racismo é uma causa perdida. Os
. excelência acerca do homem e da sociedade. Ele considera que é . nacionalismos seriam o prolongam~nto do instinto ·de con-
r _) toda a actividade mentaL,,, ~..:reflexão ..oud.ecisão; emoção ou · 1' servação.
( _) sentimento, consciênda de si - , é determinado por um con- '1 As religiões, as doutrinas ;a parecem corno produtos
r) junto de influxos nervosos que circulam erri conjuntos definidos .. . específicos do espírito humano, el9boradas como resposta às
por células nervosas, ein resposta ou não a sinais exteriores. · . ,· · · solicitações permanentes do espírito de conservação. Os
(_) Este rneterialismo mecanicista .é a verdade do mundo. fenómenos religiosos ter.iam também :o s seus fundamentos
() - ----- --- --= . ' m :~-:::== numa.tiãse51oiõglca~ sob a forma de preô1spos1Ção a -=um =,e-=ª_ __
·'-::) -· (
4
°} - :E:U. Wllsoo, Sodõb)Olõgy, pp. 78 e :r9. -.
7
'. -' :crença religiosa.- Segllm:io 'Wi:lso~, ~camo 1os ·,grand~i--:grupos
) Cf. Changeux; L'Hom~e 1 1~2.
41
( _)
( rneuronal, pp. 121, racíais não têm o mesmo çérebr:o, não é surpreendente que
: _)
90 91

/ '
j
~' '. manter a superioridade e hegemonia mundial. · Trata-se de
os indianos, depois de quatro séculos de evangelização, uma inovação social que poderia confirmar poderes absolutos
redescubram ainda hoje as suas antigas idolatrias. e desigualdades internas, desde que se permaneça numa
Nesta perspectiva, toda a organização social não liberal desigualdade externa e uma superioridade em relação ao Sul.
é contra a natureza e condenada a desaparecer ou a transfor- O nosso mundo faz conviver de uma maneira tranquila a paz
marrse radicalmente. Que o. homem seja proclamado genético., e a guerra. Em tempos de paz, há povos inteiros que sofrem _)
neuronal ou hormonal, são simplesmente três variantes de um permanentes bombardeamentos, ou para inverter Kant, ~ue
biologismo semelhante a um sociobiologismo generalizado, que vivem a ccguerra perpétua». Mas é claro que a guerra faz viver
não hesita em definir qual a boa sociedade ou a verdadeira fábricas e cidades 1nteiras, a morte de uns faz a felicidade de
cultura. outros num muRdo que se quer imbuldo de valores morais. Tra-
No fim do século XIX, o eugenismo defendia a luta entre ta-se d~ uma leitura antropológica que aceita a disparidade histó- )
indivíduos, entre sociedades e entre as raças.;- Esta luta deveria rica e cultural- da moralidade, em detrimento de uma estrutura
permitir aos. mais aptos triunfar, assegurando cada vez mais )
transcendental, à priori, atemporal e universal, da moralidade.
a reprodução demográfica, com vista a melhorar a espécie
humana pela via estritament~ biológica. Ora este abandono do ..' ':,
a
Já no século XVI, quando reflexão filosófica ocidental
."
·. ~
se viu confrontada com .a diferença antropoló~ica, por causa __,,)
1

nosso destino individual .e colectivo às exigências da lei natural da descoberta dos «selvagens» da América e da Africa, e ampli-
e aos imperativos da selecção natural, é de grande actualidade. ficada pela .etnografia generalizada feita durante a colonização
\\Há especialistas que são a favor da esterelização dos negros, europeia, criou problemas à filosofia moral. Impôs-se assim um
1'dos árabes, dos latino-americanos; em duas ... .palavras, . dos .
poritõ de Vjstá relafi\iistá; plüralista,_:.Segundo o qual_ o ·hom;rn
j pobres e não brancos. l . arcaico vive nurri mundo normativo, sem comparaçao poss1vel
" O género humano existe simplesmente a nível biológico. com o mundo da consciência ética ocidental. Esta.vulgata cultu-
A unificação cultural do género .humano poderia provir simples- :~ ~ ralista repousa sobre os segUintes pressupostos: .·
mente através da supressão das desigualdades económicas e \.
: -"-- Acreditava-Se que as sociedades primitivas dispunham · · ·· ·
sociais e de üiiia possíbilidade .de expressão . qualitativa das de regras de acção, que são formuladas não apenas sob forma
diferentes culturas do planeta. Pelo contráriq;: serão exacta:.:: de proibição inágico-sa,grado, mas também mais coercivas que
mente ·essas diferenças a provocar a ruptüra do ·mundo, através todas a5 leis morais derivadas das religiões monoteístas .
da criação de uma·· esp·écie de «apartheid ~1 planetário. . '· ~Esta normatiiação-, aparentemente ·diferente, ·expli-
Nos países ricos existe hoje uma resignação egoísta, que
sacrifica a tendência à mudança no pr0prio ambiente, a favor sociedade. A vida individual tem sentido simplesmente em
ºº·
., ......... ... i:.ª:::$~_..PQL.\lIDª .. \TÍ$ª9. .9199ª!i~ªD.t?. ....~- - -· ~gre,c:lª . mµpgq g ºª · · · · ··· ·
)
da conservação de uma área de p revilégio nítido em relação função da vida da colectividade, que por sua vez depende da
a uma parte do mundo que ficou para trás. Existe de facto ordem do mundo, colocado sob o controle de forças sobre-
uma solidariedade que se afirma cada .vez mais entre as classes naturais invisíveis. Os costumes são assim regulados por um )
·e estratos sociais diferentes no prime·im mundo,, independente ·-----<~--g.i:ai:ide...i:it1me.r:o:.rle..pt:escrlções.,-ilustradas...poLtabus,-1or.rnuladas--:----~-
• d dás º.córiflgúraÇóes nacionais e geográficas, que . proíbe as sob forma ôe ritos. As normas coleçtivas de viÇIQ. têm as forças _)
mudanças dô.ravante · põssíveis ~ ~úmâ •.espécie de pado não coercivas., nas suas origens, n um mundo sobre-humano .
p ronunciado .e ntre grupos :Sociai.s., mesmo desiguais, p ara
. 93
)
)
-- Por consequência, . os códigos morais não acedem a ·- até aqui definido como o que regula a relação dos homeris ··
j uma independência axiológica; eles fazem parte de uma entre eles. Segundo Michel Serres, trata-se de ter em con-
j
construção simbólica, centrada sobre o sobrenatural, que tem sideração o lugar, o ambiente no qual se realizam as relações
a sua própr,i_a lógica. inter-humanas, de não continuar a ignorá-lo como um quadro
') Por catisa destes estereotipos oriundos de uma antropo- abstracto, mas de considerá-lo como um objecto real: fazer
) logia evoludonista, estabeleceu-se um autêntico «apartheid» surgir, portanto, a importância do ambiente, se quisermos dar
1) moral. As pârticularidades de alguns, que levam à criação de ao termo o significado que lhe dá Jean-Jacques Rousseau.
barreiras entre civilizações, não devem dissimular as inter- Michel-Serres põe em causa a separação entre, por um lado,
ferências e as analogias interculturais. Excluir da comunidade o que é estritamente do domínio da relação entre os homens,
moral universal certos povos, sob o pretexto de terem valores a ética, a política e, por outro, o que concerne as relações entre
que não se :adequam aos nossos; . não significa elevar uma o homem e a natureza.
cultura ao estatuto de cultura moral por excelência?. · Serres apela à criação de uma nova ética, ou melhor, a
A reacção aterrorizada dos conquistadores espanhóis uma nova concepção de ética, que não se. contente de rela-
1 _)
·diante dos sacrifícios humanos dos Aztecas, fundou a pre- cionar os homens entre eles, mas que relacione também ·os
sunção europeia em favor da sua superioridade moral e homens à natureza. Trata-se simplesmente cie reconhecer que
legitimou, paradoxalmente, as políticas de extermínio desses vivemos contratualmente com a natureza, e· esta relação não
j
«selvagens». Montaigne não tinha razão, quando notava que a é local mas global E uma questão de reconstituir a relação
moral dos povos ditos ccselvagens», eram em ml1.it.c:>~ P<:>.Dt.9S..çl~ rompida entre o homem e a natureza. Por isso, de uma forma .•'

vista superiores à moral dos ditos civilizados? · · · ·ilüsfaigica: exalta os


rit65 religiosos que
sabiam.celebrar pacto . · º
J com a natureza. '•
A consciência unilateral do problema ecológico, completa- O filósofo francês Luc ·Ferry pergunta-se, justamente, se;
mente dissociado do problema da ruptura constante e sis'te- para além de um certo ·número de medidas necessárias à sua
' 1
_; · mática entre oNorte e o Sul e· da progressão do desemprego sobrevivência, se deve instaurar os animais e as plantas corrio
1
J no mundo inteiro, fez surgir umâ ética exclusivamente ecoló- sujeitos de ·direito. Ele pergunta-se se é justo conceder aos
_) gica, que se interessa de por «re-situar» o lugar do homem em animais e às plantas uma personalidade jurídica autónoma. (43)
relação ao ambiénte natural. Contudo, a dimensão ética ligada Por contrato. ·natural M. Serres enteride . uma relação
J aos problemas do ambiente tem àntes de mais e sobretudo urna intersubjectiva, que passa pelo reconhecimento do outro, que
_) dimensão política. Portanto o problema de um «contrato ....implica .portanto.reciprocidade e obrigação . .Concepçãoassaz ..
_) ·natural» deve ser subordinado ao problema de um contrato clássica, se nos referirmos às teorias do direito natural
, ) · soçial. moderno, de Hobbes a Rousseau, onde esta teoria ganha toda
· · .Michel Serres com o seu contrato natural (4 2) pretende a sua importância. Como Hobbes, Serres faz da guerra, das
(J inserir a relação dos homens com a natureza na ética, incluir , relações :antagónicas enfre os indivíduos, a primeira forma da
'j =poli~hf'ó .. á . re'laÇão corri :a · narurezanrrm~dnmínio - a etica-_____,.· . - - - -rela-çã-o--contrafua+:---MãS1'li<YStrand0-qtie-a--gtterr"il-presslipee-tlffi,_ __

4
( 2) Michel S erres, Contract Naturel, p. 44. 1(
4 3) Luc 'Ferry, La Dimension E~o!ogique , p. 77.

94 95
·•
acordo entre as partes adversas - que se reconhecem reci- de .direito. A questão é de saber quem pode representar a
procamente - , Serres é fiel a Rousseau, que tinha démons- natureza, ·quem é qualificado para falar em seu · nome?
trado que a guerra resulta do livre consentimento das partes ..Um Luc Ferry preocupado, pergunta-se se os povos
beligerantes, e portanto, pertence ao domínio do estado de primitivos e as mulheres - que qualifica como portadores. por
direito. essência de uma consciência ecológica, porque socialmente e
Hobbes tinha-introduzido a ideia segundo a qual os homens naturalmente mais pertos da natureza orgànica - , são real-
associa!ll-Se não para aumentar os seus bens (ideia aristoteliana mente os mais aptos a representar a natureza.
· da finalidade da cidade); mas. para se proteg.erem, para estarem Não pretendo nem que os povos primitivos tenham uma
seguros, para afastar o perigo que é um risco mortal. De Hobbes. maior consciência ecológica, ainda menos negar ver na
a Rousseau, a morte é, de facto, a ameaça à qual deve responder ecologia uma preocupação ocidental. Mas ao mesmo tempo,
a política. Serres não inventa portanto, nem a radicalidade da não posso deixar de recordar que se um problema ecológico
ameaça, nem o apelo a mudar de direcção - que se pode existe ou se existe urna consciência ecológica, é devido exacta-
perceber no seu livro - ; muda simplesmente a designação do mente à atitude especificamente instrumenta lista que é uma
perigo. Recordemos que toda a filosofia politica se constitui:em prerrogativa da cultura ocidental moderna. Basta olhar para a
volta da ideia do perigo proveniente do homem. história · do problema ecológico, para se aperceber que ela é
••Nós já não nos combatemos entre nós, ·nações ··ditas · directamente proporcional às desvastaçôes da técnica ocidental
desenvolvidas, mas voltamó-no_s todos _juntos, ·. con~ra o . · sobre a . natureza...... .
mundo». (44) · · ·. Contudo, segundo Michel Serres, a única entidade sus-
· ·Existe ·um··novo··ifüfüigõ; a:·· terra; Oplarieta::.forra~ à n~fü.:. ceptivel de representar a natureza num eventual contrato é a
reza, por isso tem que ·se fazer .dele uin parcefro a partir ·ae ciência ocidental. Por outros termos, cabe à ciência instituir
um contrato. Resta saber se este novo inimigo pode ser o substrato da unidade do mundo, como na contrapartida, )
considerado como parceiro para um contrato, se a: natureza constituir a .unidade do mundo humano. ·
Todos os-que actualmente-afirrnam a existência -de · um······
pode ser sujeito de direito. ·· · ·
Primeiro
. . . . . ... . ..... . . •.. ........ , é importante t er .presen e que este m1m1go
· · · · t · · · e, interesse ecológico, referem-se a um interesse comum, cuja
particular. Se ele constitui hoje uma ameaça para o homem, existência é ·atestada pelo número de convenções interna-
isso e devido da acção do próprio homem, e não .de nenhuma cionais sobre a espécie extra-atmosférica, a Antártida, os
potência natural. Por conseguinte~ a nafüreza é mais vítima que oceanos, etc. Este interpasse comum é da comunidade inter-
inimiga'. : .. ...... " ".l)ªÇi.Qil9l. pp[tj:U;lto; o sujeito de direito deve ser a humanidade.
Segundo, Hobbes sustenta que ,existem poucas coisas que A constituição de um tal sujeito pode ser procurado na história
não possam ser representadas .-çle maneira efectiva, uma vez do direito internaÇional, ·e particular-:-mente do direito natural,
que até os seres inanimados. podem ser personificados, :rsto é cuja importància é decisiva a partir de Grotiús. A ideia de um
represe,!ltados , tomar-se sujeitos, .com· alguém falando em seu . interesse ecológico podéria servir-se dos princípios _d o direito
-~-nor:i'e~--neste-sent-ide-.qtte--M.;-Se-rH~s --fa.Z-Ga-Rat1J.r@za--Urn~ujeit.o-- . natural,_ uma vez que ele consiste em ultrapassar a forma ··
tm~diata do interesse paffifülar ,(quer seja de-umi ndividuu;-de-
ufn
- ··: ~-

grupo particular ou de uma nação) p ara mostrar um acmdo


J
7
'9.6 97
)
J
J
·J necessário, a longo termo e sobre uma dimensão mais global: A resposta a este problema encontra-se no grande elo-
.j ª comunidade internacional em matéria ecológica. Curiosa- gio que os ecologistas fazem à diferença. VIVA A DIFE-
mente, M. Serres faz da natureza um sujeito de ·direito e não .:RENÇA! (45)
J concede um tal estatuto à humanidade. A responsabilidade de · · Como realizar o desenvolvimento duradouro que recla-
unir o mundo natural e depois humano cabe à ciência, a i mam os ecologistas? Como conter o crescimento económico
_) humanidade não tem nenhum estatuto jurídico antes desta sem destruir de maneira significativa o património natural?
1) operação. E como conciliar esta imperiosa obrigatoriedade do desen-
Este esquema político reconhece simplesmente uma · volvimento duradouro com a legítima ambição de satisfazer as
multiplicidade de pequenas cidades e não engloba nenhuma necessidades básicas do conjunto dos homens?
I _)
comunidade humana supra-nacional. Ignora não somente a Para responder a estas questões, os ecologistas fixaram
comunidade internacional, mas também tudo o que pode : como objectivo a modificação das condições e das regras do
1 _)

estruturar a multiplicidade de nações, por exemplo, a oposição desenvolvimento económico, no Sul no Norte. 'ª
Norte-Sul. A economia convencional sustenta a teoria de «recupera-
Já Rousseau, a quem Levi-Strauss considera o pai ·da · ção», cujo raciocinio se baseia sobre uma ideia simplista: se
antropologia moderna, rejeitava a teoria desenvolvida pelos os pobres correrem niais ·depressa que os ricos, um dia vão
. seus predecessores, quanto à indinação e o interesse de cada apanhá-los. Mas esse dia bendito é a miragem mais inacessível
1 _)

' j
uin por .viver em boa sociedade com os seus semelhantes. que inventaram os teóricos, sobretudo face às imposições
. A. sociabilidade, que supõéa existência da humanidade, é a base ecológicas e à imperiosa necessidade do desenvolvimento
rJ ···· d~afirmação da estrutura· que nos legou o direito natural duradouro .
.' _) moderno: a existência de uma multiplicidade de nações, portanto A premissa deste discurso, é que o desenvolvimento
do direito natural, permite pensar a unidade do género humano, económico aos ritmos actuais não pode ser duradouro. Para
sem a qual o direito natural se reduz ao simples contrato. os ecologistas, é duradouro um desenvolvimento que não
'J A crise do ambiente simboliza bem um problema muito destrói de maneira significativa o património ecológico. Isto é ,
ij mais básico, a crise da própria noção mesma de humanidade, um desenvolvimento económico (o que é sinónimo de degra-
' _)
como a tinha definido a filosofia kantiana, seguindo as sendas dação fisica e energética) qt1e-não-exeede o nivel de renovação
do direito natural moderno: uma espécie de dado, quase um das fontes ecológicas.
\J a pfiori, de toda a reflexão politica e moral. O que fazi,a a Isto implica: estabilizar a população nos paises do Sul,
') qnjc::lªde c:le lJmJaLc:ié:ldO.. eré:l aJ deia, própria do direito natural reconverter .as tecnologi.as de exploraç ão intensiva para um uso ...
,) moderno, segundo a qual as regras universais de existência . económico das fontes primária!?, desentupir as sociedades de
1
humana são a conservação da própriçi: existência.· Uma .tal consumo e favorecer a destribuição das foliltes tecnológicas e
J investigação tem sentido nurri mundo dividido em .dois? financeir:as entre o Norte e o Sul.
U Plus ça·chan.ge, plus c'est 1Ja même chose! Par.ece a Grécia, Ora nós vivemos num mundo que. depois da queda do
) - - - -rnãe-piátFia-Ele-íntele€t1;:1a-1ism0:-00iEleRta,l ,-"0nde-r:>euG0s"'fi0me-Hs=:::.:'.=:..:.'::::::--'-l+-~
· ··· _
· · ··· · ~=:..:.mHnH:le:..:.ger-li m,Hã0-Ge~sa-'cie_.:_J011var-'°~ibe.J'.'.ali.sm<dl-eco.nómico.--­
y livres_preten~ia_:i=1 con.divãdi~ _e:ntr.e ~!es . a felicidacie., : · .conde-
na'1am :a ma1ona .a v.1v.er na barbáne e na escravidao. (45) Cf. Maflifesto 1ecôlog1Úa , M unique, 11987

9_g 99
(· ·~: ' • ' -~··.;_..!;}'_; ~. '·
· Uma economia do desenvolvimento económico é compatível
com a força impetuosa do capitalismo? Que critérios novos Para mudar estas perspectivas catastróficas é necessário
e que novas regras são necessárias a nível social e económico,' mudar o tipo de relações económicas entre ·o Sul e o Norte
para conseguir a economia duradoura? Uma coisa é certa a o que implica uma mudança do modelo de desenvolvimento'' .

economia duradoura não é possível num mundo que obedece ' que por sua vez implica uma diferente visão do homem e da
a pulsões agressivas. e possessivas, em detrimento de valores sociedade.
de solidariedade e de criatividade.
O problema ecológico não pode ser tratado de uma • A filosofia nasceu com o diálogo ... Não importa que o
maneira unilateral. Ele está directamente ligado ao problema primeiro a es~rever tenha sido Zenão, nem sequer importa que
da pobreza no mundo. Pode dizer-se, honestamente, aos dois Platão ten~a ·escrito os diálogos enquanto Sócrates através da
terços da população mundial, que vive num estado de miséria: palavra~ realizava um diálogo vivo com os atenienses. O que
«ora bem, é tempo de consumir menos»? interessa, é que a filosofia a partir dos seus alvores exalta a
. Para erradicar a pobreza, a sabedoria convencional sugere arte do diálogo. Ela parece admitir que o acordo do interlocutor
a estratégia da recuperação. Se os pobres avançam mais é para o pensamento condição do progresso.
depressa que os ricos, vão alcançá-los. Mas quando? E por Hoje somos todos conscientes da multiculturalidade das
outro lado, a energia necessária para um tal esforço é dura- sociedades humanas, e não só, mas também da sua
doura? P.ªrª ª)çªDǪ1'. os .Pªises ricos, é necessário imitar os importância para a riqueza cultural da humanidade e mesmo
seus ·modelos de desenvolvimento que se baseiam sobre uso para o seu progresso e conservação. Por conseguinte, parece ·c_,J

massivo de · recursos e de capitais e sobre a economia do óbvio e mesmo ·· legítimo; · apelar-se a · um· diálogo·· básico ·· e
trabalho humano. construtivo entre as culturas.
O padrão do desenvolvimento adaptado no século XX, era O que importa hoje, é saber o que queremos do diálogo.
até há pouco tempo .e muitas vezes ainda hoje, o nível de vida Com o declínio dos discursos µniversalistas e de doutrinas tota- - ~

atingido pelos .EUA, pela Europa e pelo Japão. -Este --padrão · · ·· ··' .. 7:: ' ''
. _lit~ri~S. yaI reaparecer uma concepção filosófica do diálogo sério
não pode ser sustentado ein relação aos recursos complexos e essencial entre as culturas, ou dialedicamente, a.antitese anti-
disponíveis pelos próprios países desenvolvidos e em relação -absolutista de ontem; vaffomàr~se à·fose tôfalitária de hoje?
às exigências elementares do terceiro mundo. O diálogo não é nem a negação nem a radicalização dos
Se ·cai o ·,p adrão de desenvolvimento, cai também diferendos e das diferenças, mas um mecanismo que déveria
,é.l\1!9ill9?çqmg.ntg q... g_xpr.es.são '«países em vias de desenvolvi- ajudar-nos a ultrapassar uma lógica de consenso ou dissensao.
Na dramática confrontação desigual erifré ·aoIS ·inúndos ·· · · · · · -· · · ··
mento», no qual o termo desenvolvimento se .refere ·exacta-
mente aos países já desenvcilvidos. . . . culturais, qual pode ser o signifkado, a pertinência ou
O famoso sistema de trocas desigu~is, faz cóm que os simplesmente, a razão de ser de uma reflexão sobre os modos
nossos ,esforços continuem a aumentar as riqueias ·dos ricos de pensamento, próprios das sociedades ,e das .culturas con-
·--·~~a-.:. ~p0br-e.za.-doo-,.-pGbi:e-s,-E.,ste-=pr€>GeSS0"~deter-i0r:a=quer-=E:F"""=, 1 ___ trastantes?
.ambiente natural quer :o ambiente ~odal. E o que ~ pior, ele . .._ Trata:-:se de ver se a relação natureza-cultura; parª .çi.lém
pmvota as ·.~rhigrações .mas-sivas. ' das suas determinações mais imediatas, 1é susce.ptível de uma
abôrdagem comparativa para ·compreender, quer as diferenças
100
101
'J
)

· j .· . culturais, quer também e sobretudo a unidade fundamental da ceiro mundo continua a sofrer a exploração económica, mas
humanidade. sofre também a miopia moral e intelectual do Norte.
lj ·É óbvio, que se em nome de desenvolvimento, do equilíbrio O desenvolvimento foi e permanece cego às riquezas
'j ecológico, da democracia ou mesmo dos direitos do homem, se culturais das sociedades tradicionais, que foram vistas
trata simplesmente de impor a modernidade europeia contra a simplesmente através do ângulo económico e quantitativo. Ele
'J tradição dos Africanos, por exemplo, toda a interrogação, e toda viu nas suas culturas unicamente ideias falsa,s, ignorância,
') exigência de diálogo seriam supérfluas, urna vez que a via a seguir obscurantismo, sem imaginar que elas continham intuições
teria sido já traçada. Tudo estaria já predisposto para assegurar profundas, saber acumulado desde há milhares de anos ,
a hegemonia do pensamento racional contra toda a espécie de sabedoria de vida e valores éticos. Fruto de uma racionalidade
' _)
pensamento simbólico ou mítico. Uma tal aproximação seduz ocidentecêntrico, o desenvolvimento foi também cego, ao facto
1 _)
tqdos os racionalistas, com a grande limitação de não ver ou de que as culturas das sociedades desenvolvidas, comportavam
'J ignorar no outro, um sujeito rico de experiências humanas, que nelas, como alié.s todas as culturas, · ao lado de verdades.
') a priori não são manifestações de cre'1ças ultrapassadas. profundas - como a racionalidade auto-crítica, que permite
A Europa difundiu pelo mundo fora a fé no progresso. ver as carências e falhas da própria cultura -· , ideias arbitrárias
•J . Pretendia que as sociedades despojadas. das suas tradições, e mitos não fundados - como o mito providencialista do
iluminariam os seus futuros, não continuando a seguir as lições progresso - , e também grandes ilusões (como a ilusão da ·.·
) dó pássadõ~ ·füas encamihhando-se em direcção a um futuro chegada ao cimo da racionalidade e serem detentoras
( prometedor e prometido. O tempo era um movimento ascen- exclusivos .. dela),.e miopias . terrificantes .. (como ..o .. pensamento . .....
dente, o progresso era identificado com a própria marcha da compartimentário, redutor e mecânico). ·
história humana, impulsionada pelo desenvolvimento da Não se devem idealizar as culturas. Como demonstrou
ciência, da técnica, da razão. A relação com o passado era Murayama, cada cultura tem algo de desfuncional (defeito de
substituída,· compensada pelo ganho em direcção ao futuro. funcionalidade), de inisfuncional (mau funcionamento), de
1J
o des.en\iü1Vimenfo tal como ê concebido ê ·redlifor; Pôr~ ·· subftincional (funcionamento no sentido mais baixo) e de .
quanto faz do crescimento económico o motor necessário e toxifuncional··(criando entraves ao funcionamento) . Devem
') suficiente de todos os desenvolvimentos sociais, físicos e morais. respeitar-se as culturas, elas sao imperfeitas, como todos nos .· .
<) Esta concepção tecno-económica ignora os problemas humanos somos imperfeitos. Todas as ·cultur:as constituem uma mistura
de identidade, de comunidade, de solidariedade e de cultura. de superstições, fonções, ,fixações, .saber acumulado .e não
;.~ · · · · · ·. ·.· · · :···· ~:~.·· ~~ô~~~ed~~~~~~~~rmt~~~ ~~e~;~n~~~e~r~~t~· ~~:~~ criticado, erros grosseiros, verdades profundas:
Contudo, toda a evolução comporta abandono, toda a
· · ···· ···• · ·········· ··· ···· i

1
) justificar escravatur.as, colonialismos, ditaduras cruéis, quer criação comporta destruição, toda a conquista histórica se paga
() sejam de modelo socialista (partidos únicos)~ · ou de modelo pró- com uma perda. Toda .a cultura ·é digna de viver e deve saber
. J ___ -ocidental. (ditaduras militam$}, A çr_µ?~Q<l.Qg 9ª$ rnvolµ~õ~§ PP morrer.
desenvolvimento agravaram o prôpoo subdese_nvolv1rnento. ~alar ae .cult~ra,n? ,s_ua_ .f~:m:l)é! i!T1(lisglol}9I, é re}~rlr-se aos
Y - Dép6is· de frês década$ ~corisàg-radâs ad desenvolvimenfo, sistemas ;ô~re.fJ~es0Ii~Çf~aõHa-'-natií(eza:~:o-fioYnem.e .caa socie-
.-J -o grar:ig~ desequiÍíbFio entre o Norte e o StiLagrava,se;. O.ter- dade •COffiÇ) ·~le~ :Se cnsta'lizam 00$ fDÍ~OS, nas narraijvas,, n p.s
'J
1 _)~
.1-0.2- 103
.5" _••• -\'.>

·'J
."j
teorias e nas outras formas de saber. Mas a partir destes relação entre o logos e o mito é pleno de ambiguidade. Se
produtos culturais, não são unicamente os produtos do cérebro por um lado o mito oposto ao real ou ao racional remonta
humano que podem ser apreendidos, mas também, de maneira necessariamente à ficção ou ao absurdo, por outro, ele constitui
indirecta, o processo cognoscitivo. um fundo de verdade, ou ainda uma sabedoria constitutiva da
Quando a crença no poder dos antepassados se opõe à experiência humana e social sob forma de alegpria.
ciência, ou quando o bom senso embate na ••superstição» da terra Como diz Verrnant, (46) a antigwdade grega afastou o
sagrada, pode e deve chegar-se à plena compreensão de que toda mito, separando os elementos da fábula e os elementos que
a realidade, pode ser apreendida, simplesmente através da .• ii
derivam do campo da verdade. Por outras palavras, o mito
representação simbólica de uma determinada cultura. - .\,
estaria dividido entre o que está para além da verdade, que
Por conseguinte, toda a divisão drástica e radical entre um foge por consegwnte à verdade, e uma maneira de dizer
universo científico e um universo de crenças; é erróneo e até diferentemente, sob. forma figurada ou simbólica, a mesma
perigoso. Uma análise reflexiva, leva sem dúvida à descoberta verdade que o logos expõe de maneira directa.
de um mundo menos dicotómico, no qual a ciência pode Submetendo o mito a uma tal bipartiç~o, os gregos não
manifestar-se perigosa e destruidora nos seus, efeitos (crise refutaram simplesmente, em nome do logos, mas sobretudo
ecológica), e a· dita superstição, ao contrário, ~presêntar uma atiram o mito para· as trevas da irracionalidade, da mentira e
verdade sobre o homem e a natureza. de
da ficção, mas nunca cessaram utilizá-lo: Eles fizeram o mito · . ' 1~

·· ·· ~
Aliás, é importante recordar, que toda a cultura é cons- sofrer uma transformação, - .que impõe a· sua· tradução na
tituída por crenÇas cuja legitimidade não pode ser. encontrada ............. ....linguagem . e . .no .. pensamento . doJogos.Assim. a· filosofia grega
na ciência. Isto devia relativizar o racionalismo ocidental, a · pôde nutrir-se de verdades míticas transformadas. De unia
partir do qual os homens daquele mundo e cultura tomam maneira contraditória, o mito ·seria a negação das ~aracte­ j
consciência de si próprios e pensam poder manipular o mundo. · rísticas constitutivas do lügos . .
Não se pode pura e simplesmente isolar dois modôs de A reflexão sobre o.s modos de pensamento, baseia-se
pensar~ por Um làdó ó fradidonàl e por outro o moderno. sobre esta simple.s categorização bipolar, sedutorq. e intelectual-
Contudo não faltam referências .que opõem o mundcrtradi::: · mente confortável, .mas vazia de subst~ncia . Esta herança valo-
cional ao mundo moderno .. Mwtas vezes, por detrás destes dois riza até ao ~acionalismo absoluto, o papel do logos na função
grandes conjuntos, estão areligiãÇ> e a ciência ou mais ampla- de separar a verdade do falso. Mas o. nosso saber sobre o
·- ~~~J:..um?ess~~;o~:. tâ~~~. ~~~~~~!mp~;i~~~~~v~~~~~~~li;;~
mente as crenças e a racionalidade.
Estes dóis t!hiversos podem também ser drcunscritos de ·· · · . ·················· · ···· )
maneira emblemática pelas expressões gre,gas de mito e do de tal maneira ·prisioneiros das nossas próprias categorias, ao
· logos, que permitem circunscrever dois universos cognoscitivos ponto de não podermos efectivamente pensar a unidade e a
. nos :seus multíplices aspectos. diversidade humana? •
. . O logos é domínio do discurso, da razão, e o mito, é o A reflexão moderna quando se interroga sobre o homem
··m:undo·:aa. ~lenda~ "da narrativa ,e da fábula , ·No mundo 'grego --~---,e-a-so
-c~i.-
edade , recorre sempre -aos princípios de distinção ambí-- -- -
antl,go ,-- esta disunção remonta à füSfinÇão . entre a .escntura e
,çi or(llidade ~ Cp ntudo , já no.Nnsamento grego, a natureza da :(!16) J . :P. 'Vemant, Mythe el s·ociété .ern G rece andenne,, p . '89 )

104 105
)
)
J guos traçados pela filosofia grega. Para evitar esta simplificação . sociedade humana é uma maneira específica de ser e de viver;
,j e para poder verdadeiramente aferrar a pertinência de uma 'portanto, um mundo de ideias, de crenças e de valores trans-
1j
aproximação da religião e da ciência, ocorre aforrar a plurali- ~ mitidos e condivididos. Um universo que remonta a urri sistema
dade dos modos de pensar, não só entre sociedades e entre Ide pensamento· simbólico, pensamento que une, liga, pensa-
' J culturas, mas no interior de cada uma delas. \mento de participação e de pertença e, portanto, do particular.
'J Umas das diferenças essenciais da maneira de reflectir !A mental~dade primitiva está também presente na sociedade
'j entre a cultura ocidental e as culturas ditas primitivas, é a cons- ~ita moderna, mesmo que de uma forma mascarada e instru-
1 )
tante necessidade de fragmentar as culturas ocidentais, negada mentalizada pela racionalidade técnica e mercantil.
pelas culturas primitivas. No Oeidente quando se procura a f O pensamento abstracto enquanto tal, pensamento de
') solução para um problema particular, dirige-se a uma específica fragmentação e de separação, não pode dar um sentido à vida,
J disciplina científica, ou ao direito, à moral, à religião ou à arte. nem justificar e legitimar moralmente as condu~as.
j Para os povos «primitivos11,, todos estes domínios estão inter- A um nível geral, a oposição esquemática entre as duas for-
ligados. mas de pensamento, permitem uma melhor compreensão das
J Talvez fosse deveras frutuoso, que a cultura ocidental se . } duas componentes que compõem o entendimento humano .
J interrogasse, para saber se o pensamento total e relacional das Seria errado ver nas formas simbólicas e abstractas do pensa-
,J sociedades primitivas não deveria suscitar uma interrogação rrie~to · duas entidades substancialmente distintas.
: Infelizmênte a dinâmica do :pensamento humari6. e hoje . . . . ... . . . . . . . .. .
. ~ . .
J mais fundamental; isto é, para além das formas diferenciadas
de pensamento, qual é o sistema culturaLemglobante. que ... ·-········· :~~· ·· submetida a uma <lomesticação secular segundo os ·czmones
permite conservar unido o conjunto da sociedade dita moderna. ...
p
- li~
$ racionalistas. Por consequêntia, a salvação do mundo no Oci-
') Mas vendo bem, estas duas vias são radicalmente diferen- dente ·sob a forma de revolução técnico-científica, no mundo
(J tes? O mito e o universo ç\e crenças contêm uma sabedoria, da pobre graças ao desenvolvimento, passa pelo triunfo da razão
mesma maneira que a ciência não é extenor ao mito. Deve '. ':·
sobre as óutfas formas de crenças e de costumes centrados s_(>l:>r.~ ........ ....... ....
I J .. admitfr.:.se que érii 'fodáS as SOded,adeS e em todas as pessoas urria tradição cultural e religiosa .
') existe uma imbricação de pensamento ·racional e simbólico: ·Jsto .·\ · Uma . boa ilustração desta fé racionalista pode encon-.
,J não significa que todas as coisas se equivalem e que a única via i'\ trar-se em certos filósofos africanos que opõem radicalmente
possível é a confusão entre orelatiyismo cognoscitivo no interior . '.~\ o mito ao logos, ·-e inscrevem os s.e us movimentos numa
·j
de uma cultura e entre as diferentes culturas. .· "\perspectiva desenvolvista, que levaria a humanidade inteira à
_) Hoje no mundo, com o impacto variável, a razão expri"' · · · -•praue:a:···a0·· pensamerjto···radõnar:·· · · . ·. . ·. ·. . ·.·.· .·. ·.· · · ··· · · · ·.·.········ ·. . .. . .. ·.·.·.·.·.· · · .·.·.·.·.· ·.·.·. ·..·.·.·. ·.·. . · · · ·.·.·.·.· ····
) me-se de forma dominante sob a forma de racionalidade técnico- Distinguindo .com . grande clareza a tradição africana e a
') -científica e mercantil. Por outras palavras, ;a racionalidade ins- rncionalidade modema, ~ga (47) desvela a sua característica
trumental e o pensamento abstractotomaram-se a única maneira essencial, a visão totalizà'iíte da vida .e . uma concepção mítica
(j de conceber as relações entre os seres. Desta maneira, a razão do mundo . Num tal universo, toolas as acções individuais ,e
/) : : : hnesFaforrnahreâuz1âa, tomou-se o mito âe no1e.- - co·lectivas ·e ncontram o seu sentido e os seus lim'.ites num tal
- Nenhuma' sociedade pode fazer ·absfracção sobr;e '<Y.Sent1do
1 _)
da existên_cia., ·quer individual quer coledivamente . .Toda a (
4
7) P. E. A Elung\I,, T~~ition africairaí! et rati_onal\té maj~me, RP- 11 e 1 J2.

j
l:U6 1-07
' _)
: ~, 'f,·

·~ . É verdade que Wiredu afirma com insistência que a


çontexto. Encontramos aqui a referência clássica da sociedade superstição não é uma prerrogativa exclusiva da cultura afri-
assim dita fechada. Pelo contrário, sempre segundo Elunga, a cana, como aliás a racionalidade não é um monopólio do
sociedade moderna é conquista do mundo, domínio da Ocidente. Mas como muitos racionalistas europeus e america-
totalidade, na qual se inscreve e se submete o homem nos, ele acredita na universalidade ,exclusiva da via racional e
tradicional. Contra o culto da vida deste último, o homem considera serenamente o atraso da Africa em relação à Europa,
moderno é :completamente fagocitado pelas exigências da vida o que lhe permite avançar algumas propostas óbvias sobre o
da razão. Em breve, ele constrói a sua sociedade. desenvolvimento. Assim este deveria ser avaliado fundamen-
Assim.radicalmente opostas, a bipolaridade concebida por talmente pelo grau de penetração dos métodos racionais nos
Elunga, aliás conforme as ideias ortodoxas vigentes, perynite- hábitos de pensamento.
-lhe indicar com certeza a única via para instaurar em Africa Assim, se o africano quiser entrar no desenvolvimento,
uma sociedade livre, democrá~ica e desenvolvida, fundada deve ultrapassar toda a gama de práticas_ culturais que o
sobre a racionalidade aberta cómo principio de vida, como lei caracterizam e o permitiram viver.
da sociedade, como r~gra de governo. . Para estes dois filósofos africanos, a base de toda a forma
Não bbstante as condições sociais que permitiram que a de desenvolvimento é condicionada por uma revolução nos
liberdade e a ciência se encontrem no Ocidente, a racionalidade modos.de pensar. AmbOs confirmam que o racionalismo não
• ~eria tipkamente uma prerrogativa de toda a humanidade. De estabelece nenhuma fronteira entre Norte e Sul. A ruptura
uma maneira rigorosa
. . , não se deveria falar de submissão a um entre os que se atiram cegamente ao racionalismo, e os que
.. mundo estrangeiro. Elunga quer exortar os africanos a liber- tentam compreender os seus limites; os ·seus ·eqUívocos e
tarem-se da ·nostalgia do passado. Toda a verdade estaria ';! mesmo as transmutações, não passam pela distinção entre a
portanto inserida no credo da modernidade. Toda outra '

~
pertença cultural ao ocidente ou não. .
:. \:
maneira de pensar que pretendesse mostrar o peso relativo da '.
... J·
~
Elunga e Wiredu dão-nos um exemplo quase perfeito de
.racionalidade no mundo humano seria alienante. que toda a verdade ..da conduta humana e do modo de ser e
· .Wiredu, (48) de uma maneira análoga;'· opOe '6 . pensa~· ·de agir das sociedades reside simplesment~ .nª rnçiqnªfü:i.ªq~, ..
inenfc:>frâdfcional ou pré-científico, isto é, um pensamento A solução dos prôblemas humanos e sociais estaria submetjda
que recorre a entidades sôbrenaturais para compreender o às condições da argumentação racional. Mas a partir do que
mundo, ao _pensamento moderno_ ou científico, em condições saoeinos sobre o ser humano e sobre as condições de existência
de provar as suas afi_rmações, graças à observação, à medida de toda a sociedade, não se trata de uma perspectiva redutora?
· e ao cálculo;- · ~ ·· ·· · ,,,. ' · ...,..,,. "·' '·
O que é propriamente humano é a resultante sempre
Assim o -contraste é total, entre por um lado, a superstição móvel e sempre frágil de duas componentes cognoscitivas
- crença que não ·.é racionalmente verificada _·. como por inerentes a todo o espírito humano, .a do mito e a do logos.
exemplo o cult0 dos antepassados e, por outro lado, o princípio E óbvio que se os homens da nossa época dessem prova de
da prova racional. · . ......... ====·.::::::.uma::taLs.ab.e.do.rJa:;::S.e__dey..e.ri.a_r:aconsider.aüudn,_que.Lnas_s.ocie=-- - - -
·---~------1!

1~ dades com forte ascendente tr~adicional, quer nas soeiedades


. f4:8) K Wit~~Ú, in ,.·Philosop'hle a~d Áfrlcan Ctiltu.r~» Carppridge •Unive;~ity ·t qui-.reivindicam uma racionalidade sem limites .
Press, ;pp. 37-50.

109
108
--?
')
) A filosofia africana deve ser inúito cauta,.quer em relação X
às miragens racionalistas e intelectualistas, quer em relação aos
'J elans nostálgicos de comunidade perdida.
! _) Diante dos problemas e da conjuntura sócio-histórica de A Longa Marcha Africana
lj hoje e tendo em conta os resultados de previsão social, como
' _)
o relatório do Club de Roma sobre o crescimento limitado, qual
das. duas culturas escolher?
' _)
Uma vez mais reafirmamos que esta questão não tem
pertinência histórica. Não se trata de escolher uma das duas
culturas, mas escolher uma terceira cultura que seja ao mesmo Quando no fim do século passado os negros-americanos
tempo logos. e mitos, mitos e logos, única cultura capaz de se viram confrontados como uma situação que os superava,
redar ao homem toda a sua dimensão. Eis-porque, ocorre um e diante da impossibilidade de se verem «assimilados» no ciame-
(j verdadeiro diálogo inter-:cultural. rican way of liven, para terem um ponto de referência como
') seres humanos, viram-se obrigados a voltarem-se para as suas
origens africanas. -
William E. B. Dubois no livro, Souls of Blacks Falks, (49)
teorizou a perspectiva de uma identidade negro-africana
estruturada sobre as surgentes históricas da África. A África
aqui não é uma África realmente existente, cujas cómporierifos ·
_)
podem ser objecto de uma análise; trata-se de uma realidade
fictícia, que serve para apaziguar a dor das dificuldades que as
f)
relações inter-raciais provocavam. A Áfricá serve de bálsamo
· para apaziguar uma dor;· ela é uma espécie de fuga para trás,
j de um povo cansado de tanto sofrer. Como disse Marcus
,.J Garvey num famoso discurso: -i:.u- sou de um povo que sofreu
muito, eu .sou um povo que não quer continuar a sofrer ...
'J t
"";,
Desta fonte negro-africana nasceu uma grande renovação
') .. cultural, da qual o movimento de Négro-Renaissance constituiu
durante muito. tempo a corrente mais representativa. Aqui a
África .não era vivida como um mito longínquo no tempo e
'j
.1., . no e~paço, mas como uma força ,de criatividade interior: que
(j 1 produz obras sólidas e onde o negro exalta o seu ser negro.
'. ) - - ----------· =---·-
···:··---·
···· e0mo"""escre\1e=€1aude=Me=K:.:ay~ttrrergulhar-até-âs-raízes-"da--------

y
( 4 9) Cf, W .E.'B. Dubois, Almas <riegras, Chicago, !I. 903, pp. 7, 77, '86 e 87.
( _)

. _)
110 111
1 _J_
'_)
(j
J
J
nossa raça e construir sobre os nossos próprios fundamentos; sociais, e_ao mesmo tempo uma exaltação desenfreada de uma
não é voltar ao estado selvagem, é a cultura ela mesma». {50) identidade çultural vivida como um feitiço ou um mito.
O objectivo de Countee Cullen, Richard Wright, Langston O que é mais difícil de aceitar no discurso monolítico da
Hugues, é levantar-se e construir o próprio destino, sobre bases negritude de Senghor, é que ele faz da cultura africana uma
do próprio fundamento cultural. pura passividade que espera, simplesmente, ser fecundado pelo .
É neste esforço da procura das próprias raizes cul~urais Ocidente.
· (fuga para trás) que se inserem os.esforços dos jovens da Africa A ideologia da identidade como o conjunto de valores
e das Antilhas em Paris nos anos trinta. Esforço de uma nova tradicionais são simplesmente uma fuga, de quem, incapaz de
identificação de si, através da negação da assimilação. Esforço pegar nas rédeas do próprio destino, se refugia num passado
para se separar da.Europa colonialista e doll)inadora a fim de mítico.
pensar o mundo sobre bases novas; donde o movimento da Contudo, o mito da identidade cultural não é uma prerro-
negritude de Césaire, Senghor e Damas. gativa exclusiva da negritude; Ele está também no centro das
Seguros do conhecimento do mundo das tradições afri- ideologias dos movim~nto_s políticos africanos, que com o pre-
canas que lhes provinha da leitura de·· antropólogos ·como texto de promover a personalidade africana e assumir a auten-
Frobénius e Delafosse, eles lançaram-se naquela extraodinária ticidade, reduziram a cultura a uma espécie de folclore. As
aventura, que constitui um dos momentos chaves da co!1s- . teorias africanas do recurso à tradição, pretendem que seja em
ciência do homem . negro· np século. XX. Eles entenderam. a · -direcção ·à vida do espírito que nos devemos 9rientar para
negritude como o : conjunto ·de valores.·culturais do .mundo · ~.
.. resolver a crise das condições de existência na Africa actual.
.;
···· negro; ·como··energiaporemergirummundtrnovo, um mundo .'

É isso que se deve concluir da teoria do «bosque iniciático»


alimentado de promessas poéticas, de uma renovação total. !-:;
,.
<
' de Óscar Bimwenyi-Kweshi, (51) sendo o bosque uma espécie
O objectivo da negritude não é separar-se, _mas afirmar-se; 1

de lugar onde o espírito ou os valores fundamentais do


melhor renovar este mundo e lançar as bases para uma nova ··imaginário cultural negro africano, permaneceram intactos e
humanidade. É neste sentido que se recusa a assimilação e se ·disponíveis; gloriosos · e··fecundadores ;···susteptlveis ··de·· serem·
prospecta uma era de cooperação entre as culturas e uma nova seriamente retomados numa espécie de meditação espiritual
forma de .convivência: a civilização do universal. _, soberana, iniciadora de uma nova forma de acção. Era desta
A cultura africana aparece como algo·de estagnado num mesma maneira que funcionavam os valores africanos na
conjunto. de valores constitutivos ·de uma identidade · eterna e ideologia senghoriana da negritude.
mono'\I'tica, ·.suscep
· · ti veis
· ·d·e ser ..mver1
· t él~l.<'1.
•· dos·....... x .def1·n·1dos
......... . .. . numa
., ". . . .... .. . . Em 'Senghor, ·estes valores parecem riquezas tranquilas .em
V1sa6 dé éssênda éforna do homém negro. Foi exactamente dir~cção às quais o espírito, na condição de que ele desça ao
este ponto que tornou .ambígua a negritude, e susdtou criticas fundo do seu. próprio ..ser africano, se pode reportar e que pode
ferozes da parte da inova geração de pensadores africanos. retomar nele, para transformá~las em for,ças de fecundidade na
a
Com efeito , negritude não podia ser a poética da. mudança relação com '°~ ?.~!~?.~. 1.?.?.~?_s . Da mesma rnane~~é:l Í.~1:~iona urna
--~r~ adicaLpela_acção-Sobr:e-a.s-estr..utur..as-:FJG-LítiGa.s1~GG1=1ÓmiGas-e- - -...,.-';-
- ~ 5i) Çf. Óscar BimweenyH<weshi. Li! Theo]ogie Nleg;o-afrkaine, Paris,
\ 5 0) K3laude "Me 'Ka~, O ntologia, Bosto n, 1989 , >p. HlO. 1987 , p . 1 1.

112 8
113
j
')
) certa ·evocação do retorno ao Egipto faraónico. ESte· parece construção teórica, de debate em debate e de esperanca desilu-
assumir uma função de plenitude mítica, pronta a dotar o dida em esperança desiludida, a profusão de discursos sobre
'j
imaginário negro africano de um novo sentido de ser. o desenvolvimento veio finalmente a confrontar-se com a dura
Todas as tentativas de salvar uma zona de contemplação, lei da realidade da África contemporânea.
'j donde a África pudesse repartir como de uma fonte segura e Através de grandes projectos. de modernização e de
J indiscutível, são puras ilusões. A crise toca também esta zona grandes planos de construção de uma África à imagem e seme-
da vida do espírito, na medida em que ela não depende da lhança da Europa, acreditava-se poder vencer a miséria através
')
capacidade do homem de permanecer encantado por seres de um fenómeno rápido e enaudito de industrialização.
( _)
invisíveis, mas da aptidão· do homem para exercer a sua razão Tratava-se de facto de uma visão idealizante da realidade,
no sentido de aferrar os significados e abrir os horizontes de que pretendia através do golpe de uma varinha mágica, atingir
J sentido. Hoje a razão africana não dispõe de nenhuma o nível de desenvolvimento ocidental, sem questionar sequer,
possibilidade . de se plasmar simplesmente a partir da sua · as suas condições. reais, nem os pressupostos para um tal
própria tradição; a necessidade constante de nos voltarmos em desenvolvimento, .ne~ as implicações reais que isso com-
) direcção ao passado, é manifestação· de uma crise ·profunda portava sob ponto de vista cultural, social e mesmo técnico-
que atravessamos. . . t;. -científico.
No momento das independências, toçlos se deram conta de ·~ Quanto mais a África se lançava no processo da imitação
que as perspectivas de fururo eram assaz sombrias. O contexto ········ ; ?'····· · · · ·cega da modernidade ocidental, mais as desigualdades sociais
) económico, políticO, social, cultural e mesmo moral no quar as :. ~ no seu seio aumentavam, e mais ela se asfixiava no processo
rJ .... Tndepéndêndasüverâmdesein.screver era.desesperado. Assim \ '.~ infernal e crónico da dívida e da dependência sem esperança
_) no momento mesmo em que cantávamO)i á glória da libertação, de libertação. A ilusão da modernização em extremo revelava
,) dávamo-nos conta de uma facto capital( a África tinha perdido a o pasadelo do subdesenvolvimento mortal. Então começou a
sua capacidade de dominar as condições próprias da existência · ., pôr-se em questão se . o próprio subdesenvolvimento não era
/_) ; humana e de funcionar como poder de criatividade espiritual e ···· uma consequêntia dodesenvóhiimenfo; .seós doiSfoiiómenós ·
j \cultur~i Trata-se . de uma crisê das condições mesmas de não eram concomitantes, numa ordem internacional dominada
'êxistê'ncia humana, da maneira própria de ser homem. pela competição e pela concorrência e que não deixa lugar a
J Diante desta aporia, diante da dificuldade de responder nenhuma outra realidade se não ao cinismo da razão.
ao sonho legítimo das populações ·africanas pela liberdade,
,~ ... ~~~:~~m;:pf~~:"~~i!~g~~'";;~~~;:;;~~d:m~t~~::~~~ .. , ,l Sob ponto de vista estritamente político, as independên-
. cias tornaram-se mais um sonho do que .algo de pensado, pois
mesmo tempo que adoptavam futuristicamente e mesmo . ~
não nos mostramos .à altu .· ra de assumir os ríscos reais .que
utopicamente as formas oc1dentais da organização do mundo. ~ comporta a liberdade ~ Ao Invés da liberdade, as independências
Filósofos, economistas, teólogos, ideô'logos, te:xfos numa r .acabaram por ser confiscadas pe:J as elites po1íticas e pelas
1

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--C1ck~-010- i:a:s···cre ' e::S:querda····e··· :ere··· · d1reíta .·······-,===-
-s6-V'oz~-ergtteram~se-a-cprod-amar--a--sa-l'1açãei-da--1Afr-iea;--qne­ 9
estava -à espreüa atravé.S 80 desenvolviménto .·Efa trar.ia consigo i As 'independênciàs · nãu engerrdrã!iam ~nenhnm ;Siste-ma
a paz inteiior,, .a harmonia social. De construção teóricã em · ,eq:móniko werente, nem sequer um ~istema ~político .à ,altura
\j
.j
114 115
•j
J
j
das questões do nosso tempo. Então reduzimos as indepen- plesmente da submissão política e da fraqueza científica,- mas
dências ao folclore das canções e das danças. Uma situação, do que Engelbert Mveng chamou a pauperização antropo-
que a -ideologia senghoriana da emoção é negra e razão lógica, estenuamento de todas as energias do homem e das
helénica , manifestou com todo o poder , da metáfora conjugal. suas esperanças mais fundamentais.
Mesmo se esta suscitou em toda a Africa muitas reacções de Quando o presente se desintegra, quando o passado
indignação, devemos interrogar-nos sobre se ela não corres- manifesta simplesmente a nossa crise, quando o futuro parece
ponde à nossa atitude infecunda e passiva na ordem actual do um miragem, onde se situa o lugar do recomeço, o verdadeiro
mundo. Esse sistema, no qual as grandes decisões sobre o lugar de renovação?
futuro estão suspensas por cima das nossas cabeças. Mesmo Pode parecer uma indulgência para com o historicismo pro-
se é filosoficamente contestável e até mesmo indefensável, a vcurar a especificidade da época actual, quase como se cada época
ideologia da «einoção,. como prerrogativa particular do negro constituísse c<uma definida unidade de sentido». Mas a espe-
parece, concretamente, o quadro real que ordena e~strutura cificidade da época pode ser também procurada para além e atê )
o sistema intemac!onal da divisão do tra~alho. Sis,r:ia no mesmo em polêmica com a filosofia da história, se·se partir dei
interior do qual a Africa não parece posswr n~nhum sistema . -- . J
·' ponto de ~sfa segundo o qual cada época pode ser caracterizada
de criatividade, nenhuma energia de iniciativa, nenhuma força como uma resposta específica a um desafio. Mas o desafio só
de acção profunda. Hoje tudo se passa como se a emoção fosse . pode sér desafio, se for recebido. e aceite como tal.
négra é a razão helênica! Diante .dos problemas do desemprego·crescente; dos pro-
Existe na África um conceito de liberdade pensado .blemas ecológiÇos sempre mais dramáticos e mais ameaça-
t inteiramente ·na linha · · de identidade dos · valores ··africanos:·· · ,. :.
dores, da n.iptura sistemática ·entre o Norte e o Sul; diante da
\ Libertar-se aqui significa destacar-se do Ocidente, para encon- . fome, da miséria, da má nutrição, da mortalidade infantil, do
1trar a África no seu ser, nas suas fontes espirituais e na sua <il'.,, . racismo crescente, diante da nossa marginalização no comércio
~rajectória histórica, a África com as suas próprias religiÇ>es, ~~
~; .
(GATI) e na política internacional (ONLJ), ~i~~t~. ~<:> .r.1?~<:>
. ':~ sua .própria visão da política, da economia, da vida social '~.
1_)
papel de importadores de morte (descargas nucleares) etc.' qual
e da cultura. .. . . . .
,.
·1:•t·
. ·~ )
1 .

é 6 apelo que nos vem da êp~a presente? A qµe desafio somos


)
\!.: Existe também um conceito de libertação que exige · nós chamados?
',\ romper com o mito de uma Áfr_ica ecl~lica. e virgen:1, pa:ra se ..~

~"
.í : rge que .nós retomemos o -sonho real e sempre actual
, 1i~tegr~r na - ~hic~ _lógica u?e~adôr~ ae hoj~: ~~1~.~J~ªgV · d.os nossos povos: um pr()jecto de existência, um novo hori-
\ ~~~~~~~;:~~?Á~~~ ::~~~:~: :~~~e.db~i~~;~;~~~~~
.( ..
········· ·zonte··de· ser; ·Isto quer :dizer que deVe'tiiõs repensar as nossas
-~
in ependências; devemos ,abandonar a esfera do sonho e de
u . u

~ armas da construção do mundo: a ciência, a técnica e uma 4;


fuga tanto para trás como para a frente, para mergulharmos
';!
\ prática racional da política e da vida social. . numa reflexão lúcida sobre o nosso projecto de estar no mundo
'' Existe também uma linha de 'libertaç'ã o que rompe com . hoje. Então a inde,pendência tornar-se-ia uma tarefa para Q .. ,. _ =..i _]
--~º~primado_da_política_e-dasJdeologias-materialistas.,--ou-mesmo-:... - -
pensamento e uma pro51emfilíca parà~acção ..
o primaJ:lo da :Ciênda e da técnka. Este conceito põe em
'QOµ:i
ü encontro ou melhor o encontrão da Arrícá :com o
causa uma dinâmica antropológica '.global. Não se trata :sim- Oddente 400 a~os .atrás, deu lugar a üma histôi'ia :ambígua

ll6 117
,.
)

) acerca da qual ninguém sabe hoje qual será o desfecho da i i· As nossas independências sofreram do facto de terem sido
j intriga. Contudo, não chega gritar a libertação e a ,~ pensadas apenas no âmbito da lógica dos Estados-Nações.
t ~·
J transformação de estruturas objectivas. Deve também e Assim estes constituíram o substracto político--cultural das
sobretudo escorvar-se um processo de descondicionamento da :~ relações internacionais, esquecendo que antes de ser um pro-
· ~\
._)) nossa vida interior, .e tal processo não pode arrancar apenas
a partir dat denúncia e da revolta. ·· 1 ble?1adde na.dções,dadindependência se releva de uma antropo-
1og1a e so11 arie a e entre os homens.
rJ <<O tempo dos destinos isolados» faz parte do passado. Nós (~ · A partir de que forças pcxiemos garantir, hoje, a cada
1 _j temos que participar no novo mundo como construtores, e o '~ homem o seu direito de iniciativa? Sob ponto de vista ético,
,J nosso lugar ne~ mundo, depende . essencialmente da nossa · g. esta é a verdadeira questão da independência. A nossa função
maior ou menor capacidade de ser co-artesãqs_ na sua "' hoje, é quebrar os determiniSf!10S da lógica do Estado-Nação
,_) construção. Isto implica, por um lado, que Õào podemos.pensar : '<· e promover no interior da Africa uma nova solidariedade
) pcxier viver afastados, isolados, mas por outro, ºse queremos- í criadora e de enovação. Uma solidariedade construída a partir ·
particÍpar e ser reconhecidos como tais, se queremos ser ·" de· n9m~s concretos, organizações concretas e de grupos de
)
«partneres» na construção desse novo mundo, temos que nos , acção concretos.
j impor económi~, social, técnica e mesmo culturalmente. ;[ Mas a independência·não é unicamente uma questão ética,
;_J · A nova forma .de guerra que se nos faz-, já não é a nova ·1 é também uma noção política. Isto quer dizer que é necessário
estola,' corno tinha · visto C; A. Kane, mas · são as leis · ,qr -
cnar um espaço público de libertação da palavra e do exercício
.) . internacionais patrocinadas pela ONU, são a dependência 'l da liberdade. A independência não se define primordialmente .................. ..
(J económica e os vários processos de estruturaçao económica, são em 'relação à dependência (como aconteceu durante a resis-
J os acordos do GATI, são os acordos dos vários Lomés, é a 'i tência anticolonial e agora no sistema neo-colonial), mas em
'J pre~ença de militares no solo africano, quer seja através de '! relação à capacidade de estruturação interior da vida política
acordos neo-colciniais ou de intervenção dita humanitária, é a sobre a liberdade e a capacidade ética do diálogo. A inde-
'j
vaga de' notícias que nos provém dos centros de diftisãó 'de ·: ; ' ' pendênda sighifita em siima iriterdéperidêiida nó exercício da
j informações Ocidentais, são as televisões que vendem noticias:·· liberdade.
_) A liberdade e a independência não são qualquer coisa de . A nossa independência ate mesmo a nossa sobrevivência
r) dado, mas algo que se conquista..na exigência paciente de se 1
·~\ futura dependerá, por um lado, da nossa capacidade de redar . j

· · descondicionar de um mundo que se estrutura sobre a aos grupos e às comunidades concretas - durante mliito
' J ·· · ·dominação em · vez de · se ·estruturar ·sobre 'aS "dependências .1 tempo privadas da sua Jiberdaae --- , a possibilidade de decidir
,) da solidariedade e da criatividade. A independência ,e a liber- ·· sobre a própria vida · e sobre o próprio futuro, e por outro,
rJ dade, são a luta por uma interdependência criadora; e conquis- da capacidade dessas mesmas comunidades, de renunciar a
(_) tam-s~, legitimam-se, afirmam-se da estratégia da solidarie- 1
certas prfirrogativas que lhes são próprias, em favor de outras
' ) ___dade. ~ li~erdade está também ligada à f~rç~-~~- acção dos ____ __j _____~n?~~~i~s políti.cas, __desd:_o~ Es~ados ~fricanos, passando por
liomens, Ç!as orgamzaçoes ,e .â e grupos ãec1â1âos, · ,a iazer · mstltttiçoes-regromns, até à m:rn:lacleã'.fncana.
funcionar a -interdependênc.:ia ·como· força criadora e ·rl:e reno-
vaQ.ão das rela_ções sociais.
1
l
:. .
,g prétextG avançêiclo conh:a à-Un'itl~de-afrtcana, tepoUSêCVã
sobre a dimensão ideológica-política e so't;J a '.guerr~ fria. Ess~s
''

118 f ,. i 119 , ;
./ .'.';'
'; ·.\

dimensões. enquanto produtos de exportação europeia já não importantes, mas que a inovação da tecnologia e da· qrga-
existem. Em princípio o caminho está aberto para repensar nização do trabalho podia superar os seus limites. ·
as modalidades democráticas e participativas a atribuir a uma Se olharmos para o desenvolvimento económico nesta
eventual unidade africana. Nós. sabemos que a divisão africana } segunda metade do século vinte, constatamos que os «vence-
interessa só aos que querem continuar a dominar-nos e a i dores» -Alemanha e Japão- não dispõem de recursos natu-
~
impor-nos as suas leis .. ·~ rais, e portanto-, basearam os seus desenvolvimentos sobre a
t tecnologia e a inteligência. A França não tem gás metano, nem
Sob ponto de vista económico podemos. perguntar-nos 1
~ petrólio, mas é um dos maiores exportadores mundiais de
por que razão alguns países se tornam ricos .e outros se :1~· energia eléctrica. (52)
afundam na pobreza crónica, como acontece com todos os i O desenvolvimento depende não dos recursos naturais,
nossos países. Por um lado estes. problemas são complexos, mas dos recursos ·humanos, e do facto que estes trabalhem
uma vez que o desenvolvimento económico liga entre elas as entre eles de maneira harmoniosa. São a inteligência (a escola ·
estruturas económicas, tecnológicas, políticas e toda a orga- tem grande responsabilidade na forrriaç~o dos recursos huma-
nização da sociedade. Porém, por outro lado estes problemas f ·;.
nos} e a solidariedade - portanto um.·sistema social que faz
são extremamente simples, porque as receitas do desenvol- ;; protagonistas todos os membros de uma.sociedade e não ape-
vimento são compostas por · dois 'ingredientes essenciais: o :l nas uma pequena parte dela - os ingredientes mais importan~

:::~:~~:b~:~;~f:;· ;1":ãi i~~~~;~;n,i~J,°rJi~~li;~~ ····


o carvão, ou a terra - é responsável pelo desenvolvimento
'i · ··· · ·\.::J~:~:rki~;~Üt~?ià~m6~~Ci~i:i~e;ig~~e>ª~
;l \\ votar todos os quatro ou cinco anos, mas ter um sistema que
de um país. O segundo ingrediente é a solidariedade; isto é, .; . permita a todas as pessoas dar uma contribuição ao próprio
só avançam os países que sabem caritar em coro, isto é, os " \país. Este é o novo tipo .de
sociedade que devemos criar na
. ..,J
que sabem conjugar os esforços para um objectivo comum. /África de hoje. · .
Durante muito tempo estivémos convencidos de que o :i · A lrnplementação da uma· democracia participativa na
desenvolvimento estava ligado aos campos de trigo dos EUA, .. África de hoje, exige uma inversão do triângulo político. Desde
às minas de carvão da Grã-Bretanha; ou ao petróleo do Médio ,' as independências até hoje, em todos os países africanos a ideia
Oriente. -Tudo isto é. ;errado . .Estas ·ideias nem sequer eram < i; de Estado residia na capital e era incarnada pelos presidentes
.ç'larashá dois séculos atrás., par.a .os pais da ciência ·económica, .... das ~repúblicas e.pelos ministros~ . Eram. estessenhores ·que.dele"··· · .... ....... . ....... .... ...,!.
.e já nessa altura os economistas não :estavam de acordo uns ·1: gavam alguns poderes nos governos provinciais, que por ·sua
.. G.om os outros. Thomas R. Malthus (1766-1834} pensava que vez delegavam algumas funções estatais .às instâncias inferiores,
. / · .Os mcursos naturais ·eram por definição limitados e que o ·oomo os distritos. Nestes sístemas, o poder era exercido por
progresso técnico não podia fazer nada para superar reste ~ um pequeno número de homens, cujas ideias de governo
cc:___+:.:··········limne ;···::Qavià=Riear=Ele:.::{4q-Q-3-i-.'.f90)-eh~g-ava~quase-à:s-mesmas---i!--- - dep·e ndtam'-d-o-s--acordos- ou--das -influêncras--d-us- ex=patses
· ppndusões,_:se "'b em ~que de A~ma mqneka t urbulenta. Aclélm · 1 · .. . · ~ ·
~ gmith, ao ·h1Ves, ·p ensava :q\:le o$ re:cursos naturais eram . ,._ 5
{ 2) Cf. •C.C LeWjs , '.Ror um :desef.iv.plVimeritõ h umano, s. Eaulo, 1'982 , p . 77.
' ,;

·1 20 . 121
i ......
l )
t) i: ..;.·

,j colonizadores, neo-colonizadores ou organizações intema- .f O destino da África .joga-se nas pequenas comunidades,
J cionais. ·•J não superiores aos distritos. A verdadeira política não se faz
Para devolver aos homens o direito à iniciativa, deve come- r nos palácios dos governos nacionais, mas nas pequenas comu-'-
çar-se por baixo. Devem ser os distritos a exercerem as funções .1 nidades como os distritos. As palavras democracia, liberdade,
estatais primordiais e as competências a seu próprio nível, e por · ! dignidade humana, nível de vida, realização de si, são inerentes
) sua vez a delegarem poderes nas autoridades provinciais e desta •. 1, à pessoa humana. Mas os homens só podem ser eles. mesmos,
,) à autoridade nadonal. Este sistema permitiria aos estados f em pequenos grupos compreensíveis. Eis porque devemos
africanos cederem algumas prerrogativas a uma instância supra- .\ começar a pensar em termos articulados, capazes de operar
~
1
.J nacional, primeiro regional e depois continental. (53) · com uma multiplicidade de unidades à escala reduzida.
') Por conseguinte, os distritos devem ser, para usar a ·. i Isto permitiria aos grupos culturais uma auto-gestão das
linguagem de TocquiviHe, escolas de autonomia. Mas. para tal, ·1 próprias estruturas produtivas e de escapar às imposições de
_)
devem começar por ser autônomos. Devem poder escolher a ,\ regiões economicamente privilegiadas-capitais, terras dos che-
assembleia da própria comunidade distrital, poder escolher. o fes dos governos, etc. - ; assim comq P€'.rmitiria uma partici-
' _)
prôprio administrador, não a partir da ideologia de um partido, · t pação mais real e fecunda na vida pública. Mas, sobretudo,
•j mas a partir de objectivos polítkos, dos projectos sócio- ~.. evitaria a criação de uma democracia dominada por partiElos
-econômicos concretos. Por outro lado,: as exigências jurídicas ~ anónimos e demagogos, longe das populações e das suas
li
i _)

da vida democrática deveriam coffieçar a ser praticadas a.este necessidades ·reais ·e prementes.
) f1íy~l: fi:ssirri ?? p~er.~s ~?~~téli?_ C()rr!Pr.~~~ci~ric:tri-l t1!1:1él C::i:lr.!lªciél !i Isto faria com que os candidatos saíssem dos distritos, que
(j juvenil, representante de um certo saber experimental neces~. ·S os planos e os projectos das suas políticas fossem à escala
_) sário às estruturas da vida moderna; .ªº.mesmo tempo que . mi comunitária, distrital, e portanto susceptí~eis de ser com-
i j compreenderiam o saber dos nossos velhos, .autênticos depo- ~- preendidos e avaliados pelas populações, e sobretudo que as
sitários da cultura tradicional, saber equilibrador na marcha em ~ populações fossem de facto soberanas, isto é, que pudessem
,. _)
J direcção ao futuro.
As comunidades distritais não seriam só o lugar de uma
.-1;._. ccºranct1:aolnara_oáfpoo ·opodlíeticmós1··n:o1sn··~aºs
.. ·s1síeticuàme3?osg·.. cª1·tda·de~aºs.:.
pperr1.rnvi.1l·etigri1·ªa. ·dqause,.... .. .
.J uniformização importada do exterior, ou procurada a partir do · e escolarizadas.
interior, nem de um es.pír'ito de reiVlndicação igualitária, mas . ~.· · · o obiectivo deve ser a construção de uma sociedade que
'J espaço de fecundidade de dons, éle capacidades, de ritmos e ~ não tenh~ os seus princípios num «f.iaJ)) doutrinal,, nos decretos
exigências ...singulares . .A . . .comunidade ...não . ..seria . necessaria,,. .. ..... . ..·..·. . ·. ·... \: ···· deumaciênda; nem nos programas de uma partido. O objec-
.J mente comunista, capitalista ou anárquica, .mas espaço onde tivo é a construção de uma sociedade onde as fórmulas não
cada um encontraria o seu próprio lugar, a sua função, que Í; serão ditadas do alto, nem descerão das capitais, mas pelo
rJ ele mesmo teria de ·c ompor, descobrir, inventar na procura da contrário inventar-se-ão, improVisa:r-se-ão ci.ci n'ivel das esco.Jhas
r_) própria vocação. A comunidade será em suma, o espaço de .f quotidianas, ·e ordenar-:se-ão segúndo as .leis da 'liberdade.
1
J - - partidpação-,--de- solidariedade- e- de--a mor.. f--- - -----i:errmst le partír ôas ·1 ra1zés'; ;êl~s lànrtff~s~~clã's:::.:alêfeta"S~ffa's"'''-''"":: = '.:'-'- - -
y -- -- -·- ·-· ~ povoaÇõ-es~ ::d0s- -âistr~to§: ·Ferácis -que- - í6iiã~ - :;li-rifes .fie ,mais
53
Fil95ofia af.iicana, M aputo, l992.
'.( ) Cf. :S eve.r:ino El.ias 1'f9benha, 1 1 peq1,mnas uo1d.ad~s. m_ulUpJi~Óas . .Só iiql..ii é .que ..a democracia 1

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123
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e:; o sufrágio universal -podem ser verdadeiramente eficazes. criminada dos seus recur~os naturais; nenhum distrito aceitará
E aqui que os cidadãos podem encontrar-se e discutir, coope- ser um centro de produção dirigido e orientado do estrangeiro.
rar, solidarizar-se. Este é o lugar de participação por excelência, Antes pelo contrário, todos os distritos criarão meios para
e onde a palavra adquire o seu sentido. ter um bom hospital, escolas para a educação dos próprios
Os meios da autonomia, saber, técnica, poder financeiro, filhos, ruas, meios de transporte; cada distrito lutará pela defesa
excedem os recursos locais. Assim, é necessário apelar à dos próprios interesses. Só os distritos podem permitir a
comunidade provincial e depois à comunidade nacional. Nin- construção de uma democracia verdadeira, só eles podem
guém deveria apresentar-se à província como candidato>a uma permitir um certo nível de protecção, num mundo sempre mais
função pública, sem ter dado provas, no distrito, da sua invasor, só eles. podem trazer um elemento de humanidade no
dedicação ao serviço público, ao bem comum, à moralidade liberalismo económico, no qual avançamos de uma maneira
e aos valores. do próprio grupo; como ninguém deveria apre- brusca e incontrolada.
sentar-se às eleições nacionais sem ter passado antes pela Em última análise, os distritos associados em províncias
província. seriam a expressão da vontade de uma auto-gestão do homem
. O espaço normal da acção cívica e democrática, não pode afrjcan:o, ·na sua Juta contra a alienação pelo estado civil
. ser a tribo, nem sequer o Estado nacional, mas a comunidade ou militar, fascista ou comunista, difadorial ou democrático .
distrital. Serão as necessidades dos distritos que nos levarão . A autogestão não pode depender da alienação dos parti-
a ver na província uma espécie de distritos federalizados com dos polítiços, uma vez que eia traduz uma opção.fundamental
em favor da liberdade. .
vista a um~ .. fu~窺 qµ~·~·· yité:IJ . Pªrª ...c9d<:l . distrito, ... ma,s que .......... _)
excede as forças ·de cada um. · A áijf6gestão será a arte de .incitar as pessoas a auto-
A província toma-se assim a palavra chave do nosso -responsabilizarem-se, a serem activas na vida pública e polí-
futuro., se o queremos democrático, enquanto lugar de tica. A autogestão é antes de mais a gestão pelos distritos das
cooperação, graças ao qual os distritos vão encontrar os meios .tarefas estatais que lhes são próprios. Mas é também o exer-
· que lhes faltam para se ocuparem das necessidades públicas. cício permanente do poder de decisão política e do controlo
Por outras palavras; se os distritos nos garantirem a dos· que a executam.
possibilidade de uma comunidade geral, é a província que Insisto, não às comunidades provinciais, sem as comuni-
dades distri~ais. Mas se as províncias são federações de distritos,
o
;garante a sua eficácia. · · )
Se a Iiesponsabilidade de '.gertr as regiões estiver nas mãcis . os estados seriam federações de províncias. Tudo o 1que
dos distritos, ,é 'Certo que a África não poderá de modo nenhum ....... proponho.é..a :assunÇão de estruturas.políticas.. e.administrativas
e por nenhum preço do mundo .aceitar descargas nucleares de já consolidadas, e transformá-las em bases jurídicas que garan-
alto risco para a vida dos nossos 'filhos. Nenhum distrito tam ao mesmo tempo liberdade, democracia .e paz; condições
aceitará minar o prôprlo território com descargas nucleares, . para dar ao povo Um papel dinâmico na história que :thes é
que csão, afinal de contas, :wna espécie de bomba nuclear ao negado desde há muitos séculos.
___ _ j _ - - --- -Ass-im,-seria- f-)essível-'ttflir- os- cli{erefltes-membr0s-fiama"= "c:: .: :·=·
-- ------reta~ôaâor; nennum :aisffito aceítaráa -1mpJantação de uma
- · "fâbrita no seuterr'itórlo, -se~m-ter mro1do as consequêndas para · 'inGess~rtite partid:T::>ação da ,o bra ,ç-0mum, institliinfio ~uma
a 5.oaúde .:Jõlflblica; n ephum distrito ·,aceitará .a pilhagem indis- corrente ,(lupla que ligasse as partes ao todo, 'ªº mesmo _tempo

1.2:4 125
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. . . --
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. ) que as afirma como pa-rtes.- À participação acrescenta-se a o momento, dar origem a conflitos--imer=africanos que serão
, ,) autonomia, sob forma de descentralização de ordens jurídicas. utilizados, ou mesmo, segundo a expressão de Nkrumah,
Assim, as unidades podiam conservar, em certas matérias, o «teleguiados» por essas mesmas forças imperialistas. A resposta
-? poder de se regulamentar a elas mesmas conforme a fisionomia é que é evidente: a unificação da África faria desaparecer toda
) de cada uma. e qualquer possibilidade de divisões deste tipo (... ).
Isto fàvoreceria as diferenças, e permitiria tirar melhor ... Além disso, este representa, segundo Nkrumah, o único
. _) pr:oveito das diferentes características das suas componentes . meio de a África ter a sua política internacional própria, de
1
O objectivo não é· uniformizar as nossas diferenças, mas valo- se afirmar enquanto tal (... ). Sair do subdesenvolvimento, no
1 _j
rizá-las; o objectivo não é absorver as nossas diferenças, mas
) quadro de estados, a maior parte dos quais não dispõe de uma
) dirigi-las para um objectivo comum. Assim garantiríamos o população suficiente - tanto do ponto de vista do mercado
-1. desenvolvimento autónomo dos. membros - no quadro de uma que constitw, como do dos recursos em mão-de-obra - , nem
associação - , ao mesmo tempo que obteríamos. o maior dos capitais necessários, nem mesmo de possibilidades de os
-1 proveito da gestão comum. Sob o ponto de vista jurídico, este acumular, num prazo relativamente curto, eis o que p9rece ao
J sistema permitir-nos-ia construir uma organizaçao jurídica autor um empreendimento extremamente difícil ou mesmo
. J unida e diversificada ao mesmo tempo. O processo de decisão impossível. A solução, vê-a ele, numa planificação à escala de
·J seria dialéctico, pois resultaria de um diálogo entre a$ pro- ,. \ · toda a África; e. esta direcção única da reconstrução económica
)
víncias que seriam a união dos distritos - e a.
autoridade - do ~ontinente implica a unidade política e, portanto, o governo '
nacional - que seria de facto supra-nacional. (54) · continental. Nkruniah ..sublinha a acumulação de dificuldades
1
J · ···· ··· ·sob iJOntüde Vista ee:0ri6mic0; permitiria aC:riaÇãü deúma .. .......!·.;::
· resultantes da: existência de moedas diferentes em estados
_J economia autocentrada. vizinhOs, o perigo constante da realização que correm o risco
,) Nos inícios da década de sessenta - mais preci$amente . .
.,

•'
de se repetirem escusadamente e de originarem uma concor-
em Novembro de 1963 - , na África Must Unite, Nkrumah . !'. rência inútil entre dois países, enquanto, pelo contrário, projec-
nwna perspectiva hoje quase profética advertia: tos industriais de maior envergadura, que seriam Viáveis à ·· ·· ·· ···· · · ·
J, .... Os Estados africanos, indiVidualmente ·considerados, são · escala do continente, não podem ser realizados por nenhum
demasiado fracos perante as grandes potências da Europa · e dos Estados ísoladamente.
da América. Esta fraqueza leva-:-qs a procurar a sua segurança Com escreve Dubois, «se a África se unir, isso será porque
em acordos com as ex-potências coloniais ou .com as potências cada ·parte, cada nação, cada tribo renunciará a uma parte da
neocoloniais; permitindo, eventualmente, .que ..sejam . utilizados ...
· · 1'. · · ··· ······· · · ~u~s~;r~::ª~i;~~~~~~~:~::t~:!~:~»~~!tgnifica ,a unidade.;
')
uns contra os outros, a favor de alianças ou de .rivalidades
dessas mesmas potências 'imperialistas. Seja como for, o Hoje estamos diante de uma escolha fundamental, ·que ·
·J .
carácter arbitrário das fronteiras herdadas da partilha cdlonial revela mais da metafísica do que da po'lítica: unir..cse ou morrer! .
'J da África repartiu populações :etnicamente :idênticas por diver- O futuro de África depende rlo nosso níve'l de coesão,, do
J - ·sus- Estados ~-:t:rata=se-de urn- estado--de-oo1sas-qtfe-pcxle-;-â-1:odo- - ...,....__ _ _n , e>sso-.:n1\;;'el-·<le-solidariedad:e ~e-iurum-da...:A:fri6â=dépéfieh~~a-
·' . ._
.. - - - -
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(·54) CL Severino Eli~s Ngeen'ha, Pil~pfia africana, Maputo, 199.2. ~ ( 55) Ü\lbois, 9 p. d . .p. 78.

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127

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nossa confiança recíproca, primeiro entre as etnias e as culturas
que compõem o que hoje são os estados, e depois da solida-
riedade entre os estados de uma mesma região, enfim ao
continente no seu conjunto.
Essencial não é traçar formas de vida regulamentadas e
integradas num sistema fechado, mas descobrir possibilidades
BIBLIOGRAFIA
comunitárias e integrá-las numa sociedade mais ampla, e pon-
tencialmente mais aberta; primeiro no interior de cada país,
e depois entre os países vizinhos e por último no continente
inteiro. Isto não se fará com proibições jurídicas ou consti-
tuicionais mas com a edificação de uma vontade de construir
um futuro comum. Abrah.ciin, Peter
Não se trata de se desligar (desconexão) da chamada Uma coroa para Udomo, Ed. Stock, Londres, 1953.
comunidade intérnàcional, mas de sair, do tipo de comple- I_·_ Agenda 21. Conf. cies Natlons Unies sur l'.environnement et fo .
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_ ç~rtQ..número .de práticas, como a transferência de tecnologias,

BOO<~~~::~:=.··~~·=~~~::::~e19:: ~~~oru'. . . .·... ..


ou às ajudas financeiras que provocam grandes dívidas e uma
situação de dependência e de desequilíbrio. Trata-se de ultra-
passar o estado de confrontação e de relações de forças mais
······t······.
ou menos admitidas ou dissimuladas, e definir juntos uma.
comunidade de projecto. · l
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mundial, é melhor que nos preparemos para voltar a ser «bons
selvagens»., a ser os novos «tarzans». A escolha ql.!e temos
diarite dos olhos é simples na·. sua dramaticidade e na sua
· ' ... ... j ncondicionalidade: UNIÃO OU MORTE!
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() ÍNDICE
(_)
( _)

,() Dedicatóna . . .. .. ... ... .. ..... .. . . . . .. .. ... ..•. .. ... . ..... .. .. .. .. .. .. ... .... .. . 6
(j Apresentação .. .. .. . . .. . . .. ... . . . . . . .. .. ..... .. . . .. .. .. ..... ........ .. .. ... .. . . 7
( _)
-1 - A Segunda Natureza ...... ............... ............. ........ ....... ..... 9
( _)

/ _) II - Primeira Natureza e Segunda Natureza (Cultura)......... 15

(_) III - Visão Africana da Relação Natureza-Cultura .~.... . ......... 19

(_) IV - O Ocidente e a Técnica ................. ............................ :... 31


ij V- A África face aos impasses da Modernidade Ocidental. 39
Ç_) VI - África e a Modernidade . . .. .. .. .. .. .. .. . . ... .. .. .. .. . .. . . .. . . .. .. .. . .. .. 57 ·
Ç_)
VII - O Preço da Modernização .... ......................................... ; 63
(J
(_) VIII - Filosofia Africana e a Modernidade ............... :............... · 77

(_) IX - África e a Ecologia . . .. .. .. .. . . . . . .. ... . .. .. .. .. . .. .. .. . . .. . . . . ... .. . . . . .. . 87


() X- A Longa Marcha Africana .. . . .. . . .. . . .. ... .. . . . . .. .. . .. .. . . .. .. . . .. .. .. 111
(_) .. . ·······-····
(_)
1

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(_) - - - ---- -------- - - .- - -. _)________ ......·.... ... ·" ·························.::..:..:..::.:..::::·..:.:..:::.:::..::.::.: ----- -----
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