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PUC-SP
Edevaldo Rocha
Mestrado em Teologia
São Paulo
2019
0
Pontifícia Universidade Católica De São Paulo
PUC-SP
Edevaldo Rocha
Mestrado em Teologia
São Paulo
2019
0
Edevaldo Rocha
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
_____________________________________________
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS ................................................. 16
1.1. Introdução ................................................................................................. 16
1.2. Fenômeno intercultural e a inculturação da fé nos primórdios do
cristianismo .............................................................................................. 17
1.2.1. A linguagem no processo de inculturação da fé cristã no mundo
helênico ...................................................................................................... 20
1.2.1.1. A hermenêutica do termo apokatástasis no ambiente profano ..............22
1.2.1.2. Apokatástasis no estoicismo ................................................................ 24
1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico ................ 27
1.2.2. A apokatástasis no versículo bíblico At 3,21 ............................................... 29
1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento ..................................... 32
1.3. A compreensão da apokatástasis em alguns Padres da
Igreja .......................................................................................................... 33
1.3.1. Inácio de Antioquia e a apokatástasis ......................................................... 34
1.3.2. Justino e a aposkatástasis .......................................................................... 36
1.3.3. A apokatástasis em Teófilo de Antioquia .................................................... 38
1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião .............................................................. 39
1.3.5. Apokatástasis em Clemente de Alexandria ................................................ 41
1.3.5.1. A gnose clementina ............................................................................. 43
1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis ......................................................... 48
1.3.5.3. Etapa escatológica da apokatástasis ................................................... 50
1.4. Conclusão ................................................................................................ 52
2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE
ORÍGENES .................................................................................................. 54
2.1. Introdução ................................................................................................. 54
2.2. O perfil teológico de Orígens ................................................................... 55
2.3. As correntes gnósticas mais influentes no período histórico de
Orígenes .................................................................................................... 58
2.3.1. O Marcionismo e o anti-judaísmo ............................................................... 59
2.3.2. A escola Valentiniana ................................................................................. 60
2.3.3. Basíledes ................................................................................................... 61
2.4. Orígenes, soluções viáveis na obra Tratado sobre os príncípos para as
questões gnósticas .................................................................................. 62
2.4.1. Refutação ao Marcionismo ......................................................................... 63
2.4.2. O método alegórido como método de refutação contra Valentim e
Basílides ..................................................................................................... 64
2.5. O vocábulo apokatástasis como expressão de linguagem na reflexão
teólogica de Orígenes .............................................................................. 66
2.6. Orígenes e a perspectiva Cristológica da apokatástasis ...................... 69
2.6.1. A teologia origeniana da encarnação como processo apokatástico .......... 72
2.7. A perspectiva antropológica da apokatástasis em Orígenes
fundamentado em sua noção de preexistência ..................................... 74
2.8. O conceito tricotômico antropológico de Orígenes no processo
apokatástico ............................................................................................. 76
2.8.1. O Espírito ................................................................................................... 78
2.8.2. A Alma ........................................................................................................ 78
2.8.3. A Corporalidade ......................................................................................... 80
2.9. A perspectiva soteriologica na apokatástasis em Orígenes ................. 82
2.9.1. A purificação humana pelo fogo divino como processo apokatástico ......... 85
2.9.2. Apokatástasis como conceito de salvação universal: uma proposta de
esperança em Orígenes ............................................................................. 88
2.10. Conclusão ................................................................................................. 91
3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE
QUEIRUGA .................................................................................................. 94
3.1. Introdução ................................................................................................. 94
3.2. O perfil teológico de Andrés Torres de Queiruga .................................. 95
3.3. Apokatástasis em Queiruga .................................................................... 99
3.3.1. A releitura da apokatástasis em Queiruga ................................................ 102
3.4. Atributos contemporâneos da apokatástasis na teologia de Queiruga
.................................................................................................................. 104
3.4.1. Deus cria por amor .................................................................................. 106
3.4.2. A Revelação divina queiruguiana ............................................................ 111
3.4.2.1. A Revelação a partir da maiêutica histórica ........................................ 113
3.4.2.2. A ultimidade da Revelação ............................................................... 115
3.4.3. A soteriologia queiruguiana ..................................................................... 117
3.5. Conclusão ............................................................................................... 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 134
INTRODUÇÃO
1 ORÍGENES. O tratado sobre os princípios. Trad. João Eduardo Basto Lupi. São Paulo: Paulus, 2012,
Pref. 2.
2 PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 38-39.
3 BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 610.
9
A reflexão sobre a fé é dinâmica por estar inserida na história humana e dentro
desta perspectiva o Concílio Vaticano II é fundamental. Andrés Torres de Queiruga
afirma na sua análise sobre Concílio após 50 anos que o vê como o mais universal
devido sua consciência da historicidade da revelação e de suas interpretações, por
isso ressalta dois aspectos fundamentais que estão implicados um ao outro, sendo o
primeiro a valorização que o Concílio deu sobre o sentido histórico, que ao seguir as
pegadas do Papa João XXIII no desejo de um aggiornamento, avistou a possibilidade
desta realização devido a própria necessidade que a história exigia. O outro aspecto
é universalização que esta ligado a cultura, a convivência humana e inclusive a
aproximação com as demais religiões.4
4 QUEIRUGA, Andrés Torres de. A teologia e a Igreja depois do Vaticano II. In: BRIGHENTI, Agenor;
HERMANO, Rosario (orgs.). A Teologia da Libertação em prospectiva: Congresso Continental de
Teologia, Conferências e Painéis. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013.
5 BOFF, 2015, p. 614.
6 O Capítulo II da Evangelli Gaudium com cinquenta e nove parágrafos é dedicado aos desafios da
10
discernimento e, também, a opção por aquilo que é bom, para capacitar os fiéis a
fazerem as escolhas que condizem com o projeto do Reino de Deus.7
Esse desafio frente ao que é novo com certeza é pertubador e gera medo,
mas isso é inerente a toda novidade. Essa tarefa desafiadora ele nomeia de “tarefa
supersaturada”, que cabe agora a partir da fé e com o respeito as autonomias da
criação se apresentar diante do mundo unido no diálogo, no amor e na esperança.
7 EG, 51.
11
Todo esse aparato proposto por Andrés Torres de Queiruga é abundante na sua
linguagem teologica.8
12
Ao constatar-se a incompreensão posterior sobre a reflexão teológica de
Orígenes no que se refere a apokatástasis gerou-se-lhe uma futura condenação e, de
certa maneira, possibilitou-se uma polaridade entre os Padres sobre sua teologia.
Aqueles que simpatizaram com a ideia não deixaram-na cair no ostracismo e, como
foi dito, ao Concílio Vaticano II ao ativar o interesse sobre a teologia dos padres da
Igreja, Orígenes foi um dos escritores cristãos da patrística cuja teologia voltou a ser
analisada, inclusive a apokatástasis.
13
vocábulo também será averiguado no novo testamento, que já nasce com a escrita
grega, onde o termo aparece explicitamente num contexto único, ligado à perspectiva
profético-escatológico em Atos 3,21.
O segundo capítulo será dedicato todo à teologia de Orígenes, devido ser ele
o ponto emblemático para o debate sobre a apokatástasis. Será preciso entender a
sua historicidade individual e o momento adverso que vive a comunidade cristã,
sobretudo com o avanço das heresias provindas da própria eclesialidade de seu
tempo absorvida pelo gnosticismo. Dentro desta perspectiva certamente será
compreendido com mais clareza o seu discurso teológico. A obra “O tratado sobre os
principios” será o alicerce para analisar os procedimentos próprios e a linguagem na
compreensão origeniana sobre a apokatástasis, no qual permitirá visualizar as
diferentes perspectivas teológicas sobre o tema, sendo elas: cristológica,
antropológica e soteriológica.
14
sua preocupação com uma linguagem teológica mais universal com intuido de
aproximar-se de crentes e não crentes. Neste contexto da teologia de Andrés Torres
de Queiruga está incorporado a releitura da apokatástasis, que ao afirmar que o
desejo de Deus em plenificar toda sua criação sem prescindir da sua liberdade
aproxima-se da apokatastasis origineana, na qual o maior ponto de encontro entre as
duas teologias é a esperança, fato presente na preocupação do Papa Francisco: “O
meu objetivo é humilde: fazer ressoar uma vez o chamado `santidade, procurando
encarná-la no contexto atual, com seus riscos, desafios e oportunidades”.10
10 GE 2.
15
1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS
1.1. Introdução
16
Será de suma importância a abordagem do termo entre os padres da Igreja,
seguindo um critério cronológico e especialmente entre os escritores gregos. Como
trata-se de uma evolução semântica da expressão apokatástasis, o uso do vocábulo
pelos pensadores cristãos que carregam uma bagagem cultural helênica não apenas
assumem os elementos linguísticos gregos como também dão um novo significado,
que posteriormente torna-se um termo técnico na linguagem teológica, carregado de
significado e muito ligado às questões escatológicas.
Alexandria, um dos grandes polos helênicos do conhecimento na época, terá
papel preponderante na evolução semântica do vocábulo apokatástasis na linguagem
teológica. Clemente, um dos protagonistas da escola de Alexandria, precisa ser
analisado mais aproximadamente, já que sua linguagem teológica traz novas
ressignificações ao termo apokatástasis. Devido sua profunda experiência mística,
entende a apokatástasis a partir do amor divino, que age na vida humana como um
processo de desenvolvimento que inicia-se no tempo presente e transcende para
esfera ultraterrena.
17
“Pois a cultura constitui um processo vivo sempre a produzir, utilizar e
transformar os modelos em questão. Portanto faz-se mister estudar a
interrelação dinâmica entre símbolos e práticas para entender a vida social
cotidiana, econômica ou religiosa”.11
“Mas a “cultura cristã” não é uma cultura concreta. Ela só pode ser imaginada
como conjunto de valores e referenciais evangélicos que inspiram os cristãos
no diálogo com os povos e/ou grupo sociais e suas respectivas culturas”.13
11
MIRANDA, Mário F. Inculturação da fé: Uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001, p. 45.
12 Mario Miranda define a interculturação como: “O fato de a fé cristã se encontrar sempre já inculturada
leva alguns teólogos a falar de um diálogo entre a cultura cristã do missionário e a não cristã dos povos
a serem evangelizado. Também poderíamos mencionar entre diversas culturas cristãs no interior da
Igreja universal. Daí nasceu o termo interculturação, que pode ser considerado duplamente. Num
sentido diacrônico implica um diálogo retrospectivo com as culturas que gestaram a atual forma de fé
cristã. Num sentido sincrônico significa não só uma interação entre as várias Igrejas particulares, mas
também entre grupos culturais distintos no interior da Igreja Local”. Ibidem, p. 39.
13 SUESS, Paulo. Introdução à teologia da missão: convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino.
18
de modo que ambos são afetados. Nesse caso a cultura helênica não fica isenta do
acolhimento da Boa Nova, e a religião cristã, ao assumir elementos desta cultura,
corrobora para que projeto salvífico de Deus se torne realidade concreta. Todo esse
encadeamento é desdobrado na compreensão de uma nova expressão, que é a
inculturação da fé. Miranda formula muito bem este processo:
19
múltiplas interpretações no campo teológico. Dom Figueiredo esclarece muito bem
este contexto:
Não há dúvidas que a cultura helênica foi absorvida pelo cristianismo, mesmo
que algumas correntes cristãs helênicas envolvidas com filosofia grega tenham se
distanciado da ortodoxia, o movimento cristão oposto que também recorre ao uso da
filosofia com proveito em seu favor na defesa da fé. Este aspecto filosófico, seja
aquele usado por aqueles que futuramente serão conhecidos como heréticos ou por
aqueles que defendem a ortodoxia, será significativo como metodologia teológica no
seu aspecto epistemológico no futuro.
16
FIGUEIREDO, Dom Fernando Antônio, Curso de Teologia Patrística I: A vida da Igreja primitiva
(séculos I e II). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 18.
17 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123.
18 Ibid., p.116.
20
No âmbito intelectivo é necessário analisar que na medida em que acontecia
a difusão da religião cristã no meio social greco-romano os cristãos tornavam-se um
grupo social heterogêneo devido sua postura religiosa ser divergente da religião
tradicional, causando preocupação nas autoridades estatais e no meio popular.
Lezenwerger, na sua análise histórica da fé cristã no início do período apologético,
constata a depreciação e críticas aos seguidores de Cristo.
19 LENZENWEGER, Josef et al. História da Igreja católica. Trad. Fredericus Stein. São Paulo: Loyola,
2006, p. 26-27.
20 WERNER, 2014, p. 22.
21 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123.
21
Evidenciar a complexidade da linguagem no processo de inculturação da fé
no mundo helênico ajuda na compreensão histórica da evolução semântica das
palavras, o que não deixou de ser fator de preocupação dos escritores cristãos diante
da elite intelectual grega, que buscava por meio da filosofia as respostas para as
questões existenciais do homem. Essa preocupação estava ligada a necessidade de
salvaguardar a ortodoxia e manter a unidade eclesial, pois, mesmo havendo o caráter
intelectual e formal, a ação desses escritores cristãos era de cunho pastoral.
Diante desse modelo de ação pastoral, não podemos esquecer de que o uso
das categorias filosóficas no diálogo com a paideia grega não isenta a literatura cristã
de utilizar termos próprio da linguagem filosófica - suas formas e significados –, fruto
de uma convivência social originada da inculturação do Evangelho. Porém, alguns
termos ou conceitos que vão sendo assumidos pelos escritores cristãos, no decorrer
histórico, vão sofrendo transformações que, no ambiente da reflexão teológica, são
ressignificados com a intenção de observar a fidelidade a ortodoxia.
22
No campo linguístico profano o termo apokatástasis objetivamente limita-se
ao sentindo de um retorno a um estado original (restauração)22, faz parte da
linguagem ordinária e se aplica em um grande número de casos, seja no âmbito
médico, jurídico, político e astronômico.
22 Em alguns dicionários o verbete ‘apokatástasis’ ao que se refere no campo linguístico profano, fazem
uma referência objetiva sem detalhamento, limitam-se em afirmar que o vocábulo aparece no âmbito
médico, jurídico, político e astronômico, essa definição sucinta varia de dicionário para dicionário
conforme o enfoque estabelecido. Ver, BERNADINO. Angelo di (Org.). “apokatástasis”. Dicionário
Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulus, 2002, p.128; e, BAUER.
Johannes B., MARBOCK. J., WOSCHITZ. Karl M. “apokatástasis” Dicionário Bíblico Teológico. São
Paulo, SP: Loyola, 2000, p. 22.
23 André Méhat, utiliza o texto das homilias de Orígenes sobre o profeta Jeremias (Jer. hom. 14,18) que
já intitulava Hipócrates “o divino”. REBOLLO. Regina A., O legado hipocrático e sua fortuna no período
greco-romano: de Cós a Galeno. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662006000100003>. Acessado em:
07 out. 2017. p. 45-82.
23
significado como o retorno à disposição original25. Diante destes exemplos fica
esclarecido que ninguém é trazido de volta pela apokatástasis, de um lugar que nunca
esteve.
25 Ilaria Ramelli neste exemplo do uso da apokatástasis no sentido militar dá como referência de sua
pesquisa Asclepiodotus 10, 6; Aelianus Tactica 32,7 e Arrianus Tactica 25,12. RAMELLI, Ilaria. The
Christhian doctrine of Apokatástasis: a critical assessment from the New Testament to Eurigena. Leiden:
Brill, 2013, p. 5.
26 RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental – Livro 1: A filosofia antiga. Trad. Hugo Langone.
as aulas num pórtico que fora pintado pelo pintor Polinhoto. Em grego, “pórtico” diz-se stoa. Por essa
razão, a nova escola teve o nome de “Estoá” ou “Pórtico” e seus seguidores foram chamados “os da
Estoá”, “os do Pórtico” ou simplesmente “estoicos”. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da
filosofia Antiguidade e Idade Média, vol. 1. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 252.
24
contém muitos sêmens, que os latinos traduziriam como rationes seminales
(razões seminais). Uma fonte antiga diz: “Os estoicos afirmam que Deus é
inteligente, fogo artífice, que metodicamente procede a geração do cosmos e
que inclui em si todas as razões seminais, segundo as quais as coisas são
geradas segundo o fado, Deus é [...] a razão seminal do cosmos.28
Ilaria Ramelli, na sua análise do termo apokatástasis, diz que este vocábulo
é utilizado no meio cristão para referir-se a cosmologia estoica do Grande Ano, que
é determinada por conflagrações (“ekpýrosis) periódicas, ou seja, a purificação e/ou
28 Ibid., p.257.
29 Ibid.
30 SESBOUÉ, Bernard. et alli. História dos Dogmas: O homem e sua salvação (séculos V – XVIII), v. 2.
Filosofia da Natureza e do Ambiente pela mesma Universidade, com tese sobre o estoicismo antigo
(2006). Desenvolve o seu trabalho na área da Filosofia Antiga, dedicando-se em particular à
investigação sobre as filosofias helenísticas (o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo). Disponível em:
<http://lisboa.academia.edu/GabrielaBai%C3%A3o>. Acessado em: 19 set. 2018.
32 BAIÃO, Gabriela. Teorias cosmológicas no estoicismo antigo. Apud. V. CÍCERO, de Natura Deorum,
25
a restauração pelo fogo em que todo o Cosmos está submetido, dando início a um
novo ciclo (palingénesis). Esta constatação pode ser encontrada nos escritos de
Euzébio de Cesaréia (sec. III-IV d.C.) e Nemesius (sec. IV-V d.C.).33
Pode-se concluir que dentro de um longo período, que inicia-se no século III
a.C. e adentra os primeiros séculos da era cristã, o vocábulo vétero-estóico
“palingénesis”, fruto de uma ação providencial do Uno por meio da conflagração
(ekpýrosis), passa a ser compreendido e mencionado como “apokatástasis”
praticamente entre os pensadores cristãos, ocorrendo uma evolução semântica da
palavra. É importante salientar que mesmo os pensadores cristãos, ao utilizar este
termo a partir da doutrina estóica, não estão de acordo com esta crença, questão que
veremos mais adiante.
26
1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico
Alejandría. Anales de Filología Clásica. Buenos Aires v. 27 n.1. p. 19-34. nov. 2014. Instituto de Filologia
Clássica - Philo: UBA . Disponível em:
<http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/afc/article/view/1766>. Acesso em: 23 mar. 2018.
36 Ibid., p.21
27
argumentações de Paulo Siniscalco, que apreende termo apokatástasis conforme a
concepção particular de Clemente de Alexandria.
37 Ibid., p.23
39 Ibid., p.24
28
Tendo como base essa análise critica de Carlos Andrés Blanch, é de suma
importância a interpretação do vocábulo com base na conotação metafísica e nas
modificações que experimenta ao longo da história. Todo esse processo não estava
isento do pensamento dos escritores gregos e, principalmente, dos escritores cristãos
que usaram como ferramenta metodológica e sistemática a filosofia, que na verdade
é puxada pela força motriz bíblica. Afinal, a Sagrada Escritura sempre foi a fonte da
práxis e espiritualidade deles. Neste contexto, não há como descartar do termo
apokatástasis o sentido atemporal.
29
Von Balthasar também concorda que esta seja a unica passagem na Bíblia
que é mencionado o vocábulo na forma de substantivo, porém, destaca duas
possibilidades de tradução: a primeira, no sentido cíclico oriunda da compreensão
profana-filosófica, “até atingirem os tempos da restauração de tudo o que Deus tem
falado”, esta tradução de apokastástasis coincide fundamentalmente com o sentido
da palavra no grego profano. A segunda possibilidade de tradução, “até que ele atinja
a restauração de tudo o que Deus falou por meio dos profetas”, o teólogo suiço afirma
ser mais apropriado, devido ajustar melhor o discurso de Pedro na linha do discurso
dos profetas, matriz judaica da compreensão da apokatástasis.43 Mesmo sendo esta
passagem enigmática, conforme afirma André Mehat,44 a tentaviva de solução
realizada por Von Balthazar, a partir da ambiguidade hermenêutica, visa esclarecer
qual é a ideia que o termo carrega consigo neste versículo de Atos. Uma compreensão
cíclica que tem como base o retorno ao estado de origem ou linear temporal que
propõre a realização e plenitude humana oriunda da promessa divina?
43 BALTHASAR, Von. Tratado sobre el infierno compendio. 2. ed. Valência: Edicep, 2000, p. 177.
44 MÉHAT, 1956, p. 196-214.
45 BALTHASAR, 2000, p.177.
46 Ibid.
30
A sugestão desta dupla interpretação do termo em Ato 3,21, mencionada por
Von Balthasar, não corresponde a compreensão de A. Mehat, que é mais radical e
não enxerga a concepção cíclica que terá seu ápice na interpretação de Orígenes,
que carrega consigo uma influência filosófica que afeta sua linguagem teológica e que,
por meio de uma metodologia original, busca argumentar as objeções dos seus
adversários.47 Portanto, a sugestão de André Mehat é de interpretar o termo em Atos
3,21 no sentido linear-histórico assimilando-se a Clemente de Alexandria.
Nesta análise de At 3,21, em que o termo está explicito, não tem como deixar
de atribuir divergências na sua interpretação. Isso devido a concepção cíclica ou/e a
linear-histórica estar presente em diversas passagens da Sagrada Escritura e que
fazem conexão com o trecho. Detectar essas variações numa releitura atual só é
possivel em virtude do processo diacrônico que passa pela história e se estende ao
plano escatológico e metafísico.
31
1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento
A volta do exílio também pode ser associada não apenas ao retorno físico
para a Palestina, mas a volta a Aliança com Iahweh. Neste contexto, “sūb” é utilizado
em Esdras 2,1 e Neemias 7,6, onde este movimento da comunidade judaica é bem
caracterizado como uma restauração de uma Aliança perdida por ocasião do pecado,
esta dinâmica constitui numa dialética em que Deus livremente, por sua misericórdia,
acolhe o pecador que conscientemente arrependido renuncia ao pecado. A LXX, ao
traduzir “sūb” para apokathistemi, não deixa dúvidas da concepção desse radical
hebraico no contexto da restauração de um estado anterior. Do mesmo modo o
significado teológico da salvação no âmbito escatológico transcendente está
presente.50
32
não implica apenas no sentido físico, mas o retorno à origem, o fim da dispersão. “É
precisamente o seu contexto profético que nos autoriza a considerá-lo como ligado à
escatologia e, por causa de sua mensagem de restauração, de natureza espiritual”.51
33
helenica.53 Esse desenvolvimento presente na missão da primeira fonte
evangelizadora da Igreja pode ser caracterizado como revolução linguística, força
motriz de uma revolução espiritual:
dos anos 107-110. Nas paradas que fazia para descanso, escrevia às comunidades que o tinham
recebido ou que lhe enviara uma embaixada com saudações. Cf. Inácio de Antioquia, In: Padres
Apostólicos. Trad. Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995. p. 48.
58 FIGUEIREDO, 1986, p. 51.
34
literária (Inácio) a originalidade e a espontaneidade que o identifica como um homem
místico, uma vez que expressa o teor sentimental e instintivo de sua experiência de
fé. Seu escrito não possui uma sistematização da doutrina, mas sublinha um conteúdo
de caráter circunstancial, fruto das necessedades das Igrejas a qual destinou suas
cartas.59 O fato de pertencer a Antioquia da Síria, considerada na época a terceira
cidade do Império Romano, em vista disso esta cidade constituia-se como um grande
pólo intelectual helenístico. Considerando esse ambiente o estilo literário de Inácio de
Antioquia – sem prescindir do valores bíblicos próprio do judaísmo – possui a
sensibilidade e o pensamento da cultura grega e por isso faz uso do gênero literário
que abarca as categorias filosóficas do helenismo.60
Na carta à Igreja de Esmirna, que foi escrita quando estava em Troade, existe
a preocupação dos fiéis manterem-se firmes na ortoxia. Os elementos significativos
desta recomendação perpassam pela afirmação de uma cristologia que parte da
historicidade da encarnação (Smyrn 1,1,2), inclui-se a dimensão eucarística vivida
pela Igreja (Smyrn 7,1) e também o acento sobre a unidade eclesial em torno do Bispo
(Smyn 8,1).61 Todo esse conjunto de exortações identifica Inácio como um Bispo de
expressão marcadamente eclesiológica. Esse conteúdo presente na carta aos
esmirnenses está expresso numa linguangem conforme as influências culturais
helênicas presentes em Inácio. Partindo dessa realidade deve ser destacado o uso
do vocábulo apokatástasis, expressão própria da linguagem usual helênica que
aparece uma única vez nesta carta:
E para que a vossa obra seja perfeita na terra e no céu, convém que a vossa
Igreja, para a glória de Deus, eleja um enviado de Deus para ir até à Síria se
congratular com aqueles fiéis, porque reconquistaram a paz e restabeleceram
a sua grandeza, (Smirn. 11,2).
35
possível afirmar categoricamente que tanto o motivo da prisão de Inácio quanto o
tempo de paz restabelecido pelos cristãos antioquenos seja de fato causa da
perseguição romana.64 Independente de qual ocasião os fiéis “reconquistaram a paz
e restabeleceram a sua grandeza” (Smirn. 11,2), a noção desta expressão nesse caso
de Inácio é apenas expressão de uso corrente da linguagem grega, não possui o
mesmo significado dos escritores cristãos posteriores cujo pensamento é mais
abrangente, no qual fazem uso da palavra num sentindo espiritual, transcendente.
64 ‘Questão mais debatida é a razão para sua prisão e condenação às feras. Por muito tempo a
historiografia seguiu a tradição antiga de que Inácio teria sido preso durante uma perseguição aos
cristãos de Antioquia. Dessa forma, quando o bispo escreve de Trôade dizendo-se aliviado com a
notícia da “paz” que os membros de sua igreja finalmente desfrutavam (Filadelfienses 10,1; Esmirniotas
11,2; Policarpo 7,1), este termo se referiria a uma cessação das perseguições. A partir da década de
30, contudo, dúvidas passaram a ser lançadas sobre a historicidade de tal tradição. A partir de uma
série de análises minuciosas sobre os termos e as construções de frases feitas por Inácio, P. N.
Harrison deu voz à tese de que a prisão de Inácio seria consequência de conflitos internos à igreja de
Antioquia que teriam alcançado o âmbito público (SCHOEDEL, 1985, pp. 10-11; ROBINSON, 2009, pp.
165-171)8. Mais recentemente, Allen Brent deu seguimento a essa tese, sugerindo que a razão maior
para tal divisão na igreja de Antioquia teria sido a tentativa de Inácio de impor uma hierarquia na qual
o episcopado possuiria um papel proeminente (BRENT, 2009, pp. 14-43). Segundo esta outra
perspectiva, a “paz” em Antioquia seria nada menos que a resolução do conflito interno, talvez com um
compromisso entre as diferentes facções. Cf. O JUDAÍSMO NA PERSPECTIVA DE INÁCIO DE
ANTIOQUIA. (PIZA, Pedro Luiz Toledo Doutorando em História Social pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador vinculado ao Laboratório de
Estudos do Império Romano e do Mediterrâneo Antigo da mesma universidade). In: Alétheia Revista
de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 9/2, 2014. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/aletheia/article/view/6679>. acessado em: 26 fev. 2018.
65 FIGUEIREDO, 1986, p.116.
66 HAMMAM, 1985, p. 28.
36
Mesmo recebendo o batismo Justino não abandona a filosofia,67 a consequência disso
é que sua atividade literária será fecunda, sendo o “primeiro escritor cristão fazer uma
ponte, um nexo, entre o cristianismo e a filosofia pagã.68 Segundo Eusébio, Justino
redigiu diversas obras, porém somente três chegaram até nós: duas Apologias e o
Diálogo com Trifão.69
Com efeito, assim como Noé deu como servo de dois de seus filhos a
descendência do terceiro, agora chegou Cristo para o restabelecimento
(apokatástasis) de ambos, dos livres e dos que dentre eles são escravos,
concedendo os mesmos privilégios a todos os que guardarem os seus
mandamentos, de modo que os filhos que Jacó teve com as escravas e as
livres fossem todos filhos de igual honra. Contudo, segundo a ordem e a
presciência, foi predito como será cada um (Diál 134, 4).
37
que geralmente utiliza o termo no sentido do restabelecimento há um estado anterior,
mas a de uma conclusão, uma realização73 ocasionada pela redenção de Cristo.
"O rei do Egito no início (αρχηθεν) escravizou os judeus, uma linha legítima
daqueles heróis de piedade e santidade, Abraão, Isaque, Jacó. Mas Deus se
lembrou desses personagens santos. Ele realizou incríveis milagres e
maravilhas através do ministério de Moisés, libertou os hebreus, trouxe-os
para fora do Egito e os guiou através do que é chamado deserto. Então ele
os estabelece (αποκατεστησεν) na terra de Canaã". (Ad Autol. 3, 9).
A.Mehat utiliza esta citação de Teófilo, no seu debate sobre a ideia do termo,
com a finalidade de fundamentar aquilo que refere-se a evolução do significado desta
palavra. Sengundo ele o autor de A Autolico não menciona esse termo segundo a
ideia de restauração, que até poderia haver no pensamento do Bispo, porém de modo
secundário, mas a menção neste contexto é de um estabelecimento definitivo. Nesse
comentário de Teófilo sobre a narrativa da libertação dos hebreus da escravidão
egípícia e a chegada na terra de Canaã, a terra prometida desde Abraão, uso do termo
traz a conotação de cumprimento da promessa, e a consequência desta ação divina
é de uma realização de uma condição de vida muito melhor. Sem o subjugo da
escravidão o povo de Deus tem, a partir do estabelecimento em Canaã, uma vida mais
humana, porém com a condição de não afastar-se da Aliança com Iahweh.
73 MÉHAT, A. “apokatástasis “Origen, Clemente de Alexandria, At: 3,21” em Vigilliae christianae, Vol.
X, 1956, p. 196-214.
74 MORESCHINI C., NORELLI, E. História da literatura cristã antiga grega latina. Trad. Marcos Bagno.
38
1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião
Irineu, devido suas preocupações pastorais foi levado a compor suas obras,
sendo a mais importante delas a famosa ‘Contra heresias’, da qual combate o
gnosticismo,77 que devido a uma crise de fé vivida por seus membros diante das
perseguições desanimavam e perdiam a esperança, por isso tendiam ao seguimento
de movimentos que pregavam uma espiritualidade que consistia garantir a salvação
por meio do conhecimento destinado somente aos escolhidos. Essa concepção
excluia a mediação de Cristo Ressuscitado. Frente a isso era necessário reforçar a fé
dos batizados na Ressurreição e demonstrar a fragilidade dos ensinamentos
gnósticos.78
39
existir do nada ossos, nervos e veias, e todos os elementos que constituem
o organismo humano, dando-lhe o ser, criando-o animal vivo e racional do
que reconstituí-lo, (apokatástasis) quando, depois de criado, se tenha
decomposto na terra, pelos motivos apresentados acima, se bem que tenha
acabado naqueles elementos dos quais foi feito no princípio, quando nada
era feito. De fato, aquele que no princípio e quando quis fez o que não existia,
com maior razão, querendo, pode ressuscitar os que já tiveram a vida
concedida por ele.80
80 CESARÉIA, Euzébio, História Eclesiástica. Trad. de Wolfgang Fischer. São Paulo: Novo Século,
2002. Livro V, 3, 2.
81 Ibid., V, 12, 1.
82 BALTHASAR, 2000, p. 183.
40
praticamente em todo o século II – que em um processo de interação com a cultura
local absorveu e ressignificou o uso da palavra apokatástasis, imprimiu-se uma ideia
de cumprimento, realização, chegada a uma condição melhor, restauração de uma
condição original. Mesmo diante de toda esta interação sociocultural e religiosa, a
ideia deste conceito ainda não alcançou o significado que terá entre pensadores
cristãos posteriores, sobretudo entre os Padres Alexandrinos, que por meio de uma
sistematização teológica-filosófica mais influenciada pela gnose, relacionarão o termo
ao contexto escatológico, tendo como centro desta reflexão escatológica a noção de
redenção ou salvação universal.
41
sistemas,85 lugar propício para o surgimento de um centro de estudos da fé cristã. Por
volta do fim do século II floresce um movimento cristão de alto nível intelectual e de
orientação ortodoxa, no qual, Panteno é o primeiro mestre desta escola alexandrina
cristã e Clemente é seu discípulo.86
85 HAMMAM.1985, p. 79.
86 FIGUEIREDO, Dom Fernando A. Curso de Teologia Patrística II. A vida da Igreja Primitiva (século
III). Petrópolis: Vozes, 1984. p. 76.
87 Ibid., p. 80.
88 HAMMAM. A. Padres da Igreja, p. 81
89 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 340, 341.
90 De Panteno não se sabe quase nada: segundo Eusébio (H.E. V, 10), vindo do estoicismo, depois
convertido ao cristianismo, dedicara-se à evangelização da Índia, onde fora precedido pelo apóstolo
Bartolomeu, que lhe havia deixado o evangelho de Mateus. Trata-se, como se vê, de notícias já
lendárias. Mais confiável é o testemunho de Clemente de Alexandria, que o teve como mestre; mas
afora isso, não sabemos nada dele, e não parece que tenha composto escritos [...]Clemente apresenta-
42
Muito do que foi revelado sobre a personalidade de Clemente de Alexandria
adveio dos seus escritos, “sua obra é variada, original, brilhante, redigida em estilo
elegante e puro. O autor é simpático em razão do espírito aberto, entusiasta e muito
religioso”,91 deixou como legado literário, uma trilogia92 considerada a principal obra,
cujo núcleo de reflexão é o Logos.
o como um membro da corrente das tradições secretas herdadas dos apóstolos, e é possível, portanto
que já Panteno sustentasse a ideia, tão cara a Clemente, da tradição esotérica. Ibid., p. 341.
91 LIÉBAERT, 2013, p. 88.
92 Sobre este ponto específico da intenção de Clemente redigir uma trilogia, ler MORESCHINI;
43
Este alargamento da compreensão histórica do movimento gnóstico permitiu que o
debate, a pesquisa e nova conclusões ainda permanecessem em abertos.
[...] somos levados timidamente a pensar que a gnose, ainda que de caráter
salvacionista, foi uma de muitas tentativas para solucionar os problemas
então controvertidos, pela formulação duma via de conhecimento imediato
que superasse as objeções próprias dos autores gregos no terreno da
argumentação racional e as dos autores cristãos nas dificuldades inerentes
atingência dos dados da fé.96
95 Ibid., p. 38
96FERREIRA, Januário Torgal. O significado do gnosticismo: uma tentativa de interpretação filosófica.,
p. 266. disponível em: <http://hdl.handle.net/10216/13730>. Acesso em: 24 mai. 2018.
44
A literatura judaico-alexandrina herdeira da cultura filosófica assume a gnose
como argumentação das questões existenciais. Nesta corrente, Filon se estabelece97
como o grande nome do judaísmo-gnóstico e, a exemplo dele, Clemente colocou a
serviço da compreensão bíblica o uso dos sistemas gnóstico existentes na atmosfera
de Alexandria,98 as influências culturais grega e o judaísmo alexandrino com seu
universo gnóstico presente em seus escritos deixando claro seu contato com a obra
de Filon.99 Porém, essa atitude do padre alexandrino que demonstra sua preocupação
em dar ao dado da fé cientificidade, possibilitando o diálogo com a corrente intelectual
contemporânea, é uma demonstração científica das verdades reveladas. Vê-se que
para Clemente a gnose é a contemplação e o raciocínio teológico. Clemente mostra
como o gnóstico, superando todas as criaturas, chega ao criador”.100 Moreschini C. e
Norelli E., também demonstram a justificação de Clemente sobre a inteligibilidade da
fé a partir da gnose, porém, com um ingrediente substancial, o uso da Escritura:
97 Na confluência das tendências gnósticas gregas e judaicas, é preciso assinalar Filon de Alexandria
(20 a.C./40 d.C.) SESBOUÉ; WOLINSK, 2004, p. 39.
98 FIGUEIREDO, 1984, p. 78.
99 Ibid., p.79
100 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, Ramon. Patrologia. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1998.
p. 172.
101 MORESCHINI; NORELLI, 2000. p. 356.
102 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, 1998. p. 172.
45
Clemente, influenciado pela corrente gnóstica, entende que a reconciliação ao
Pai dá-se pela superação do cristão ao mundo visível. Januário T. Ferreira, ao
descrever a concepção das correntes gnósticas de superação ao mundo visível,
relata que no âmbito ontológico, os gnósticos entendem que a Entidade divina e o
mundo estão vinculados pelas esferas cósmicas, constituindo a dualidade entre o
mundo superior e o mundo inferior. Ontologicamente o homem é diferente do mundo
inferior devido sua alma ter origem divina, ou seja, possui parentesco com o mundo
superior. Nesta ambiguidade entre mundo superior e mundo inferior é que o homem,
pela capacidade gnosiológica, afasta-se do mundo inferior indo ao encontro da
entidade divina.
Do não mundo que é, o homem tornar-se o mundo que projeta ser. A partir da
perspectiva gnosiológica o homem é capaz de superar as limitações do mundo pela
ilimitação do pensamento. A dimensão ontológica do homem revela a partir da
vivência existencial a sua capacidade gnosiológica, sendo esta capacidade
essencialmente uma dimensão ética. Ao discorrer sobre a dimensão ontológica do ser
do mundo e do homem e a capacidade de conhecimento deste último, Januário
destaca a ambiguidade entre o mundo e o homem, e fundamenta que a perspectiva
ontológica é alicerce da concepção antropológica.103
46
Por mais complexo que seja a concepção antropológica de Clemente, deve
ser levado em consideração que é da filosofia e das Escrituras que a antropologia
clementina foi desenvolvida. Dom Fernando, a partir do texto de Clemente
“Pedagogo”, também compreende que a materialidade do corpo para o padre
alexandrino não é má e o dado que ele coloca:
47
1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis
A condição do gnóstico parece implicar duas fases: ela já é tal nesta vida,
onde porém está em continuo progresso, e estará completa na dimensão
escatológica. Mas desde agora é antecipação da perfeição escatológica:
implica ascensão da alma rumo à contemplação de Deus (Strom. IV, 116-17),
fruição do mundo inteligível (por exemplo Strom., IV 56,3-57,1).114
48
através da disciplina espiritual, que consiste em defender a natureza humana das
irracionalidades.115
[...] é por isso que é necessário se tornar homem adulto de maneira gnóstica
e tendem à perfeição, tanto quanto possível, mesmo se permanecermos no
carne, e a partir de uma concordância perfeita, nós aspiramos a concordar
com a vontade de Deus na restauração realmente perfeita da nobreza e
afinidade pela 'plenitude de Cristo', perfeitamente nossa reconciliação.
(Carlos Blanch apud Strom IV, 21.132.1).
Estrômatos e a citação faz parte da bibliografia de: Nardi, C. Clemente Alexandrino. Quale rico si
salva? Il Cristiano e l’economia, Borla, Roma 1991. MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 358.
118 Ibid.
49
A ideia clementina sobre a apokatástasis histórica, incitada pela fé, que
conduz o ser humano por meio de um progresso gnosiológico e ascético a perfeição
é entendida como antecipação da apokatástasis escatológica.
50
( Strom. VII 6.34.4) –. Este processo é doloroso, mas possui função pedagógica de
punir e instruir.121 O tempo desta purificação não é o mesmo para todos, deve ser
levado em consideração o grau de impureza de cada um. Essa concepção de
Clemente do fogo restaurador não é originalmente sua, advém da crença na
conflagração dos estóicos.122 Considerando, também, que esta perspectiva no
processo salvífico clementino posteriormente será desenvolvida e representada como
a doutrina do purgatório,123 que para Clemente a ideia não é como justiça retributiva
para os que foram são salvos sem atingirem a plena perfeição, mas como processo
pedagógico de purificação e aperfeiçoamento de todos os homens.124
É por isso que os mandamentos também [...] estabeleceram que a alma que
estava sempre melhorando no profundo conhecimento da virtude e no
progresso da justiça, obtivesse uma posição melhor na classificação,
lançando, de acordo com cada progresso, o estado de impassibilidade até
alcança o homem perfeito, a eminência da gnósis e ao mesmo tempo da
herança. Esses progressos salvadores são diferentes na ordem de
transformação de acordo com os tempos, lugares, honras, conhecimento,
herança e ministérios; cada um tem seu próprio grau, até [alcançar] a mais
alta contemplação superior e mediata do Senhor na eternidade. (Carlos
Blanch apud Strom. VII, 2.10.1-2).
121 SACHS, John R. Apocatástasis in Patristic theology. Theological Studics, 54 (1993) p. 618-620.
disponível em: <http://cdn.theologicalstudies.net/54/54.4/54.4.1.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2018.
122 Ibid., p. 29.
123 SESBOUÉ, 2003, p. 360.
124 SACHS, 1993, nota 107.
125 BLANCH, 2014, p. 32.
51
Portanto, a apokatástasis em Clemente demonstrada conforme a
cientificidade de seu tempo – filosofia-teologia –, o processo de desenvolvimento
gradual de perfeição do ser humano, envolvendo as etapas nesta existência e a
ultraterrena, tendo como ponto constituinte o amor de Deus pelo ser humano, que
jamais o abandonou, mesmo no pecado, e que a salvação é fruto da sua graça e sua
providência. É desta concepção pautada na supremacia do amor divino que Orígenes
desenvolverá sistematicamente a ideia de apokatástasis como salvação universal.
1.4. Conclusão
Foi constatado que entre os Padres da Igreja que usavam a linguagem grega
para o anúncio da mensagem cristã, seja ela de forma pastoral ou apologética, fizeram
52
o uso do conceito apokatástasis transmitindo uma ideia de cumprimento, realização,
chegada a uma condição melhor, restauração de uma condição original. Porém,
Clemente de Alexandria, que provém de um círculo helenista mais acadêmico e
visando dar para sua linguagem teológica uma roupagem mais científica, ressignifica
o termo apokatástasis a partir de sua visão de gnose cristã, como processo gradual
de evolução. Entretanto, esse desenvolvimento engloba a realidade histórica e
escatológica. Na verdade o autor quer salvaguardar a sua experiencia de fé em um
Deus que é amor e que deseja salvar todos seres humanos, portanto a apokatástasis
para Clemente faz parte da providência divina para a salvação humana.
53
2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE ORÍGENES
2.1. Introdução
54
Entender o contexto histórico de sua época muito marcado com as heresias gnósticas
é o percurso para o entendimento do seu discurso sobre a apokatástasis envolve os
pontos de vista cristológico, antropológico e soteriológico.
No meio cristão, Orígenes (185 – 254 d.C.) é marcado pela tensão entre gênio
intelectual cristão e sua heterodoxia. Estes atributos são sublinhados pela audácia da
sua reflexão teológica no contexto do século III d.C., cujo pensamento cientifífico está
influenciado pela filosofia platônica, sobretudo o médio-platonismo, o estoicismo e o
gnosticismo que, diante das questões existenciais (Deus, Cosmos e Salvação) em
algumas condições, desviavam muitos cristãos da ortodoxia apostólica. No esforço
origeniano de encontrar respostas para as objeções de seu tempo, e tormamos como
fundamento a noção sobre o discurso cientifico de Thomas Kuh na modernidade que
descreve a linguagem científica como uma contínua quebra de paradigmas, temos o
mesmo pressuposto para o mestre da escola de Alexandria que olhando para os
mesmos pontos já discutidos na teologia rompe com paradigmas que foram capazes
de gerar crises na concepção de fé vigente de seus contemporâneos, essas crises
podem ser denominadas como uma revolução científica de seu tempo, visto que
Orígenes faz o uso de observações inovadoras com os instrumentos disponíveis de
seu ambiente intelectual, tal qual o platonismo e a exegese alegórica.127
127 Sobre este ponto do avanço científico a partir da quebra de paradigmas como forma de
aprimoramento da ciência Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Nelson
Boeira. 13 ed. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 147-173.
55
formação qualificada nas ciências gregas, que dentre os ouvintes do grande mestre,
Amônio Saca,128 foi o que mais se destacou.129
128 Amônio Sacas foi mestre da escola filosófica de Alexandria entre os séculos II e III. A princípio era
cristão, mas voltou-se para a religião pagã. Não deixou nenhuma obra escrita, porém seu método de
investigação acurada atraiu célebres discípulos tal como Orígenes e Plotino, o pai do neoplatonismo.
Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p. 338.
129 CESARÉIA, 2000, Livro VI XIX 1-12.
130 WERNER, 2014, p. 67-68.
131 CESARÉIA, 2000, Livro VI.
56
fazer distinção alguma, levando em consideração todo ambiente de hostilidade
contra os cristãos, além do seu desprendimento perante os bens materiais. Esse
modo de ser de Orígenes arrebanhava cada vez mais discípulos, sendo que muitos
destes tornaram-se verdadeiros mártires.132 Dom Fernando exalta esse estilo de
vida do alexandrino ao dizer que “o ponto alto de sua mística é sem dúvida o
conhecimento, mas um conhecimento no amor”.133
de la abadía Santa Escolástica de Victória. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2015. p. 171.
135 CESARÉIA, 2000, Livro VI.
57
que fora convocado por Justiniano. Vale salientar que o Concílio condena o
origenismo que já havia corrompido as ideias origenianas.136
58
pluricultural, que alcança todas as camadas da sociedade, sendo que, cada vez mais
os cristãos elitizados vão compondo as comunidades. Neste instante, a Igreja não tem
apenas o objetivo de defender-se contra o paganismo, mas sua preocupação é
também salvaguardar a fé no âmbito ad-intra, pois várias correntes influenciam os
cristãos. Em vista disso, as heresias passam a pulular por toda parte.
Neste universo religioso os escritos são inúmeros e o canôn biblico não está
definido oficialmente, porém as comunidades já possuem uma fé amadurecida capaz
de distinguir os textos sagrados autênticos dos textos apócrifos, sendo estes últimos
produzidos em quantidade muito menor do que nos séculos anteriores, no entanto
com um conteúdo profundamente gnóstico.138
138 PIERINI, Franco. A idade antiga. Curso de História da Igreja. Trad. José Maria de Almeida. São
Paulo: Paulus, 1998, p. 95-96.
139 SESBOUÉ, 2004, p. 39.
59
estudiosos católicos e protestantes, indica um ponto comum entre os gnósticos, do
qual foram os primeiros intelectuais cristãos com muito talento, que mesmo
posteriormente serem conhecidos como heterodoxos, o ponto paradoxal decorre de
alguns pontos de sua teologia serem mais adequados do que teólogos cristãos
contemporâneos. Eles foram aqueles que primeiramente, melhor apresentaram, de
forma sistematizada uma teologia da criação e da salvação, mas, por outro lado,
afirmar que suas teorias foram as primeiras a representar a teólogia cristã constitui
um grave erro.140
60
que se o corpo constituído de corruptibilidade não pode ser assumido. Portanto, toda
a ação terrena do Cristo é mera aparência (docetismo).142
2.3.3. Basíledes
61
Somente os possuidores desse conhecimento, além de guardar essa gnose em
segredo, são os que serão libertados dos criadores desse mundo e salvarão apenas
sua alma, pois o corpo é corruptível por natureza. Aqui o aspecto soteriológico é bem
rigorista, pois somente uns poucos serão salvos, “um por mil , dois por dez mil”.144
62
2.4.1. Refutação ao Marcionismo
“Mas, uma vez que alguns se pertubaram porque os líderes dessa heresia
parecem ter separado o justo do bom, declarando que o justo é uma coisa e
que o bom é outra, e também aplicaram essa distinção à divindade, afirmando
que o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo é bom e que o Deus da Lei e
dos profetas é justo mas não é bom, creio que é preciso responder a essa
questão o mais brevemente que puder.146
63
modelo perfeito de santidade similar ao mundo das ideias de Platão, e o mundo
material como imagem dos mistérios, marcado pela participação humana com seu
livre arbítrio como sujeito do conhecimento místico.149
64
As correntes gnósticas citadas acima, por meio da alegorização,
sistematizaram uma reflexão teológica sobre as diversidades existentes no mundo,
oriunda de uma eleição pré-cósmica que determinou as diferenças entre judeus ou
gregos, feios e bonitos, fortes e fracos, ricos e pobres, bons e maus. Esse tipo de
variedade estava relacionada às suas naturezas, sejam aquelas que foram criadas
más ou aquelas que já foram destinadas a serem boas. Este argumento afeta
plenamente livre arbítrio humano, tal como a providência divina.153 Em oposição ao
argumento em questão, Orígenes principiará a sua refutação da condição original
igual entre todos os seres racionais na preexistência, e que a diversidade é resultado
dos méritos de cada ser. Esta justificativa tem como preocupação de fundo
salvaguardar a bondade, a providência e a justiça de Deus, assim como o livre-arbítrio
dos seres racionais.
“Na opinião desses hereges, quando ainda não tinham sido criados e que não
tinham feito ainda nem o bem nem o mal e, como aqueles pensam, a fim de
que mantivesse a decisão e propósito de Deus, uns foram feitos seres
celestes, outros, terrestres, e outros, infernais, não em consequência das
suas obras, mas pela vontade daquele que os chamou. [...] se repararmos
que essa diversidade não é o estado inicial da criatura, mas que devido as
causas antecedentes, o Criador prepara cada um uma função e um serviço
diferente conforme a dignidade do seu mérito: isso decorre certamente do
fato de que cada um, porque foi criado por Deus como inteligência ou como
espírito racional, adquiriu para si mais ou menos méritos em razão das ações
da inteligência e dos sentimentos espirituais, e assim tornou amável ou
odiável para Deus”.154
65
livre-arbítrio e que fere a providência divina, na qual só os verdadeiros gnósticos,
aqueles que são consubstanciais aos seres divinos, se salvarão. Esta salvação
consiste em uma gnose do estado original e com isso a busca a este retorno, a
apokatástasis.
66
É inegável que a genialidade de Orígenes o capacita à inovação na reflexão
teológica. Foi capaz de causar quebras de paradigmas sem prescindir do terreno da
polêmica no intento de defender a ortodoxia frente as heresias de seu tempo, recorreu
ao uso de neologismo ao assumir o vocábulo apokatástasis como termo técnico na
linguagem teológica, fato que elevou a qualidade de sua teologia. A partir deste
contexto, que A. Mehat considera Orígenes foi o pioneiro dentro da Grande Igreja de
fazer uso do vocábulo apokatástasis como doutrina da restauração ao estado original:
67
teve como fundamento a investigação e que levantou hipóteses para que pudessem
ser discutidas, não houve a intenção de sua parte formular uma doutrina fechada.
68
e a soteriologia, o princípio e o fim de todas as coisas ( apokatástasis), de modo que,
para formular um discurso sobre o último, é indissociável uma articulação teológica
sobre o princípio, cuja a preocupação fundamental é preservar dos argumentos
gnósticos a bondade e a justiça essenciais a providência divina e o livre arbítrio de
todos seres racionais. Orígenes entende que a tradição eclesiástica identificou e
discutiu a origem da Criação assim como o seu fim, porém não há em seu tempo uma
linguagem teológica explícita, ou melhor, bem articulada sobre este conteúdo. Além
do seu desejo de propor uma articulação teológica suficiente, há o desejo de
permanecer fiel ortodoxia.
“Há outro ponto da pregação eclesiástica: que este mundo foi criado e
começou num tempo determinado , e que está destinado a desaparecer, em
razão de sua corruptibilidade. Quanto a saber o que havia antes deste mundo,
e o que haverá depois deste mundo, são poucos até agora os que chegaram
a ter sobre isso uma ideia clara, porque a esse propósito não há uma doutrina
explícita na pregação eclesiástica.164
69
intento de atingir a sabedoria ou a verdadeira gnose, como era de praxe das correntes
gnósticas a dedicação na investigação sobre os princípios. Ou seja, a origem do
mundo sensível e dos seus seres, remetia em primeira ordem ao estudo de Deus, o
Logos ou ser Uno que precisamente englobava o princípio de tudo. Orígenes, para
enfrentar a problemática criada pelas argumentações gnóstica, desenvolve um
sistema teológico – O Tratado sobre os princípios – para elucidar os princípios a partir
do Logos, mediador da esfera divina com o mundo sensível. Este pressuposto foi
necessário para desenvolver sistematicamente, com elementos platônicos e
linguagem alegórica, sua noção sobre apokatástasis.
70
dele, “pelo fato de conter e pré-formar em si as espécies e as razões seminais168 de
toda a criação”.169
168 Tem-se aqui a influência estoica na cosmogonia de Orígenes, essa menção das razões seminais
remonta a ideia monista do logos que como sêmen da origem a tudo, ou como um sêmen que contém
todos os sêmens.
169 ORÍGENES, 2012, I, 2,3.
170 HAIGHT, 2005, p. 299.
71
restaurar assim as leis corrompidas da arte de governar e de reinar,
submetendo todos os inimigos a seus pés”.171
Nesse processo que perpassa pela condição original preexistente dos seres
racionais, realidade que abrange participação na vida divina, e que por negligência
ocorreu a queda, a encarnação assume papel providencial e pedagógico para uma
restauração da condição original perdida, deve ser ressaltado que Orígenes fala de
uma restauração da disciplina corrompida, desse modo reconduzir a humanidade por
meio de um processo educativo à obediência.
72
Para argumentar sobre a encarnação do Logos, a união ao corporal se dá
pela alma de Cristo,175 que possui a mesma natureza de todas as almas mas que foi
assumida por ele. Devido a perfeita união dessa alma com Logos, não há a
possibilidade de subsistir nele a pecabilidade, portanto, para Orígenes, esta alma
serviu de intermediário entre Deus e a carne, de modo “que sendo essa substância
uma intermediária, pois para ela não era contra a natureza assumir um corpo. E
também não era contra a natureza que essa alma, substancial e racional, pudesse
contemplar Deus”.176
“Por isso é que Cristo é apresentado como exemplo para todos os crentes,
porque como ele sempre, e antes mesmo de conhecer o mal, por mínimo que
fosse, escolheu o bem, amou a justiça e odiou a iniquidade, por essa razão
foi ungido por Deus com óleo da alegria; assim aquele que pecou ou errou
purifique-se das suas manchas segundo o exemplo proposto, e que, tendo-o
como guia do seu caminho, avance no duro caminho da virtude para que
talvez assim, na medida do possível, sejamos feitos, ao imitá-lo”.177
175 Sesboué não vê positivamente o fato de que na preexistência a Alma de Cristo por amor ao Verbo
ter unido a carne e por merecimento ser preservada do pecado, para ele a primeira questão está na
precedência do mérito frente a encarnação e por conseguinte Sesboué afirma que a encarnação é um
dom absolutamente gratuito de Deus, porém o que foi positivo é que Orígenes ajuda a desenvolver a
partir desta reflexão sobre o “como da união” o futuro tema da “comunicação do idiomas”. Cf.
SESBOUÉ, 2004, p. 197-198.
176 ORÍGENES, 2012, II,6,3-4.
177 Ibid., IV, 4,4.
178 HAIGHT, 2005, p. 299.
73
divina de beneficiar ao ser humano – prezando sua liberdade –, um movimento de
crescimento rumo a perfeição que se dará na apokatástasis.
74
O fato de Orígenes pertencer a uma geração de cristãos do fim do século II e
início do século III, ou seja, numa situação precedente aos Concílios dogmáticos, a
sua reflexão teológica, sobretudo no Tratado sobre os Princípios, obra considerada
pioneira na teologia sistemática, e que a investigação sobre a teoria da preexistência
de modo competente foi bem detalhada. Mesmo esse tema sendo confrontado,
refutado e considerado herético a partir do século IV na crise origenista, resta buscar
entender qual é o princípio metodológico de Orígenes para a composição do seu
pensamento sobre a preexistência.
75
A complexidade do termo preexistência na linguagem teológica de Orígenes
evidência no meio teológico ulterior interpretações equivocadas. Segundo Patrícia
Ciner, no seu artigo “El legado de Orígenes a la teología Cristiana Contemporânea”,
a preexistência para Orígenes não tem a conotação de um passado que está
desconectado do presente, mas uma presença que é garantida pela participação de
todas as criaturas espirituais na Sabedoria do Filho.
181CINER, Patricia Andrea. “El legado de Orígenes a la teología cristiana contemporánea” [en línea].
Jornadas Diálogos: Literatura, Estética y Teología. La libertad del Espíritu, V, 17-19 septiembre 2013.
Universidad Católica Argentina. Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.uca.edu.ar/repositorio/ponencias/legado-origenes-teologia-cristiana.pdf>
acesso em: 01 fev. 2019.
76
“será que a nossa alma, uma pela substância, é composta de vários
elementos, uma parte racional, e outra irracional, sendo essa parte irracional
dividida também em duas tendências: a da culpidez e a da cólera [...] Dessas
como dissemos, não vejo que se possa confirmar pelo testemunho da divina
Escritura...”.182
77
em ter como fundamento, a Escritura. Para expor sua reflexão teológica o seu
entendimento antropológico segue o modelo Paulino (1Ts 5,23), mas vinculado a esta
noção está a ideia da preexistência, portanto o homem tripartido possui essa condição
desde a sua origem, desta forma sistematizará seu ponto de vista antropológico que,
segundo Crouzel, em um contexto mais moral e ascético do que propriamente
místico.185
2.8.1. O Espírito
2.8.2. A alma
78
alma foi criada antes desta realidade terrestre, no estado de preexistência, portanto
todas as atitudes da alma desde este estado serão o fundamento para a relação alma
e corpo.
188 Orígenes ao desenvolver sua argumentação sobre a natureza da alma, tem como ponto de partida
a concepção das duas almas, mas também expõe se a tendência para a maldade é em função da
atração do corpo sobre a alma já que o corpo está voltado para os desejos carnais ou mesmo a própria
e única alma está dividida em duas tendências, ele deixa claro que apenas expõe essas opiniões e
fica por conta do leitor escolher a solução mais razoável . Cf. ORÍGENES, 2012, III, 4.
189 SESBOUÉ, 2003, p. 99.
190 ORÍGENES, 2012, II, 8, 2.
79
mostrar a todos que a mente, afastando-se do seu estado e da sua dignidade, tornou-
se alma e assim é chamada; se ela se recuperar e se corrigir volta a ser mente[...] ”.191
Tendo em vista a criação das almas dos seres racionais como imagem de
Deus, a queda é o fruto resultado de um esfriamento por livre vontade. Orígenes,
apoiado nas Escrituras, crê que as almas agora imperfeitas podem ser restauradas
por meio da participação voluntária na perfeita e única imagem do Pai, que é o Verbo,
e adquirirem novamente a sua condição original. Porém, essa participação não é
estática, existe um processo de crescimento que para Orígenes tem continuidade
mesmo depois deste estágio de vida terrestre, culminando com a perfeição da
semelhança, já que para Orígenes imagem está vinculado a beatitude da criação e
semelhança ao fim último, a apokatástasis.192
2.8.3. A corporalidade
80
totalmente incorporal, um ser de natureza simples, invisível, mas que entre os seres
criados há os visíveis e invisíveis, sendo que estes últimos constituídos de corpos com
qualidades superiores mesmo não sendo corporais. Observa-se que, para Orígenes,
o termo incorporalidade possui sentidos diferentes, seja de gênero filosófico ou
relativo a uma corporalidade sutil.195
81
“Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de
Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade
de corpo mais sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado das
coisas o exigir e os méritos da natureza racional o pedirem”.197
82
gradualmente nesta existência, havendo uma tensão entre a santidade de cada
individuo, adquirida pela vivência da virtude com a totalidade do Corpo de Cristo na
consumação escatológia, lembrando que Cristo é o revelador desta virtude. Esta
santidade vivida em conjunto significa que o Reino de Deus já presente, mas que o
Reino só poderá atingir sua consumação final quando cada ser humano alcançar esta
santidade.200
A possibilidade dessa perfeição, que lhe fora dado no início pela excelência
da imagem, devia no final realiza-la ele mesmo na perfeita semelhança ao
cumprir sua obras. [..] a semelhança que esperamos ter com Deus, e que
será dada segundo a perfeição dos méritos.[...] Parece que aqui a
semelhança sempre será por assim dizer progressiva, e que semelhante, se
fará, porque, sem dúvida, na consumação ou fim, Deus será tudo em todos.201
83
No entanto, sendo a corporalidade condição da criatura, Orígenes entende
que a ressurreição não é isenta da condição corporal, ele tem como fundamento a
visão paulina de ressurreição em que o corpo corruptível será transformado em corpo
incorruptível (1 Cor 15, 51), pois o corpo material possui a razão seminal203 do corpo
que será ressuscitado.204 Por trás desse entendimento sobre ressurreição do corpo
origeniano está a bondade divina impressa na sua criação, já que o corpo foi criado
por Deus não pode conter ontológicamente o mal, por isso a corporalidade material é
restaurada pela vontade divina em um corpo espiritual com suas qualidades
respectivas:
Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de
Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade
de corpo muito sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado
das coisas o exigir e o méritos da natureza racional o pedirem.205
203 A imagem Paulina de que no corpo terrestre há uma razão, uma força de crescimento em direção
ao corpo glorioso não difere da ideia estóica sobre o logos espermático, que é definida como uma força
racional de crescimento que se desenvolve em cada sujeito. Cf. CROUZEL, 2015, p. 357.
204 ORÍGENES, 2012, II,10, 2.
205 Ibid., III, 6, 4.
206 Jerônimo foi um dos acusadores de Orígenes pela da apokatástasis incorpórea, segundo Crouzel
em a noção de incorporeidade final está baseado em razões filosóficas, porém Orígenes não afirma
categoricamente essa realidade, mas propõe o discernimento, o autor francês é enfático em dizer que
não se pode afirmar com veemência que Orígenes pensava a apokatástasis de forma incorpórea, há
apenas uma discussão na obra Tratado sobre os Princípios mas apenas como hipótese já que também
é discutido na mesma obra a apokatástasis corpórea.
206 CROUZEL, 2015, p. 363-366
207 DALEY, 1994, p. 87.
84
sobre a apokatástasis e por entender que a condição corporal é próprio da criatura e
que somente Deus é incorpóreo, ele não possui uma simples solução para a sua
noção de consumação final, em que Deus será tudo em todos. Porém, como foi dito
anteriormente, em Orígenes a alma é predominante na sua antropologia e não é
desprovida de corporalidade que depois da queda do livre-arbítrio adquire condição
impura e corruptível. Assim como está vinculado a condição moral na queda que
maculou a imagem de Deus incutida no homem, é esta condição moral que pela luz
da razão e do entendimento faz o ser humano fazer o caminho de retorno a Deus e
tornar-se semelhante e um só com Ele. Está, também, no querer humano este retorno,
entretanto, com o auxilio da graça divina.
“cada um dos pecadores acende para si mesmo a chama de um fogo que lhe
é própria [...] A alimentação e matéria desse fogo são os próprios pecados
que o apóstolo Paulo chama de lenha, feno e palha (1 Cor 3,12). [...]
quando a inteligência ou consciência, lembrando-se, pelo poder divino de
todos os atos cuja as marcas e forma se imprimiram nela quando pecava
[...]verá, assim, de algum modo, exposta diante dos seus olhos a história de
cada um de seus crimes.(II, 10,4)
85
Está evidente nesta ótica origeniana que o fogo purificador de todas as
paixões humanas e de todos os pecados vergonhosos é produzido pelo próprio
pecador. São os pecados o verdadeiro combustível deste fogo que age purificando a
pessoa inteira, ou seja, a alma e corpo, porém, Crouzel destaca que em diversos
textos de Orígenes é Deus mesmo o fogo devorador.
“Deus, provê a tudo nos menores detalhes, pelo poder da sua Sabedoria que
discerne tudo o quanto governa pelo juízo, dispôs todas as coisas segundo
uma distribuição muito equitativa, a fim de que cada um seja socorrido, e que
haja sobre ele um cuidado vigilante. Aqui se manifesta seguramente o ponto
de vista da equidade, porque a desigualdade das condições respeita a justa
distribuição segundo os mérito.211
86
os seres humanos tem incutido por Deus “um desejo que lhe é próprio e natural de
conhecer a verdade divina e as causas das coisas”(II, 11,4) e, o segundo elemento,
que efetivamente abarca o primeiro. A providência divina, que é o movimento amoroso
de Deus de salvar a humanidade em toda a sua existência que em Orígenes envolve
o universo da preexistência, a história terrena e a culminação do tempos, a
apokatástasis.
87
pressuposto limitado, ou seja, um etapa para chegar a beatitude, condição que todos
os seres foram criados mas por voluntariedade negligente alguns se afastaram.
“Para nos fazer compreender que Deus age para com aqueles que caíram e
pecaram da mesma maneira que os médicos aplicam remédios aos enfermos
para que recupere a saúde [...] É preciso compreender que a fúria e a
vingança divina aproveita a purificação das almas. Isaias ensina também que
o castigo infligido pelo fogo deve ser entendido como remédio que se
aplica”.215
está no Tratado sobre os Princípios no capítulo sobre a ressurreição ao comentar sobre a passagem
de Lc 12, 46 : diz que uma das partes do infiel, o espírito ou dom do espírito recebido pela graça ou no
batismo é separado da alma superior por ser de natureza divina, e por esta alma encontrar-se em
unidade a sua parte inferior, ou seja, a matéria corporal contrariando o propósito da natureza de ser
criado para a beatitude, será atirada para o mesmo destino do infiéis. (II, 10,7).
88
natureza em sua origem, abre espaços para conjecturas sobre a salvação do diabo,
já que a salvação é universal.
“Por outro lado, será que algumas dessas ordens que agem sob o domínio
do diabo e obedecem à sua maldade poderão alguma vez no futuro voltar à
bondade, por se mantém nelas a faculdade do livre-arbítrio? [...] Tu, que
estás lendo, se julga se é possível que, de alguma maneira, seja no das
realidades invisíveis e eternas, essa parte da criação ficará separada da
unidade e da concórdia final”.218
“É por isso que, mesmo o último inimigo chamado morte se diz que será
destruído de tal maneira que não haverá mais nada funesto onde a morte já
não existirá, nem diferente, por que não haverá mais inimigo. É preciso
compreender essa destruição do último inimigo não no sentido de que a sua
substância feita por Deus vai perecer, mas que o seu propósito e a sua
vontade de inimizade, que não provêm de Deus, mas dele mesmo,
desaparecerão”
Sobre essa passagem, Crouzel argumenta que não está evidente que a
morte, o último inimigo a ser destruído é o Diabo. Orígenes refere-se a morte como
substância, isto indica um determinado ser, dando a entender que seja o Diabo. A
incerteza de que o mestre alexandrino esteja falando realmente do Diabo dá-se pelo
fato de outras obras referir-se a morte como pecado com ausência de substancia.219
89
Essa ambiguidade origeniana sobre a morte como o último inimigo a ser destruído na
consumação dos tempos resultou na acusação, mesmo em vida, de ser
condescendente com o Diabo, tanto que numa carta que Orígenes faz em sua defesa,
quando ainda estava em Alexandria (Carta aos amigos de Alexandria), rejeita
substancialmente ter ensinado sobre a salvação do Diabo.220
“Não se julgue que tudo isso se realizará de repente: será pouco e por partes
numa sucessão de séculos intermináveis e imensos, quando gradualmente a
reforma e a correção se cumprirem em cada um[...] através da quantidade de
degraus inumeráveis, constituídos por aqueles que progridem e se
reconciliam com Deus, eles que antes eram inimigos, se chega ao último
inimigo chamado morte e à sua destruição, para que não seja mais
inimigo”.223
A criatura não pode ser aniquilada pelo mal existente nela, pois o mal é de
forma acidental, foi adquirido não é ontológico, isso levando em consideração também
semelhante a doutrina estoica da apokatástasis. Os estóicos postulavam uma sucessão infinita de eras
e que em cada era tudo aconteceria de forma idêntica, Orígenes refuta a primeira ideia com sua
esperança na apokatástasis como consumação final e a segunda hipótese contesta veementemente
(“Com efeito, se nós representamos um mundo perfeitamente semelhante a outro, será de tal modo
Adão e Eva farão de novo o que já fizeram [...] (Tratado sobre os Princípios II, 3,4). RAMELLI, 2013, p.
5.
223 ORÍGENES, 2012, III, 6, 6.
224 Ibid., I, 4, 3.
90
por ter sido criada a imagem e semelhança do seu criador, portanto é somente Deus
que pode tirar a maldade na criatura. Para Orígenes esta ação divina é puramente
graça : “é evidente que não está em nós o afastar a maldade; e se não somos nós que
agimos para colocar em nós um coração de carne, mas se é obra de Deus, não
depende de nós virtuosamente, mas será inteiramente uma graça de Deus”.225
É nesse panorama da ação divina como graça para libertar os seres racionais
da maldade que Orígenes compreende a encarnação como forma de restaurar a
disciplina perdida na queda por desobediência.
O Verbo encarnado pela sua obediência até a morte ensina aos pecadores
como reconciliar-se ao Pai.226 Esta instrução do Verbo permitirá a extinção do mal em
cada ser vivente, sem a presença do mal Deus poderá ser tudo em cada ser,
restaurando a condição original; “Não haverá mais discernimento do mal e do bem
porque já não haverá mal; pois que Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe.227
2.10. Conclusão
91
no meio dos pensadores cristãos. Portanto, fazer atribuição a Orígenes como o
pioneiro da doutrina apokatástasis é sustentar esse discurso teológico do autor de
forma isolada.
92
Como foi dito, o eixo norteador da noção de apokatástasis origeniana está em
que “Deus será tudo em todos”, essa noção parte dois dados cristológicos: à
preexistência do Verbo, nele está o princípio de toda a criação, “Nessa existência da
Sabedoria subsistente por si mesma estava presente, pois em poder e figura, toda
futura criação”,229 e submissão do Cristo ao Pai, “submissão do Filho ao Pai é afirmada
a perfeita restauração de toda a criação,”230 ou seja a salvação nele.
93
3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE QUEIRUGA
3.1. Introdução
Primeiramente pela própria condição histórica da fé cristã que ainda não foi
superada devido a cristandade a Igreja ter sido uma instituição controladora, por isso
fazer a releitura da apokatástasis a partir da teologia de Andrés Torres de Queiruga é
pertinente, devido sua preocupação em responder aos dilemas atuais da existência
humana com uma linguagem teológica eficiente afim de esclarecer a fé comum sem
abster-se da aproximação e diálogo com crentes e não crentes.
231QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Criação: Por uma religião humanizadora. Trad. João
Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1999a, p. 15-17.
95
manipuladas por conceitos pré-concebidos são extremecidas pelas convicções
profundas que surgem da consciência das crenças. Nisso há o desmoronamento de
convicções superficiais e ficam expostos os fundamentos que sustentam os princípios
da fé. Diante deste dinamismo existente na crise, que Andrés Torres de Queiruga
afirma que no campo da teologia as coisas não acontecem diferente. Isso porque a
Palavra de Deus na história é entregue ao ser humano, e o fato dela ser viva e real,
sempre dinâmica e ativa, ela não se detém em uma época ou lugar, de modo contrário,
essa Palavra atravessa épocas e gerações configurando-se e encarnando-se no
mundo cotidiano. É desta forma que ela se manifesta ao ser humano, que pode
configurá-la de forma aberta mas, ao mesmo tempo, pode ser de modo fechado.
A teologia sempre foi hermêneutica da fé. Faz parte de seu próprio conceito
e identidade. Reinterpreta e organiza os dados revelados vividos e
compreendidos na/ pela comunidade eclesial, em diferentes contextos
socioculturais e histórico. Caso não exerça essa missão, as formulações de
fé se tornam anacrônicas, reduzindo-se, com o tempo, à recitação de
fórmulas de pouca e insignificante inteligibilidade.233
96
convertendo-se em uma experiência efetiva, abstraindo-se do risco ser apenas uma
teoria abstrata ou uma doutrina sem vivacidade.
234 Foi Professor Associado do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e também
um grande estudioso do pensamento de Andrés Torres de Queiruga, e tradutor de várias de suas obras.
235 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a ressureição: a diferença cristã na continuidade das religiões
e da cultura. Trad. Afonso Maria Ligório Soares, Anoar Jarbas Provenzi. 2. ed. São Paulo: Paulinas,
2010a, p. 13-14.
236 GS, 12.
97
sobremaneira foram fundamentais e contribuiram com ideias inovadoras para o
Concílio, tais como Henry de Lubac, Marie-Dominique Chenu, e outros que vinham da
linha de pensamento sobre a volta as fontes e a aplicação do método histórico-crítico
da escola francesa de teologia a “NouvelleTheologie”. Assomando-se a esses
citados, outros grandes nomes da teologia com iniciativa inovadoras, Teilhard de
Chardin, Karl Rahner, Eduard Schillebeeckx e muitos outros.237 Em suma, o discurso
teológico queiruguiano que percorre as linhas do diálogo, da pluralidade, da análise
crítica que consequentemente implica numa quebra de paradigma no pensar
teológico, tem como herança, segundo as próprias palavras de Andrés Torres de
Queiruga no prólogo da obra Repensar a Revelação o teólogo e filósofo espanhol,
Angel María Amor Ruibal, inspiração para a sua tese doutoral em teologia a respeito
da constituição e evolução do dogma.238
98
3.3. Apokatástasis em Queiruga
240 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar o mal: da ponerologia à teodicéia. Trad. Afonso Maria Ligorio
Soares. São Paulo: Paulina, 2011, p.286. nota 160.
241 Ibid., p. 287.
99
história do ser humano como pura salvação”,242 mas não de forma intervencionista,
concepção que ainda continua presente, seja na linguagem popular que herda essa
noção da transmissão histórica e mesmo na linguagem teológica essa ideia
intervencionista de Deus continua persistente. Segundo o teólogo galego a ação
transcendente de Deus só visibiliza-se, ou seja, torna-se imanente a partir da ação
mundana da criatura, esta dialética entre transcendência e imanência é constitutiva
da ação salvadora de Deus.243Andrés Torres de Queiruga demonstra a sua total
preocupação em preservar a relação Divina na obra da salvação porém respeitando
a autonomia e liberdade da criatura.
Com referência às criaturas, Deus não faz alguma coisa ao lado delas, para
completá-las, nem em seu lugar, para supri-las. De outra forma, falar, do
exemplo, da ação de Deus em nós poder-se-ia perceber como roubo de
nossa própria ação ou anulação de nossa autonomia. E, ao contrário, falar de
nossa ação daria a impressão de que Deus nada faz. Precisamente porque
Criador, a ação de Deus nas criaturas é fazer com que elas façam. Deus “faz”
de verdade, mas em sentido único e singularíssimo, enquanto dele estão
continuamente se recebendo a si mesmas as criaturas tanto em seu ser como
em sua capacidade de agir. Mas, pela mesma razão, nada falta a sua ação
de criaturas: este ser e esta capacidade são-lhes realmente entregues, de
sorte que são elas mesmas que “fazem” suas ações, que verdadeiramente
são suas”.244
100
esforço do autor em garantir coerência no seu trabalho procura enfatizar uma
linguagem245 que ele resume como “a partir de baixo”.246
245 Mesmo o autor confessando sentir uma certa limitação pessoal sobre o tema nesta obra O que
queremos dizer quando dizemos “inferno”?, no seu livro Repensar o mal, Andrés Torres de Queiruga
a partir de novas referências de linguagem aplica-se no desenvolvimento do tema sobre o inferno a
partir da teodiceia. Cf. QUEIRUGA, 2011, p. 276-293.
246 QUEIRUGA, Andrés Torres. O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?. Trad. Paulo
da criatura e do desejo incansável do amor divino em salvar o sujeito, Deus salvaria apenas aquilo
quanto pode, ou seja, aquilo que a liberdade finita lhe permite, isto para preservar o aniquilamento da
criatura devido sua natureza ser boa, jamais poderia cair na inexistência, além de ir contra a
condenação ou morte definitiva e a autocondenação. Cf. QUEIRUGA, 1996, p. 58-70.
101
fundamentação com mais rigor na tradição oriental que possui uma corrente de
discurso pautado na possibilidade de mesmo depois da morte o sujeito constituído da
sua plena liberdade poder fazer exercício dela e converter-se, ou seja, permitir que
Deus o salve plenamente.
102
preocupada em interpretar de forma correta a Palavra de Deus, por isso é mais estrita,
porque busca nos textos bíblicos, nos Padres da Igreja e no Magistério a verdade
contida nos oráculos proféticos e na mediação da Revelação. A segunda proposta da
questão hermenêutica abarca o sentido largo, efetivamente leva em consideração a
interpretação dos textos da Revelação na Tradição viva da fé, já que está inserida na
história viva.250
103
Desse modo, sabendo que o eixo fundamental da teologia de Andrés Torres
de Queiruga é uma teologia encarnada, ou seja, parte da realidade histórica humana,
pode-se denominar uma teologia a partir debaixo, porém com base na chave
hermenêutica: Deus, como ato puro de amor e a autonomia da criatura. Portanto, a
releitura da apokatástasis no seu discurso teológico partirá deste propósito, que de
forma similar a Orígenes, que em contraposição a corrente cristã gnosticista fez um
esforço racional a partir de uma nova hermenêutica de ordem cosmológica,
soteriológica e antropológica afim manter-se sem desvios da tradição apostólica e dar
uma solução que não ferisse a ação providente de Deus e o livre-arbítrio dos seres
racionais.
104
Vale destacar que Gesché, no seu discurso teológico referente a questão
sobre Deus destaca, um marco importante na tradição judaico-cristã como
revolucionário perante as outras religiões.
253 GESCHÉ, Adolphe. O cosmos. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 92-
93.
254 QUEIRUGA, 1999b, p. 27-28.
255 Ibid., p. 53C.
105
3.4.1. Deus cria por amor
“O mesmo cabe afirmar do diálogo das religiões, enquanto todas elas são
também episódios na ação criadora-salvadora de Deus sobre toda a
humanidade. Eu mesmo tentei acolher esta perspectiva em uma obra de certa
amplitude: Recuperar a criação. Obra que, de modo mais significativo e sem
sequer pretendê-lo, mas sensivelmente conduzida pela lógica interna da nova
visão, se inscreve com naturalidade, aprofundando-a, na anterior Recuperar
a Salvação.258
106
dicotomia somente na linguagem filosófica mas que muitas vezes também alcança a
vivencia religiosa, mas para não cair apenas na abstração o autor procura inserir essa
realidade na vivência afetiva e cotidiana.
“Deus é Deus” (ou ele não é). Portanto, ele não pode ter necessidade de nada
para ser, para “se tornar”. Ele é completo. A esse respeito, digamos bem
claramente e ao contrário de todos os dicionários que identificam Deus como
Criador, que o termo “criador” não define e não é seu nome próprio (se há um
nome conhecido de Deu, é o de Pai). Deus “é” criador no sentido gramatical
e lógico do verbo ser, porque efetivamente criou; mas ele não é criador no
107
sentido ontológico do verbo “ser” e no qual o termo criador receberia sua
definição, sua natureza, seu ser. A criação é um ato (livre) de Deus, não o
que o constitui, e o fato de ser criador o qualifica, porém não o expressa de
nenhum modo”.262
Deus sendo Deus mesmo e sua ação ser plena gratuidade em relação a sua
criação, André Torres de Queiruga não nega que a tal onipotência é abstrata, afinal
não há uma visibilidade clara desse agir amoroso de Deus. Na maioria das vezes nem
damos conta de agir do seu amor gratuito, mas este véu que encobre esse agir divino
está ligado ao funcionamento correto e concreto da realidade.
“Não damos conta de que por sua parte limites existem, evidentemente: em
si mesma e em abstrato, sua onipotência pode tudo; mas em seu
funcionamento concreto, a onipotência diz em relação ao outro, e o outro
necessariamente tem limites: o círculo não pode, sem desaparecer, fazer-se
quadrado , e a liberdade finita não pode, sem anular-se, ser forçada a fazer
sempre o bem. Deus, pelo que lhe diz respeito, “pode” tudo e quer o melhor
para todos nós; mas nem tudo “é possível” em si mesmo. O amor de Deus
consiste em “estar sempre trabalhando” (cf. Jo 5,17), contra toda inércia e
resistência por nós e por nossa salvação”.263
108
concreto possa evidenciar a gratuidade da criação e a autonomia da criatura: “criação-
crescimento histórico culminação em Cristo – tempo da Igreja-Gloria”.266
Reconfigurar essa ideia de uma criação que possui dois momentos históricos
diferentes, um antes da queda e outro pós-queda, passa também pela noção de
mundo criado conforme a perspectiva de Gesché, que entende o cosmo como lugar
da salvação, é de fato o lugar da humanidade, o habitat, a casa dele, é neste lugar
que que a humanidade encontra o sentido de alteridade, é no cosmo o lugar da
preocupação ética, mesmo que forças alienantes (cultura, economia, política e
questões morais) possam impedi-lo de evoluir, mas é o lugar em que a humanidade
possa “praticar o direito, proclamar a justiça, e tratar o outro como fim e não como
meio”.268
109
Esta exigência ética que só pode ser exercida no habitat da criatura, deve
situar-se na dialética Deus-criatura, na qual ética irrompe como resposta da criatura a
Deus, e partindo desta dinâmica André Torres de Queiruga, de expor a ação de Deus
por meio da criatura e a criatura que na sua liberdade tem seu agir em Deus porque é
sustentada por ele.
Esse movimento entre ação divina e ação criatural André Torres de Queiruga
evidência a ação de Deus, mas desvinculando do imaginário de um agir divino
intervencionista, em que Deus do seu lugar resolve em certos momentos da história
coletiva ou individual agir, de modo que se for considerado um agir divino a partir
desse horizonte a autonomia humana praticamente fica anulada. Andrés Torres de
Queiruga dentro do seu conceito teológico, em que também envolve a liberdade
humana, afirma que a ação divina é fazer com que as criaturas o façam, sem romper
com a autonomia delas, ou seja, a ação é sempre dela, é deste agir criatural em Deus
que torna-se visível e real a ação divina, mas convém não fazer uma concorrência
entre Deus e o ser humano cada qual no seu agir, mas perceber que há uma unidade
na ação, ou seja, uma co-realização, o ser humano e Deus agindo cada qual no seu
plano em prol do amor.270
“Deus age na mesma ação da criatura, e essa age sustentada pela ação
divina, a qual é de ordem transcendente e só toma corpo empírico agindo
através daquela, que por sua vez só existe enquanto apoiada na divina:
agimos porque Deus age (ordem transcendente); e Deus age de maneira
eficaz no mundo porque agimos nós (ordem categorial).271
110
Essa ação de co-realização dinâmica do amor entre Deus-criatura no ponto
de vista religioso e, principalmente, a partir da confissão de fé cristã, não é estranho
ao pensamento de um crente, mas entender essa resposta a partir da liberdade de
um não crente ainda causa estranhamento, por ser difícil enxergar a relação Deus-
criatura. Andrés Torres de Queiruga busca a solução a partir de Deus, que por amor
sustenta desde o princípio e impulsiona todas as criaturas a realização, é muito feliz
em dizer que o ser humano não é só cérebro, é um ser integral e que muitas de suas
ações também são expressões do divino, por isso já são respostas ao seu chamado
fundamental. Portanto o que deve prevalecer é a honestidade autêntica, e que tal
autenticidade dever corresponder tanto no âmbito da fé religiosa quanto no âmbito
não crente.273
2010b, p.17.
111
o lugar da revelação desse Deus que se Revela é a chamada história profana, é no
mundo, na história da humanidade que Deus quer elevar a humanidade a realização
plena, ou seja, a sua salvação, a história profana é a realidade salvífica que Deus quer
sustentar, agir e elevar sua criatura.276
A Revelação não pode ser ponto de discórdia entre crentes e não crentes, ao
invés de debates agressivos o ideal é o diálogo, este esforço condiz com a proposta
da revelação, que é tornar o ser humanos mais realizado, Schillebeeckx comunga
deste conceito de Revelação:
276 SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana: Revelação de Deus. Trad. João Rezende Costa. São
Paulo: Paulus, 1994, p. 29.
277 QUEIRUGA, 1999b, p. 31.
278 QUEIRUGA, 2010b. p. 20.
112
humana (no nível do material da revelação de Deus), podem falar, quer
crentes quer não-crentes, uma linguagem comum sobre este processo. É
possível haver acordo aí, assim como também cooperação. Decisivo não é,
portanto, o expresso reconhecimento de Deus, mas a pergunta: por que lado
eu decido na luta entre o bem e o mal, entre opressores e oprimidos?279
Por meio de uma linguagem comum entre crentes e não crentes na luta contra
o mal, Andrés Torres de Queiruga entende que mesmo o mundo contendo a presença
do mal, ainda vale a pena, apesar do mal, Deus se revela como amor ao dar a
existência a este mundo. Esta iniciativa de Deus a partir do amor não acontece fora
do mundo, mas a partir dele, ou seja, da própria história, Deus quer a sua definitiva e
plena realização, que consiste na vitória do bem sobre o mal.280
do diálogo socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a
maiêutica (maieutiké techne). Mediante sua palavra tira para luz – “ajuda a dar à luz” – o que estava
dentro do interlecutor. Como no caso famoso de Menon (80d-86d), em que o escravo, graças às
perguntas de Sócrates, consegue “descobrir a geometria”, a maiêutica faz o interlocutor descobrir,
engendrar ou dar à luz a verdade que leva em si mesmo. QUEIRUGA, 2010b, p. 119.
282 Ibid., p. 105-106.
283 Ibid., p. 106.
113
esclarecedora, já que expõe os pontos principais deste conceito da revelação em
Andrés Torres de Queiruga.
114
fixismo dogmático que traz à tona a ideia de verdades sempre imutáveis, mas também
não pode haver o descuido de deixar cair num relativismo que abdica de qualquer
verdade ou valor.287
115
uma solução satisfatória, devido ser considerada uma terceira categoria entre graça e
natureza,288
Já que não se pode pensar graça sem natureza, e natureza sem graça o
teólogo galego para chegar numa concepção ativa de desenvolvimento entre natureza
e graça (sobrenatural) se apoiará nas ideias de von Balthasar e Juan Alfaro, afirmando
que há uma “ordenação dinâmica” para a compreensão da revelação na dimensão
real e histórica e a dimensão transcendente e real.
116
sujeito. Por isso, não cabe somente analisar a culminância da realização humana na
revelação levando em consideração somente a denominação religiosa, mas a pessoa
em si. Desta maneira, perante também a questão da revelação, a teologia
queiruguiana utiliza o termo autenticidade como ponto comum entre pessoa humana
religiosa e pessoa humana não religiosa. Esta questão da autenticidade aponta para
a realização honesta da vida humana na luta contra o mal para que possa alcançar
nela a plenitude da revelação divina.
117
Torres de Queiruga, que absorve uma hermenêutica teológica do repensar, recuperar
os conceitos fundamentais deste dado da fé.
Por isso, a reflexão queiruguiana sobre a salvação procura ter como elemento
basilar “Deus é amor”, que o próprio autor vê nesta chave hermenêutica uma
capacidade de sozinha manter a esperança no mundo.293
“Deus, porque quer, desde a absoluta iniciativa de seu amor, salva o ser
humano, que se encontra assim com o fato – indicativo – de ser “alguém
salvo”. Mas Deus, porque quer realmente salvar, respeitando a irrenunciável
liberdade do que foi salvo, não força o ser humano, mas antes o chama –
imperativo – para essa salvação que já é sua, embora somente possa
florescer nas responsabilidades de sua resposta.294
118
A partir desta ótica, Andrés Torres de Queiruga que supera a noção imatura
de fé muitas vezes medida somente do ponto de vista doutrinal, ou como apenas um
encargo de obediência uma fé vinda de fora, porém ele qualifica esta fé como:
296Ibid., p. 61.
297 “A ponerologia (do grego ponerós, “mal”) deve construir um tratado do mal em si e por si mesmo,
com procedência estrutural a toda opção religiosa ou não religiosa. Numa cultura autônoma, esse é o
procedimento normal diante de todo o problema humano fundamental, como a liberdade, a consciência
ou a culpa. A pisteodicéia (do grego pistis,fé, aqui no sentido amplo, filosófico e relativo à cosmovisão,
de configuração da própria existência). Não indica um tratado concreto, mas antes uma mediação
necessária, na medida em que esclarece a necessidade comum de uma mediação metódica para
“justificar” a resposta da “cosmovisão” que, de modo explícito e meditado, todos nós adotamos perante
a realidade do mal”. QUEIRUGA, 2011, p. 33.
119
mundo sem mal e entende-o como autônomo. Isso porque o questionamento parte do
ponto de vista filosófico e religioso. Dessa forma, a compreensão de um mundo sem
mal é o mesmo que pensar em um círculo-quadrado, isso porque é inerente a própria
existência do mundo, a finitude. Está aí a condição do mal presente nele, e a coerência
da pisteodicéia, agora cristã, apoia-se na profissão de fé em um Deus que é amor,
mas que o mal presente no mundo não é porque ele quer ou permita, mas porque não
é um problema Seu, mas sim, da condição própria de finitude da criatura. Porém, essa
condição é do ente e não do ser de sua criação. No entanto, esse Deus que cria por
amor é um Deus Antimal, porque não abandona a sua criação, ele sempre está com
ela, sustentando-a contra o mal, e a grande manifestação desse Deus que é amor e
Antimal, para os cristãos é historicamente realizado na cruz e ressurreição de Cristo
dando a todos que nele creem, a esperança da vitória sobre todo mal.298
120
romper uma impotência e não negar uma dívida; potencializar em vista da plena
realização e não retirar um castigo”.300
121
morte. Porém, a ideia de ressurreição ainda não era plena, já que havia o problema
do destino do cadáver e a questão temporal (os três dias antes da aparição). Com
uma hermenêutica paradigmática o pensamento teológico queiruguiano sobre
ressurreição de Jesus, afirma que a primazia da ressurreição de Jesus serve de
exemplo para a nossa ressurreição, e isso não isenta de que esse processo da
ressurreição já não fosse dessa forma com todos aqueles que morreram antes dele,
devido essa primazia estar sustentada no seu modo específico, na sua excelência,
em uma prioridade de dignidade.
122
acabada, porque a sua realização plena acontecerá quando os outros que ainda estão
a caminho, e estiverem livres da presença do mal possam formar a comunhão dos
santos que ainda incompleta, se tornará plena. André Torres de Queiruga fundamenta
este discurso teológico na expressão paulina sobre a “salvação da esperança”, em
que a morte, último inimigo a ser destruído, torna-se caminho onde todos iremos entrar
rumo ao desejo de Deus, cujo fim é que “Deus seja tudo em todos” (1Cor, 15, 28).305
123
Jesus nos dá esperança da nossa realização plena e transcendente que é a
ressurreição:
124
salvação humana não constitui uma metáfora superficial nem uma depreciação dele,
mas a sua mais profunda e autêntica realização”.310
125
3.5. Conclusão
“Deus quer de verdade para o ser humano: sua salvação, sua realização
plena, sua felicidade total”.314 Esta afirmação de Andrés Torres de Queiruga coincide
com a ideia origeniana da apokatástasis para que “Deus seja tudo em todos” (Cf.1Cor
15,28). “Não haverá mais discernimento do mal e do bem porque já não haverá mais
mal; pois Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe”,315 sendo esta consumação e
restauração alcançada pela progressão humana num processo de instrução pautado
em Cristo, na qual submeterá o Reino ao Pai,316 em ambos discursos a aproximação
acontece a partir do Amor de Deus e a autonomia humana.
Diante da análise feita por Andrés Torres de Queiruga na qual sua posição
crítica sobre a apokatástasis de Orígenes é o verticalismo em excesso, e sabendo que
o seu discurso teológico parte da realidade histórica, ou seja, a partir de baixo – que
seja bem claro que o teólogo galego não descarta a realidade transcendente –
simplesmente por tratar-se de uma esperança e por não haver uma compreensão
plena da vida na Glória, apenas lampejos que a revelação na história nos dá rumo
para esta realidade eterna, que pode ser tratada como uma novidade enxertada na
vida humana. No entanto, o melhor caminho a seguir é identificar na realidade histórica
o amor infinito de Deus no qual todos seres humanos estão inseridos.317
126
Em Cristo temos a certeza de que Deus é Antimal, e conta com o nosso
esforço e luta contra o mal, ele age a partir do agir humano, para o alcance do seu
desejo, a plena realização humana.
127
Abbá de Cristo, em vista disso, requer o reconhecimento de uma verdadeira filiação e
o reconhecimento dos demais irmãos.321
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O próprio Andrés Torres de Queiruga reitera que é uma ação ingênua o ser
humano descartar a esperança transcendente para sustentar-se apenas no que se
refere ao progresso humano terrestre, ou mesmo na evolução cósmica como
realização humana, e que a própria história mostrou que tal esperança é frágil e
ineficiente, devido a própria impotência humana, mesmo com todo seu aparato de
avanços tecnológicos, vê ainda progredindo a violência, a injustiça, a opressão e a
destruição do próprio habitat, ou melhor, o meio ambiente.323
129
transfigurar o futuro, retirando dele a realidade ameaçadora da morte e
transformando-o numa alegre antecipação de um tempo em que a perfeição chegará,
e com isso o determinismo da morte é superada pelo poder da ressurreição, dá a vida
e a existência plenitude a cada indivíduo, esta é a possibilidade que esperança nos
dá.324
324ALVES, Rubem. Da esperança; tradução. João-Frencisco Duarte Jr. Campinas: Papirus, 1987, p.
189.
130
[...]porque isso equivaleria anular a criatura. Creio que agora é mais fácil de
compreendê-lo. Precisamente pela imensa grandeza da salvação, que exige
essa dialética essencial que descobríamos no início deste parágrafo:
novidade radical, mas em continuidade com a vida. Se a imensa grandeza da
glória, sua inaudita novidade, fosse dada ao ser humano sem mais nem
menos, este acabaria ficando totalmente anulado: não seria ele.” 325
Fantástico vislumbrar essa dialética entre Deus que é amor e, por isso, quer
a realização da sua criação respeitando a autonomia do ser humano, que pode
responder a esse desejo de Deus a partir da realidade histórica, que podemos traduzir
como luta, combate contra o mal.
131
preocupação de tornar esse chamado à santidade, encarnada no contexto atual, com
seus riscos, desafios e oportunidades.330 Esse chamado à santidade ele traduz na
Evangelli Gaudium como o Reino que nos chama e espera uma resposta de cada ser
humano dada no amor, e que na “medida que Ele consegue reinar entre nós, a vida
social será o espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.331
Portanto, existe uma conexão íntima entre evangelização e promoção humana, aquele
que atende essa resposta reage sempre fazendo o bem aos outros.332 Nisso fica
demonstrado o critério de totalidade que o Evangelho possui, que visa fecundar e
curar todas as dimensões humanas e uní-los em torno da mesa do reino,333 a
realidade do Reino inevitavelmente alheia ao desenvolvimento pleno da vida humana
e, para isso o Papa Francisco, escolhe duas questões fundamentais no compromisso
da fé com a vida que são a inclusão social dos pobres e o diálogo social.334
330 GE, 2.
331 EG, 180.
332 EG, 178.
333 EG 237.
334 EG 185.
335 Esta é uma citação que o Papa Francisco faz sobre o discurso feito por Bento XVI na inauguração
132
Podemos como cristãos também tirar proveito e enriquecer nossa fé a partir desta
proposta de diálogo com os não crentes.
339
PAGOLA, José Antonio. Jesus aproximação histórica.Trad. Gentil Avelino Titton. 7.ed. Petrópolis:
Vozes, 2014, p. 28.
133
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