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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do


pensamento de Andrés Torres Queiruga

Mestrado em Teologia

São Paulo
2019

0
Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

PUC-SP

Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do


pensamento de Andrés Torres Queiruga

Mestrado em Teologia

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como exigência
parcial para a obtenção do título de
MESTRE em Teologia Pastoral, sob a
orientação do Prof. Dr. Antonio
Manzatto

São Paulo
2019

0
Edevaldo Rocha

A releitura da apokatástasis na teologia contemporânea a partir do


pensamento de Andrés Torres Queiruga

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como exigência
parcial para a obtenção do título de
MESTRE em Teologia Pastoral, sob a
orientação do Prof. Dr. Antonio Manzatto

Aprovado em: __/__/____

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

_____________________________________________
AGRADECIMENTOS

A Deus, minha rocha, onde encontro o meu


refúgio, meu escudo, força de minha
salvação (Sl 17,3).
Agradeço a toda minha familia. Com seu
apoio e incentivo favoreceram a conclusão
desta etapa de minha carreira acadêmica.
Agradeço também à ADVENIAT pelo
incentivo em forma de desconto durante
toda a jornada deste curso.
RESUMO

A doutrina da apokatástasis é um tema da teologia patrística que permanece presente


nos debates teológicos nos dias atuais. Orígenes de Alexandria, homem de extrema
erudição, é considerado o grande protagonista no desenvolvimento sobre o conceito
de apokatástasis devido a ressignificação atualizada para o seu contexto histórico. O
objeto desta dissertação é a apokatástasis, conceito que era linguagem corrente da
antiguidade, sobretudo no mundo grego, seja nos ambientes profano, filosófico e
teológico. Esta polissemia referente a apokatástasis será relevante na análise em
todos ambientes citados, especialmente entre alguns Padres da igreja que usavam
como comunicação da mensagem salvífica o idioma grego, neste contexto insere-se
Orígenes (sec. III), filósofo e exegeta que possui o intuito pastoral de comunicar a
mensagem cristã conforme a ortodoxia na sua comunidade, sobretudo entre os
intelectuais que pendiam para as argumentações das correntes gnósticas da época.
Nesta circunstância vê-se um dado fundamental para a releitura da apokatástasis, por
estar vinculado a prática de fé, ou seja, teologia e vida de mãos dadas, uma situação
que é viva na Igreja contemporânea graças ao impulso dado pelo Concílio Vaticano
II. A teologia de Andrés Torres de Queiruga corresponde a proposta conciliar, devido
sua reflexão teológica ser assumidamente uma teologia “a partir de baixo”, encarnada
na realidade. Este é o ponto crucial da teologia queiruguiana para a releitura da
apokatástasis, que tem uma proposta universal e dialogal diante de uma sociedade
plural e movida pela crítica a-religiosa. O itinerário para essa releitura perpassa pela
dialética de um Deus que é amor e a autonomia da criação, praticamente os mesmos
pressupostos da teologia origeniana. Neste itinerário entre a teologia da apokatástasis
origeniana até a queiruguiana, cabe nesse trabalho, identificar o processo contínuo
da Revelação, que sempre se atualiza em favor da salvação humana. Seja no âmbito
histórico ou transcendente, evidentemente sem rejeitar a liberdade humana, sendo
capaz de apontar uma teologia prática que diante desafios do mundo pós-moderno
possa por meio da esperança em Cristo ser estímulo a todo ser humano realizar-se
plenamente na superação do mal e, com isso, alcançar salvação universal tão querida
por Deus.

Palavras-chave: Apokatástasis; salvação; releitura; autonomia; mal.


ABSTRACT

The doctrine of apokatastasis is a theme of patristic theology that is present in today's


theological debates. Origins of Alexandria, man of extreme erudition, is considered the
great protagonist in the development on the concept of Apokatástasis due to a
resignification for its history. The object of this dissertation is an apokatastasis, a
concept that is a common language of antiquity, especially in the Greek world, in the
profane, philosophical and theological environments. This polysemy about
apokatástasis is relevant in an analysis in any environment in a text, especially
between some Padron’s of the world communicating to message salvific in the
language, which context in the species (sec. III), philosopher and exegete that has the
pastoral intention of communicating a Christian message according to the orthodoxy
of his community, especially among the intellectuals who appear as arguments of the
Gnostic currents of the time. This is found in the fundamental of a relegation of
apokatastasis, by be linked to the practice of faith, that is, theology and life of hands
given, a situation that is alive in the contemporary conveillance along the concordance
of the Vatican Council II. A theology of Andrés Torres de Queiruga corresponds to a
proposal from below, embodied. This is the point of the fundamental the dialogue of a
plural society and moved by the religious critic. The itinerary for this rereading pervades
the dialectics of a God who is love and an autonomy of creation, since the
presuppositions of the original theology. This itinerary between the vocabulary of
apokatastasis origeniana to the Queiruguiana, enchanting, the identifier continuous,
and the software monitoring, that always the updates of the human monitoring.
Whether it is in the historical or transcendent scope, evidently without rejecting human
freedom, being able to mark a theology that is faced with the postmodern world, it may
be through hope in Christ that a human being is fully realized in overcoming evil and,
thereby exposing universal so dear to God.

Keywords: Apokatastasis; salvation; rereading; autonomy; evil.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS ................................................. 16
1.1. Introdução ................................................................................................. 16
1.2. Fenômeno intercultural e a inculturação da fé nos primórdios do
cristianismo .............................................................................................. 17
1.2.1. A linguagem no processo de inculturação da fé cristã no mundo
helênico ...................................................................................................... 20
1.2.1.1. A hermenêutica do termo apokatástasis no ambiente profano ..............22
1.2.1.2. Apokatástasis no estoicismo ................................................................ 24
1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico ................ 27
1.2.2. A apokatástasis no versículo bíblico At 3,21 ............................................... 29
1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento ..................................... 32
1.3. A compreensão da apokatástasis em alguns Padres da
Igreja .......................................................................................................... 33
1.3.1. Inácio de Antioquia e a apokatástasis ......................................................... 34
1.3.2. Justino e a aposkatástasis .......................................................................... 36
1.3.3. A apokatástasis em Teófilo de Antioquia .................................................... 38
1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião .............................................................. 39
1.3.5. Apokatástasis em Clemente de Alexandria ................................................ 41
1.3.5.1. A gnose clementina ............................................................................. 43
1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis ......................................................... 48
1.3.5.3. Etapa escatológica da apokatástasis ................................................... 50
1.4. Conclusão ................................................................................................ 52
2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE
ORÍGENES .................................................................................................. 54
2.1. Introdução ................................................................................................. 54
2.2. O perfil teológico de Orígens ................................................................... 55
2.3. As correntes gnósticas mais influentes no período histórico de
Orígenes .................................................................................................... 58
2.3.1. O Marcionismo e o anti-judaísmo ............................................................... 59
2.3.2. A escola Valentiniana ................................................................................. 60
2.3.3. Basíledes ................................................................................................... 61
2.4. Orígenes, soluções viáveis na obra Tratado sobre os príncípos para as
questões gnósticas .................................................................................. 62
2.4.1. Refutação ao Marcionismo ......................................................................... 63
2.4.2. O método alegórido como método de refutação contra Valentim e
Basílides ..................................................................................................... 64
2.5. O vocábulo apokatástasis como expressão de linguagem na reflexão
teólogica de Orígenes .............................................................................. 66
2.6. Orígenes e a perspectiva Cristológica da apokatástasis ...................... 69
2.6.1. A teologia origeniana da encarnação como processo apokatástico .......... 72
2.7. A perspectiva antropológica da apokatástasis em Orígenes
fundamentado em sua noção de preexistência ..................................... 74
2.8. O conceito tricotômico antropológico de Orígenes no processo
apokatástico ............................................................................................. 76
2.8.1. O Espírito ................................................................................................... 78
2.8.2. A Alma ........................................................................................................ 78
2.8.3. A Corporalidade ......................................................................................... 80
2.9. A perspectiva soteriologica na apokatástasis em Orígenes ................. 82
2.9.1. A purificação humana pelo fogo divino como processo apokatástico ......... 85
2.9.2. Apokatástasis como conceito de salvação universal: uma proposta de
esperança em Orígenes ............................................................................. 88
2.10. Conclusão ................................................................................................. 91
3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE
QUEIRUGA .................................................................................................. 94
3.1. Introdução ................................................................................................. 94
3.2. O perfil teológico de Andrés Torres de Queiruga .................................. 95
3.3. Apokatástasis em Queiruga .................................................................... 99
3.3.1. A releitura da apokatástasis em Queiruga ................................................ 102
3.4. Atributos contemporâneos da apokatástasis na teologia de Queiruga
.................................................................................................................. 104
3.4.1. Deus cria por amor .................................................................................. 106
3.4.2. A Revelação divina queiruguiana ............................................................ 111
3.4.2.1. A Revelação a partir da maiêutica histórica ........................................ 113
3.4.2.2. A ultimidade da Revelação ............................................................... 115
3.4.3. A soteriologia queiruguiana ..................................................................... 117
3.5. Conclusão ............................................................................................... 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 134
INTRODUÇÃO

Para se tratar sobre a teologia da apokatástasis é incontestável a referência


à Origenes sobre esse discurso teológico. Vale ressaltar que Orígenes não foi o
primeiro e nem o ultimo a tratar deste tema, evidentemente a relevância dele sobre a
apokatástasis se dá pela sua genialidade intelectual que culminou na sua grande
obra , que devido uma sistematização eficiente e inédita na teologia ,“O Tratado sobre
os princípios”, tratou extensivamente sobre a apokatástasis, porém de forma
especulativa sem se impôr como uma verdade irredutível. Neste contexto pode ser
somado o destaque de Orígenes diante deste assunto a sua condenação póstuma,
que nunca impediu do tema apokatástasis voltar aos debates teológicos.

Outro ponto a ser levado em consideração referente a Orígenes diante de sua


abordadagem sobre a doutrina da apokatástais é a sua preocupação pastoral que
envolvia os desvios da fé transmitida pelos apóstolos: “Ora, uma vez que há muitos
desacordos entre aqueles que professam a fé em Cristo”.1 É neste cenário da vida
cristã, no periodo histórico origeniano, na qual Luigi Padovese destaca o papel dos
padres na patrística que desenvolveram uma teologia orgânica em vista de manter
firme a essência da mensagem cristã e a primordialidade de tornar essa mensagem o
mais próxima possivel de todas as pessoas. Isso demonstra que o discurso teológico
na patrística é de cunho pastoral, ou seja, é um serviço prestado a comunidade de
acordo com as exigências de seu tempo. Portanto a atividade pastoral sacerdotal
neste período estava pautado no ministério do anúncio.2

Neste contexto de uma teologia atrelada a vida de fé em contraposição a uma


teologia que posteriormente será mais teórica, Clodovis Boff confirma a concepção de
Luisi Padovese, quando diz que entre os Padres da Igreja da era patrística havia uma
unidade simples na sua teologia. Mesmo que houvesse vários temas a serem
tratados, era tudo realizado numa profunda unidade, a essência desta teologia estava
na “visão cristã do mundo”, denominado por Doctrina Christiana.3

1 ORÍGENES. O tratado sobre os princípios. Trad. João Eduardo Basto Lupi. São Paulo: Paulus, 2012,
Pref. 2.
2 PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 38-39.
3 BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 610.

9
A reflexão sobre a fé é dinâmica por estar inserida na história humana e dentro
desta perspectiva o Concílio Vaticano II é fundamental. Andrés Torres de Queiruga
afirma na sua análise sobre Concílio após 50 anos que o vê como o mais universal
devido sua consciência da historicidade da revelação e de suas interpretações, por
isso ressalta dois aspectos fundamentais que estão implicados um ao outro, sendo o
primeiro a valorização que o Concílio deu sobre o sentido histórico, que ao seguir as
pegadas do Papa João XXIII no desejo de um aggiornamento, avistou a possibilidade
desta realização devido a própria necessidade que a história exigia. O outro aspecto
é universalização que esta ligado a cultura, a convivência humana e inclusive a
aproximação com as demais religiões.4

Nesta dialética entre patrística e Concílio Vaticano II fica evidenciado a


unidade entre teologia e vida, ou seja, o segundo evento histórico aqui demonstrado
resgatou a unidade teologica que havia nos primórdios. Clodovis Boff confirma esta
ação conciliar do Vaticano II na retomada do compromisso social no discurso
teológico, promovendo a vinculação entre fé-vida, mas agora a partir de uma
sociedade já modernizada que reconhece a sua própria autonomia.5

Ao considerar que teologia e vida estão intimamente unidas cabe visibilizar,


no contexto da vida atual, os desafios desta teologia, ou seja, a difícil missão da igreja
de proclamar a salvação que Deus nos oferece em Cristo, porém com uma linguagem
dialogal sem prescindir dos seus valores de fé, portanto, com a capacidade de
comunicar a ação salvífica sem nenhum tipo de acepção de pessoas já que diante de
Deus somos todos iguais.

O papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, dedica um


capítulo inteiro com o intuito de animar a comunidade de fé aos desafios na ação
evangelizadora.6 Isso envolve estar vigilante sobre os sinais dos tempos, e cuidar para
que não haja precipitação em soluções desumanizadoras, o que requer sempre

4 QUEIRUGA, Andrés Torres de. A teologia e a Igreja depois do Vaticano II. In: BRIGHENTI, Agenor;
HERMANO, Rosario (orgs.). A Teologia da Libertação em prospectiva: Congresso Continental de
Teologia, Conferências e Painéis. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013.
5 BOFF, 2015, p. 614.
6 O Capítulo II da Evangelli Gaudium com cinquenta e nove parágrafos é dedicado aos desafios da

evangelização seja ad intra ou ad extra eclesial.

10
discernimento e, também, a opção por aquilo que é bom, para capacitar os fiéis a
fazerem as escolhas que condizem com o projeto do Reino de Deus.7

Enumerar os grande desafios na sociedade hodierna alongaria muito este


trabalho, mas, dentro daquilo que é a preocupação da Igreja como adversidade no
mundo atual, pode-se resumir nos males que ferem a dignidade humana, a injustiça
social e econômica que afeta milhões de pessoas, a intolerância seja ela racial, de
gênero ou religiosa assim como sistemas opressores seja ele econômico, político ou
tecnológico. Evidentimente outro desafio é o cuidado da casa comum, que está sendo
desrespeitada com uma exploração massante e sem nenhum pudor.

Estes fatos da vida moderna apontam para os desafios e novos horizontes


para a Igreja de hoje. Nestas circunstância a teologia contemporânea tem papel
fundamental em desenvolver uma linguagem teológica que conste o desejo do
Concílio Vaticano II, ou seja, que leve em consideração o sentido histórico, isso
equivale reconhecer a autonomia do sujeito e a autonomia do mundo e suas leis,
questões marcantes da modernidade, pode-se acrescentar também o desejo de uma
comunicação da mensagem salvífica de Deus de modo mais universal que aponta
para a aproximação e diálogo distintivamente do modelo apololgético, afirmando
aquilo que é próprio da a essência cristã que é a comunhão. Esse método de
linguagem teológica facilita a harmonização com as outras religiões e com os não
crentes.

O teólogo galego Andrés Torres de Queiruga aborveu e compreendeu muito


bem a ideia conciliar. O fato deste concílio ter aberto as janelas e as portas da igreja
para o exterior favoreu o desbloqueio e a recuperação de um caminho em que a Igreja
estava muita atrasada e longe da caminhada atual. Acrescenta, também, que a atual
conjuntura da sociadade moderna possui uma dinamicidade muito veloz que produz
uma mutação sociocultural frenética.

Esse desafio frente ao que é novo com certeza é pertubador e gera medo,
mas isso é inerente a toda novidade. Essa tarefa desafiadora ele nomeia de “tarefa
supersaturada”, que cabe agora a partir da fé e com o respeito as autonomias da
criação se apresentar diante do mundo unido no diálogo, no amor e na esperança.

7 EG, 51.

11
Todo esse aparato proposto por Andrés Torres de Queiruga é abundante na sua
linguagem teologica.8

Diante da novidade ele – nos grandes temas da reflexão teológica – desafia


a repensar, a recuperar, não para jogar forar um passado histórico da fé cristã, mas
para ajudar a Igreja caminhar junto com a sociedade moderna e, a partir de uma
proposta teológica coerente de um Deus que é ato puro de amor e que por isso
respeita a liberdade da sua criatura, responder ao seus dilemas.

O eixo norteador deste trabalho é hermenêutico, e o objetivo específico é


compreender a apokatástasis, que perpassa por uma multiplicidade de dados
fazendo-se necessário uma releitura.

O primeiro dado sobre a releitura da apokatástasis tem origem na


preocupação do Concílio Vaticano II de buscar um aggiornamento enquanto Igreja,
mas tendo como instrumento as fontes do cristianismo, ou seja, a partir dos “Padres
da Igreja”. Assim, portanto, se obter a inspiração de reformar-se, dado que “a reflexão
de fé dos padres é marcadamente bíblica, litúrgica, crístico-eclesial, inculturada e
plural”.9

Outro dado importante é a polissemia do termo oriundo de um ambiente


helenista, visto que a origem da fé cristã se deu dentro da cultura semítica,
possibilitando a formação de uma comunidade judaico-cristã em seu primeiro
momento eclesial. Como foi dito acima a questão da inculturação será fundamental
para a compreensão deste vocábulo.

Acrescenta-se outro dado para o objetivo da pesquisa sobre a apokatástasis


por meio do novo sentindo que Orígenes vai empregar para o termo, praticamente
formulando uma doutrina, todavia com carater apenas especulativo. Ele parte de uma
teologia orgânica que era próprio da patrística (cosmogonia, cristologia e soteriologia)
com intuito de responder aos cristãos intelectuais de seu tempo que estavam se
desviando do ensino apostólico.

8QUEIRUGA, In: BRIGHENTI; HERMANO (orgs.), 2013.


9
LIBANIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. 5.ed. São Paulo:
Loyola, 2005, p.118.

12
Ao constatar-se a incompreensão posterior sobre a reflexão teológica de
Orígenes no que se refere a apokatástasis gerou-se-lhe uma futura condenação e, de
certa maneira, possibilitou-se uma polaridade entre os Padres sobre sua teologia.
Aqueles que simpatizaram com a ideia não deixaram-na cair no ostracismo e, como
foi dito, ao Concílio Vaticano II ao ativar o interesse sobre a teologia dos padres da
Igreja, Orígenes foi um dos escritores cristãos da patrística cuja teologia voltou a ser
analisada, inclusive a apokatástasis.

Mais um dado importante é o fato de Orígenes entender a apokatástasis como


o fim da criação em Deus, já que teve origem nele mesmo, porém toda a diversidade
existente na criação é fruto do livre-arbítrio. Portanto, a dialética bondade divina e
livre-arbítrio é presente no discurso teológico origeniano e, pelo fato de ser um
discurso especulativo, faz crer que essa noção de apokatástasis para Orígenes não
era uma questão infalível, senão apenas uma esperança.

Todos esses dados auxiliam na justificativa da escolha de Andrés Torres de


Queiruga na releitura da apokatástasis, visto que tem uma linha teológica “a partir de
baixo”, da realidade concreta da história. Pois, enxerga no mundo religioso uma crise
frente a crítica a-religiosa, ainda impregnada de mitologismos e de uma heteronomia
que, numa sociedade pós-moderna em que prevalece a autonomia do indivíduo, gera
forte oposição. Em meio a esse panorama da consciência religiosa atual, a gênese
teológica de Andrés Torres de Queriruga de um Deus que é amor e da autonomia da
sua criação é o lugar para uma releitura ou uma hermenêutica da apokatástasis.

Na metodologia a ser seguida será conveniente, no primeiro capítulo,


compreender a evolução semântica do termo apokatástasis a partir do fenômeno da
inculturação, que devido a expansão do cristianismo para o ambiente helenista – em
que a lingua predominante era o grego – não irá se abster-se de neologismo para
comunicar a mensagem salvífica contida na pregação cristã.

Será importante a identificação do vocábulo apokatástasis no ambiente


profano e filosófico, já que principalmente na filosofia deu-se o ponto crucial da
aproximação do cristianismo com o mundo helênico. Ainda considerando o avanço do
cristianismo no mundo helenizado, já havia a tradução veterotestamentária nesse
ambiente– a denominada Septuaginta– ponto de referência para análise do termo. O

13
vocábulo também será averiguado no novo testamento, que já nasce com a escrita
grega, onde o termo aparece explicitamente num contexto único, ligado à perspectiva
profético-escatológico em Atos 3,21.

Tendo como fundamento o ambiente grego e o uso da Escritura no mesmo


idioma, será pertinente a análise de alguns padres que fizeram uso do grego no
desenvolvimento de sua reflexão de fé, verificando a renovação semântica e a
diferenciação do sentindo da expressão apokatástasis entre eles.

O segundo capítulo será dedicato todo à teologia de Orígenes, devido ser ele
o ponto emblemático para o debate sobre a apokatástasis. Será preciso entender a
sua historicidade individual e o momento adverso que vive a comunidade cristã,
sobretudo com o avanço das heresias provindas da própria eclesialidade de seu
tempo absorvida pelo gnosticismo. Dentro desta perspectiva certamente será
compreendido com mais clareza o seu discurso teológico. A obra “O tratado sobre os
principios” será o alicerce para analisar os procedimentos próprios e a linguagem na
compreensão origeniana sobre a apokatástasis, no qual permitirá visualizar as
diferentes perspectivas teológicas sobre o tema, sendo elas: cristológica,
antropológica e soteriológica.

No terceiro capitulo a releitura da apokatástasis diante de uma sociedade pós-


moderna – em que o grau de criticidade é elevado devido a sua autoconsciência de
liberdade e que rejeita a religião muitas vezes marcada pelo seu carater fanático,
fundamentalista, intransigente e heterônoma– Andrés Torres de Queiruga, um teólogo
que tem em sua metodologia um compromisso hermenêutico, preocupa-se com uma
linguagem teológica sempre contextualizada e universal que não está direcionada
apenas aos cristãos, mas também para as outras religiões e para os não crentes. O
seu princípio hermeneutico é a história da salvação, da qual tem-se a participação de
um Deus que é amor e por isso quer salvar a sua criação respeitando suas leis e
autonomia. Esta é a chave para releitura da apokatástasis.

Por fim, será necessário percorrer alguns eixos teológicos fundamentais da


teologia queiruguiana que são a Criação, a Revelação e a Salvação e elucidar sua
dinâmica hermenêutica de estar sempre repensando, recuperando e aprofundando
os dados da fé. No íntimo dessas categorias teológicas queiruguianas veremos a

14
sua preocupação com uma linguagem teológica mais universal com intuido de
aproximar-se de crentes e não crentes. Neste contexto da teologia de Andrés Torres
de Queiruga está incorporado a releitura da apokatástasis, que ao afirmar que o
desejo de Deus em plenificar toda sua criação sem prescindir da sua liberdade
aproxima-se da apokatastasis origineana, na qual o maior ponto de encontro entre as
duas teologias é a esperança, fato presente na preocupação do Papa Francisco: “O
meu objetivo é humilde: fazer ressoar uma vez o chamado `santidade, procurando
encarná-la no contexto atual, com seus riscos, desafios e oportunidades”.10

10 GE 2.

15
1. A COMPREENSÃO DE APOKATÁSTASIS

1.1. Introdução

A análise do termo apokatastásis, do ponto de vista da história da palavra,


deve ter como pressuposto a missão cristã que progride num universo helenista com
um contexto cultural já bem desenvolvido, vinculado com uso cotidiano do vocábulo
em diversas esferas culturais no meio profano. O uso consciente do termo entre os
padres da patrística semanticamente vai se transformando no decorrer da história.
Essa adaptação da linguagem cristã assinala o processo de inculturação da fé nos
primórdios da Igreja (sec. I – III), resultado do encontro da fé cristã e a sociedade
greco-romana. Este processo, por ser dinâmico, afetou as relações sociais e a cultura
ambiente de modo que o cristianismo assumiu categorias da cultura helênica – tal
como a filosofia – como expressão da reflexão da fé numa aproximação mais
eloquente junto aos helenistas, seja aqueles da camada popular mas sobretudo os
mais cultos de seu tempo. É dentro deste contexto, que a linguagem teológica assumiu
os termos e expressões helênicas.

Visto este universo, o passo seguinte é analisar a apokatástasis como objeto


linguístico-conceitual, e apontar o sentido em que a expressão é interpretada no
ambiente helenístico profano, especialmente na linguagem filosófica estóica, matriz
da transformação semântica do termo entre os padres, especialmente os alexandrinos
Clemente e Orígenes.
Diante dessas bases culturais do encontro entre o cristianismo e a cultura
grega, a Sagrada Escritura não ficou isenta da influência cultural helênica, a exemplo
disso a LXX – uma tradução grega do Antigo Testamento usada pelos judeus da
diáspora – que foi amplamente utilizada no meio cristão. Esse fato deve ser
considerado neste capítulo, que ao analisar o vocábulo na LXX, onde se tem como
princípio a raiz hebraica “sūb” que tanto no contexto profano quanto religioso
apresenta diversos significados. Da mesma forma no Novo Testamento, que nasce
totalmente absorto na cultura grega, o termo aparece como substantivo uma única
vez, somente em At 3, 21, critério para que seja a única passagem a ser analisada.

16
Será de suma importância a abordagem do termo entre os padres da Igreja,
seguindo um critério cronológico e especialmente entre os escritores gregos. Como
trata-se de uma evolução semântica da expressão apokatástasis, o uso do vocábulo
pelos pensadores cristãos que carregam uma bagagem cultural helênica não apenas
assumem os elementos linguísticos gregos como também dão um novo significado,
que posteriormente torna-se um termo técnico na linguagem teológica, carregado de
significado e muito ligado às questões escatológicas.
Alexandria, um dos grandes polos helênicos do conhecimento na época, terá
papel preponderante na evolução semântica do vocábulo apokatástasis na linguagem
teológica. Clemente, um dos protagonistas da escola de Alexandria, precisa ser
analisado mais aproximadamente, já que sua linguagem teológica traz novas
ressignificações ao termo apokatástasis. Devido sua profunda experiência mística,
entende a apokatástasis a partir do amor divino, que age na vida humana como um
processo de desenvolvimento que inicia-se no tempo presente e transcende para
esfera ultraterrena.

1.2. Fenômeno intercultural e a inculturação da fé nos primórdios do


cristianismo

A cultura possibilita uma hermenêutica da vida em sociedade a partir dos


costumes, linguagem, arte, economia, moral e crença. Esses fatores exprimem a
identidade e a estrutura de um ambiente de relações humanas de uma determinada
época e local, que também podem ser considerados fruto de um processo de
desenvolvimento social. O Concílio Ecumênico Vaticano II afirma que a “cultura’
indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as
múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo (GS, 53)”. Denota-se daí o
caráter dinâmico intrínseco a cultura em conjunto com o reconhecimento da
particularidade de um povo de onde resulta o aspecto plural.

Num universo de pluralidade cultural é inevitável o encontro entre culturas,


que devido as relações humanas não permitem a incomunicabilidade das experiências
e nesse intercâmbio há a adaptação e assimilação de uma nova forma de pensar,
crer, comportar e conviver, configurando uma nova identidade. Esse processo vivo é
sublinhado por M. F. Miranda:

17
“Pois a cultura constitui um processo vivo sempre a produzir, utilizar e
transformar os modelos em questão. Portanto faz-se mister estudar a
interrelação dinâmica entre símbolos e práticas para entender a vida social
cotidiana, econômica ou religiosa”.11

Essa definição da cultura como processo vivo colabora na análise no encontro


do helenismo com o cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. Esta confluência
é resultado da expansão do anúncio do Evangelho, que ultrapassa o ambiente judaico
e chega ao universo cultural helênico.

Esta penetração do cristianismo na civilização grega não está desprovida de


implicações na vida social, e relacionar esse fenômeno como um choque
intercultural12 não é um tarefa simples devido ao fato de ser um encontro entre religião
e cultura. Nesse caso o cristianismo não está limitado a uma cultura justamente por
seu anúncio perpassar a experiência, uma situação vivencial que não está desconexa
de um contexto histórico e de um grupo social, isso em razão de que a história da
salvação acontece na história.

Se tomarmos como referência o cristianismo como cultura cristã, poderíamos


estar falando de uma cultura que se aproxima do helenismo com seus valores e
conceitos. Esta aproximação pode ser vista como fenômeno intercultural, até porque
a cultura helênica possui seus valores e conceitos, mas vale salientar que o
cristianismo não é uma cultura concreta. Assim afirma Suess:

“Mas a “cultura cristã” não é uma cultura concreta. Ela só pode ser imaginada
como conjunto de valores e referenciais evangélicos que inspiram os cristãos
no diálogo com os povos e/ou grupo sociais e suas respectivas culturas”.13

A partir desta perspectiva o panorama cultural da evangelização segue


outros moldes e, por isso, não pode ser entendido como um padrão cultural, mas,
retomando o que já foi dito anteriormente, pelo fato da cultura ser um processo
dinâmico, há uma perfilhação entre cultura local – mundo helênico - e o cristianismo,

11
MIRANDA, Mário F. Inculturação da fé: Uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001, p. 45.
12 Mario Miranda define a interculturação como: “O fato de a fé cristã se encontrar sempre já inculturada
leva alguns teólogos a falar de um diálogo entre a cultura cristã do missionário e a não cristã dos povos
a serem evangelizado. Também poderíamos mencionar entre diversas culturas cristãs no interior da
Igreja universal. Daí nasceu o termo interculturação, que pode ser considerado duplamente. Num
sentido diacrônico implica um diálogo retrospectivo com as culturas que gestaram a atual forma de fé
cristã. Num sentido sincrônico significa não só uma interação entre as várias Igrejas particulares, mas
também entre grupos culturais distintos no interior da Igreja Local”. Ibidem, p. 39.
13 SUESS, Paulo. Introdução à teologia da missão: convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino.

2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 157.

18
de modo que ambos são afetados. Nesse caso a cultura helênica não fica isenta do
acolhimento da Boa Nova, e a religião cristã, ao assumir elementos desta cultura,
corrobora para que projeto salvífico de Deus se torne realidade concreta. Todo esse
encadeamento é desdobrado na compreensão de uma nova expressão, que é a
inculturação da fé. Miranda formula muito bem este processo:

“Inculturação da fé [...] não significa primordialmente manifestar a fé cristã


com novas expressões e práticas, e próprias de outra cultura. Trata-se mais
propriamente de ver e viver (cultura) de um modo novo (cristão). Este evento
progressivo tanto acarreta transformações na cultura como oferece novos
insights para a fé. A interação afeta os dois componentes da expressão. De
um lado, símbolos e costumes de tradição cultural adquirem novos sentidos;
de outro, o cristianismo descobre em si mesmo novos aspectos até implícitos
e tácitos”.14

Podemos assegurar a inculturação da fé como evento fenomenológico na


medida em que o cristianismo extrapola as fronteiras judaicas e entra em contato com
a tradição grega. Este fenômeno, que é resultado da identidade missionária cristã,
está presente desde a era apostólica, em que o uso da linguagem grega nos escritos
do Novo Testamento atestava a influência helênica; e na medida em que o
cristianismo se propaga na geração pós-apostólica que não só faz o uso da linguagem
grega, mas conceitos e categorias helênicas são herdadas, formando o pensamento
cristão. Segundo Jaerge,15 essa evolução acelerada acontece pelo fato da
comunidade judaica da diáspora, já helenizada, ser o elo entre cristãos e helênicos no
primeiro instante do anúncio da Palavra de Deus.

Nesta síntese entre o helenismo e o cristianismo está implicado uma


cosmovisão de gênese filosófica, própria da cultura grega, que é assimilada pelo
pensamento cristão, cuja compreensão de cosmogonia, escatologia e moral, está
primariamente e profundamente marcada pelas categorias judaicas-palestinas – neste
aspecto vale observar o judaísmo helênico como fio condutor para cosmovisão grega .
Esta releitura da cosmovisão, a partir dos dados filosóficos, não deixa imune o
ensinamento transmitido pelos apóstolos que diacronicamente se expande. Correntes
mais dependentes da filosofia grega não ficarão livres do desvio da doutrina
transmitida pelos apóstolos, assim, vale salientar que esse ambiente favorece

14 MIRANDA, 2001, p. 58.


15WERNER, Jaeger. Cristianismo Primitivo e paideia grega. Trad. Daniel da Costa. Santo André:
Editora Academia Cristã, 2014, p. 13.

19
múltiplas interpretações no campo teológico. Dom Figueiredo esclarece muito bem
este contexto:

As circunstâncias favorecem a coexistência duma grande diversidade de


opiniões para questões de grande importância […]. Isso não é porque não
tivessem um patrimônio de verdades consideradas essenciais, mas sim
porque expô-las se gozava de uma grande liberdade teológica. A
preocupação de defini-las e de chegar a uma estrita uniformidade só se
manifestará progressivamente e em relação a um número relativamente
restrito de doutrinas que eram objeto de discussão.16

Libanio J. também afirma o amplo campo hermenêutico a partir das


categorias filosóficas que contribuem para o desenvolvimento da reflexão teológica
posteriormente sem negar que esse movimento inculturado pelo cristianismo não
estará isento de erros.17

Não há dúvidas que a cultura helênica foi absorvida pelo cristianismo, mesmo
que algumas correntes cristãs helênicas envolvidas com filosofia grega tenham se
distanciado da ortodoxia, o movimento cristão oposto que também recorre ao uso da
filosofia com proveito em seu favor na defesa da fé. Este aspecto filosófico, seja
aquele usado por aqueles que futuramente serão conhecidos como heréticos ou por
aqueles que defendem a ortodoxia, será significativo como metodologia teológica no
seu aspecto epistemológico no futuro.

1.2.1. A linguagem no processo de inculturação da fé cristã no mundo helênico

Dado que o cristianismo implanta-se no meio cultural helênico, ocorre a


assimilação de novas formas de linguagem e de cultura, circunstância que promove o
uso e o desenvolvimento do conjunto de elementos da filosofia. Esta influência
inevitável é considerável no século II junto aos Padres da Igreja, que traduzirão os
dados da Revelação para a realidade cultural helênica, moldando novos rostos e
mentalidades, mantendo o “fermento evangélico nos aspectos existencial, práxico e
intelectivo”.18

16
FIGUEIREDO, Dom Fernando Antônio, Curso de Teologia Patrística I: A vida da Igreja primitiva
(séculos I e II). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 18.
17 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123.
18 Ibid., p.116.

20
No âmbito intelectivo é necessário analisar que na medida em que acontecia
a difusão da religião cristã no meio social greco-romano os cristãos tornavam-se um
grupo social heterogêneo devido sua postura religiosa ser divergente da religião
tradicional, causando preocupação nas autoridades estatais e no meio popular.
Lezenwerger, na sua análise histórica da fé cristã no início do período apologético,
constata a depreciação e críticas aos seguidores de Cristo.

“A difamação social, moral e intelectual caracteriza, pois, os espectros da


propaganda cristã contra os sequazes do cristianismo, essa querela no curso
do século II transpõe as meras opiniões para o âmbito literário suscitando
defensores da fé (apologistas) que refutarão através da atividade literária
filosófica contra os autores pagãos, do alto de sua consciência helenista
(paideia)”.19

Sobre o conceito de paideia, W. Jaerger considera que, no encontro entre o


mundo helenista e o cristianismo, a tradição filosófica vivida culturalmente pelos
primeiros é assimilada nos primórdios da literatura cristã de modo que esta atitude
dos escritores cristãos, além de estimular o diálogo com a paideia grega, cooperava
na compreensão de que a paideia clássica estava sendo convertida na paideia de
Cristo.20

Neste universo intelectual de formação literária e cultural, entre cristãos e


pagãos, devemos considerar uma adaptação da expressão de linguagem grega –
componente dos elementos culturais greco-romanos – para linguagem teológica,
tendo em vista a solução de questões eclesiais que, segundo Libanio, é uma
experiência bem-sucedida de inculturação teológica.21

Suess descreve a ambivalência da linguagem escrita, no processo de


inculturação da fé, tanto no encontro da religião cristã com a cultura grega quanto para
os dias atuais, absorvidos de uma multiplicidade cultural. Essa ambivalência é fruto
da própria complexidade da linguagem, que parte, neste caso, da experiencia
religiosa. Portanto, evento vivido concretamente, característica própria da
contingência, que ao passar para uma linguagem mais conceitual, erudita, acadêmica
afasta-se da sua origem contingencial.

19 LENZENWEGER, Josef et al. História da Igreja católica. Trad. Fredericus Stein. São Paulo: Loyola,
2006, p. 26-27.
20 WERNER, 2014, p. 22.
21 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 123.

21
Evidenciar a complexidade da linguagem no processo de inculturação da fé
no mundo helênico ajuda na compreensão histórica da evolução semântica das
palavras, o que não deixou de ser fator de preocupação dos escritores cristãos diante
da elite intelectual grega, que buscava por meio da filosofia as respostas para as
questões existenciais do homem. Essa preocupação estava ligada a necessidade de
salvaguardar a ortodoxia e manter a unidade eclesial, pois, mesmo havendo o caráter
intelectual e formal, a ação desses escritores cristãos era de cunho pastoral.

Diante desse modelo de ação pastoral, não podemos esquecer de que o uso
das categorias filosóficas no diálogo com a paideia grega não isenta a literatura cristã
de utilizar termos próprio da linguagem filosófica - suas formas e significados –, fruto
de uma convivência social originada da inculturação do Evangelho. Porém, alguns
termos ou conceitos que vão sendo assumidos pelos escritores cristãos, no decorrer
histórico, vão sofrendo transformações que, no ambiente da reflexão teológica, são
ressignificados com a intenção de observar a fidelidade a ortodoxia.

O termo apokatástasis, expressão que nas linhas vindouras será analisada, é


um termo próprio da linguagem cultural helênica e que, no processo de inculturação
da fé no ambiente grego, não estará livre de uma hermenêutica condicionada ao
ambiente intelectual da reflexão teológica. Isso demonstra que o uso da expressão
também está vinculado a outros ambientes do saber, tal como a astronomia, medicina
e filosofia.

1.2.1.1. A hermenêutica do termo apokatástasis no ambiente profano

O ponto de partida para a reflexão sobre o termo apokatástasis deve ser


visualiza-lo no âmbito profano, fora do contexto filosófico e teológico. Porém não é
uma análise etimológica pormenorizada, mas para auxiliar numa compreensão do uso
regular deste vocábulo na escrita grega e confirmar que a linguagem (oral ou escrita)
– seja ela na cultura grega ou em qualquer outra, a semântica de uma palavra – sofre
ressignificações conforme o tempo e o local.

22
No campo linguístico profano o termo apokatástasis objetivamente limita-se
ao sentindo de um retorno a um estado original (restauração)22, faz parte da
linguagem ordinária e se aplica em um grande número de casos, seja no âmbito
médico, jurídico, político e astronômico.

André Mehat,23 ao analisar o vocábulo apokatástasis, leva em consideração


que o significado de uma palavra sempre está mudando, que a ideia própria do
significado de cada palavra não é constante. Ao referir-se ao uso corrente do termo,
ele dá um exemplo de uso médico, "se eu tiver um membro deslocado o médico tenta
fazer a apokatástasis da articulação", ou seja, o deslocamento de qualquer membro
do corpo e o retorno ao seu local original. O uso do vocábulo apokatástasis dá a ideia
deste retorno, ou mesmo restauração ao estado anterior.

Ainda dentro no ambiente médico sobre o termo apokatástasis, Ilaria Ramelli


expõe o comentário de Apolônio de Citium24 referente De Articulis (Articulações) de
Hipócrates, "é necessário fazer a restauração (apokatástasis) dos membros acima
mencionados da seguinte maneira", e no mesmo comentário, "a tensão na direção
certa produz a restauração (apokatástasis) dos membros para seu lugar original”.
Outro exemplo, citado por A. Mehat, é o de alguém que "tenha sido exilado justa ou
injustamente de sua terra natal e recebe a permissão legal para retornar ele é
reintegrado por apokatástasis em sua terra natal", novamente o uso do termo dá a
ideia de restabelecimento, reintegração a um estado anterior e, para finalizar, outra
demonstração do uso do termo no cotidiano profano, dá-se no âmbito militar, numa
situação de um soldado que foi expulso de seu posto e depois é reintegrado por
apokatástasis. Ilaria Ramelli testifica também no ambiente militar o uso do termo com

22 Em alguns dicionários o verbete ‘apokatástasis’ ao que se refere no campo linguístico profano, fazem
uma referência objetiva sem detalhamento, limitam-se em afirmar que o vocábulo aparece no âmbito
médico, jurídico, político e astronômico, essa definição sucinta varia de dicionário para dicionário
conforme o enfoque estabelecido. Ver, BERNADINO. Angelo di (Org.). “apokatástasis”. Dicionário
Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulus, 2002, p.128; e, BAUER.
Johannes B., MARBOCK. J., WOSCHITZ. Karl M. “apokatástasis” Dicionário Bíblico Teológico. São
Paulo, SP: Loyola, 2000, p. 22.
23 André Méhat, utiliza o texto das homilias de Orígenes sobre o profeta Jeremias (Jer. hom. 14,18) que

dispõe a exemplificação do uso do vocábulo apokatástasis no ambiente profano. MÉHAT. André,


“apokatástasis “Origen, Clemente de Alexandria, At 3:21”, in Vigiliae Christianae, Vol. X, 1956, p.196-
214 – disponível em: <http://www.rivtsion.org/f/index.php?sujet_id=1552>. Acesso em: 07 out. 2017.
24 Apolônio de Citium ao Articulações, provavelmente um médico da seita empírica do século I a.C. que

já intitulava Hipócrates “o divino”. REBOLLO. Regina A., O legado hipocrático e sua fortuna no período
greco-romano: de Cós a Galeno. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662006000100003>. Acessado em:
07 out. 2017. p. 45-82.

23
significado como o retorno à disposição original25. Diante destes exemplos fica
esclarecido que ninguém é trazido de volta pela apokatástasis, de um lugar que nunca
esteve.

1.2.1.2. Apokatástasis no estoicismo

No universo filosófico, sobretudo no período helenístico do fim do século III


a.C., grandes sistemas filosóficos já estavam disseminados no ambiente cultural
greco-romano, dentre eles o estoicismo, cuja influência será intensa no pensamento
cristão, será fundamental para a interpretação do termo apokatástasis. Bertrand
Russell salienta que o estoicismo primitivo, que tem Zenão (século III a.C.) como
fundador, possui uma doutrina materialista inspirada no cinismo e em Heráclito. Já
modificado no século II d.C., o estoicismo de Sêneca, Marco Aurélio está mais
afastado do materialismo devido a influência platônica e, por isso, dá mais valor a
doutrina ética que não é tão diferente dos primórdios e, inclusive, o que se preservou
foram os escritos do estoicismo tardio dificultando a compreensão da raiz do
pensamento estóico.26

O materialismo presente no estoicismo primitivo vem do modelo cosmológico


da antiguidade, entendido como um mundo único, ou seja, o planeta que habitamos e
todos os elementos do firmamento – planetas e astros – se harmonizam em uma
atividade contínua dentro de um todo, o ser Uno. Segundo Reale esta forma
materialista monista e panteísta dos estóicos caracteriza-se da seguinte forma:

O monismo da Estoá27 pode ser compreendido melhor se considerarmos a


doutrina das assim chamadas “razões seminais”. O Mundo e as coisas do
mundo nascem de uma única matéria-substrato qualificado, através do logos
imanente que em si, é uno, mas é capaz de diferenciar-se nas infinitas
coisas. O logos é como o sêmen de todas as coisas, é como um sêmen que

25 Ilaria Ramelli neste exemplo do uso da apokatástasis no sentido militar dá como referência de sua
pesquisa Asclepiodotus 10, 6; Aelianus Tactica 32,7 e Arrianus Tactica 25,12. RAMELLI, Ilaria. The
Christhian doctrine of Apokatástasis: a critical assessment from the New Testament to Eurigena. Leiden:
Brill, 2013, p. 5.
26 RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental – Livro 1: A filosofia antiga. Trad. Hugo Langone.

2. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 234;


27 “Como Zenão não era cidadão ateniense, não tinha o direito de adquirir um prédio; por isso ministrava

as aulas num pórtico que fora pintado pelo pintor Polinhoto. Em grego, “pórtico” diz-se stoa. Por essa
razão, a nova escola teve o nome de “Estoá” ou “Pórtico” e seus seguidores foram chamados “os da
Estoá”, “os do Pórtico” ou simplesmente “estoicos”. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da
filosofia Antiguidade e Idade Média, vol. 1. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990, p. 252.

24
contém muitos sêmens, que os latinos traduziriam como rationes seminales
(razões seminais). Uma fonte antiga diz: “Os estoicos afirmam que Deus é
inteligente, fogo artífice, que metodicamente procede a geração do cosmos e
que inclui em si todas as razões seminais, segundo as quais as coisas são
geradas segundo o fado, Deus é [...] a razão seminal do cosmos.28

Apoiado nesse fundamento denota-se o duplo princípio da fundação do


Universo, a matéria e o Logos, sendo o segundo o princípio animador ,inteligível ,
imutável e incriado, que tudo ordena, a autêntica Alma do Universo, que não é etérea
nem espiritualizada e identificado como o verdadeiro fogo eterno, concebido como
um dos elementos do cosmos. Daí provém a materialidade do Logos, ser e corpo
idênticos, formam o Uno, portanto, se Deus é inseparável da matéria ele está em tudo,
tudo é Ele.29 Esta “Inteligência ordenadora e ao mesmo tempo energia produtora, é
ao mesmo tempo Razão Universal e Ser conhecedor, necessidade e liberdade, lei do
mundo e providência.30” Desta ação providencial do Logos, que decorre uma crença
de cunho determinista, em que se o fogo artífice é capaz de criar, existe outro aspecto,
o incinera para purificar e, segundo os estóicos, essa realidade é cíclica. Vejamos a
citação esclarecedora de Cícero sobre esta crença estóica feita por Gabriela Baião:31

O Universo, porém, não é eterno, a sua existência está ligada a ciclos


cósmicos no decurso dos quais o mundo se forma e se dissolve. No término
de um ciclo, ele reúne-se novamente e todos os seres, reconduzidos aos
elementos, retornam ao fogo primitivo. A conflagração (“ekpýrosis") constitui
um ponto fundamental neste sistema do Mundo: o mundo inteiro incendiar-
se-á quando, esgotados os vapores, não puder mais ser alimentado pela terra
e quando, esgotada a água, o ar não puder mais voltar a constituir-se. Desta
forma, apenas o fogo restará, mas, por seu meio, operar-se-á infinitamente a
renovação do mundo (palingénesis). O Universo viverá outros ciclos
absolutamente idênticos, porque este fogo é eterno e invariável na sua
essência.32

Ilaria Ramelli, na sua análise do termo apokatástasis, diz que este vocábulo
é utilizado no meio cristão para referir-se a cosmologia estoica do Grande Ano, que
é determinada por conflagrações (“ekpýrosis) periódicas, ou seja, a purificação e/ou

28 Ibid., p.257.
29 Ibid.
30 SESBOUÉ, Bernard. et alli. História dos Dogmas: O homem e sua salvação (séculos V – XVIII), v. 2.

São Paulo: Loyola, 2003, p. 427.


31 Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1988), Mestre em

Filosofia da Natureza e do Ambiente pela mesma Universidade, com tese sobre o estoicismo antigo
(2006). Desenvolve o seu trabalho na área da Filosofia Antiga, dedicando-se em particular à
investigação sobre as filosofias helenísticas (o estoicismo, o epicurismo, o cepticismo). Disponível em:
<http://lisboa.academia.edu/GabrielaBai%C3%A3o>. Acessado em: 19 set. 2018.
32 BAIÃO, Gabriela. Teorias cosmológicas no estoicismo antigo. Apud. V. CÍCERO, de Natura Deorum,

II, 12, 32. Disponível em:


<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/8788>. Acessado em: 19 mai.
2018.

25
a restauração pelo fogo em que todo o Cosmos está submetido, dando início a um
novo ciclo (palingénesis). Esta constatação pode ser encontrada nos escritos de
Euzébio de Cesaréia (sec. III-IV d.C.) e Nemesius (sec. IV-V d.C.).33

Pode-se concluir que dentro de um longo período, que inicia-se no século III
a.C. e adentra os primeiros séculos da era cristã, o vocábulo vétero-estóico
“palingénesis”, fruto de uma ação providencial do Uno por meio da conflagração
(ekpýrosis), passa a ser compreendido e mencionado como “apokatástasis”
praticamente entre os pensadores cristãos, ocorrendo uma evolução semântica da
palavra. É importante salientar que mesmo os pensadores cristãos, ao utilizar este
termo a partir da doutrina estóica, não estão de acordo com esta crença, questão que
veremos mais adiante.

A hermenêutica aplicada na expressão apokatástasis no meio estóico, fruto


de uma ligação entre ideia e linguagem, abre uma nova perspectiva na compreensão
do termo em que não fica limitado apenas na ordem material, mas passa a conter um
significado que faz parte do sistema metafísico. Partindo deste princípio, a
aproximação da inspiração do uso do termo na patrística será mais eficaz
principalmente no pensamento de Orígenes, que sempre remete-se ao vocábulo neste
âmbito.

33 RAMELLI, 2013, p.7.

26
1.2.1.3. A apokatástasis no meio estóico como processo metafísico

É nesse aspecto que Carlos Andrés Blanch,34 no seu estudo sobre “A


apokatástasis, como processo diacrônico e metafísico em Clemente de Alexandria”,35
afirma que este é um tema ainda muito debatido e que entre os especialistas que
investigaram minuciosamente o vocábulo não houve unanimidade referente ao
entendimento semântico. Porém, ele não apenas considera como divergência de
interpretações, mas complemento de uma sobre a outra.

Neste artigo Carlos Andrés Blanch apresenta a argumentação de André


Méhat sobre a hermenêutica da expressão apokatástasis, fundamentada, sobre tudo,
na obra literária de Clemente de Alexandria, na sua análise fica evidente a ausência
de qualquer conotação de cunho transcendente ou metafisico, devido sua concepção
de interpretação e tradução vislumbrar sempre o restabelecimento de um local, o
cancelamento de uma dívida, êxito militar, restituição de um objeto ou liquidação de
uma conta. Desta característica presente no autor, Blanch afirma:

O problema com a interpretação de Méhat está na limitação semântica a que


o termo restringe, que é totalmente injustificada. [...] Como é claro, para
Méhat e aqueles que compartilham suas idéias, o significado de que
apocatastasis não implica um processo estendido ao longo de um certo
tempo, mas indica um evento que é consumido em um determinado momento
e que, além disso, carece de significado metafísico.36

No que se refere a interpretação do conteito de apokatástasis a partir da


historicidade, avançando até o plano escatológico e metafísico, Blanch segue as

34 Investigador no Centro de Filologia Clássica e Moderna -Instituto A.P. de Ciências Humanas –


Universidade Nacional de Vila Maria (ad honorem). Mestre em Ciências da Humanidade pela
Universidade. Participou em grupo de pesquisa sobre: El rol de la Filología en la traducción e
interpretación de textos patrísticos. La intertextualidad griega - latina en San Agustín, Gregorio de Nisa,
Máximo Confesor, Dionisio Areopagita y Juan Escoto Eriúgena. Integrante del equipo de investigación
dirigido por el Dr. Alfredo Fraschini. Possui Livros publicados em colaboração: El rol de la Filología en
la traducción e interpretación de textos patrísticos. La intertextualidad griega - latina en San Agustín,
Gregorio de Nisa, Máximo Confesor, Dionisio Areopagita y Juan Escoto Eriúgena. Integrante del equipo
de investigación dirigido por el Dr. Alfredo Fraschini. Claudio Vittore (co-director), Carlos Blanch, Lidia
Moreira, Juan Pablo Abraham, Cristian Cabrera. Ediciones del I.A.P.C.H., Universidad Nacional de Villa
María, 2016, ISBN 978- 987-33-9574-1. / El desarrollo del concepto de apocatástasis en el pensamiento
de los Padres griegos entre los siglos II al IV, Carlos Blanch, tesis de Maestría, Ediciones del I.A.P.C.H.,
Centro de Filología Clásica y Moderna, Universidad Nacional de Villa María, 2013, ISBN 978-987-33-
4406-0.
35 BLANCH, Carlos Andrés. La apocatástasis como proceso diacrónico y metafísico en Clemente de

Alejandría. Anales de Filología Clásica. Buenos Aires v. 27 n.1. p. 19-34. nov. 2014. Instituto de Filologia
Clássica - Philo: UBA . Disponível em:
<http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/afc/article/view/1766>. Acesso em: 23 mar. 2018.
36 Ibid., p.21

27
argumentações de Paulo Siniscalco, que apreende termo apokatástasis conforme a
concepção particular de Clemente de Alexandria.

Esta sigularidade do teológo alexandrino (que não exclui a restauração ou


retorno a um estado original) está na ênfase no caráter extraterreno e escatológico
do termo porque segundo Paulo Siniscalco a preocupação de Clemente de Alexandria
é estritamente de caráter espiritual.

Siniscalco acrescenta um aspecto importante a sua análise de que Méhat não


atribui importância ao elemento transcendente do conceito, segundo sua
pesquisa, a apokatástasis “Expressa um conceito em que, mais do que
outros, assume importância a ideia de uma instalação em uma nova
condição, de uma libertação [...]”Embora ,em alguns pontos condizentes com
a interpretação oferecida por Méhat, neste tópico em particular as ideias de
Siniscalco se opõem fortemente àquelas do primeiro, destacando seu pleno
significado metafísico A afirmação encontra seu apoio em um trabalho
exegético que atenda não apenas ao significado imediato de um termo, mas
também à sua contextualização.37

Ao fazer essa estratégia argumentativa de comparação sobre a hermenêutica


da palavra apokatástasis em André Méhat e P., Siniscalco esclarece a diferença entre
as duas interpretações sendo que, o primeiro destaca a carga semântica como um
fato pontual em que na maioria das vezes fica limitado a um instante determinado e
não ao restabelecimento a um estado original, desta forma fica excluído qualquer
entendimento de perspectiva de evolução metafisica e escatológica defendida pelo
segundo.

Carlos Andrés Blanch, na sua conclusão é a favor de Siniscalco, pois,


considera que:
As razões que nos permitem afirmar essa qualidade de processo com a qual
tanto antigos como os modernos carregaram no termo apokatástasis
baseiam-se nas seguintes considerações. Como dissemos, um processo é
um evento que reconhece uma extensão diacrônica na qual se desenvolve.
Este desenvolvimento é possível pela ação de certos elementos que fazem
parte do mesmo processo e dão o dinamismo necessário para a sua
consumação. Assim, estudiosos como Daniélou e Siniscalco reconheceram
vários elementos38 comuns através dos diferentes contextos em que esta
palavra foi usada. Além disso, as transformações semânticas estavam
sofrendo e o aumento progressivo dos seus elementos tanto em número e
profundidade fatores são impossíveis para um fato cuja consumação é
instantânea; logicamente, então, é razoável reconhecer que quando os
antigos, pagãos ou cristãos, usavam o termo apokatástasis, eles tinham em
mente a ideia de um processo dinâmico.39

37 Ibid., p.23
39 Ibid., p.24

28
Tendo como base essa análise critica de Carlos Andrés Blanch, é de suma
importância a interpretação do vocábulo com base na conotação metafísica e nas
modificações que experimenta ao longo da história. Todo esse processo não estava
isento do pensamento dos escritores gregos e, principalmente, dos escritores cristãos
que usaram como ferramenta metodológica e sistemática a filosofia, que na verdade
é puxada pela força motriz bíblica. Afinal, a Sagrada Escritura sempre foi a fonte da
práxis e espiritualidade deles. Neste contexto, não há como descartar do termo
apokatástasis o sentido atemporal.

1.2.2. A apokatástasis no versículo bíblico At 3,21

Como foi mencionado anteriormente, a interpretação do vocábulo analisado


no ambito filosófico vislumbra a restauração como um evento cíclico, restabelecendo
a forma original que foi deformada e, com isso, iniciando uma nova era. Esta
concepção, ao ser colocada a partir do horizonte bíblico, é amplamente debatida
devido a evolução do significado da palavra cambiar entre o helenismo e o judaísmo,
desembocando na concepção cristã.

O vocábulo aparece na forma verbal apokathistemi, 8 vezes no Novo


Testamento, sobretudo nos Evangelhos Sinóticos,40 e aparece uma vez como
substantivo “apokatástasis” no discurso de Pedro no livro do Atos dos Apóstolos
(3,21), numa perspectiva profético-escatológico de restauração de todas as coisas.
Uma renovação universal da terra,41 na qual Ilaria Ramelli confirma que o uso do
vocábulo em Atos 3, 21 é no sentido de restauração universal.

De fato em At 3,21 Pedro está dirigindo um discurso para os judeus de


Jerusalém, quando ele anuncia os tempos da restaução universal, e a
referência é para At 1,6 em que os discípulos, depois da ressurreição de
Jesus, pergunta a ele quando “restaurá Israel”. Ambas as passagens devem
ser lidas no contexto das expectativas judaicas de uma restauração
escatológica.42

40 αποκατάσταση. In: COENEN, Lothar, BROWN Colin. Dicionário Internacional de Teologia do


NovoTestamento. Trad. Gordon Crown; revisão técnica Júlio Paulo Tavares Zabatiero. 2. ed. São
Paulo: Vida nova, 2000, p. 1944.
41 Apokatástasis. In: BAUER; MARBOCK; WOSCHOTZ, 2000, p. 22-23.
42 RAMELLI, 2013, p. 36.

29
Von Balthasar também concorda que esta seja a unica passagem na Bíblia
que é mencionado o vocábulo na forma de substantivo, porém, destaca duas
possibilidades de tradução: a primeira, no sentido cíclico oriunda da compreensão
profana-filosófica, “até atingirem os tempos da restauração de tudo o que Deus tem
falado”, esta tradução de apokastástasis coincide fundamentalmente com o sentido
da palavra no grego profano. A segunda possibilidade de tradução, “até que ele atinja
a restauração de tudo o que Deus falou por meio dos profetas”, o teólogo suiço afirma
ser mais apropriado, devido ajustar melhor o discurso de Pedro na linha do discurso
dos profetas, matriz judaica da compreensão da apokatástasis.43 Mesmo sendo esta
passagem enigmática, conforme afirma André Mehat,44 a tentaviva de solução
realizada por Von Balthazar, a partir da ambiguidade hermenêutica, visa esclarecer
qual é a ideia que o termo carrega consigo neste versículo de Atos. Uma compreensão
cíclica que tem como base o retorno ao estado de origem ou linear temporal que
propõre a realização e plenitude humana oriunda da promessa divina?

A segunda tradução da citação dos Atos dos Apostólos parece mais


adequada, uma vez que expressa melhor o sentido do discurso “Deus assim
cumpriu o que tinha predito pelos profetas. O que o seu Cristo havia de
padecer” (v.18), portanto, “arrependei-vos” (v.19). “Assim vêm tempos os
tempos de refrigério da parte do Senhor, que enviará de novo o Jesus, o
Messias que estava destinado (v.20) “O céu deve segura-lo até que chegue
o momento em que tudo será restaurado (αποκαταστασις παντων), como
Deus anunciou pela boca dos santos profetas”(v.21). Depois segue em
primeiro lugar, o grande anúncio do Messias por Moisés (vs. 22 e 23). Então
por todos os profetas até Samuel (v. 24) e, finalmente, a fala da aliança com
Abraão. Em tudo se aprecia uma ideia linear, a linha do tempo deste o
princípio, de Abraão, Moisés, Samuel e todos os profetas até Jesus, com a
esperança certa do reino messiânico, com a culminação e a chegada dos
“tempos de refrigério” e o cumprimento de todas as promessas feitas. Mas
olhando bem, essa interpretação linear-histórico não pode diferenciar-se sem
a justaposição com a primeira, a cíclica.45

Nesta citação de Von Balthasar ficou esclarecido que a segunda tradução é


a mais adequada pelo seu perfil profético corresponder a uma sucessão linear dos
fatos, mas deve ser observado que o autor não descarta a compreensão do termo no
âmbito cíclico mesmo na Escritura, pois deve ser levado em consideração que mesmo
havendo uma concepção linear, não deixa de estar revestido de uma reflexão sobre a
volta a restauração e a busca das origens.46

43 BALTHASAR, Von. Tratado sobre el infierno compendio. 2. ed. Valência: Edicep, 2000, p. 177.
44 MÉHAT, 1956, p. 196-214.
45 BALTHASAR, 2000, p.177.
46 Ibid.

30
A sugestão desta dupla interpretação do termo em Ato 3,21, mencionada por
Von Balthasar, não corresponde a compreensão de A. Mehat, que é mais radical e
não enxerga a concepção cíclica que terá seu ápice na interpretação de Orígenes,
que carrega consigo uma influência filosófica que afeta sua linguagem teológica e que,
por meio de uma metodologia original, busca argumentar as objeções dos seus
adversários.47 Portanto, a sugestão de André Mehat é de interpretar o termo em Atos
3,21 no sentido linear-histórico assimilando-se a Clemente de Alexandria.

A reaproximação com as fórmulas de Clemente de Alexandria, sugere para


ouvir o texto de Atos: "a conclusão de tudo o que Deus falou pela boca dos
santos profetas". Se, no entanto, devemos admitir qualquer influência do
conteúdo das profecias sobre a palavra, o que implica sua realização, não
devemos pensar principalmente em um retorno às origens. Na canção de
Zacarias (Lc 1, 70) as profecias são evocadas pela mesma fórmula do
discurso de Pedro. Mas o contexto fala da redenção do povo, da salvação,
da misericórdia, da aliança, do culto prestado em pureza e justiça. O tema da
libertação prevalece sobre o da restauração como em quase todos os textos
que estudamos até agora. A presença da palavra apocatastasis em Atos 3:21
não muda a perspectiva. Em vez de se referir à renovação universal e aos
textos que a pressupõem (1 Coríntios 15: 22-28, Romanos 8: 19-25), a
palavra apokatástasis deve recordar as idéias de realização e plenitude
comum que são freqüentes Novo Testamento (Mt 5, 17, Ef 1, 10, 4, 14 etc.).48

Nesta análise de At 3,21, em que o termo está explicito, não tem como deixar
de atribuir divergências na sua interpretação. Isso devido a concepção cíclica ou/e a
linear-histórica estar presente em diversas passagens da Sagrada Escritura e que
fazem conexão com o trecho. Detectar essas variações numa releitura atual só é
possivel em virtude do processo diacrônico que passa pela história e se estende ao
plano escatológico e metafísico.

Levando em consideração esta constante evolução da palavra, que se


estende para o plano escatológico, o Antigo Testamento é um grande celeiro de
mensagens que sugerem categorias interpretativas sobre a salvação escatológica,
principalmente na ação concreta de Iahweh no evento do exílio babilônico, que
culmina com o retorno de Israel cuja a ideia de apokatástasis é patente, sobretudo
entre os profetas.

47 ORÍGENES, 2012. p. 29.


48 MÉHAT, 1956, p. 196-214.

31
1.2.2.1. O termo apokatástasis no Antigo Testamento

O destaque do termo “apokatástasis” em At 3, 21 como expressão de cunho


profético-escatológico parte da perspectiva da experiência social humana e fé do povo
de Deus no Antigo Testamento, da qual a constatação se faz de situações de injustiça,
opressão e exploração. Deste panorama emerge a ação libertadora e salvífica de
Deus, visto que a linguagem profética diante deste cenário é a portadora de uma
mensagem de esperança. Neste contexto o vocábulo “apokatástasis” ocorre algumas
vezes, porém somente na condição verbal “apokathistemi”. Evidente que ao referir o
vocábulo no grego trata-se do uso na LXX, que traduz do hebraico a raiz “sūb”,49 que
se desdobra em diversos significados do qual pode-se assinalar o contexto da Aliança
com Deus, que ao ser quebrada pelos israelitas, estes devem retornar a Iahweh por
meio do arrependimento, quadro muito frequente em Jeremias e em algumas ocasiões
em Isaías.

A volta do exílio também pode ser associada não apenas ao retorno físico
para a Palestina, mas a volta a Aliança com Iahweh. Neste contexto, “sūb” é utilizado
em Esdras 2,1 e Neemias 7,6, onde este movimento da comunidade judaica é bem
caracterizado como uma restauração de uma Aliança perdida por ocasião do pecado,
esta dinâmica constitui numa dialética em que Deus livremente, por sua misericórdia,
acolhe o pecador que conscientemente arrependido renuncia ao pecado. A LXX, ao
traduzir “sūb” para apokathistemi, não deixa dúvidas da concepção desse radical
hebraico no contexto da restauração de um estado anterior. Do mesmo modo o
significado teológico da salvação no âmbito escatológico transcendente está
presente.50

Carlos Andrés Blanch, diante do grande número de textos no Antigo


Testamento que insinuam o sentido transcendente, menciona a passagem do profeta
Jeremias 16, 15, “Mas o Senhor vive, que trouxe a casa de Israel da terra do norte, e
de todas as regiões onde os joguei, e os devolverei (apokatástasis) à sua terra, que
eu dei a seus pais”. Nesta passagem o retorno de Israel à sua terra pode ser entendido
sob aspecto escatológico, porque há a alusão de retorno a “terra dos seus pais”, que

49αποκατάσταση. In: COENEN; BROWN, 2000, p. 1943.


50Shūb. In: HARRIS, R.LAird; JR,Gleason L. Archer; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de
Teologia do Antigo Testamento. Trad. Márcio Loureiro Redondo; Luiz A. T. Sayão; Carlos Osvaldo C.
Pinto. São Paulo: Vida Nova, p. 1532-1534.

32
não implica apenas no sentido físico, mas o retorno à origem, o fim da dispersão. “É
precisamente o seu contexto profético que nos autoriza a considerá-lo como ligado à
escatologia e, por causa de sua mensagem de restauração, de natureza espiritual”.51

A literatura profética ao enfatizar a restauração não limita-se apenas ao


regresso à propriedade, ao lar, a terra, mas a uma situação anterior, no sentido de
superação do tempo de adversidades e isso exige um modo de ser que perpassa pela
conversão, mudança de mentalidade e agir, para chegar ao bem-estar a paz. Esta
restauração é de forma definitiva (Am 9, 11-15). O tema da Nova Aliança (Jr 31, 31-
34) na perspectiva da apokatástasis é um conceito que não pode ser interpretado
apenas no sentido de uma restauração ligada a experiência histórica, mas
transcendente a história. É um novo que não continua o estado anterior, é o realmente
novo, o definitivo, a “nova terra”. Esta mensagem profética não visa o desligamento
das circunstancias históricas, mas introduz a dimensão escatológica da comunhão
dom Deus.52

Ao analisar estas passagens com ênfase na interpretação teológica da


apokatástasis, foi observado os diversos aspectos de forma característica e
representativa do vocábulo, que não possui uma forma unívoca de compreensão
devido seu carater complexo e abrangente, pois traz consigo uma ideia que no
decorrer histórico sofre transformações. Essa ocorrência está conexa com a
comunidade que adere a esta ideia e, a partir disso, caminha em direção a uma
interpretação particular. No entanto, o fundamentos estabelecidos até aqui promovem
um melhor esclarecimento no sentindo do vocábulo na literatura dos Padres da Igreja,
que foi amplamente debatido.

1.3. A compreensão da apokatástasis em alguns Padres da Igreja

No quadro linguístico na qual a Igreja antiga absorve e desenvolve o processo


de evangelização, o uso da língua corrente, “o grego Koiné”, deriva da influência da
Septuaginta, e a forma de expressão literária adquire uma bagagem cultural

51 BLANCH, 2014, p. 19-34.


52 Apokatástasis. In: BAUER; MARBOCK; WOSCHOTZ, 2000, p. 22-23.

33
helenica.53 Esse desenvolvimento presente na missão da primeira fonte
evangelizadora da Igreja pode ser caracterizado como revolução linguística, força
motriz de uma revolução espiritual:

“os primórdios do idioma dos cristãos foram realmente revolucionários:


renovação do vocabulário, tanto do técnico como do geral, introdução de um
grande número de termos tomado de empréstimo, mudanças de significado,
introdução de poleissemia, tendências vulgares, diferenciação sintática,
enfim, todos os âmbitos da língua foram submetidos a modificações aos
elementos essenciais no decurso de algumas gerações, é o teste mais
eloquente da revolução espiritual produzida pelo cristianismo no mundo
antigo. Nenhuma seita, nenhuma religião oriental jamais realizou uma
diferenciação tão profunda”.54

No que concerne ao do uso do termo apokatástasis na literatura dos Padres


da Igreja que desde a primeira geração – início na primeira metade do primeiro século
à meados do seculo segundo –, denominada como a geração dos Padres
Apostólicos,55 a palavra é usada dentro do contexto próprio da cultura helênica sem o
carater semântico, que irá atingir posteriormente sobretudo em Orígenes. Estes
Padres da geração apostólica são identificados como os dirigentes das comunidades
cristãs, e sua preocupação pastoral e litúrgica tem como aspiração manter a
organização e a comunhão. Como pastores exortam e ensinam por meio de uma
literatura de formato espistolar.56

1.3.1. Inácio de Antioquia e a apokatástasis

Entre os Padres apostólicos, segundo Dom F. A. Figueiredo, Inácio de


Antioquia57 redige suas cartas paras as comunidade saudando-as em tom de
agradecimento e recomendando-as na preservação e comunhão entre elas,
expressando desta forma a catolicidade da Igreja.58 Deve ser destacado em sua obra

53 PADOVESE, 2004, p. 177.


54 Ibid., p.178 apud MOHRMANN C., p. 65.
55 LIÉBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja (séculos I – IV), v.1. Trad. Nady de Salles Penteado. São

Paulo: Loyola. 2000, p. 21.


56 SESBOUÉ, Bernard.; WOLINSK. J. História dos Dogmas: O Deus da salvação, v.1. (I – VIII). São

Paulo: Loyola, 2004, p. 43.


57 Inácio tornou-se célebre por sua peregrinação forçada, em cadeias, de Antioquia a Roma, por volta

dos anos 107-110. Nas paradas que fazia para descanso, escrevia às comunidades que o tinham
recebido ou que lhe enviara uma embaixada com saudações. Cf. Inácio de Antioquia, In: Padres
Apostólicos. Trad. Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995. p. 48.
58 FIGUEIREDO, 1986, p. 51.

34
literária (Inácio) a originalidade e a espontaneidade que o identifica como um homem
místico, uma vez que expressa o teor sentimental e instintivo de sua experiência de
fé. Seu escrito não possui uma sistematização da doutrina, mas sublinha um conteúdo
de caráter circunstancial, fruto das necessedades das Igrejas a qual destinou suas
cartas.59 O fato de pertencer a Antioquia da Síria, considerada na época a terceira
cidade do Império Romano, em vista disso esta cidade constituia-se como um grande
pólo intelectual helenístico. Considerando esse ambiente o estilo literário de Inácio de
Antioquia – sem prescindir do valores bíblicos próprio do judaísmo – possui a
sensibilidade e o pensamento da cultura grega e por isso faz uso do gênero literário
que abarca as categorias filosóficas do helenismo.60

Na carta à Igreja de Esmirna, que foi escrita quando estava em Troade, existe
a preocupação dos fiéis manterem-se firmes na ortoxia. Os elementos significativos
desta recomendação perpassam pela afirmação de uma cristologia que parte da
historicidade da encarnação (Smyrn 1,1,2), inclui-se a dimensão eucarística vivida
pela Igreja (Smyrn 7,1) e também o acento sobre a unidade eclesial em torno do Bispo
(Smyn 8,1).61 Todo esse conjunto de exortações identifica Inácio como um Bispo de
expressão marcadamente eclesiológica. Esse conteúdo presente na carta aos
esmirnenses está expresso numa linguangem conforme as influências culturais
helênicas presentes em Inácio. Partindo dessa realidade deve ser destacado o uso
do vocábulo apokatástasis, expressão própria da linguagem usual helênica que
aparece uma única vez nesta carta:

E para que a vossa obra seja perfeita na terra e no céu, convém que a vossa
Igreja, para a glória de Deus, eleja um enviado de Deus para ir até à Síria se
congratular com aqueles fiéis, porque reconquistaram a paz e restabeleceram
a sua grandeza, (Smirn. 11,2).

O uso do vocábulo nesta recomendação de Inácio a Igreja de Esmirna exprime


a ideia de um retorno a uma condição melhor.62 Esta paz restabelecida63 pode estar
ligada a cessação da perseguição aos cristãos de Antioquia pelo Imperador Trajano,
mas, devido a imprecisão cronológica no relato de Eusébio de Cesaréia, não é

59 LOPES, Geraldo, Patrística pré-nicena. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 76.


60 HAMMAM, Adalbert -G. Os Padres da Igreja.Trad. Isabel Fontes Leal Ferreira. São Paulo: Paulinas,
1985, p. 16.
61 LOPES, 2014, p. 73.
62 “Inácio de Antioquia”. In: BERNADINO, 2002, p.129.
63 Inácio de Antioquia, Introdução, in Patrística, 2 - Padres Apostólicos, p.49.

35
possível afirmar categoricamente que tanto o motivo da prisão de Inácio quanto o
tempo de paz restabelecido pelos cristãos antioquenos seja de fato causa da
perseguição romana.64 Independente de qual ocasião os fiéis “reconquistaram a paz
e restabeleceram a sua grandeza” (Smirn. 11,2), a noção desta expressão nesse caso
de Inácio é apenas expressão de uso corrente da linguagem grega, não possui o
mesmo significado dos escritores cristãos posteriores cujo pensamento é mais
abrangente, no qual fazem uso da palavra num sentindo espiritual, transcendente.

1.3.2. Justino e a aposkatástasis

A figura de Justino na literatura cristã desponta como um dos mais importantes


Padres apologistas do século II. No quadro histórico do século mencionado, Justino
apresenta na sua apologia as justificações da fé cristã perante a hostilidade do
judaísmo e da elite helenista, os pagãos.65 Segundo A. Hamman dois fatores
promovem essa agressividade para com os cristãos. A primeira é a adesão do público
culto que simpatizam com a proposta cristã e pedem o batismo e, por conseguinte,
diante da expansão da fé cristã surgem criticas, gracejos entre os intelectuais pagãos
e, no ambito popular, diversas acusações caluniosas.66 Justino adere à fé cristã já
adulto e, por isso, já possuia uma profunda formação filosófica, dado que sua
conversão tem inspiração no testemunho dos mártires da comunidade cristã primitiva.

64 ‘Questão mais debatida é a razão para sua prisão e condenação às feras. Por muito tempo a
historiografia seguiu a tradição antiga de que Inácio teria sido preso durante uma perseguição aos
cristãos de Antioquia. Dessa forma, quando o bispo escreve de Trôade dizendo-se aliviado com a
notícia da “paz” que os membros de sua igreja finalmente desfrutavam (Filadelfienses 10,1; Esmirniotas
11,2; Policarpo 7,1), este termo se referiria a uma cessação das perseguições. A partir da década de
30, contudo, dúvidas passaram a ser lançadas sobre a historicidade de tal tradição. A partir de uma
série de análises minuciosas sobre os termos e as construções de frases feitas por Inácio, P. N.
Harrison deu voz à tese de que a prisão de Inácio seria consequência de conflitos internos à igreja de
Antioquia que teriam alcançado o âmbito público (SCHOEDEL, 1985, pp. 10-11; ROBINSON, 2009, pp.
165-171)8. Mais recentemente, Allen Brent deu seguimento a essa tese, sugerindo que a razão maior
para tal divisão na igreja de Antioquia teria sido a tentativa de Inácio de impor uma hierarquia na qual
o episcopado possuiria um papel proeminente (BRENT, 2009, pp. 14-43). Segundo esta outra
perspectiva, a “paz” em Antioquia seria nada menos que a resolução do conflito interno, talvez com um
compromisso entre as diferentes facções. Cf. O JUDAÍSMO NA PERSPECTIVA DE INÁCIO DE
ANTIOQUIA. (PIZA, Pedro Luiz Toledo Doutorando em História Social pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador vinculado ao Laboratório de
Estudos do Império Romano e do Mediterrâneo Antigo da mesma universidade). In: Alétheia Revista
de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 9/2, 2014. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/aletheia/article/view/6679>. acessado em: 26 fev. 2018.
65 FIGUEIREDO, 1986, p.116.
66 HAMMAM, 1985, p. 28.

36
Mesmo recebendo o batismo Justino não abandona a filosofia,67 a consequência disso
é que sua atividade literária será fecunda, sendo o “primeiro escritor cristão fazer uma
ponte, um nexo, entre o cristianismo e a filosofia pagã.68 Segundo Eusébio, Justino
redigiu diversas obras, porém somente três chegaram até nós: duas Apologias e o
Diálogo com Trifão.69

O temas contidos na sua obra apologética aos pagãos perpassa pela


apresentação da Bíblia como fonte de toda a sabedoria, e que o conhecimento
filosófico advém desta sabedoria. Isso ficou claro ao mostrar a dependência de Platão
à Moisés ( I Apol. 44,8), com um argumento profético anuncia que Jesus é o Filho de
Deus enviado para restaurar a humanidade (I Apol. 34-39), e em face ao mundo
judaico, ele desenvolve uma cristologia que expõe as profecias sobre o Messias (Dial
89) mencionando o Salmo 22 sobre o Messias sofredor na cruz (Diál 98-106).70

Considerando que Justino é um apologéta da primeira metade do século II,


inserido no mundo helenistico cuja a língua e linguagem é expressa em grego, que
está presente tanto no ambiente greco-romano como no mundo judaico-helenista, os
escrito deste apologéta é redigido em grego.71 A palavra apokatástasis aparece na
sua obra Diálogo com Trifão (134,4):72

Com efeito, assim como Noé deu como servo de dois de seus filhos a
descendência do terceiro, agora chegou Cristo para o restabelecimento
(apokatástasis) de ambos, dos livres e dos que dentre eles são escravos,
concedendo os mesmos privilégios a todos os que guardarem os seus
mandamentos, de modo que os filhos que Jacó teve com as escravas e as
livres fossem todos filhos de igual honra. Contudo, segundo a ordem e a
presciência, foi predito como será cada um (Diál 134, 4).

Esse trecho da apologia de Justino perante os judeus em que faz o


paralelismo entre Jacó e o Cristo, cuja intenção é apresentar as prefigurações do
Cristo no Antigo Testamento, estabelecendo como fonte comum entre cristãos e
judeus e legitimando a fé cristã o uso do vocábulo apresentado neste trecho
pressupõe uma noção cristã, na qual Cristo redime de forma universal, “livres e dos
que dentre eles são escravos”, portanto, não há a ideia básica da corrente profana

67 LOPES, 2014, p. 126.


68 Ibid., p. 127.
69 FIGUEIREDO, 1986, p. 117.
70 Ibid., p. 119.
71 “Justino”. In: BERNADINO, 2002, p. 831.
72 Ibid., p. 126.

37
que geralmente utiliza o termo no sentido do restabelecimento há um estado anterior,
mas a de uma conclusão, uma realização73 ocasionada pela redenção de Cristo.

1.3.3. A apokatástasis em Teófilo de Antioquia

Outro padre apologista do século II, Teófilo de Antioquia, segundo Eusébio


foi o sexto Bispo de Antioquia. Converteu-se já adulto à fé cristã, e como legado a
obra A Autólico dividido em três livros, sua intenção é apresentar que os cristãos
possuem conceitos sobre Deus, a salvação e sobre o homem a partir das Escrituras,
deixando claro que estas noções são efetivamente muito mais sólidas que a dos
gregos.74 A. Mehat, na análise do termo apokatástasis em Teófilo, cita a passagem do
livro III a Autólico:

"O rei do Egito no início (αρχηθεν) escravizou os judeus, uma linha legítima
daqueles heróis de piedade e santidade, Abraão, Isaque, Jacó. Mas Deus se
lembrou desses personagens santos. Ele realizou incríveis milagres e
maravilhas através do ministério de Moisés, libertou os hebreus, trouxe-os
para fora do Egito e os guiou através do que é chamado deserto. Então ele
os estabelece (αποκατεστησεν) na terra de Canaã". (Ad Autol. 3, 9).

A.Mehat utiliza esta citação de Teófilo, no seu debate sobre a ideia do termo,
com a finalidade de fundamentar aquilo que refere-se a evolução do significado desta
palavra. Sengundo ele o autor de A Autolico não menciona esse termo segundo a
ideia de restauração, que até poderia haver no pensamento do Bispo, porém de modo
secundário, mas a menção neste contexto é de um estabelecimento definitivo. Nesse
comentário de Teófilo sobre a narrativa da libertação dos hebreus da escravidão
egípícia e a chegada na terra de Canaã, a terra prometida desde Abraão, uso do termo
traz a conotação de cumprimento da promessa, e a consequência desta ação divina
é de uma realização de uma condição de vida muito melhor. Sem o subjugo da
escravidão o povo de Deus tem, a partir do estabelecimento em Canaã, uma vida mais
humana, porém com a condição de não afastar-se da Aliança com Iahweh.

73 MÉHAT, A. “apokatástasis “Origen, Clemente de Alexandria, At: 3,21” em Vigilliae christianae, Vol.
X, 1956, p. 196-214.
74 MORESCHINI C., NORELLI, E. História da literatura cristã antiga grega latina. Trad. Marcos Bagno.

São Paulo: Loyola, 2000, p. 288-290.

38
1.3.4. A apokatástasis em Irineu de Lião

Diferentemente de Justino e Teófilo de Antioquia, Irineu de Lião foi um


apologista oriundo do meio cristianizado, isso possibilitou-o adquirir uma concepção
cristã bem mais fundamentada. Essa característica na sua formação cristã
proporcionou o desenvolvimento de uma teologia sistematizada, sendo considerado o
primeiro teólogo, devido uso metodologico aplicado na sua reflexão teológica.75 Irineu
que originalmente viveu em Esmirna na Ásia Menor, segundo Euzébio (HE V, 20,6),
fora discípulo de Policarpo, exerceu episcopado em Lião no Ocidente em 177 quando
sucede Potino, primeiro Bispo de Lião, vítima de perseguição.76

Irineu, devido suas preocupações pastorais foi levado a compor suas obras,
sendo a mais importante delas a famosa ‘Contra heresias’, da qual combate o
gnosticismo,77 que devido a uma crise de fé vivida por seus membros diante das
perseguições desanimavam e perdiam a esperança, por isso tendiam ao seguimento
de movimentos que pregavam uma espiritualidade que consistia garantir a salvação
por meio do conhecimento destinado somente aos escolhidos. Essa concepção
excluia a mediação de Cristo Ressuscitado. Frente a isso era necessário reforçar a fé
dos batizados na Ressurreição e demonstrar a fragilidade dos ensinamentos
gnósticos.78

A reflexão teológica de Irineu sobre a Ressurreição não dá ênfase ao evento


histórico, mas prefere falar do Ressuscitado. Pensar a ressurreição corporal de Cristo
é pensar na ressurreição de todos os mortos. Esse ponto de vista das reflexões de
Irineu abarca o valor universal da salvação implícitada na ressurreição, um
contraposto ao gnosticismo,79 que desprezava o poder resssuscitador de Deus:

Desprezam o poder de Deus e não prestam atenção à verdade os que olham


para a fraqueza da carne e não consideram o poder daquele que o ressuscita
da morte. Com efeito, se ele não vivificasse o que é mortal e não levasse à
incorruptibilidade o que é corruptível deixaria de ser poderoso. Mas devemos
constatar que ele é poderoso em todas estas coisas e a nossa origem não
deve dar a compreender: pois foi tomando um pouco de lodo da terra que
Deus modelou o homem. Ora, é muito mais difícil e incrível que tenha feito

75 LIÉBAERT, 2013, p.53.


76 SINGLES, Donna. A glória de deus é o homem vivo: a profissão de fé de santo Irineu. Trad. Tiago
José Risi Leme. São Paulo: Paulus, 2010, p. 15.
77 LIÉBAERT, 2013, p. 56.
78 SINGLES, 2010, p. 19, 20.
79 Ibid., p. 108, 109.

39
existir do nada ossos, nervos e veias, e todos os elementos que constituem
o organismo humano, dando-lhe o ser, criando-o animal vivo e racional do
que reconstituí-lo, (apokatástasis) quando, depois de criado, se tenha
decomposto na terra, pelos motivos apresentados acima, se bem que tenha
acabado naqueles elementos dos quais foi feito no princípio, quando nada
era feito. De fato, aquele que no princípio e quando quis fez o que não existia,
com maior razão, querendo, pode ressuscitar os que já tiveram a vida
concedida por ele.80

Nessa discussão sobre a ressurreição, Irineu utiliza o termo apokatástasis


com uma conotação longe da concepção cíclica presente no meio gnóstico. Essa
reconstituição, restabelecimento, restauração é obra do poder de Deus que
demonstrou ao criar o ser humano do nada e na ressurreição dada por si e por amor
estabelecendo a vida definitiva. Em outro momento Irineu usa o vocábulo ao referir-
se as obras da carne em tensão com as obras do espírito. Neste caso a ideia não é a
de um retorno a um estado primitivo, mas a noção de um ponto de chegada, de
realização.

Como a carne é capaz de corrupção assim o é de incorrupção; como é capaz


de morte o é também de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e não
ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma
não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a
vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem,
afasta-lhe a morte e o restituirá (apokatástasis) vivo a Deus. Se a morte fez
morrer o homem, por que a vida, ao sobrevir, não o vivificaria? Como diz o
profeta Isaías: “No seu poder a morte devorou”; e ainda: “Deus enxugará
todas as lágrimas de todos os rostos”.81

Von Balthasar segue o mesmo caminho no exame do vocábulo apokatástasis,


citando a ideia irineica de restauração oposta a compreensão gnóstica cristã que
vislumbra o retorno do homem ao estado original perdida após a queda no mundo no
momento em que assume a matéria, sendo o Cristo Redentor que reconduz o homem
caído ao seu estado original. A reação de Irineu frente a esta concepção cíclica do
gnosticismo foi afirmar o plano salvífico no horizonte histórico linear. O homem é
reconstituído por Cristo, e que a queda do homem faz parte de uma ação pedagógica
divina para atingir a maturidade, a realização e a plenitude humana. Esse caminho em
direção a perfeição passa pelo seguimento de Cristo e a Eucaristia.82

Neste resumo do percurso da atividade literária desenvolvida em ambiente


greco-romano dos Padres da Igreja, Apostólicos e Apologistas – final século I e

80 CESARÉIA, Euzébio, História Eclesiástica. Trad. de Wolfgang Fischer. São Paulo: Novo Século,
2002. Livro V, 3, 2.
81 Ibid., V, 12, 1.
82 BALTHASAR, 2000, p. 183.

40
praticamente em todo o século II – que em um processo de interação com a cultura
local absorveu e ressignificou o uso da palavra apokatástasis, imprimiu-se uma ideia
de cumprimento, realização, chegada a uma condição melhor, restauração de uma
condição original. Mesmo diante de toda esta interação sociocultural e religiosa, a
ideia deste conceito ainda não alcançou o significado que terá entre pensadores
cristãos posteriores, sobretudo entre os Padres Alexandrinos, que por meio de uma
sistematização teológica-filosófica mais influenciada pela gnose, relacionarão o termo
ao contexto escatológico, tendo como centro desta reflexão escatológica a noção de
redenção ou salvação universal.

1.3.5. Apokatástasis em Clemente de Alexandria

O aspecto missionário vivido pelos Padres dos séculos I e II, pautado na


integração com o mundo helênico, que foi plenamente demonstrado nos seus escritos,
formaram um corpo documental importante para a compreensão da fé cristã nos seus
primórdios. Esse movimento de inculturação da fé, objetivamente, teve a preocupação
em diferenciar-se do mundo pagão do que assemelhar-se, o que significa uma
adequação aos seus leitores no empenho de explicar a fé cristã. Esta tensão entre
mundo pagão e mundo cristão não descarta a aproximação cada vez mais da
realidade urbana, e o uso do latim e grego exigiu dos cristãos a conversão e a
necessidade de conhecê-las, sendo inegável a formação de uma polaridade entre
cristãos cultos e incultos.83

Ao passo em que a intelectualidade passa a ter grande importância, os


grandes centros urbanos tornam-se habitat natural para quem empreende-se neste
espírito, e Alexandria84 era o mercado mundial das ideias, a encruzilhada de

83 PADOVESE, 2004, p. 164, 165.


84 “Fundada em 331 a.C., por Alexandre Magno, e feita pelos Ptolomeus a mais importante metrópole
do mundo antigo, passa a ser o grande centro comercial e cultural em que acorriam para lá poetas,
artistas e filósofos , que para acolher este desejo de cultura levantou a casa das Musas, Museum e
uma grande biblioteca para seus intelectuais, transformando-se depois de Atenas no grande polo
helenístico alexandrino. Nos anos 20 a.C. abrigava uma grande comunidade Judaica, que já helenizada
traduziram a Bíblia hebraica para o grego, a Septuaginta, e Filon já era contado entre os sábios, tendo
a Bíblia como ponto de partida adota o método alegórico, oriundo da filosofia grega que permanecerá
como característica exegética da futura escola cristã alexandrina”. LOPES, 2014, p. 234.

41
sistemas,85 lugar propício para o surgimento de um centro de estudos da fé cristã. Por
volta do fim do século II floresce um movimento cristão de alto nível intelectual e de
orientação ortodoxa, no qual, Panteno é o primeiro mestre desta escola alexandrina
cristã e Clemente é seu discípulo.86

Tito Flavio Clemente, um grego nascido em Atenas aproximadamente 150


d.C., que converteu-se a religião cristã já adulto, possuía uma sólida formação
filosófica. Convertido e no desejo de aprimorar sua formação embrenha-se a procura
de um mestre. Passa pela Itália, Síria e Palestina até encontrar, por volta do ano 180
d.C. em Alexandria, Panteno,87 e por lá se fixa. De discípulo torna-se mestre, porém
mais mestre que escritor, um verdadeiro pedagogo segundo A. Hamman:

A imagem de pedagogo que aplica a Cristo, guardadas as devidas


proporções, serve também para ele. É um educador nato, lúcido, observador
[..] discerne a inanidade ontológica da gula, da vaidade, do luxo e do dinheiro.
Sua preocupação constante é a de converter, de educar, de conduzir os
homens a perfeição.88

Nesse período de permanência de Clemente em Alexandria o ambiente


cristão era plural. Havia várias correntes cristãs, dentre as quais uma corrente oriunda
dos centros de pensamento gnóstico que já estava bastante encorpada, devido a
propagação feita pelos discípulos de Basíledes e Valentim. Em tal quadro, teólogos
destas correntes assediavam cristãos de camadas sociais elitizadas, porém de
formação cristã básica. É neste universo que surge a escola catequética de
Alexandria, a “Didascália”, que acolhe esta ala de cristãos de categoria social mais
elevada. No processo de formação cristã desta escola provavelmente havia dois
grupos distintos, um de preparação aos catecúmenos com um tipo de formação básica
organizado pelo bispo, e outro grupo mais avançado com ensinos privados de filosofia
e teologia com os mestres.89 Panteno90 provavelmente foi o primeiro a dirigir esta
escola de ensino mais avançado, sendo sucedido por Clemente (H.E. VI,6).

85 HAMMAM.1985, p. 79.
86 FIGUEIREDO, Dom Fernando A. Curso de Teologia Patrística II. A vida da Igreja Primitiva (século
III). Petrópolis: Vozes, 1984. p. 76.
87 Ibid., p. 80.
88 HAMMAM. A. Padres da Igreja, p. 81
89 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 340, 341.
90 De Panteno não se sabe quase nada: segundo Eusébio (H.E. V, 10), vindo do estoicismo, depois

convertido ao cristianismo, dedicara-se à evangelização da Índia, onde fora precedido pelo apóstolo
Bartolomeu, que lhe havia deixado o evangelho de Mateus. Trata-se, como se vê, de notícias já
lendárias. Mais confiável é o testemunho de Clemente de Alexandria, que o teve como mestre; mas
afora isso, não sabemos nada dele, e não parece que tenha composto escritos [...]Clemente apresenta-

42
Muito do que foi revelado sobre a personalidade de Clemente de Alexandria
adveio dos seus escritos, “sua obra é variada, original, brilhante, redigida em estilo
elegante e puro. O autor é simpático em razão do espírito aberto, entusiasta e muito
religioso”,91 deixou como legado literário, uma trilogia92 considerada a principal obra,
cujo núcleo de reflexão é o Logos.

Protréptico ou exortação aos gregos é a primeira. Faz uma descrição do


Logos e tenta convencer os gregos à conversão sem rejeitar o caminho por eles
percorrido através da filosofia para chegar a verdade, pois enxerga sinais da
Revelação na tradição grega. Quanto ao escrito denominado Pedagogo é a
continuidade da anterior, também dirigida aos pagãos na qual constitui um verdadeiro
tratado moral. O Logos é o pedagogo que nos conduz ao crescimento da fé. Por último
Stromata, escrito em oito livros, não possui uma sistematização e sua linguagem é
simbólica. Nisso há uma clara intenção de ser um escrito feito para aqueles que
podem ser capazes de acessar os mistérios divinos por meio do conhecimento. Estes
se destacam-se dos simples fiéis.93

1.3.5.1. A gnose clementina

Como mencionado anteriormente, em Alexandria já havia correntes de


tradição gnóstica. Quanto a origem desse movimento ainda é muito discutido. Durante
muito tempo tudo o que se sabia sobre o gnosticismo era de fontes cristãs,
principalmente em Irineu de Lião, que diante das teses de Valentim apresentadas com
traços e fundamentos do gnosticismo. Portanto a identidade do sistema gnóstico era
conhecido a partir do ponto de vista cristão, mas, no século XX com a descoberta dos
manuscritos de Nag Hamandi em 1945 e em 1947 os manuscritos de Qumran, esse
fenômeno religioso da gnose pode ser compreendido a partir de fontes não cristãs.94

o como um membro da corrente das tradições secretas herdadas dos apóstolos, e é possível, portanto
que já Panteno sustentasse a ideia, tão cara a Clemente, da tradição esotérica. Ibid., p. 341.
91 LIÉBAERT, 2013, p. 88.
92 Sobre este ponto específico da intenção de Clemente redigir uma trilogia, ler MORESCHINI;

NORELLI, 2000, p. 339-363.


93 FIGUEIREDO, 1984, p. 81-82.
94 SESBOUÉ; WOLINSK, 2004, p. 38.

43
Este alargamento da compreensão histórica do movimento gnóstico permitiu que o
debate, a pesquisa e nova conclusões ainda permanecessem em abertos.

O sistema gnóstico é complexo, seja a compreensão do seu desenvolvimento


histórico ou como a sua definição. Existem delimitações que devem ser abordadas,
por exemplo, a distinção entre gnose e gnosticismo. Ao distinguirem-se essas
concepções possibilita-se um melhor entendimento sobre esse movimento e,
principalmente, qual é a influência sobre Clemente de Alexandria.

“Gnose”: designa uma tendência constante do espirito humano que busca o


sentido da vida no conhecimento; gnosticismo é o movimento histórico que
se desenvolveu nos séculos II e III e que nos ocupa até aqui. O gnosticismo,
portanto, é a manifestação histórica da gnose, cujo nome (gnósis) significa
conhecimento. É um vasto movimento religioso cujo desenvolvimento é
contemporâneo das origens do cristianismo”.95

Mesmo distinguindo gnose como uma inclinação do ser humano na busca do


conhecimento e gnosticismo como movimento histórico. De uma forma ou de outra é
evidente um movimento religioso de corrente gnóstica. Devido a complexidade destes
grupos religiosos é necessário verificar a hipótese se de fato a gnose era um puro
movimento exclusivista de caráter salvacionista ou um movimento místico relacionado
a grupos sectários voltado para a filosofia. Januário T. Ferreira depois traçar as
influências do pensamento judaico-gnóstico, cristãos e filosóficos ele conclui que:

[...] somos levados timidamente a pensar que a gnose, ainda que de caráter
salvacionista, foi uma de muitas tentativas para solucionar os problemas
então controvertidos, pela formulação duma via de conhecimento imediato
que superasse as objeções próprias dos autores gregos no terreno da
argumentação racional e as dos autores cristãos nas dificuldades inerentes
atingência dos dados da fé.96

O que se delineou até aqui foi que os gnósticos na tentativa de solucionar as


questões existências no âmbito cosmológico e antropológico perante a visão dualista
que tinham do mundo, fez-se necessário o uso de argumentações de matrizes
religiosas e filosóficas como caminho imediato. Neste cenário a gnose, serviu de
inspiração e avivamento que no plano ético está ligado a uma ascese que consisti na
ruptura com o mundo material garantido dessa forma a salvação, ideal nostálgico
vinculado ao retorno para o mundo divino.

95 Ibid., p. 38
96FERREIRA, Januário Torgal. O significado do gnosticismo: uma tentativa de interpretação filosófica.,
p. 266. disponível em: <http://hdl.handle.net/10216/13730>. Acesso em: 24 mai. 2018.

44
A literatura judaico-alexandrina herdeira da cultura filosófica assume a gnose
como argumentação das questões existenciais. Nesta corrente, Filon se estabelece97
como o grande nome do judaísmo-gnóstico e, a exemplo dele, Clemente colocou a
serviço da compreensão bíblica o uso dos sistemas gnóstico existentes na atmosfera
de Alexandria,98 as influências culturais grega e o judaísmo alexandrino com seu
universo gnóstico presente em seus escritos deixando claro seu contato com a obra
de Filon.99 Porém, essa atitude do padre alexandrino que demonstra sua preocupação
em dar ao dado da fé cientificidade, possibilitando o diálogo com a corrente intelectual
contemporânea, é uma demonstração científica das verdades reveladas. Vê-se que
para Clemente a gnose é a contemplação e o raciocínio teológico. Clemente mostra
como o gnóstico, superando todas as criaturas, chega ao criador”.100 Moreschini C. e
Norelli E., também demonstram a justificação de Clemente sobre a inteligibilidade da
fé a partir da gnose, porém, com um ingrediente substancial, o uso da Escritura:

O gnóstico deve captar o sentido oculto da revelação, lá onde é mais perfeita,


na Bíblia; a gnose é também inteligência espiritual das Escrituras proféticas
(Strom., II, 54,1), e em particular do Evangelho, que manifestou o significado
do Antigo Testamento (por exemplo Strom., IV, 134,3-135,1). O gnóstico
compreende as Escrituras “segundo o cânon clássico” (VI, 125, 2-3), isto é,
segundo a harmonia da Lei e dos profetas com a revelação trazida por Cristo:
a determinação desse critério representa uma delimitação de fronteiras em
relação à gnose dos grupos gnósticos.101

O fato do Evangelho dar significado ao Antigo Testamento corresponde


claramente à pessoa do Cristo, questão comum entre os padres apologistas, que se
preocupavam em demonstrar que a relação entre o Antigo Testamento e Cristo não
era de ruptura, mas que havia implicação entre ambos sem prescindir da centralidade
cristológica. É a partir desta centralidade que Clemente estabelece Cristo como a
verdadeira gnose:

Conhecendo Cristo, que é verdade, sabedoria e poder de Deus, conhece


também o Pai (Strom. II, 11). Sob a guia do Salvador, o gnóstico supera o
mundo visível e inteligível e se reconcilia através dele à Deus transcendente.
Este reconhecimento espiritual corresponde num título honroso e perfeito,
não por próprio mérito, mas pela apropriação de Cristo.102

97 Na confluência das tendências gnósticas gregas e judaicas, é preciso assinalar Filon de Alexandria
(20 a.C./40 d.C.) SESBOUÉ; WOLINSK, 2004, p. 39.
98 FIGUEIREDO, 1984, p. 78.
99 Ibid., p.79
100 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, Ramon. Patrologia. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, 1998.

p. 172.
101 MORESCHINI; NORELLI, 2000. p. 356.
102 ETCHEVERRÍA TREVIJANO, 1998. p. 172.

45
Clemente, influenciado pela corrente gnóstica, entende que a reconciliação ao
Pai dá-se pela superação do cristão ao mundo visível. Januário T. Ferreira, ao
descrever a concepção das correntes gnósticas de superação ao mundo visível,
relata que no âmbito ontológico, os gnósticos entendem que a Entidade divina e o
mundo estão vinculados pelas esferas cósmicas, constituindo a dualidade entre o
mundo superior e o mundo inferior. Ontologicamente o homem é diferente do mundo
inferior devido sua alma ter origem divina, ou seja, possui parentesco com o mundo
superior. Nesta ambiguidade entre mundo superior e mundo inferior é que o homem,
pela capacidade gnosiológica, afasta-se do mundo inferior indo ao encontro da
entidade divina.

Do não mundo que é, o homem tornar-se o mundo que projeta ser. A partir da
perspectiva gnosiológica o homem é capaz de superar as limitações do mundo pela
ilimitação do pensamento. A dimensão ontológica do homem revela a partir da
vivência existencial a sua capacidade gnosiológica, sendo esta capacidade
essencialmente uma dimensão ética. Ao discorrer sobre a dimensão ontológica do ser
do mundo e do homem e a capacidade de conhecimento deste último, Januário
destaca a ambiguidade entre o mundo e o homem, e fundamenta que a perspectiva
ontológica é alicerce da concepção antropológica.103

Anteriormente, quando foi descrito por Clemente que o cristão gnóstico é


aquele que supera as realidades do mundo visível para unir-se a Deus, dá-se a
entender que sua concepção antropológica concorda em tudo com as concepção
ontológica e gnosiológica das correntes gnósticas contemporâneas, mas há diferença
entre as concepções. Em Clemente a materialidade do corpo não é má, porém a alma
é mais digna do que o corpo:

A composição do homem, corpo e alma, normalmente é dada como ponto


pacífico. O corpo do pó da terra, é irracional e tende para a terra, pois dela
provém. Más não é mau por natureza, pois foi criado por Deus. E mais, sua
própria figura é expressão de sua dignidade. Além disso, é suscetível de ser
santificado. A alma e o corpo são sem dúvidas, diferentes, o que não significa
que sejam contrários. A alma deve dominar o corpo, afetado pelas paixões.
A primeira é sem dúvida de maior dignidade do que o segundo, a melhor parte
do homem, mas sem ser, entretanto, boa por natureza.104

103 FERREIRA, p. 262-265.


104 SESBOUÉ, 2003, p. 97.

46
Por mais complexo que seja a concepção antropológica de Clemente, deve
ser levado em consideração que é da filosofia e das Escrituras que a antropologia
clementina foi desenvolvida. Dom Fernando, a partir do texto de Clemente
“Pedagogo”, também compreende que a materialidade do corpo para o padre
alexandrino não é má e o dado que ele coloca:

No Pedagogo ele (Clemente) traça o quadro da vida cristã assinalando, com


precisão, a partir de textos bíblicos, o “modus vivendi” do cristão, como por
exemplo sua alimentação, seu vestir, seu beber. A este respeito ele descreve
os efeitos negativos do vinho para os jovens, ao mesmo tempo que permite
aos adultos e anciãos toma-los moderadamente, pois o vinho é também uma
medicina. O que move a fazer tais recomendações não é uma visão negativa
do corpo e o que se liga a ele. É a ideia, presente na filosofia da época,
sobretudo no estoicismo [..].105

Essa dessemelhança entre alma e corpo em dignidade no conceito


antropológico de Clemente resulta da sua formação na escola de Alexandria, que tem
na alma como a melhor parte do homem, entretanto, Clemente compreende que a
alma é mais digna porque é imortal e incorruptível. Esta condição da alma não é fruto
de um acaso na criação, mas é dom de Deus, lugar de sua da presença.106 A
relevância desta visão antropológica de Clemente dá-se primeiro pelo fato de não
colocar em oposição corpo e alma. Ambos possuem dignidade, mesmo que não seja
de maneira igual e, também, por corroborar para o entendimento do sentido de
apokatástasis desenvolvido por ele.

O sentido da apokatástasis a partir de Clemente será interpretado de modo


inédito, segundo Ilaria Ramelli é com o padre alexandrino que apokatástasis ganha o
significado de realização da perfeição e da beatitude.107 André Mehat afirma que em
Clemente a ideia de apokatástasis é de descanso eterno, o auge do que é esperado,
portanto, o significado do vocábulo adquire status escatológico.108 Esse alargamento
no conceito de apokatástasis é fruto de sua formação filosófica pautada no médio
platonismo.

105 FIGUEIREDO, 1984, p. 86.


106 SESBOUÉ, 2003, p. 360.
107 RAMELLI, 2013, p. 6-7.
108 MÉHAT, 1956, p. 196-214.

47
1.3.5.2. Etapa histórica da apokatástasis

A concepção do vocábulo apokatástasis em Clemente tem como pressuposto


o seu pensamento sobre condição antropológica que, segundo Carlos Andrés Blanch,
a antropologia clementina está pautada na doutrina da imagem de Deus, na qual o ser
humano, por ser modelado pelas mãos de Deus, o Criador, possui essencialmente em
sua natureza a imagem divina e, por isso, ocupa uma condição superior na criação;
“o Senhor soprou neste belo instrumento que é o homem e modelou de acordo com
sua imagem”(Protréptico 1.54),109 “por conseguinte, essa imagem se vê na alma
racional (nous),”110 que assimila mediante a sua inteligência o Verbo, Imagem perfeita
de Deus, que o capacita, a partir dos aspectos gnosiológicos e éticos, a alcançar a
semelhança de Deus.111 A dignidade mais elevada da alma é a parte do ser humano
que o Espírito de Deus age mais perfeitamente conduzindo-o ao caminho da
deificação pelas boas obras.112 Esse processo gnosiológico em direção ao alcance da
Imagem perfeita do Verbo difere das demais correntes gnósticas pelo fato de ser a fé
a geradora das virtudes, segundo Clemente fé e gnose estão estreitamente ligadas.113

Esse caminho de perfeição do ser humano, na ideia clementina, jamais


prescinde da liberdade, apoiando-se na fé inteligível o caráter de livre decisão humana
na restauração da imagem Divina, é para Clemente um processo apokatástico
orientado para a plenitude da apokatástasis escatológica.

A condição do gnóstico parece implicar duas fases: ela já é tal nesta vida,
onde porém está em continuo progresso, e estará completa na dimensão
escatológica. Mas desde agora é antecipação da perfeição escatológica:
implica ascensão da alma rumo à contemplação de Deus (Strom. IV, 116-17),
fruição do mundo inteligível (por exemplo Strom., IV 56,3-57,1).114

Carlos Andrés Blanch, no exame do pensamento clementino sobre


desenvolvimento apocatástico, também entende que tem origem na existência atual e
vincula esse movimento de restauração por meio da gnose ao ascetismo que, neste
caso, não significa um desprendimento do mundo no sentido de privação física, mas

109 BLANCH, 2014, p. 25.


110 SESBOUÉ, 2003. p. 98.
111 MORESCHINI ; NORELLI, 2000, p. 356.
112 SESBOUÉ, 2003, p. 97.
113 Ibid., p. 355.
114 Ibid.

48
através da disciplina espiritual, que consiste em defender a natureza humana das
irracionalidades.115

[...] é por isso que é necessário se tornar homem adulto de maneira gnóstica
e tendem à perfeição, tanto quanto possível, mesmo se permanecermos no
carne, e a partir de uma concordância perfeita, nós aspiramos a concordar
com a vontade de Deus na restauração realmente perfeita da nobreza e
afinidade pela 'plenitude de Cristo', perfeitamente nossa reconciliação.
(Carlos Blanch apud Strom IV, 21.132.1).

Clemente demonstra que tornar-se adulto é uma ideia processual de


crescimento, que já começa nesta existência ao mencionar a permanecia na carne
cuja a meta é a restauração perfeita. Dom Fernando, ao esboçar a visão de Clemente
de progressão do homem rumo a deificação, afirma diretamente que é o amor que dá
vigor ao gnóstico seu ideal almejado.116 Vale ressaltar a menção de Clemente de que
este amor consiste na extinção dos vícios do coração humano, sendo um deles o do
acúmulo.

A exortação de Jesus a vender os próprios bens não é interpretada, segundo


Clemente, no sentido literal de desfazer-se dos bens (o que muitos fizeram
antes da vinda de Cristo), mas no de extirpar a paixão pelas riquezas (11,2)
a exegese “espiritual” toma a dianteira. Antes, possuir riquezas é um bem,
seja para não sofrer, seja para ajudar quem necessita: aos preceitos de Cristo
de saciar quem tem sede, alimentar quem tem fome etc., só se pode obedecer
tendo riquezas (13-1,7). O rico que dificilmente entrará no reino dos céus é
aquele que faz depender a sua vida das riquezas, é o rico de paixões (19,3).
A esmola dada a todos os necessitados, sem distinção, é um “belo comércio
extraordinário, divino mercado” (32,1) porque permite, com dinheiro, adquirir
a incorruptibilidade.117

A menção desta homília de Clemente, com o título “Qual é o rico que se


salva?”, antes de fazer uma análise que seja distorcida do padre alexandrino e culpa-
lo de defender a riqueza, Moreschini e Morelli, apontam para o contexto social de
Clemente, cujo público de instruídos por ele faz parte da aristocracia. Como o
cristianismo não estabelece fronteiras, nesta reflexão clementina sobre a perícope do
Jovem rico (Mc 10,17,31) e a expressão do desejo de salvação a todos, todavia,
Clemente inclui os ricos na meta da perfeição cristã, conscientizando-os de que a
posse das riquezas só terá valor se estiver a serviço do outro.118

115 BLANCH, 2014, p. 25.


116 FIEGUEIREDO, 1984, p. 87.
117 Segundo Moreschini, Morelli, esta homilia de Mc 10,17-31, foi composta na redação dos últimos

Estrômatos e a citação faz parte da bibliografia de: Nardi, C. Clemente Alexandrino. Quale rico si
salva? Il Cristiano e l’economia, Borla, Roma 1991. MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 358.
118 Ibid.

49
A ideia clementina sobre a apokatástasis histórica, incitada pela fé, que
conduz o ser humano por meio de um progresso gnosiológico e ascético a perfeição
é entendida como antecipação da apokatástasis escatológica.

Esta antecipação parte da noção antropológica de Clemente que tem como


pressuposto a crença na imortalidade e incorruptibilidade da alma devido possuir a
presença do Espírito dom de Deus.

O corpo não é excluído desta perfeição, pois também participa da


incorruptibilidade por meio da ressurreição de Cristo que se encarnou para salvar o
ser humano integralmente, o seu corpo ressuscitado é pressuposto para ressurreição
do corpo de todo ser humano.119

1.3.5.3. Etapa escatológica da apokatástasis

A apokatástasis ultraterrestre tem como ponto fundamental o Amor de Deus


incondicional, sem exclusão de nenhuma pessoa. Carlos Blanch atesta esse
entendimento da noção de salvação universal em Clemente: “A aceitação do povo de
Deus não reside no tempo, mas é eterna, pois sua beneficência nunca teve
começo, nem está limitada a lugar algum ou a determinadas pessoas”.120 É notável
que o ser humano, independente da condição que está, é chamado por Deus no
processo de restauração. Se na esfera histórica ímpios e incrédulos negaram a Deus,
no âmbito ultraterreno a misericórdia de Deus continua a mesma, porque não está
limitada a um local ou espaço. Portanto, pode haver o arrependimento mesmo na
condição atemporal.

Mas é o arrependimento o ponto fundamental para o início do processo


apokatástico na condição ultraterrestre. JOHN R. SACHS afirma que Clemente pensa
esse processo de purificação pelo fogo (catarsis) – “ Não é como o fogo devorador da
vida cotidiana, destinado a destruir o pecador, mas uma "chama discernente" ou
"racional" que serve para santificar as almas pecaminosas que devem passar por ele

119 SESBOUÉ, 2003, p. 360.


120 BLANCH, 2014, p. 28.

50
( Strom. VII 6.34.4) –. Este processo é doloroso, mas possui função pedagógica de
punir e instruir.121 O tempo desta purificação não é o mesmo para todos, deve ser
levado em consideração o grau de impureza de cada um. Essa concepção de
Clemente do fogo restaurador não é originalmente sua, advém da crença na
conflagração dos estóicos.122 Considerando, também, que esta perspectiva no
processo salvífico clementino posteriormente será desenvolvida e representada como
a doutrina do purgatório,123 que para Clemente a ideia não é como justiça retributiva
para os que foram são salvos sem atingirem a plena perfeição, mas como processo
pedagógico de purificação e aperfeiçoamento de todos os homens.124

Este processo apokatástico que envolve todos os seres humanos, mesmo


aqueles que rejeitaram a verdade e quiseram permanecer no pecado, segundo
Blanch, a ênfase de Clemente é o amor de Deus e a sua onisciência. “Deus, ele diz,
não foi pego de surpresa pela queda do homem” (Strom. 2.13.56.2.), ainda, segundo
o mesmo autor, este é o ponto característico da ideia de apokatástasis de Clemente,
cujo o fundamento também está na filosofia estóica denominada de ἀκολουθία, que
significa ordem, organização. Ou seja, para os estóicos há todo um ordenamento no
universo que é fruto da Providência, entretanto, com a ocorrência da queda do homem
como prevista por Deus, Clemente acredita que a apokatástasis é providência divina
para permitir de modo ordenado, processual o alcance da perfeição do ser humano
em diversas etapas. Isto é, a apokatástasis é uma progressão espiritual originada na
bondade de Deus.125

É por isso que os mandamentos também [...] estabeleceram que a alma que
estava sempre melhorando no profundo conhecimento da virtude e no
progresso da justiça, obtivesse uma posição melhor na classificação,
lançando, de acordo com cada progresso, o estado de impassibilidade até
alcança o homem perfeito, a eminência da gnósis e ao mesmo tempo da
herança. Esses progressos salvadores são diferentes na ordem de
transformação de acordo com os tempos, lugares, honras, conhecimento,
herança e ministérios; cada um tem seu próprio grau, até [alcançar] a mais
alta contemplação superior e mediata do Senhor na eternidade. (Carlos
Blanch apud Strom. VII, 2.10.1-2).

121 SACHS, John R. Apocatástasis in Patristic theology. Theological Studics, 54 (1993) p. 618-620.
disponível em: <http://cdn.theologicalstudies.net/54/54.4/54.4.1.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2018.
122 Ibid., p. 29.
123 SESBOUÉ, 2003, p. 360.
124 SACHS, 1993, nota 107.
125 BLANCH, 2014, p. 32.

51
Portanto, a apokatástasis em Clemente demonstrada conforme a
cientificidade de seu tempo – filosofia-teologia –, o processo de desenvolvimento
gradual de perfeição do ser humano, envolvendo as etapas nesta existência e a
ultraterrena, tendo como ponto constituinte o amor de Deus pelo ser humano, que
jamais o abandonou, mesmo no pecado, e que a salvação é fruto da sua graça e sua
providência. É desta concepção pautada na supremacia do amor divino que Orígenes
desenvolverá sistematicamente a ideia de apokatástasis como salvação universal.

1.4. Conclusão

Certamente, ao final deste capítulo, pode-se ser destacado a apokatástasis


como resultado da inculturação da fé. Na medida em que a mensagem cristã é aceita
no mundo helênico, é inevitável a adequação da linguagem teológica com a linguagem
grega e com todos os seus conceitos e categorias. Esta configuração favorece a
expressão do conteúdo salvífico para um público de espírito intelectual helênico, mas
que simpatizava com a mesangem evangélica.

Ao passo que o movimento cristão também absorve os elementos culturais


helênicos, sobretudo a literatura, e agora transformada em literatura cristã, esta
atividade literária dos cristãos dos primeiros séculos articula-se entre a filosofia e a
Sagrada Escritura. Esse dinamismo cultural, presente no pensamento teológico,
assimila o conceito de apokatástasis do estoicismo, que possui dois pontos
fundamentais: a concepção cíclica e metafísica, que terá influência nos pensadores
cristãos, porém não de forma semelhante.

A Sagrada Escritura no ambiente helênico não poderia estar excluida do uso


do termo e de sua definição, porém não há uma interpretação unívoca, seja no Antigo
ou no Novo Testamento. Geralmente é compreendido no ambito histórico geográfico,
que pode ser o retorno de volta ao local de origem, ou sob o contexto ético sublinhado
no retorno da aliança com Iahweh, ou no campo profético-escatológico que foi bem
demonstrado no Novo Testamento especialmente em Atos 3,21.

Foi constatado que entre os Padres da Igreja que usavam a linguagem grega
para o anúncio da mensagem cristã, seja ela de forma pastoral ou apologética, fizeram

52
o uso do conceito apokatástasis transmitindo uma ideia de cumprimento, realização,
chegada a uma condição melhor, restauração de uma condição original. Porém,
Clemente de Alexandria, que provém de um círculo helenista mais acadêmico e
visando dar para sua linguagem teológica uma roupagem mais científica, ressignifica
o termo apokatástasis a partir de sua visão de gnose cristã, como processo gradual
de evolução. Entretanto, esse desenvolvimento engloba a realidade histórica e
escatológica. Na verdade o autor quer salvaguardar a sua experiencia de fé em um
Deus que é amor e que deseja salvar todos seres humanos, portanto a apokatástasis
para Clemente faz parte da providência divina para a salvação humana.

53
2. APOKATÁSTASIS: PERSCPECTIVA A LUZ DE ORÍGENES

2.1. Introdução

Como foi demonstrado no capítulo anterior, a polissemia sobre o vocábulo


grego apokatástasis na maioria das vezes o seu significado remeteu-se ao retorno ao
estado original, foi essa ideia que a palavra permeou entre os primeiros pensadores
cristãos.

A influência gnóstica, fruto da inculturação helênica no cristianismo, se


desenvolverá de modo intenso nos ambientes eruditos de Alexandria, local da
formação religiosa e intelectual de Orígenes.

O gnosticismo que contém um dualismo cósmico como essência e cujo


conhecimento e a salvação é estranha a esse mundo,126 será um fenômeno no
pensamento cristão causando, na maioria das vezes, o desvio da ortodoxia. É nesse
contexto que Orígenes estabelecerá a autoridade de seu ensino, através do uso do
sistema filosófico corrente e da Sagrada Escritura, para instruir e responder as
questões dos cristãos intelectuais.

A apropriação do termo apokatástasis por Orígenes partirá da sua


preocupação com a ortodoxia. Ele sempre foi um homem da Igreja e, por isso, ao fazer
a reflexão teológica sobre a apokatástasis seu interesse primordial será pastoral,
razão pela qual, ele desenvolve um brilhante trabalho que parte de uma hermenêutica
alegórica bíblica que é bem sistematizada na sua obra: O Tratado sobre os princípios
“O Peri Archon”.

Esta síntese do autor alexandrino traz um novo significado à apokatástasis,


porém não é um resultado, devido a intenção do autor não ter sido a afirmação de
uma verdade infalível, a sua preocupação teológica foi responder os questionamentos
de seu tempo e a abordagem sobre a apokatástasis foi totalmente especulativa.

Portanto, será oportuno expor neste capítulo a formação e crescimento


intelectual de Orígenes, isso envolve a sua compreensão filosófica e teológica.

126 LIÉBAERT, 2013, p. 58.

54
Entender o contexto histórico de sua época muito marcado com as heresias gnósticas
é o percurso para o entendimento do seu discurso sobre a apokatástasis envolve os
pontos de vista cristológico, antropológico e soteriológico.

2.2. O perfil teológico de Orígenes

No meio cristão, Orígenes (185 – 254 d.C.) é marcado pela tensão entre gênio
intelectual cristão e sua heterodoxia. Estes atributos são sublinhados pela audácia da
sua reflexão teológica no contexto do século III d.C., cujo pensamento cientifífico está
influenciado pela filosofia platônica, sobretudo o médio-platonismo, o estoicismo e o
gnosticismo que, diante das questões existenciais (Deus, Cosmos e Salvação) em
algumas condições, desviavam muitos cristãos da ortodoxia apostólica. No esforço
origeniano de encontrar respostas para as objeções de seu tempo, e tormamos como
fundamento a noção sobre o discurso cientifico de Thomas Kuh na modernidade que
descreve a linguagem científica como uma contínua quebra de paradigmas, temos o
mesmo pressuposto para o mestre da escola de Alexandria que olhando para os
mesmos pontos já discutidos na teologia rompe com paradigmas que foram capazes
de gerar crises na concepção de fé vigente de seus contemporâneos, essas crises
podem ser denominadas como uma revolução científica de seu tempo, visto que
Orígenes faz o uso de observações inovadoras com os instrumentos disponíveis de
seu ambiente intelectual, tal qual o platonismo e a exegese alegórica.127

O pressuposto de que Orígenes é um teológo paradgmático está na


configuração assegurada de sua múltipla formação que envolvia gramática, a filosofia
grega e a educação cristã centrada nas escrituras. Segundo Euzébio, o talento de
Orígenes elevava sua reputação, inclusive no ambiente dos filósofos gregos. Ele cita
uma narrativa de Porfírio que tentava denegrir a imagem do jovem prodígio, mas no
fundo não passava de uma demonstração de seu fascínio pela sua sabedoria e

127 Sobre este ponto do avanço científico a partir da quebra de paradigmas como forma de
aprimoramento da ciência Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Nelson
Boeira. 13 ed. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 147-173.

55
formação qualificada nas ciências gregas, que dentre os ouvintes do grande mestre,
Amônio Saca,128 foi o que mais se destacou.129

Sobre a opinião de Porfírio a respeito de Orígenes, Jaeger salienta que


mesmo o alexandrino sendo cristão, mantinha a ótica helênica sobre todos aspectos
da vida humana, até mesmo de Deus. Este ponto de vista filosófico foi estimulado pela
leitura constante de Platão. Jaerger acrescenta outra crítica positiva feita por Gregório
o Taumaturgo – discípulo de Orígenes –, que por não confiar nas interpretações
filosóficas de seus contemporâneos, sobretudo as de caráter sofístico, incentivava
seus discípulos ao estudo dos filósofos mais importantes na sua fonte origninal, ou
seja, seu método investigativo estava pautado na literatura platônica e pitagórica da
geração anterior. Essa metodologia de fixar nos filosofos de grande prestígio do
passado era práxi das escolas de filosofia grega de seu tempo,visto que também nos
escritos de Plotino esse método era evidente.130

O grau de intelectualidade elevado em Orígenes é corroborado por seu


cosmopolismo geográfico. Não foi um homem reduzido em um espaço geográfico,
muito pelo contrário, foi um homem viajado. Segundo Euzébio de Cesaréia, esteve na
Árabia, Palestina, Capadócia Grécia e, inclusive, Roma,131 sendo as duas últimas
cidades detentoras de um vasto comospolitismo cultural. Essa realidade itinerante de
Orígenes terá grande influência na sua reflexão teológica, dando um caráter mais
sofisticado, crítico, avançado e, consequentemente, o aumento do seu prestígio.

A notoriedade da fecunda sabedoria intelectual do mestre alexandrino não


rompe com a sua experiência mística, ou seja, não pode ser criado uma dicotomia
entre o conhecimento científico, especulador e investigativo com a experiência de fé
de Orígenes. É o que demonstra Euzébio de Cesaréia, ao descrever sua conduta
na juventude em meio a perseguição ocasionada por Sétimio Severo. Segundo o
historiador a causa de tanta admiração pelo catequista de alexandria se dava pelo
seu modo de acolhimento, prestatividade e coragem perante todas as pessoas sem

128 Amônio Sacas foi mestre da escola filosófica de Alexandria entre os séculos II e III. A princípio era
cristão, mas voltou-se para a religião pagã. Não deixou nenhuma obra escrita, porém seu método de
investigação acurada atraiu célebres discípulos tal como Orígenes e Plotino, o pai do neoplatonismo.
Cf. REALE; ANTISERI, 1990, p. 338.
129 CESARÉIA, 2000, Livro VI XIX 1-12.
130 WERNER, 2014, p. 67-68.
131 CESARÉIA, 2000, Livro VI.

56
fazer distinção alguma, levando em consideração todo ambiente de hostilidade
contra os cristãos, além do seu desprendimento perante os bens materiais. Esse
modo de ser de Orígenes arrebanhava cada vez mais discípulos, sendo que muitos
destes tornaram-se verdadeiros mártires.132 Dom Fernando exalta esse estilo de
vida do alexandrino ao dizer que “o ponto alto de sua mística é sem dúvida o
conhecimento, mas um conhecimento no amor”.133

A partir da análise deste desenvolvimento pessoal de Orígenes fica evidente


a profunda relação da sua vida mística com a sua reflexão teológica. Inclusive essa
característica presente em sua teologia terá muita influência na tradição posterior de
teólogos orientais que adquiriram um “ideal de conhecimento de natureza
mística”.134

Inerente ao estilo de vida pautada na experiência do amor, a Palavra da


Revelação ecoa como fonte fundamental no conhecimento teológico de Orígenes,
que desde a tenra infância foi instruido por seu pai ao estudo aprofundado das
Escrituras, antes mesmo dos saberes gregos. Desta forma, a sua capacidade de
interpretação da Palavra sempre visou ir além dos sentido literal, principalmente nas
passagens mais difíceis. Este apreço pela Palavra de Deus fará de Orígenes um
grande exegeta, que na ânsia de uma hermenêutica coerente com a ortodoxia fará
uso de diversas traduções existentes da Escritura, tal qual a escrita na língua
hebraica, a tradução dos LXX e outras traduções do existentes (Áquila, Símaco e
Teodocião).135

No tocante a ortodoxia, Orígenes foi contestado ainda em vida. Sua obra o


Tratado sobre os Princípios (Peri Archôn) lhe rendeu muitos adversários. Questões
sobre a preexistência das almas, apokatástasis, a possível salvação do Diabo e o
subentendido subordinacionismo do Verbo deram ao alexandrino o adjetivo de
herético. As controvérsias posteriores motivadas por esses temas fará um grande
estrago para a memória póstuma de Orígenes. O infortúnio será tão grave, que suas
teses serão condenadas pelo V Concíclio ecumênico de Contantinopla II, em 553,

132 CESARÉIA, 2000, Livro VI II 1-14.


133 FIGUEIREDO, 1984.
134 CROUZEL, Henri. Un teólogo controvertido. Trad. Espanhola realizada por las monjas benedictinas

de la abadía Santa Escolástica de Victória. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2015. p. 171.
135 CESARÉIA, 2000, Livro VI.

57
que fora convocado por Justiniano. Vale salientar que o Concílio condena o
origenismo que já havia corrompido as ideias origenianas.136

Mesmo sob as acusações de heresias perante Orígenes deve ser levado em


consideração o seu desejo de esclarecer a fé para muitos cristãos de seu tempo,
que estavam em desacordo com a profissão de fé em Cristo e que, portanto, se
afastavam dos ensinamentos dos apóstolos. Esse pressuposto para Orígenes foi o
motor para escrever o Tratado sobre os Principios como resposta aos problemas de
fé vigentes, entretanto, Orígenes sublinha que sua preocupação é manter-se sob a
tradição apostólica que detém o reto ensinamento recebido de Cristo e que haviam
pontos deste ensinamento que os apóstolos silenciaram, porém cabia a posteridade
eclesiástica elucidar para chegar à Verdade que é Cristo. Esses pontos para serem
respondidos correspondiam a realidade do Verbo, sua encarnação, o Pai, o Espírito
Santo, questões sobre a alma, a criação visível e invisível, e serviço investigativo,
que Orígenes toma pra si, mas que em algumas especulações ele não desenvolve
uma resposta fechada, chegando propôr mais de uma hipótese e, assim, deixando
claro que é o leitor que deve descidir qual solução pode acatar.137

Orígenes, teólogo paradigmático, filósofo e exegeta, homem itinerante e


pluricultural, profundamente místico e zelador implacável da ortodoxia, todas essas
características fazem parte da sua capacidade genial. A gênese do
desenvolvimento teologógico do grande teólogo alexandrino não pode ser
desvinculado das referências acima analisadas.

2.3. As correntes gnósticas mais influentes no período histórico de


Orígenes

Na passagem do século II para o século III as comunidades cristãs já estão


consolidadas, e estão muito mais aplicadas na defesa da ortodoxia. Esse
rebustecimento aplica-se por dois fatores, a estruturação do episcopado monárquico
e a propagação de uma fórmula do símbolo apostólico mais padronizado. Todo esse
empenho dá-se por uma Igreja que já ocupa todo território romano e adquiri um rosto

136 LIÉBAERT, 2013, p. 94.


137 ORÍGENES, 2012, p. 49-56.

58
pluricultural, que alcança todas as camadas da sociedade, sendo que, cada vez mais
os cristãos elitizados vão compondo as comunidades. Neste instante, a Igreja não tem
apenas o objetivo de defender-se contra o paganismo, mas sua preocupação é
também salvaguardar a fé no âmbito ad-intra, pois várias correntes influenciam os
cristãos. Em vista disso, as heresias passam a pulular por toda parte.

Neste universo religioso os escritos são inúmeros e o canôn biblico não está
definido oficialmente, porém as comunidades já possuem uma fé amadurecida capaz
de distinguir os textos sagrados autênticos dos textos apócrifos, sendo estes últimos
produzidos em quantidade muito menor do que nos séculos anteriores, no entanto
com um conteúdo profundamente gnóstico.138

Toda agitação existente em relação aos escritos tem como princípio


fundamental responder questões dos dados de fé, recebidas na Revelação, que eram
difíceis de compreender. Por isso, temas como a Trindade ,o Verbo, a encarnação, o
livre arbítrio e a providência divina, eram o amplo cenário para a reflexão teológica.
Na prática, as influências culturais presentes nas comunidades cristãs promoveram o
desenvolvimento da mais diversas correntes, tal qual as de tradições judaicas que
podemos denominar como os judeus-cristãos, que faziam interpretações mais literais
da Escritura; haviam cristãos convertidos do paganismo com forte influência filosófica
e os oriundos do gnosticismo que traziam no bojo uma hermenêutica alegórica. Deve
ser ressaltado que este grupo é resultado de confluências entre a heterodoxia judaica
e as tendências gnósticas gregas. Filon de Alexandria é o protagonista deste
movimento.139

2.3.1. O Marcionismo e o anti-judaísmo

As escolas gnósticas da tríade Marcião-Valentim-Basílides são as mais


conhecidas, devido sua ampla influência no meio cristão decorrente de um discurso
teológico eloquente e suficiente. Sesboué, depois de analizar a pesquisa de diversos

138 PIERINI, Franco. A idade antiga. Curso de História da Igreja. Trad. José Maria de Almeida. São
Paulo: Paulus, 1998, p. 95-96.
139 SESBOUÉ, 2004, p. 39.

59
estudiosos católicos e protestantes, indica um ponto comum entre os gnósticos, do
qual foram os primeiros intelectuais cristãos com muito talento, que mesmo
posteriormente serem conhecidos como heterodoxos, o ponto paradoxal decorre de
alguns pontos de sua teologia serem mais adequados do que teólogos cristãos
contemporâneos. Eles foram aqueles que primeiramente, melhor apresentaram, de
forma sistematizada uma teologia da criação e da salvação, mas, por outro lado,
afirmar que suas teorias foram as primeiras a representar a teólogia cristã constitui
um grave erro.140

Desta tríade, Marcião é o menos gnóstico. Sua tendência fortemente


antijudaica tem o objetivo de suplantar o cristianismo diante do judaísmo por meio de
uma exegese que interpretava literalmente os textos do Antigo Testamento ao ponto
de rejeitá-lo, pois distingue o Pai amoroso e bondoso de Jesus do Evangelho com o
Deus justo e vingativo do veterotestamento. Segundo C. Moreschini e E. Norelli, o que
diferencia da maioria dos gnósticos é a ausência de um ponto essencial da gnose,
que correponde “a substancialidade dos salvos com a divindade suprema; eles
pertencem na verdade inteiramente ao Criador, não tem em si nada que provenha do
Pai de Jesus”.141

2.3.2. A escola Valentiniana

De origem alexandrina e fundador de escolas no ocidente e oriente Valentim,


teólogo do pleroma (locus da totalidade do mundo divino), terá a sua teoria entre as
mais citadas pelos Padres da Igreja. Com base nos escritos do Antigo e Novo
Testamento faz uso do método alegórico em sua exegese, acrescido ao
desenvolvimento de suas formulações utiliza-se de representações mitológicas. Entre
outras características está a visão dualistica do mundo, de modo que a matéria,
composição do mundo visível, é constituinte da corruptibilidade e do mau. Este ponto
de vista implicará na elaboração de sua cristologia, que para salvaguardar a
transcendência e a incorruptibilidade do Verbo, negará a sua humanidade integral, já

140 SESBOUÉ, 2004, p. 41-42.


141 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 247-248.

60
que se o corpo constituído de corruptibilidade não pode ser assumido. Portanto, toda
a ação terrena do Cristo é mera aparência (docetismo).142

A antropologia valentiniana é profundamente desigual e marcada por um


determinismo soteriologico definido em função de sua origem, ferindo totalmente o
lívre-arbítrio humano no processo de salvação. Esse conceito culmina na divisão da
humanidade em três categorias: os verdadeiros cristãos, consubstanciais aos seres
divinos por possuirem a matéria totalmente possuida pelo Espírito de Deus e que
serão salvos; denominados por pneumáticos ou os espirituais, os de natureza psíquica
que podem obter a salvação de forma inferior por meio de sua conduta; e os hílicos
(materiais ou carnais), por pertencerem ao Príncipe deste mundo (Demiurgo) são
excluídos da salvação.143

2.3.3. Basíledes

Dentre as três escolas gnósticas, os escritos de Basíledes são os mais difíceis


de provar sua originalidade. A partir do relato de Irineu, há uma descrição da noção
teológica de Basíledes de forma hierarquizada. Essa metodologia busca sistematizar
a cosmogonia, a cristologia e a soteriologia tanto debatida naquele tempo. Nessa
hierarquia é evidente o antagonismo entre Espírito e matéria, sendo que, na primeira
escala há o céu superior, invisível e perfeitíssimo do Pai ingênito, do qual nasce o
Nous primogênito denominado Cristo. Numa escala abaixo, o céu inferior semelhante
ao primeiro porém visível, habitado pelos Anjos e liderados pelo Deus dos judeus –
nesse caso também considerado anjo – criadores do mundo visível no qual o chefe
de todos os Anjos quis submeter a outras nações ao seu povo originando o embate
com outras postestades que derrotarão seu povo. Dessa formulação depreende-se
uma cristologia excêntrica, da qual o Pai envia o Nous chamado Cristo para salvar,
fez todo o bem nesse mundo mas na paixão e crucificação trocou de lugar com Simão
de Cirene, por isso crer no crucificado é um erro porque na cruz não era o Cristo, o
verdadeiro Logos, que é incorpóreo, transfigurou-se quando quis e subiu ao céu.

142 SESBOUÉ, 2004, p. 40.


143 ORÍGENES, 2012, p. 29.

61
Somente os possuidores desse conhecimento, além de guardar essa gnose em
segredo, são os que serão libertados dos criadores desse mundo e salvarão apenas
sua alma, pois o corpo é corruptível por natureza. Aqui o aspecto soteriológico é bem
rigorista, pois somente uns poucos serão salvos, “um por mil , dois por dez mil”.144

2.4. Orígenes, soluções viáveis na obra Tratado sobre os príncípos para as


questões gnósticas

Perante a trilogia herética Marcião-Valentim-Basílides, consideradas as


mais influentes no contexto histórico de Orígenes, muitos cristãos estavam trilhando
caminhos incompatíveis com a fé. Questões fundamentais como a profissão de fé
trinitária estavam abaladas por uma linguagem cheia de mitos e antropomorfismos.
Para evitar o influxo de uma sistematização dos príncípios e de uma gnose salvadora
dos autores gnósticos, Orígenes predispõe-se a dar respostas sobre temas ligados
aos Princípios:145 Deus, as criaturas racionais e o mundo a partir da autêntica
autoridade da Escritura, porém sem prescindir da linguagem filosófica. Essa
metodologia revela o Orígenes teólogo, que sabe transpor uma linguagem mais
simples usada nos seus sermões, para uma linguagem mais elevada diante de um
público mais exigente.

Esta forma literária mais erudita de Orígenes segue os modelos de discussão


filosófica da literatura grega de seu tempo, com um conteúdo mais científico de
profunda investigação, este estilo sistmatizado e mais sóbrio. É evidente na obra “O
Tratado sobre os princípios” (Peri Archôn), que diante de um adversário ameaçador,
como o gnosticismo da triáde Marcião-Valentim-Basílides, representa um material
eficiente capaz de satisfazer os apetites gnósticos de seus contemporâneos e fazer
frente as teses bem elaboradas dos hereges.138

144 IRINEU DE LIÃO, Contra as Heresias. Livro I 24, 1-6.


145 RIUS-CAMPS em “Los diversos estratos redaccionales del Peri Archon de Orígenes” na análise
semântica do termo “Principio” em Orígenes faz menção ao grande numero de obras no âmbito
filosófico, eclesiástico e gnóstico no período contemporâneo de Orígenes sobre o tema dos Princípios
e que Clemente de Alexandria havia proposto uma obra - inclusive como o mesmo o mesmo título
“Tratado sobre os princípios” utilizado posteriormente por Orígenes - mas não concretizou. Cf. p. 8-9.

62
2.4.1. Refutação ao Marcionismo

Contra o marcionismo, no “O Tratado sobre os princípios”, o gênio alexandrino


insiste na identidade do Pai Criador com o Pai de Jesus Cristo:

“Mas, uma vez que alguns se pertubaram porque os líderes dessa heresia
parecem ter separado o justo do bom, declarando que o justo é uma coisa e
que o bom é outra, e também aplicaram essa distinção à divindade, afirmando
que o Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo é bom e que o Deus da Lei e
dos profetas é justo mas não é bom, creio que é preciso responder a essa
questão o mais brevemente que puder.146

Essa dupla identidade do Pai, vislumbrada por Marcião, é fruto de uma


interpretação literal e antropomórfica das ações de crueldade e vingativas do Deus
justo no Antigo Testamento e, pode-se acrescentar, que o desejo de salvar a
impassibilidade do Pai promove o antagonismo entre o Deus justo do primeiro
testamento ao Deus bom dos Evangelhos. Contra esse argumento Orígenes fará uso
de sua exegese alegórica para salvar o Antigo Testamento e demonstrar a pessoa
única do Pai e que somente por uma compreensão espiritual podemos entender as
mudanças de comportamentos em Deus. Segundo Crouzel, o fato dos marcionitas
fazerem uso do absurdo sentido literal da escritura faz com que Orígenes se dirija a
eles acusando-os de ignorância do sentido espirtual.147

É importante sublinhar que a exegése espiritual de Orígenes é herança do


ambiente cultural helênico. Crouzel constata o uso da exegese alegórica no meio
filosófico da tradição pagã, que tem como objetivo a defesa de trechos difíceis e
imorais dos filósofos da antiguidade: Homero e Hesíodo. Segundo essa tradição,
essas passagens difíceis contém símbolos de verdades filosóficas. Da mesma
maneira, Platão em muitas vezes emprega uma linguagem alegórica quando não pode
expressar-se com firmeza na explicação de um mito, contudo, esse método de
investigação filosófica pagã compõe a exegese de Orígenes.148

O teólogo alexandrino possui uma visão de mundo análoga a visão platônica,


que cambia entre o mundo divino dos mistérios, princípio incriado e incorpóreo,

146 ORÍGENES, 2012, II, 5-1.


147 CROUZEL, 2015, p. 93.
148 Ibid., p. 114.

63
modelo perfeito de santidade similar ao mundo das ideias de Platão, e o mundo
material como imagem dos mistérios, marcado pela participação humana com seu
livre arbítrio como sujeito do conhecimento místico.149

Em vista disso, a exegese alegórica ou espiritual em Orígenes se apresenta


como relevante no processo de participação da realidade divina, ou melhor, de
santificação. Esta atitude apresenta o sentido espiritual como critério de superação do
sentido literal, principalmente em passagens incompatíveis com a dignidade das
escrituras. Porém, não significa uma minimização do sentido literal, que segundo o
pensamento origeniano, também faz parte da providência divina no desejo de
salvação do homem. “Assim como o homem é composto de corpo, de alma e de
espírito, assim é a Escritura que, na sua providência, Deus deu para a salvação dos
homens”.150 Essa analogia da Escritura com a sua antropologia tricotômica, que ao
ser analisada parte por parte, o corpo corresponde ao sentido literal que está ligado
aos homens comuns, a alma está ligada ao sentido moral sinal de progressão e o
espírito relacionado ao sentido espiritual, que nos introduz nos mistérios divinos.151

2.4.2. O método alegórido como método de refutação contra Valentim e Basílides

Se contra o marcionismo Orígenes fez a refutação de suas teorias literalistas


por meio da exegese alegórica, a metodologia para contestar as outras correntes
gnósticas será a mesma, porém com um diferencial. Tanto o gnosticismo da escola
de Basíledes como de Valentim também fazem uso do alegorismo para o
desenvolvimento de seus argumentos.

“Por interpretações alegóricas das palavras de Jesus, encontravam nelas


uma série de alusões a do contexto do drama gnóstico de queda e redenção.
Tal método exegético é em si mesmo menos distante do que possa parecer
do praticados na “grande Igreja”, onde pela interpretação alegórica se
adaptava o Antigo Testamento às novas exigências criadas pela fé em
Jesus”.152

149 Ibid., p. 144.


150 ORÍGENES, 2012, IV, 2,4.
151 CROUZEL, 2015, p. 115.
152 MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 249.

64
As correntes gnósticas citadas acima, por meio da alegorização,
sistematizaram uma reflexão teológica sobre as diversidades existentes no mundo,
oriunda de uma eleição pré-cósmica que determinou as diferenças entre judeus ou
gregos, feios e bonitos, fortes e fracos, ricos e pobres, bons e maus. Esse tipo de
variedade estava relacionada às suas naturezas, sejam aquelas que foram criadas
más ou aquelas que já foram destinadas a serem boas. Este argumento afeta
plenamente livre arbítrio humano, tal como a providência divina.153 Em oposição ao
argumento em questão, Orígenes principiará a sua refutação da condição original
igual entre todos os seres racionais na preexistência, e que a diversidade é resultado
dos méritos de cada ser. Esta justificativa tem como preocupação de fundo
salvaguardar a bondade, a providência e a justiça de Deus, assim como o livre-arbítrio
dos seres racionais.

“Na opinião desses hereges, quando ainda não tinham sido criados e que não
tinham feito ainda nem o bem nem o mal e, como aqueles pensam, a fim de
que mantivesse a decisão e propósito de Deus, uns foram feitos seres
celestes, outros, terrestres, e outros, infernais, não em consequência das
suas obras, mas pela vontade daquele que os chamou. [...] se repararmos
que essa diversidade não é o estado inicial da criatura, mas que devido as
causas antecedentes, o Criador prepara cada um uma função e um serviço
diferente conforme a dignidade do seu mérito: isso decorre certamente do
fato de que cada um, porque foi criado por Deus como inteligência ou como
espírito racional, adquiriu para si mais ou menos méritos em razão das ações
da inteligência e dos sentimentos espirituais, e assim tornou amável ou
odiável para Deus”.154

O Cenário por trás de toda controvérsia postulada pelos gnósticos está a


origem do mal. Para eles o mundo é um exílio, ao que Orígenes pensa similarmente.
Na busca de solução para essa indagação, os gnósticos sistematizaram com base em
esquemas teológico-filosóficos que perpassam toda história. Partem de uma
concepção de cosmogonia que está atrelada à uma condição pré-cósmica.
Incorporado a esse aspecto surgem teorias sobre o Criador, que para livrá-lo da
materialidade má por natureza, imprimem a ideia do Demiurgo. Esse mesmo conceito
é aplicado ao Verbo, a ponto de negar sua encarnação, também em vista de preservá-
lo da materialidade.

Do ponto de vista antropológico existe a argumentação da queda do ser


humano na matéria, que desemboca numa soteriologia predestinada usurpadora do

153 ORÍGENES, 2012, II, 9, 5.


154 Ibid., II, 9, 7.

65
livre-arbítrio e que fere a providência divina, na qual só os verdadeiros gnósticos,
aqueles que são consubstanciais aos seres divinos, se salvarão. Esta salvação
consiste em uma gnose do estado original e com isso a busca a este retorno, a
apokatástasis.

Este conteúdo gnóstico, que perpassa toda a história, será o modelo de


sistematização e refutação de Orígenes, que preocupado em conservar a ortodoxia
apostólica, desenvolverá uma reflexão teológica que percorrerá toda história desde a
pré-existência ao seu fim último, a apokatástasis, o Alfa e o Omega. A centralidade
de todo esse esforço do teólogo alexandrino está na bondade divina e a liberdade
humana.

2.5. O vocábulo apokatástasis como expressão de linguagem na reflexão


teólogica de Orígenes

O vocábulo apokatástasis, no século III d.C., era comum na cultura grega, de


uso cotidiano como expressão da linguagem vulgar, assim como no meio científico,
ou seja, o meio filosófico como termo técnico a fim de esclarecer aspectos
escatológicos da religiosidade pagã. No primeiro capítulo foi abordado as
transformações semânticas do termo e também a imersão do cristianismo na cultura
grega que, ao absorver a linguagem corrente, toma, no âmbito literário, a palavra
apokatástasis como empréstimo, renovando o seu significado. Um autêntico
neologismo semântico.

Nos dias atuais, a menção do termo apokatástasis na linguagem teológica


remete a Orígenes, especialmente sobre sua condenação póstuma de heresia. Este
vínculo causa a identificação do escritor Alexandrino como o pai da apokatástasis, um
teólogo herético que formulou a doutrina sobre a salvação universal. Segundo
Crouzel, essa atribuição é fruto de um mal-entendido: “A causa dos mal-entendidos
pelos quais Orígenes foi acusado de heresias múltiplas, muitas vezes contraditórias,
pode ser reduzida em grande parte à ignorância de seus detratores”155 tal como Teófilo
de Alexandria (+ 412 d.C. ) e Jerônimo (+420 d.C.) influenciados pelo origenismo.

155 CROUZEL, 2015, p. 240.

66
É inegável que a genialidade de Orígenes o capacita à inovação na reflexão
teológica. Foi capaz de causar quebras de paradigmas sem prescindir do terreno da
polêmica no intento de defender a ortodoxia frente as heresias de seu tempo, recorreu
ao uso de neologismo ao assumir o vocábulo apokatástasis como termo técnico na
linguagem teológica, fato que elevou a qualidade de sua teologia. A partir deste
contexto, que A. Mehat considera Orígenes foi o pioneiro dentro da Grande Igreja de
fazer uso do vocábulo apokatástasis como doutrina da restauração ao estado original:

É Orígenes quem, primeiro, pelo menos dentro da grande Igreja e da tradição


alexandrina, ligou-a à doutrina da restauração ao estado original. Ele fez isso
com muito rigor aparente, imprimiu com tal caráter de necessidade que a
palavra permaneceu marcada e que hoje é difícil livrar-se dela. É o efeito do
gênio para recriar palavras. Isso é um perigo. Pertenceu a Orígenes anexar
a este às suas ideias mais ousadas para tornar uma palavra bíblica um título
no capítulo da história das heresias.156

Tendo em vista que Orígenes é o primeiro a dar o sentido de restauração ao


estado original ao vocábulo apokatástasis, pressupõe-se que, até então, o uso do
termo dentro da tradição cristã possuía outra significação. Exemplo disso está o
sentido profético-escatológico em At 3, 21 assim como o sentido de crescimento
gradual de perfeição do ser humano, que inicia-se nesta existência e que este
processa também se dá na vida ultraterrena. Crouzel, igualmente, entende que
Orígenes faz uso do vocábulo que já achava-se na tradição eclesiástica, ao fazer a
menção de uma passagem do primeiro livro do Comentário de João (I, 16, 91):

No primeiro livro do Comentário de João se menciona “o que é chamado a


apokatástasis” definido pela situação indicada por Paulo em 1Cor 15, 25.157
Essa expressão "o que é chamado" mostra que Orígenes não é o inventor da
apokatástasis mas havia encontrado antes dele, em relação ao verso
paulino.158

O conceito de Orígenes sobre apokatástasis ocasionou-lhe resultados


desfavoráveis, devido interpretações distorcidas pelos origenistas dos secúlos IV e
V. Foi anatematizado no V Concílio ecumênico de Constantinopla II sob a rege de
Justiniano.159 Não foi levado em consideração que o método teológico de Orígenes

156 MÉHAT, 1956, p. 196-214.


157 Esta passagem do texto paulino faz claramente referência a condição final de salvação universal, o
fim de todo o mal está expresso na destruição da morte, enfim, a reconciliação definitiva de todos com
Deus, “em que Deus será tudo em todos”, condição perdida pela queda na origem. RAMELLI, 2013, p.
5.
158 CROUZEL, 2015, p. 362.
159 Ibid., p. 251.

67
teve como fundamento a investigação e que levantou hipóteses para que pudessem
ser discutidas, não houve a intenção de sua parte formular uma doutrina fechada.

Pois, se está acostumado a estas questões, tudo lhe parecerá vão e


supérfluo; mas se já chegar com o ânimo cheio de preconceitos e de
prevenção baseado em outras doutrinas vai julgar que são coisas heréticas,
contrárias a fé da Igreja; mas o que o levará a isso não será tanto a sua razão
quanto a prevenção do seu ânimo. Dizemos isso com muito receio e cautela,
antes de mais como algo a questionar e discutir do que como algo certo e
definido.160

Diante desta simpatia de Orígenes pela hipótese teológica da apokatástasis,


Daley161 ressalta que por mais que os escritos cristãos do século II o sentido da
palavra estivesse relacionada com “alcance” ou “realização” de um propósito, para
Orígenes a concepção possui dimensão prospectiva e retrospectiva. Este
entendimento está vinculado ao restabelecimento à uma condição original de união a
Deus que foi perdida, na qual o contexto está numa regra largamente manifestada por
Orígenes: “fim é semelhante ao começo”.162 Segundo Crouzel, Paulo é a gênese
dessa regra “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15, 28), porém com uma ressalva, que
a semelhança entre fim e começo está apenas na submissão a Deus, mas que entre
um e outro Orígenes não descarta a possibilidade de crescimento gradativo. A partir
dessa hipótese, o autor do Tratado sobre os princípios, menciona diversas vezes
mundos sucessivos e distintos, do qual o primeiro mundo é o das inteligências
preexistentes, o mundo atual e, por último, o mundo da ressurreição. Vale reiterar que
Orígenes propõe essas ideias apenas como pressupostos para uma eventual
discussão.163

A argumentação teológica-filosófica de Orígenes sobre a sucessão de


mundos compostos pelas as três dimensões acima descritas, está incutido a
articulação entre elementos da teologia vigente no seu tempo, tal como a cosmogonia

160 ORÍGENES, 2012, I,6,1.


161 DALEY, Brian E. Origens da escatologia cristã: a esperança da Igreja primitiva. São Paulo: Paulus
1994, p. 93.
162 ALMEIDA, Rogério M., LETENSKI, Irineu. Orígenes: um pensador paradoxo? – disponível em:

<https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/view/4432>. Argumentam que o conceito de


apokatástasis no pensamento origeniano possui elementos do estoicismo, sobretudo a definição de
Crisipo que assumi a ideia platônica: “para quem não se pode pensar uma coisa sem, ao mesmo tempo,
pensar o seu oposto, por exemplo, a saúde e a doença, a justiça e a injustiça, a sabedoria e a
ignorância”, este elemento do estoicismo é presente em Orígenes quando faz referência as almas
quando “elas “convergem para formarem a completude e a perfeição de um único mundo, no sentido
de que a variedade das almas tende para um fim, que é a perfeição”.
163 CROUZEL, 2015, p. 287-288.

68
e a soteriologia, o princípio e o fim de todas as coisas ( apokatástasis), de modo que,
para formular um discurso sobre o último, é indissociável uma articulação teológica
sobre o princípio, cuja a preocupação fundamental é preservar dos argumentos
gnósticos a bondade e a justiça essenciais a providência divina e o livre arbítrio de
todos seres racionais. Orígenes entende que a tradição eclesiástica identificou e
discutiu a origem da Criação assim como o seu fim, porém não há em seu tempo uma
linguagem teológica explícita, ou melhor, bem articulada sobre este conteúdo. Além
do seu desejo de propor uma articulação teológica suficiente, há o desejo de
permanecer fiel ortodoxia.

“Há outro ponto da pregação eclesiástica: que este mundo foi criado e
começou num tempo determinado , e que está destinado a desaparecer, em
razão de sua corruptibilidade. Quanto a saber o que havia antes deste mundo,
e o que haverá depois deste mundo, são poucos até agora os que chegaram
a ter sobre isso uma ideia clara, porque a esse propósito não há uma doutrina
explícita na pregação eclesiástica.164

2.6. Orígenes e a perspectiva Cristológica da apokatástasis

A influência da filosofia grega na formação intelectual de Orígenes confere-


lhe um ponto de vista sobre universo marcadamente platônico, em que a estrutura
consiste em dois mundos, o primeiro sensível e o outro inteligível, e que há uma
progressão do mundo sensível para o inteligível, sendo que este mesmo processo
está presente no seu entendimento sobre interpretação da Sagrada Escritura. É
necessário esforçar-se por meio do sentido literal para alcançar o sentido espiritual,
este último método de interpretação, também denominado alegórico, torna-se
privilegiado por Orígenes, e seu fundamento está na tradição apostólica e tem como
objetivo de alcançar a sabedoria escondida nos mistérios divinos: “em todas as coisas,
conforme o mandamento apostólico, é preciso procurar a sabedoria escondida no
mistério, aquela que Deus predestinou antes de todos os séculos para a glória dos
justos, aquela que nenhum dos dirigentes deste mundo conheceu”.165

Como se vê, o discurso teológico do exegeta e escritor Orígenes, está


entrelaçado com o platonismo e o sentido alegórico de forma mais relevante, com

164 ORÍGENES, 2012, Pref. 7.


165 Ibid., IV, 2, 6.

69
intento de atingir a sabedoria ou a verdadeira gnose, como era de praxe das correntes
gnósticas a dedicação na investigação sobre os princípios. Ou seja, a origem do
mundo sensível e dos seus seres, remetia em primeira ordem ao estudo de Deus, o
Logos ou ser Uno que precisamente englobava o princípio de tudo. Orígenes, para
enfrentar a problemática criada pelas argumentações gnóstica, desenvolve um
sistema teológico – O Tratado sobre os princípios – para elucidar os princípios a partir
do Logos, mediador da esfera divina com o mundo sensível. Este pressuposto foi
necessário para desenvolver sistematicamente, com elementos platônicos e
linguagem alegórica, sua noção sobre apokatástasis.

Anteriormente foi dito que Orígenes pensa o fim de todas as coisas


(apokatástasis) totalmente indissociável do princípio, por isso o ponto de partida do
seu esquema teológico é o Logos, principio de tudo e sabedoria personificada: Por
isso ele é chamado primogênito pelo apóstolo Paulo. Contudo, primogênito é por
natureza a Sabedoria, sem distinção, uma coisa só.166 Haight entende que esta
definição do Logos-Sabedoria origeniano é o “arcabouço geral de toda a criação, da
queda das almas racionais, da criação do mundo, como região da qual devem
esforçar-se por retornar a Deus e alcançar a salvação”, por esse contexto pautado no
ponto de vista do discurso cristológico do mestre alexandrino, sobretudo na doutrina
do Cristo Logos-Sabedoria uma questão é fundamental: a mediação do Logos em
duas perspectivas, no âmbito divino e humano. Haight elucida sem muitos rodeios
este ponto do pensamento de Orígenes sobre o papel do Logos Mediador:

Nesse esquema, Jesus Cristo, que é idêntico ao Filho,à sabedoria ou ao


Verbo desde sempre gerado, constitui-se como mediador. É antes de tudo
princípio que une a realidade criada a Deus, porque Deus cria por seu Verbo
ou sabedoria. Após a queda, no entando, o Filho é mediador de uma segunda
forma, como salvador encarnado. Todas as coisas retornarão a Deus pela
mediação salvífica da sabedoria, do Verbo ou do Filho encarnado na alma e
na carne humana de Jesus.167

Tem-se, portanto, que no pensamento origeniano a realidade mistérica sobre


o princípio de tudo está na pessoa do Filho. O Logos-Sabedoria, subsistente por si
mesmo, é mediador e intermediário entre Deus e a criação, que é animada e participa

166 ORÍGENES, 2012, I, 2, 1.


167 HAIGHT, Roger. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulina. 2ª ed. 2005, p. 296.

70
dele, “pelo fato de conter e pré-formar em si as espécies e as razões seminais168 de
toda a criação”.169

Frente ao único princípio, que é a Sabedoria, o mundo criado (corporal e


espiritual) possui características antagônicas, devido conter multiplicidade e
diversidade de naturezas racionais qualificadas pelo grau maior ou menor de
participação na vida divina. Os marcionistas e valentinianos argumentavam que entre
as diferenças, aquilo que é mal é próprio da natureza, ou seja, Deus havia criado os
seres maus por natureza. Considerando que Orígenes para salvaguardar os atributos
de Deus– tal como: criador, benfeitor e providente – argumenta que toda diversidade
existente nas criaturas racionais provém de uma condição meritória adquirida pelo
livre arbítrio, fruto de um comportamento de afastamento (uns mais outros menos) da
divindade ainda na preexistência, portanto faz parte do julgamento da providência
de Deus a diversidade dos seres que ao se originarem participando de uma mesma
natureza, diversificaram-se e distinguiram-se entre seres celestes, terrestres e dos
infernos, devido comportamento negligente. De acordo com esse argumento,
Orígenes afirma categoricamente que Deus nunca deixou de ser criador, benévolo e
providente.

Sendo a preexistência argumento teórico para assegurar o livre arbítrio dos


seres racionais, Haight enfatiza que a cristologia de Orígenes “tem uma noção mais
abrangente da humanidade de Jesus: sua união com Deus e o fato de ser o Cristo
envolvem a liberdade humana,”170 portanto, a encarnação faz parte da dinâmica
providencial e pedagógica de Deus perante aos que se afastaram por livre vontade do
Logos. Decaíram e como consequência ficaram ligados a um corpo, assim sendo, a
corporeidade humana é decorrente da queda na preexistência.

“o gênero humano teve necessidade não somente dessa ajuda e de


defensores semelhantes a ele, mas reclamou pelo socorro do próprio Criador
e autor para restaurar a disciplina corrompida e profanada: nuns a da
obediência, noutros a da autoridade. Por isso é que o Filho Único de Deus,
Palavra e Sabedoria do Pai, quando se encontrava junto do Pai na glória que
tinha antes da existência do mundo, se aniquilou a si mesmo, e, tomando a
forma de escravo, fez-se obediente até a morte, para ensinar a obediência
àqueles que não podiam obter salvação a não ser pela obediência, para

168 Tem-se aqui a influência estoica na cosmogonia de Orígenes, essa menção das razões seminais
remonta a ideia monista do logos que como sêmen da origem a tudo, ou como um sêmen que contém
todos os sêmens.
169 ORÍGENES, 2012, I, 2,3.
170 HAIGHT, 2005, p. 299.

71
restaurar assim as leis corrompidas da arte de governar e de reinar,
submetendo todos os inimigos a seus pés”.171

Nesse processo que perpassa pela condição original preexistente dos seres
racionais, realidade que abrange participação na vida divina, e que por negligência
ocorreu a queda, a encarnação assume papel providencial e pedagógico para uma
restauração da condição original perdida, deve ser ressaltado que Orígenes fala de
uma restauração da disciplina corrompida, desse modo reconduzir a humanidade por
meio de um processo educativo à obediência.

2.6.1. A teologia origeniana da encarnação como processo apokatástico

Ainda dentro do aspecto cristológico da encarnação do Logos em Orígenes,


a solução hipotética172 que ele produz frente a visão negativa dos gnósticos sobre a
corporalidade, tal qual o adocionismo marcionita e o docetismo valentianiano, a
refutação de Orígenes é de que o Logos assumiu plenamente a corporalidade:

“àquele homem que surgiu na Judéia, e que a Sabedoria divina tenha


entrado no ventre de uma mulher, tenha nascido tão pequeno e emitido
vagidos como qualquer recém-nascido ao chorar; depois tenha sido tão
perturbado pela morte, como ser se relata e ele mesmo reconhece: “minha
alma tem sido levado à morte” (Mt 26,38), e que finalmente tenha sido levado
à morte considerada mais indigna, mesmo que tenha ressuscitado três dias
depois”.173

Na verdade, Orígenes não vê a materialidade como um mal em si, mas


entende que a natureza corporal sensível foi assumida como consequência da queda
na preexistência. Nessa condição o corpo terrestre detém a alma humana em
permanente tentação, além de ser o lugar da correção devido a gravidade da queda
na preexitência ter sido menos grave que a do diabo por exemplo.174

171 ORÍGENES, 2012, III, 5, 6.


172 Hipotética porque Orígenes deixa claro que a sua apresentação não é uma afirmação, simplesmente
suposições que faz parte do desenvolvimento do seu raciocínio lógico. Ibid., II,6,2.
173 Ibid.
174 CROUZEL, 2015, p. 130.

72
Para argumentar sobre a encarnação do Logos, a união ao corporal se dá
pela alma de Cristo,175 que possui a mesma natureza de todas as almas mas que foi
assumida por ele. Devido a perfeita união dessa alma com Logos, não há a
possibilidade de subsistir nele a pecabilidade, portanto, para Orígenes, esta alma
serviu de intermediário entre Deus e a carne, de modo “que sendo essa substância
uma intermediária, pois para ela não era contra a natureza assumir um corpo. E
também não era contra a natureza que essa alma, substancial e racional, pudesse
contemplar Deus”.176

Esta teologia origeniana da encarnação remete ao processo apokatástico em


que no fim tudo será submetido a Cristo. Para isso, há o pressuposto de um caminho
dos seres racionais rumo à perfeição, portanto, deve-se ter como pressuposto que a
alma de Cristo, unida perfeitamente ao Verbo, pode ser tomada como modelo
exemplar rumo a perfeição:

“Por isso é que Cristo é apresentado como exemplo para todos os crentes,
porque como ele sempre, e antes mesmo de conhecer o mal, por mínimo que
fosse, escolheu o bem, amou a justiça e odiou a iniquidade, por essa razão
foi ungido por Deus com óleo da alegria; assim aquele que pecou ou errou
purifique-se das suas manchas segundo o exemplo proposto, e que, tendo-o
como guia do seu caminho, avance no duro caminho da virtude para que
talvez assim, na medida do possível, sejamos feitos, ao imitá-lo”.177

Diante do exposto sobre a encarnação do Verbo está nítida a intenção de


Orígenes em preservar diante da argumentação gnóstica a providência divina e a
liberdade humana. Segundo Haigth, a cristologia de Orígenes é paradigmática e irá
favorecer o desenvolvimento das cristologias posteriores. O mesmo autor ressalta que
a teoria origeniana da encarnação, ao apresentar Jesus como modelo a ser imitado,
destaca a humanidade verdadeira de Jesus Cristo como revelador do Pai e “guia do
regresso humano a Deus” e, somado a essa realidade, está a ênfase na racionalidade
e liberdade humana.178 Portanto, o abaixamento do Logos à condição humana é um
quadro fundamental na teologia de Orígenes e está intimamente lignado a providência

175 Sesboué não vê positivamente o fato de que na preexistência a Alma de Cristo por amor ao Verbo
ter unido a carne e por merecimento ser preservada do pecado, para ele a primeira questão está na
precedência do mérito frente a encarnação e por conseguinte Sesboué afirma que a encarnação é um
dom absolutamente gratuito de Deus, porém o que foi positivo é que Orígenes ajuda a desenvolver a
partir desta reflexão sobre o “como da união” o futuro tema da “comunicação do idiomas”. Cf.
SESBOUÉ, 2004, p. 197-198.
176 ORÍGENES, 2012, II,6,3-4.
177 Ibid., IV, 4,4.
178 HAIGHT, 2005, p. 299.

73
divina de beneficiar ao ser humano – prezando sua liberdade –, um movimento de
crescimento rumo a perfeição que se dará na apokatástasis.

2.7. A perspectiva antropológica da apokatástasis em Orígenes


fundamentado em sua noção de preexistência

O desafio enfrentado por Orígenes era estabelecer uma teologia coerente e


sem desvios da tradição apostólica frente as correntes gnósticas que distorciam a
concepção sobre a bondade divina, na intenção de solucionar o problema das
diversidades existentes no mundo sensível, que originaram novos impasses de ordem
cosmológica, soteriológica e antropológica. De fato, este foi o quadro vivido por
Orígenes para argumentar a partir de suas convicções teológicas-filosóficas, porém
sempre com a intenção de produzir um debate aberto para novas discussões, tendo
como meta a defesa da justiça e bondade, atributos essenciais da Providência divina.
Esse aparato dá ao seu discurso teológico uma sistematização a partir da visão
singular da doutrina da Criação e da consumação de todos as coisas, “o fim é sempre
semelhante ao começo”, formula repetida diversas vezes no “Tratado sobre os
Princípios”. A partir desta metodologia, a antropologia de Orígenes torna-se uma
categoria predominante no desenvolvimento de sua reflexão teológica.

A teoria origeniana sobre os princípios envolve o estado preexistente, situação


em que todos os seres racionais possuem a mesma condição de beatitude, que por
negligência se afastaram deste estado originando a diversidade dos seres racionais.
Tal movimento, considerado como queda na preexistência, contribui para o
desenvolvimento antropológico de Orígenes, em que o ser humano tido como ser
racional idêntico ao outros seres racionais, tais como os celestes e os infernais, mas
que pela ação voluntária de afastamento da beatitude, porém menos grave que a dos
seres racionais infernais, tem como consequência a obtenção da condição corporal.
Este estado de seres terrestres ou corporais, primeiramente, é resultante dos méritos
e, consequentemente, pela ação providencial divina, que possibilita a todos a partir
do livre-arbítrio a atitude de progressão e, de modo consequente, a restauração a
condição original perdida na queda.

74
O fato de Orígenes pertencer a uma geração de cristãos do fim do século II e
início do século III, ou seja, numa situação precedente aos Concílios dogmáticos, a
sua reflexão teológica, sobretudo no Tratado sobre os Princípios, obra considerada
pioneira na teologia sistemática, e que a investigação sobre a teoria da preexistência
de modo competente foi bem detalhada. Mesmo esse tema sendo confrontado,
refutado e considerado herético a partir do século IV na crise origenista, resta buscar
entender qual é o princípio metodológico de Orígenes para a composição do seu
pensamento sobre a preexistência.

Segundo Crouzel, a hipótese origeniana sobre a preexistência advém do


platonismo, porém com uma intenção puramente cristã, que decorre de sua busca de
solução das polêmicas existentes entre os valentinianos e marcionistas. A diferença
da teoria de Orígenes diante da concepção platônica da preexistência é descrita pelo
teológo jesuíta francês, da seguinte forma:

“não parece que a preexistência em Orígenes obedeça as mesmas razões


em Platão. A obra de Orígenes não faz alusão clara sobre a contemplação
das ideias na existência e a reminiscência que permitiria ao homem no
transcurso de sua existência terrena encontrar-se novamente com as ideias
através dos seres sensíveis que participam delas [...] se trata de uma
instrução de Deus antes de assumir a condição terrestre, uma instrução que
a alma revestida desse corpo terrestre recorda; mas não é uma questão de
reconhecer nos seres sensíveis as ideias das quais eles participam, mas de
serem instruídas nas coisas divinas; tudo isso é expresso mais como uma
questão do que como uma afirmação clara e pode ser também uma
consequência da doutrina da imagem de Deus”.179

Ao considerar o uso dos fundamentos da filosofia platônica por Orígenes no


desenvolvimento de sua teoria da preexistência, pode-se admitir que esta ideia
causou estranhamento e mal-entendidos entre a tradição eclesiástica posterior, que
devido a experiência vivida pelo episódio do arianismo e ao vínculo ao Estado romano,
obteve um ponto de vista negativo sobre tudo que vinha do mundo pagão, isso incluía
a filosofia.180

179 CROUZEL, 2015, p. 289-290.


180 Vale salientar sobre a questão da tradição eclesiástica pós-nicena que aderiu a uma ótica negativa
sobre a filosofia o argumento feito por Crouzel de que a tradição eclesiástica da geração de Orígenes
não via problema no uso da filosofia na linguagem teológica, fazia parte do processo de inculturação
entre o mundo grego e a fé cristã, o teólogo francês acrescenta que padres da tradição pós-nicena tais
como Jerônimo, Epifâneo, Metódio e Teófilo de Alexandria por mais que não fossem ignorantes em
filosofia, quando lêem a obra de Orígenes mantem uma atitude que corresponde a realidade
contemporânea que é a de contrapor e questionar tudo o que advém do mundo pagão. Cf. Ibid., p.239-
241.

75
A complexidade do termo preexistência na linguagem teológica de Orígenes
evidência no meio teológico ulterior interpretações equivocadas. Segundo Patrícia
Ciner, no seu artigo “El legado de Orígenes a la teología Cristiana Contemporânea”,
a preexistência para Orígenes não tem a conotação de um passado que está
desconectado do presente, mas uma presença que é garantida pela participação de
todas as criaturas espirituais na Sabedoria do Filho.

A proposta do professor alexandrino visa mostrar que esta eternidade do


princípio coexiste com a dimensão material, que é sujeito ao tempo e espaço.
Em outras palavras: as criaturas espirituais nunca perdem o contato direto
com o divino, independentemente do estado transitório que elas assumem
quando fazem uso de sua liberdade (anjo, homem ou demônio). Isso implica
que "a passagem de volta ao seio divino "está inscrita na natureza profunda
da alma humana e que neste tipo de" código genético espiritual "se tem a
possibilidade de participar da Sabedoria divina, que é o que dá sentido à vida
humana.181

Baseando-se nessa premissa, denota-se a preocupação de Orígenes em


enfatizar a liberdade humana na progressão ao bem. O fato de considerar essa atitude
humana como um código genético espiritual, significa que não são apenas alguns
indivíduos que podem alcançar a perfeição querida por Deus, mas que todos os seres
humanos estão orientados a perfeição que é manifesta na imagem do Filho de Deus
que se encarnou, porém sem jamais prescindir do livre-arbítrio. Em Orígenes a sua
antropologia jamais se desvincula da cristologia.

2.8. O conceito tricotômico antropológico de Orígenes no processo


apokatástico

O contato com a literatura platônica tem influência na compreensão


antropológica de Orígenes, isso pode ser observado na grande importância que ele
dá para a alma, mas não significa uma total absorção da concepção platônica. Existe
similaridade com a tricotomia da alma platônica, mas o mestre de Alexandria vê esta
concepção fora do testemunho da Escritura:

181CINER, Patricia Andrea. “El legado de Orígenes a la teología cristiana contemporánea” [en línea].
Jornadas Diálogos: Literatura, Estética y Teología. La libertad del Espíritu, V, 17-19 septiembre 2013.
Universidad Católica Argentina. Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.uca.edu.ar/repositorio/ponencias/legado-origenes-teologia-cristiana.pdf>
acesso em: 01 fev. 2019.

76
“será que a nossa alma, uma pela substância, é composta de vários
elementos, uma parte racional, e outra irracional, sendo essa parte irracional
dividida também em duas tendências: a da culpidez e a da cólera [...] Dessas
como dissemos, não vejo que se possa confirmar pelo testemunho da divina
Escritura...”.182

No entanto, a similaridade com o platonismo está na tricotomia, mas com uma


diferença categórica, visto que para Platão a tricotomia está na alma, para Orígenes
está no homem integral. Essa visão é descrita explicitamente quando frente a
interpretação literalista dos judeus e da corrente marcionistas defende uma
interpretação mística que ultrapassa a realidade da letra, e faz analogia desse tipo de
interpretação com sua visão antropológica: “Assim como o homem é composto de
corpo, de alma e de espírito, assim é a Escritura que, na sua providência, Deus deu
para a salvação dos homens”.183

No contexto histórico origeniano em que as correntes gnósticas, sobretudo a


corrente valentiniana, com postura radical de suas convicções doutrinais que os
afastavam da ortodoxia apostólica, de modo que sua compreensão antropológica que
abarcava as três naturezas da alma, sendo a primeira entendida como almas
pneumáticas ou espirituais por serem consubstanciais a divindade já estarem salvas,
num degrau inferior as almas de categoria psíquica que mesmo esforçando-se por
manter uma boa conduta possuiriam apenas uma salvação intermediária, no terceiro
degrau estão as almas hílicas (material), que por estarem totalmente ligadas a matéria
já estariam destinadas a morte, não havia salvação para essa categoria. Frente esse
determinismo que Orígenes para salvaguardar o livre-arbítrio desenvolve sua noção
de diversidade de condições questão inerente a sua visão antropológica.

Dizem-nos, pois: se, ao nascer, há uma variedade de condições tão variadas


e diversas, nas quais a faculdade do livre-arbítrio não intervém, pois ninguém
escolhe por si mesmo onde vai nascer, nem entre quem, nem em que
condições, se portanto, dizem eles, isso não é causado pela diversidade da
natureza das almas, isto é, pelo fato de que uma alma de natureza má seja
destinada a nascer num povo de natureza má, e as boas, nos bons, que nos
resta senão atribuir essas coisas ao imprevisível e ao acaso? Se aceitamos
essa solução, o mundo não terá sido feito por Deus, e não será preciso
acreditar que ele é regido pela Providência184.

Para solucionar esta espinhosa questão, Orígenes irá justamente acentuar o


caráter dinâmico de sua composição tricotômica do ser humano, sempre preocupado

182 ORÍGENES, 2012, III, 4, 1.


183 Ibid., IV, 2, 4.
184 Ibid., II, 9, 5.

77
em ter como fundamento, a Escritura. Para expor sua reflexão teológica o seu
entendimento antropológico segue o modelo Paulino (1Ts 5,23), mas vinculado a esta
noção está a ideia da preexistência, portanto o homem tripartido possui essa condição
desde a sua origem, desta forma sistematizará seu ponto de vista antropológico que,
segundo Crouzel, em um contexto mais moral e ascético do que propriamente
místico.185

2.8.1. O Espírito

Dentre os três elementos presentes no homem, o espírito é compreendido por


Orígenes em dois aspectos. Conforme Dom Fernando, o primeiro: “é o componente
mais elevado e nobre no ser humano” e por conseguinte “Ele já é, por sua natureza,
participação do Espírito divino”,186 ou seja, a natureza humana não é santa
substancialmente, mas é pela participação no Espírito Santo que é santificada. Essa
realidade corresponde a progressão espiritual, portanto o espírito por ser dom de Deus
estendido a toda humanidade, não significa exatamente fazer parte da personalidade
humana, porque está relacionado com a sua abertura à graça divina, isto é, depende
do livre-arbítrio já que o dom de Deus, o Espírito doado não assume a
responsabilidade dos pecados de cada indivíduo, porém tem o encargo de agir como
o pedagogo da alma e conduzi-la a semelhança divina.187

2.8.2. A alma

Já a alma, é o elemento da composição humana em Orígenes com maior


relevância, considerada o arcabouço do livre-arbítrio, particularidade que difere da
concepção gnóstica, pois estabelece que a diversidade existente no mundo é de
origem voluntária de cada ser, ou seja, a condição original de todos seres racionais
eram idênticas. Essa especificidade de Orígenes sobre a alma o leva a crer que a

185 CROUZEL, 2015, p. 132.


186 FIGUEIREDO, 1984, p. 108.
187 CROUZEL, 2015, p.126.

78
alma foi criada antes desta realidade terrestre, no estado de preexistência, portanto
todas as atitudes da alma desde este estado serão o fundamento para a relação alma
e corpo.

Orígenes é favorável a duas tendências na alma,188 uma superior e mais nobre


ligada ao espírito e outra inferior voltada para o corpo. Essa ótica origeniana tem
fundamento na Escritura e, certamente, é um recurso que torna relevante o seu
entendimento antropológico. Sesboué faz uma síntese bem adequada do fundamento
Bíblico de Orígenes desse movimento da alma:

Entre a criação de Gn 1,26 – a alma superior feito segundo a imagem de Deus


– e a de Gn 2,7 – a modelagem do corpo - , intervém precisamente a queda
original. Consequência desse pecado, o homem, tal como é, constitui-se, foi
formado da alma superior preexistente, da alma inferior e do corpo,
resultando esses dois últimos a queda. [...] Segundo a concepção origeniana
da imagem de Deus no homem, ela está circunscrita à alma superior. O corpo
não participa dessa dignidade.189

Percebe-se que Orígenes compõe uma ordem no seu entendimento sobre a


alma que, necessariamente, perpassa pela preexistência, conceito mais filosófico que
propriamente bíblico. Mas este método demonstra o seu interesse de ressaltar a
liberdade dos seres racionais, causa do movimento entre a criação e a queda da alma,
sendo esta última, a solução para as diversidades de condições das almas no mundo,
sejam elas boas ou más. Mas o fato da alma carregar em sim uma tendência para o
mal, existe a preocupação em Origenes em dizer se a alma “é imperfeita porque
decaiu da perfeição, ou se Deus a fez assim como é?”.190

Para esta indagação Orígenes tem como pressuposto o primeiro estágio da


alma, que é a sua criação a imagem de Deus e que denomina como mente “nous’, e
que por negligência se afasta do amor do Criador e, por isso, se esfria da caridade
divina, torna-se fria. Inclusive, ele faz uma referência etimológica das palavras no
grego alma “psych𝑒̃ ”com outra a palavra frio “psychros”, afirmando que o termo
“psych𝑒̃ ” faz menção ao seu esfriamento devido sua perda de fervor. “Isso parece

188 Orígenes ao desenvolver sua argumentação sobre a natureza da alma, tem como ponto de partida
a concepção das duas almas, mas também expõe se a tendência para a maldade é em função da
atração do corpo sobre a alma já que o corpo está voltado para os desejos carnais ou mesmo a própria
e única alma está dividida em duas tendências, ele deixa claro que apenas expõe essas opiniões e
fica por conta do leitor escolher a solução mais razoável . Cf. ORÍGENES, 2012, III, 4.
189 SESBOUÉ, 2003, p. 99.
190 ORÍGENES, 2012, II, 8, 2.

79
mostrar a todos que a mente, afastando-se do seu estado e da sua dignidade, tornou-
se alma e assim é chamada; se ela se recuperar e se corrigir volta a ser mente[...] ”.191

Tendo em vista a criação das almas dos seres racionais como imagem de
Deus, a queda é o fruto resultado de um esfriamento por livre vontade. Orígenes,
apoiado nas Escrituras, crê que as almas agora imperfeitas podem ser restauradas
por meio da participação voluntária na perfeita e única imagem do Pai, que é o Verbo,
e adquirirem novamente a sua condição original. Porém, essa participação não é
estática, existe um processo de crescimento que para Orígenes tem continuidade
mesmo depois deste estágio de vida terrestre, culminando com a perfeição da
semelhança, já que para Orígenes imagem está vinculado a beatitude da criação e
semelhança ao fim último, a apokatástasis.192

Conforme foi demonstrado na análise sobre a concepção de alma para


Orígenes, observou-se que para ele é o elemento preponderante de sua antropologia,
tanto que considera “a alma algo intermediário entre a carne enferma e o espírito
pronto”.193

2.8.3. A corporalidade

A carne (sarx) e o corpo (soma), para Orígenes, são de naturezas diferentes.


A derivação desse entendimento está na tensão entre alma superior e alma inferior,
de modo que a primeira é boa e foi posta por Deus, a seguinte foi semeada “junto com
o corpo a partir do sêmen corporal”. O fato de ser alma inferior indica racionalidade e
movimento, ou seja, sabedoria da carne, por estar junto ao corpo atrai a vontade
humana aos desejos corporais, é uma espécie de espirito material.194

Assim sendo, nãos há dúvidas de que o desenvolvimento do pensamento de


Orígenes sobre a realidade corporal é complexo. Crouzel afirma que é ambíguo a
noção de Orígenes a respeito do Corpo, até porque o alexandrino entende a Trindade

191 ORÍGENES, 2012, II, 8, 3.


192 SESBOUÉ, 2003, p. 100.
193 ORÍGENES, 2012, II, 8, 4.
194 Ibid., III, 4, 2.

80
totalmente incorporal, um ser de natureza simples, invisível, mas que entre os seres
criados há os visíveis e invisíveis, sendo que estes últimos constituídos de corpos com
qualidades superiores mesmo não sendo corporais. Observa-se que, para Orígenes,
o termo incorporalidade possui sentidos diferentes, seja de gênero filosófico ou
relativo a uma corporalidade sutil.195

No entanto, a condição da natureza corporal humana tem como causa o


comportamento de esfriamento no estado preexistente, ou seja, a causa dessa
natureza corporal é anterior ao nascimento, porém, é uma situação corporal menos
grave que a dos seres infernais e inferior aos seres celestes. Essa diferença acontece
pela condição meritória, ou seja, ato de negligência dos seres racionais dispôs a
diversidade entre eles e, por meio da Providência e justiça divina, a humanidade
assumiu a corporalidade terrena.

Além da incorportalidade e corporalidade, Crouzel expõe um terceiro sentido


do pensamento origeniano sobre a natureza corporal que é de ordem moral, ou seja,
aqueles que nesta existência terrestre superam os desejos inferiores do corpo
corruptível assemelham-se aqueles que já vivem a bem-aventurança, isto significa
que, neste corpo terreno se encontra uma razão seminal que germinará para um corpo
espiritual.196

Diante desta constatação, é inegável a visão positiva de Orígenes sobre a


corporalidade, claro que esse seu entendimento ressoa como resposta para as
correntes gnósticas que possuíam um ponto de vista negativo sobre a corporalidade.
Sem sombra de dúvida que a ideia origeniana compreende a alma como instância
superior na vida humana, até porque é a alma que possui o livre-arbítrio e participa da
imagem de Deus, mas a corporalidade mesmo não participando diretamente, recebe
da alma toda a dignidade, é esta natureza corporal que como um sacrário contêm a
imagem. Porém, Orígenes sabe que essa dignidade contida no corpo é fruto de um
caminho de progressão da alma que, unida ao espírito, se afasta dos desejos da carne
integrando o homem na sua totalidade de modo que o corpo é assumido e
transformado sendo elevado ao espírito.

195 CROUZEL, 2015, p.129.


196 Ibid., p. 129-131.

81
“Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de
Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade
de corpo mais sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado das
coisas o exigir e os méritos da natureza racional o pedirem”.197

Navegando contra o fluxo conceitual sobre a natureza do corpo das correntes


gnósticas, Orígenes não deixa de atribuir o valor da corporalidade no processo de
progressão espiritual, para isso ele demonstrou em seus argumentos, que o corpo
humano é um elemento criado por Deus198 para que a unidade perdida na queda
pudesse ser restabelecida.

“Deus, que conhecia com anterioridade as variações futuras das almas, ou


das potências espirituais, necessariamente criou a natureza corporal capaz
de se transformar segundo a vontade do criador, pelas mutações das suas
qualidades, em todos os estados que as situações exigem”.199

É nítido que o conceito antropológico de Orígenes, que vislumbra a tricotomia,


perpassa cada estado da existência, ou seja, preexistência, queda e apokatástasis. O
desenvolvimento de sua reflexão teológica apresenta a sua preocupação em afirmar
a todos que aderiram a fé cristã o conhecimento de sua origem para que, desta forma,
impulsiona-los ao fim último que é a união perfeita com Deus. A apokatástasis no
âmbito antropológico realça o valor da humanidade na sua totalidade, e que a
salvação é querida pela Trindade ao homem inteiro. Orígenes sabia que suas
especulações poderiam causar mal-entendidos, mas nele a esperança de salvação é
maior, ele insiste na bondade divina, que em nenhum momento da existência humana
deixa de querer a sua amizade e comunhão com o ser humano na sua integralidade.

2.9. A perspectiva soteriologica na apokatástasis em Orígenes

O compreensão de Orígenes sobre a realidade escatológica é pastoral, por


isso não exclui a vida terrestre, pelo contrário, é uma visão global de toda a existência.
Daley afirma que para Orígenes o processo escatológico já está presente e acontece

197 ORÍGENES, 2012, III, 6, 4.


198 No meio filosófico é inconcebível a teoria que a divindade incorruptível e imortal pudesse criar a
matéria o seu oposto, esse é o papel do Demiurgo, esse modelo é assumido pela ideia marcionistas
que atribui ao Deus do Antigo testamento os atributos do Demiurgo, portanto as circunstâncias
históricas contribuem na aplicação de Orígenes de demonstrar que Deus é criador de todas as coisas
visíveis e invisíveis, seria para ele um erro atribuir à natureza da corporalidade um valor maléfico sem
a capacidade de transformação, a matéria não é má em si mesma, mas por acidente.
199 Ibid., IV, 4,8.

82
gradualmente nesta existência, havendo uma tensão entre a santidade de cada
individuo, adquirida pela vivência da virtude com a totalidade do Corpo de Cristo na
consumação escatológia, lembrando que Cristo é o revelador desta virtude. Esta
santidade vivida em conjunto significa que o Reino de Deus já presente, mas que o
Reino só poderá atingir sua consumação final quando cada ser humano alcançar esta
santidade.200

A santidade em Orígenes tem plena relação com tornar-se semelhante a


Deus, condição já imprimida em cada ser racional desde sua origem. O ser humano
recebe a dignidade da imagem, porém a semelhança é o grau de perfeição a ser
atingido na consumação, portanto esta semelhança é querida por Deus a todo ser
humano desde a sua origem, mesmo antes da queda na preexitência tornar-se
semelhante a Deus já fazia parte da providência divina que em nenhum momento
excluia o livre-arbítrio dos seres racionais.

A possibilidade dessa perfeição, que lhe fora dado no início pela excelência
da imagem, devia no final realiza-la ele mesmo na perfeita semelhança ao
cumprir sua obras. [..] a semelhança que esperamos ter com Deus, e que
será dada segundo a perfeição dos méritos.[...] Parece que aqui a
semelhança sempre será por assim dizer progressiva, e que semelhante, se
fará, porque, sem dúvida, na consumação ou fim, Deus será tudo em todos.201

Na análise anterior, sobre a antropologia de Orígenes, constatou-se a sua


visão positiva sobre a natureza corporal. A corporalidade humana está orientada para
um processo de educação e progressão até atingir, nos fins últimos, a semelhança ao
Verbo, tendo em vista que Orígenes não considera o mundo terrestre e mundo celeste
antagônicos, mas que ambos são marcados concomitantemente pela presença divina.
É nesse contexto que Orígenes desenvolve sua concepção de esperança pela
ressurreição. Somado a isso existe o intento de responder aqueles cristãos que foram
seduzidos pela crença no milenarismo,202 que fomentavam diante dos intelectuais
pagãos a depreciação da fé cristã na ressurreição.

200 DALEY, 1994, p. 80.


201 ORÍGENES, 2012, III, 6, 1.
de milenarismo (ou quiliasta) o conjunto de crenças relativa a um futuro reino terrestre de Cristo e de
seus eleitos; esse reino – e esse reinado – teria a duração estimada de mil anos (entendidos quer
literalmente, quer simbolicamente); o acontecimento situa-se entre a primeira e a segunda ressurreição
(a dos eleitos já mortos) e a uma segunda (a dos maus, em vista do julgamento e da condenação).[...]
O ponto de partida dessa doutrina é a afirmação do Apocalipse de João (20, 1-6), que fala de um reino
de mil anos dos justos com Cristo na terra após uma primeira ressurreição”. SESBOUÉ, 2003, p. 352.

83
No entanto, sendo a corporalidade condição da criatura, Orígenes entende
que a ressurreição não é isenta da condição corporal, ele tem como fundamento a
visão paulina de ressurreição em que o corpo corruptível será transformado em corpo
incorruptível (1 Cor 15, 51), pois o corpo material possui a razão seminal203 do corpo
que será ressuscitado.204 Por trás desse entendimento sobre ressurreição do corpo
origeniano está a bondade divina impressa na sua criação, já que o corpo foi criado
por Deus não pode conter ontológicamente o mal, por isso a corporalidade material é
restaurada pela vontade divina em um corpo espiritual com suas qualidades
respectivas:

Não há dúvida de que a natureza desse corpo que é nosso, pela vontade de
Deus que assim o fez, poderá chegar pela ação do Criador a essa qualidade
de corpo muito sutil, puríssimo e muito resplandecente, conforme o estado
das coisas o exigir e o méritos da natureza racional o pedirem.205

Considerando essa hipótese sobre a ressurreição corporal de Orígenes, não


significa que a sua compreensão nesse quesito não possua uma certa complexidade.
Daley menciona uma passagem no Tratado sobre os Princípios (II, 3,7), em que
propõe três possibilidades de ressurreição, sendo que uma delas foi citada acima, a
outra é de que as natureza racionais formarão um só espírito quando tudo for
submetido a Cristo e de Cristo a Deus. Nesse caso, a condição da ressurreição é
incorpórea,206 e a terceira hipótese é a de que este mundo depois de passar pela
purificação da corruptibilidade repousará em algum espaço do universo num estado
perfeito e estável, a verdadeira herança do reino dos céus. Daley afirma que esta
terceira hipótese é a preferida de Orígenes, e que outras obras, tal como o Tratado
sobre a Ressurreição, demonstram esta simpatia.207

Essas possibilidades descritas sobre o corpo ressurreto colocam em


evidência o caráter especulador de Orígenes, ele não possui uma definição clara

203 A imagem Paulina de que no corpo terrestre há uma razão, uma força de crescimento em direção
ao corpo glorioso não difere da ideia estóica sobre o logos espermático, que é definida como uma força
racional de crescimento que se desenvolve em cada sujeito. Cf. CROUZEL, 2015, p. 357.
204 ORÍGENES, 2012, II,10, 2.
205 Ibid., III, 6, 4.
206 Jerônimo foi um dos acusadores de Orígenes pela da apokatástasis incorpórea, segundo Crouzel

em a noção de incorporeidade final está baseado em razões filosóficas, porém Orígenes não afirma
categoricamente essa realidade, mas propõe o discernimento, o autor francês é enfático em dizer que
não se pode afirmar com veemência que Orígenes pensava a apokatástasis de forma incorpórea, há
apenas uma discussão na obra Tratado sobre os Princípios mas apenas como hipótese já que também
é discutido na mesma obra a apokatástasis corpórea.
206 CROUZEL, 2015, p. 363-366
207 DALEY, 1994, p. 87.

84
sobre a apokatástasis e por entender que a condição corporal é próprio da criatura e
que somente Deus é incorpóreo, ele não possui uma simples solução para a sua
noção de consumação final, em que Deus será tudo em todos. Porém, como foi dito
anteriormente, em Orígenes a alma é predominante na sua antropologia e não é
desprovida de corporalidade que depois da queda do livre-arbítrio adquire condição
impura e corruptível. Assim como está vinculado a condição moral na queda que
maculou a imagem de Deus incutida no homem, é esta condição moral que pela luz
da razão e do entendimento faz o ser humano fazer o caminho de retorno a Deus e
tornar-se semelhante e um só com Ele. Está, também, no querer humano este retorno,
entretanto, com o auxilio da graça divina.

2.9.1. A purificação humana pelo fogo divino como processo apokatástico

A ressurreição da natureza corporal como etapa do processo apocatástico


imbrica numa outra questão ligada a purificação que, segundo Daley, não é
exatamente nítido para Orígenes, já que em alguns escritos ele aprova a posição da
pregação da Igreja tradicional sobre punição eterna para todos aqueles que se
afastaram por vontade própria do amor de Deus. Mas, há muitas outras passagens
em que o alexandrino assume posição diferente desta pregação tradicional. Este olhar
diferenciado propõe uma explicação da purificação por meio do fogo como uma
compreensão psicológica ou moral do pecador”.208 Essa segunda proposição
origeniana é constatada no Tratado sobre os Princípios, que traz como instância
fundamental e decisiva da ação providencial divina, a lógica catártica de cunho
medicinal e educativo que possibilita as almas humanas a condição de restauração.

“cada um dos pecadores acende para si mesmo a chama de um fogo que lhe
é própria [...] A alimentação e matéria desse fogo são os próprios pecados
que o apóstolo Paulo chama de lenha, feno e palha (1 Cor 3,12). [...]
quando a inteligência ou consciência, lembrando-se, pelo poder divino de
todos os atos cuja as marcas e forma se imprimiram nela quando pecava
[...]verá, assim, de algum modo, exposta diante dos seus olhos a história de
cada um de seus crimes.(II, 10,4)

208 DALEY, 1994, p. 89-90.

85
Está evidente nesta ótica origeniana que o fogo purificador de todas as
paixões humanas e de todos os pecados vergonhosos é produzido pelo próprio
pecador. São os pecados o verdadeiro combustível deste fogo que age purificando a
pessoa inteira, ou seja, a alma e corpo, porém, Crouzel destaca que em diversos
textos de Orígenes é Deus mesmo o fogo devorador.

“Segundo a Homilia I,15, Deus faz mais do que destruir a construção do


diabo, aniquila-a, enviando a palha e o joio a um fogo inextinguível. Mas
desde que o suplício do fogo eterno não aniquile as pessoas, o que Deus
aniquila através do fogo parece ser a construção do diabo no homem, e
então teremos o caráter medicinal novamente”.209

Nesta passagem os castigos e suplícios por meio do fogo divino em Orígenes


não possui um caráter de maldição ou vingança de Deus perante os ímpios que
preferiram a ignorância, o que o alexandrino ressalta é o caráter medicinal e curativo
da ação divina. Esse argumento demonstra outra preocupação de Orígenes, que visa
responder aos hereges de seu tempo que o mal existente nos seres racionais não é
da própria natureza, pelo contrário, é acidental, já que cada ser racional possui a
mesma igualdade de condição. Portanto, faz parte da providência divina a purificação
escatológica pelo fogo,210 para que desta forma, de modo equitativo, cada ser racional
participe da sua divindade.

“Deus, provê a tudo nos menores detalhes, pelo poder da sua Sabedoria que
discerne tudo o quanto governa pelo juízo, dispôs todas as coisas segundo
uma distribuição muito equitativa, a fim de que cada um seja socorrido, e que
haja sobre ele um cuidado vigilante. Aqui se manifesta seguramente o ponto
de vista da equidade, porque a desigualdade das condições respeita a justa
distribuição segundo os mérito.211

De fato, o discurso escatológico de Orígenes, que é desenvolvido como


processo catártico e medicinal, na verdade revela o processo gradual e educativo do
ser humano rumo a plena participação na vida divina, ou melhor, ao ponto culminante
de tornar-se imagem e semelhança de Deus. Quando entendido de maneira integral,
coloca outros dois elementos em evidência, que são o livre-arbítrio que permite que
alguns progredirem no bem e outros regredirem, porém Orígenes não nega que todos

209 CROUZEL, 2015, p. 342.


210 Sesboué destaca outro aspecto do pensamento escatológico de Orígenes sobre o fogo purificador
e que tem muita semelhança com a noção tradicional da visão de purgatório contemporâneo que é o
batismo de fogo interpretado a partir do texto paulino 1Cor 3, 11-15, em que é o próprio Deus o fogo
que purifica queimando tudo o que é perecível, ou seja, as obras más representadas como a palha e a
lenha, e o que é imperecível tal como o ouro e a prata permanecerá, equivale as boas obras.
SESBOUÉ, 2003, p. 362.
211 ORÍGENES, 2012, II, 9, 8.

86
os seres humanos tem incutido por Deus “um desejo que lhe é próprio e natural de
conhecer a verdade divina e as causas das coisas”(II, 11,4) e, o segundo elemento,
que efetivamente abarca o primeiro. A providência divina, que é o movimento amoroso
de Deus de salvar a humanidade em toda a sua existência que em Orígenes envolve
o universo da preexistência, a história terrena e a culminação do tempos, a
apokatástasis.

A hipótese de Orígenes sobre o castigo após a morte como aspecto medicinal


o seu entendimento sobre a duração deste tempo de punição é bastante discutível,
isso porque o alexandrino tem extrema preocupação em manter-se fiel a ortodoxia
eclesial, que entendia a condenação aos castigos após a morte como eterna.
Sesboué destaca essa concepção de sentença eterna para os pecadores em Irineu,
que defende enfaticamente que não é por iniciativa de Deus, e sim por livre escolha
da criatura de permanecer no mal, consequentemente sofre as penas dos castigos
eternos pela ausência do bem.212

O dilema da teoria da purificação pelo fogo em Orígenes é descrito por Daley


pelo fato de não haver uma opinião uniforme nos seus diversos escritos, isso porque
não há convicção firme sobre a eternidade de punições.213 Crouzel também menciona
a diversidade de opinião sobre a duração dos castigos eternos origenianos. Este
contraste, inclusive, é visto numa mesma obra, a exemplo disso são as Homilias sobre
Jeremias. Todavia, Crouzel põe em relevo que o fogo que espera todas as criaturas é
denominado por Orígenes como pyr aiônion (fogo eterno), o adjetivo aiônion (eterno)
é ambíguo, uma vez que o exegeta de Alexandria não atribui essa expressão apenas
com o sentido de uma duração sem fim, mas também como longo e finito período de
tempo.214

Conforme foi analisado, fogo escatológico em Orígenes, posto como acendido


pela acusação da consciência do pecador ou Deus mesmo como fogo devorador. Em
ambas hipóteses o fogo não possui a mesma conotação que temos de um fogo visível
que aniquila, que torna cinzas um ente qualquer, mas um fogo invisível que purifica,
cura, restaura. A condição medicinal deste fogo pode ser contado como um

212 SESBOUÉ, 2003, p. 357.


213 DALEY, 1994, p. 90.
214 CROUZEL, 2015, p. 341-342.

87
pressuposto limitado, ou seja, um etapa para chegar a beatitude, condição que todos
os seres foram criados mas por voluntariedade negligente alguns se afastaram.

“Para nos fazer compreender que Deus age para com aqueles que caíram e
pecaram da mesma maneira que os médicos aplicam remédios aos enfermos
para que recupere a saúde [...] É preciso compreender que a fúria e a
vingança divina aproveita a purificação das almas. Isaias ensina também que
o castigo infligido pelo fogo deve ser entendido como remédio que se
aplica”.215

É nítido a ênfase que Origenes faz da ação de Deus sobre os pecadores,


afinal, são eles que estão doentes e precisam de um remédio doloroso (o fogo
purificador). Este discurso está profundamente marcado com a ideia da salvação
universal, mesmo que seja uma discussão de caráter especulativo, não deixa de ser
uma compreensão ousada da obra salvífica divina, tanto que irá causar mal-
entendidos posteriormente à Orígenes.

2.9.2. Apokatástasis como conceito de salvação universal: uma proposta de


esperança em Orígenes

A interpretação do texto paulino 1Cor, 23-28 é quebra de paradigma em


Orígenes sobre a salvação universal (apokatástasis). O seu intento é elucidar o que
ainda não estava claro sobre a totalidade da história humana na pregação da Igreja,
isso incluía a preexistência (a origem da história humana) e apokatástasis
(consumação da história). O alexandrino desenvolve uma bem articulada teologia da
história.216

Sobre a salvação de todos o seres humanos, Orígenes na maioria das vezes


deixa claro essa esperança,217 mas como mantém uma posição no seu escrito Tratado
sobre os princípios de que todos os seres racionais participavam de uma mesma

215 ORÍGENES, 2012, II, 10, 6.


216 Ibid., Pref. 7.
217 Um das passagens em que Orígenes esboça uma expressão de condenação eterna para o pecador,

está no Tratado sobre os Princípios no capítulo sobre a ressurreição ao comentar sobre a passagem
de Lc 12, 46 : diz que uma das partes do infiel, o espírito ou dom do espírito recebido pela graça ou no
batismo é separado da alma superior por ser de natureza divina, e por esta alma encontrar-se em
unidade a sua parte inferior, ou seja, a matéria corporal contrariando o propósito da natureza de ser
criado para a beatitude, será atirada para o mesmo destino do infiéis. (II, 10,7).

88
natureza em sua origem, abre espaços para conjecturas sobre a salvação do diabo,
já que a salvação é universal.

Orígenes, na sua aprimorada obra Tratado sobre os princípios, indaga sobre


a possibilidade do diabo e seus anjos se converterem. Essa questão levantada por ele
não é uma afirmação, tanto que deixa para o leitor a decisão de julgar a possibilidade
ou não dessa mudança.

“Por outro lado, será que algumas dessas ordens que agem sob o domínio
do diabo e obedecem à sua maldade poderão alguma vez no futuro voltar à
bondade, por se mantém nelas a faculdade do livre-arbítrio? [...] Tu, que
estás lendo, se julga se é possível que, de alguma maneira, seja no das
realidades invisíveis e eternas, essa parte da criação ficará separada da
unidade e da concórdia final”.218

Deve ser levado em consideração que Orígenes escreve o Tratado sobre os


princípios como refutação das ideias gnósticas que mantinham o conceito de dupla
predestinação, ou seja, os seres racionais teriam sido criados substancialmente bons
e outros maus, negando-lhes o livre-arbítrio, contrapondo à bondade divina. Este fato
incide na controvertida ideia origeniana dos seres racionais criados por Deus
participando de uma mesma natureza, e que a diversidade existente foi consequência
do livre-arbítrio, por isso o mal existente nas criaturas não é ontológico, e muito menos
foi criado por Deus. Esta condição abre a possibilidade dos seres racionais
escolherem livremente a salvação, seguindo esse raciocínio a viabilidade do diabo
ser salvo na apokatástasis é inegável. Na mesma obra descrita há outra passagem
de Orígenes que supõe a salvação do Diabo.

“É por isso que, mesmo o último inimigo chamado morte se diz que será
destruído de tal maneira que não haverá mais nada funesto onde a morte já
não existirá, nem diferente, por que não haverá mais inimigo. É preciso
compreender essa destruição do último inimigo não no sentido de que a sua
substância feita por Deus vai perecer, mas que o seu propósito e a sua
vontade de inimizade, que não provêm de Deus, mas dele mesmo,
desaparecerão”

Sobre essa passagem, Crouzel argumenta que não está evidente que a
morte, o último inimigo a ser destruído é o Diabo. Orígenes refere-se a morte como
substância, isto indica um determinado ser, dando a entender que seja o Diabo. A
incerteza de que o mestre alexandrino esteja falando realmente do Diabo dá-se pelo
fato de outras obras referir-se a morte como pecado com ausência de substancia.219

218 ORÍGENES, 2012, I, 6, 3.


219 CROUZEL, 2015, p. 369.

89
Essa ambiguidade origeniana sobre a morte como o último inimigo a ser destruído na
consumação dos tempos resultou na acusação, mesmo em vida, de ser
condescendente com o Diabo, tanto que numa carta que Orígenes faz em sua defesa,
quando ainda estava em Alexandria (Carta aos amigos de Alexandria), rejeita
substancialmente ter ensinado sobre a salvação do Diabo.220

Orígenes, ao tratar sobre a salvação universal dos homens, tem como


pressuposto a alma imortal: “considerando a imortalidade da alma e a eternidade sem
fim, não receber imediatamente o auxílio da salvação, mas de lá serem conduzidos
mais lentamente”221. Este ponto de vista demonstra o amor e a paciência divina pela
sua criatura e que a salvação é um processo de educação, demora longos períodos.
Para Orígenes antes da apokatástasis haverá uma série limitada de eras.222

“Não se julgue que tudo isso se realizará de repente: será pouco e por partes
numa sucessão de séculos intermináveis e imensos, quando gradualmente a
reforma e a correção se cumprirem em cada um[...] através da quantidade de
degraus inumeráveis, constituídos por aqueles que progridem e se
reconciliam com Deus, eles que antes eram inimigos, se chega ao último
inimigo chamado morte e à sua destruição, para que não seja mais
inimigo”.223

Este esquema escatológico de Orígenes privilegia a ação providente de Deus,


que propicia aos seres humanos um processo pedagógico de crescimento, evidencia
o desejo da Trindade de levar sempre em consideração a liberdade humana para
escolher livremente a salvação: “Portanto, ele sempre teve beneficiários de seus
produtos e das suas criações, e na sua benfeitoria, distribui os benefícios de modo
ordenado e segundo os méritos de sua providência”.224 Segundo Orígenes, há uma
articulação divina para que a história humana possa ser reconciliada e unida a ela.

A criatura não pode ser aniquilada pelo mal existente nela, pois o mal é de
forma acidental, foi adquirido não é ontológico, isso levando em consideração também

220 Ibid., p. 369.


221 ORÍGENES, 2012, III,1, 13.
222 Ilaria Ramelli argumenta que a compreensão de Orígenes sobre um número sucessivo de eras é

semelhante a doutrina estoica da apokatástasis. Os estóicos postulavam uma sucessão infinita de eras
e que em cada era tudo aconteceria de forma idêntica, Orígenes refuta a primeira ideia com sua
esperança na apokatástasis como consumação final e a segunda hipótese contesta veementemente
(“Com efeito, se nós representamos um mundo perfeitamente semelhante a outro, será de tal modo
Adão e Eva farão de novo o que já fizeram [...] (Tratado sobre os Princípios II, 3,4). RAMELLI, 2013, p.
5.
223 ORÍGENES, 2012, III, 6, 6.
224 Ibid., I, 4, 3.

90
por ter sido criada a imagem e semelhança do seu criador, portanto é somente Deus
que pode tirar a maldade na criatura. Para Orígenes esta ação divina é puramente
graça : “é evidente que não está em nós o afastar a maldade; e se não somos nós que
agimos para colocar em nós um coração de carne, mas se é obra de Deus, não
depende de nós virtuosamente, mas será inteiramente uma graça de Deus”.225

É nesse panorama da ação divina como graça para libertar os seres racionais
da maldade que Orígenes compreende a encarnação como forma de restaurar a
disciplina perdida na queda por desobediência.

O Verbo encarnado pela sua obediência até a morte ensina aos pecadores
como reconciliar-se ao Pai.226 Esta instrução do Verbo permitirá a extinção do mal em
cada ser vivente, sem a presença do mal Deus poderá ser tudo em cada ser,
restaurando a condição original; “Não haverá mais discernimento do mal e do bem
porque já não haverá mal; pois que Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe.227

Nesse sentido, essa educação e progressão paulatina que engloba a vida


temporal e atemporal e que em um determinado tempo, somente conhecido por Deus,
terá um fim (apokatástasis). Segundo Crouzel, se Orígenes levasse em consideração
a salvação universal de modo dogmático, estaria em oposição à liberdade humana,
pois é livremente que o homem se submeterá ao Verbo e este se submeterá ao Pai
na apokatástasis. Portanto, para Orígenes a salvação universal é uma esperança e
não uma certeza, e o fundamento desta esperança é a bondade de Deus que ama a
sua Criação e respeita a sua liberdade.228

2.10. Conclusão

Indiscutivelmente, compreender a Apokatástasis em Orígenes precisa ser


levado em consideração a sua formação filosófica e teológica, regida pela cultura
grega do seu tempo. Nesse ambiente o termo “apokatástasis” já era corrente no
helenismo e no cristianismo, na medida em que vai sendo helenizado, o termo aparece

225 ORÍGENES, 2012, III, 1, 15.


226 Ibid., III, 5, 6.
227 Ibid., III, 6, 3
228 CROUZEL, 2015, p. 372.

91
no meio dos pensadores cristãos. Portanto, fazer atribuição a Orígenes como o
pioneiro da doutrina apokatástasis é sustentar esse discurso teológico do autor de
forma isolada.

Sendo termo corrente, Orígenes, que é homem da Igreja, tem uma


preocupação estritamente pastoral com sua noção de apokatástasis. A tentativa de
esclarecer o tema não como afirmações dogmáticas mas com o propósito de levantar
soluções, ratifica o seu desejo de fazer a defesa da fé diante daqueles que, por
influência helênica, distorcem a concepção do que é Deus, o mundo e o homem e a
salvação, por isso as escrituras são o lugar da fundamentação de um significado mais
profundo para a concepção do princípio e finalidade da Criação.

As questões sobre a negação da materialidade e a soteriologia determinista


gnóstica, impulsiona Orígenes em sua investigação e argumentação sobre a
apokatástasis, visto que ele teve dúvidas e, por isso, apresentou várias vezes mais de
uma solução para os problemas levantados. Contudo, dá ao leitor a opção de escolher
qual a solução lhe fosse mais viável.

Foi apresentado que os sentidos da apokatástasis estavam vinculados ao


restabelecimento ou retorno de uma condição perdida, podendo ser este de ordem
física ou mesmo num sentido escatológico. Este último imprimia um sentido mais
profundo associado ao alcance ou realização de um propósito.

A novidade sobre a noção da apokatástasis em Orígenes vem de sua


interpretação de texto paulino “Deus será tudo em todos” (1Cor 15, 28), a partir deste
o fundamento, a dimensão prospectiva e retrospectiva – o fim é semelhante ao
começo – será o itinerário do seu discurso teológico sobre a apokatástasis. Portanto,
a sua obra “O tratado sobre os princípios” que abarca os princípios da existência e o
seu fim em Deus, é um tratado muito bem sistematizado que parte de uma
metodologia que incute o uso da metafísica filosófica, sem prescindir dos dados da
Revelação divina na Sagrada Escritura. Com enfoque nos aspectos cosmológicos,
antropológicos e soteriológicos, todo esse aparato teológico servirá de refutação as
ideias das correntes gnósticas vigentes de seu tempo, e servirá de instrução para os
cristãos de sua comunidade. Neste propósito está implícito o desejo do teólogo
alexandrino manter-se fiel a ortodoxia.

92
Como foi dito, o eixo norteador da noção de apokatástasis origeniana está em
que “Deus será tudo em todos”, essa noção parte dois dados cristológicos: à
preexistência do Verbo, nele está o princípio de toda a criação, “Nessa existência da
Sabedoria subsistente por si mesma estava presente, pois em poder e figura, toda
futura criação”,229 e submissão do Cristo ao Pai, “submissão do Filho ao Pai é afirmada
a perfeita restauração de toda a criação,”230 ou seja a salvação nele.

Na análise da apokatástasis em Orígenes, partindo desses pressupostos


cristológicos, é evidenciado na encarnação do Verbo o modelo de obediência ao Pai
que pode ser apresentado como papel providencial divino na instrução dos seres
humanos caídos para chegar à reconciliação ao Pai, isto é, a salvação.

Cristo como modelo implica na liberdade humana, o seguimento deve partir


do livre arbítrio e isso envolve o ser humano na sua integralidade, já que para
Orígenes o homem é salvo inteiro, por isso a restauração que envolve a alma e o
espírito não descarta a corporalidade, que também será restaurada na ressurreição
como corpo incorruptível, porém este processo envolve uma purificação catártica , um
remédio doloroso que tem o objetivo a curar de toda maldade.

A categoria soteriológica no processo de apokatástasis em Orígenes faz parte


de sua compreensão de que o mal no ser humano não é substancial, e que pode ser
superado a partir do livre-arbítrio, por isso todos os seres racionais têm a possibilidade
de serem salvos. Isso envolve uma progressão na instrução dada pelo Verbo
encarnado, tanto no âmbito terrestre quanto na realidade ultraterrena, porém essa
noção de salvação universal, apresentada no esquema escatológico origeniano, é
uma especulação do autor, ele não dogmatiza essa ideia. Pode-se concluir que essa
noção da apokatástasis origeniana tem como panorama uma dinamicidade que é
representa na dialética entre a bondade infinita de Deus e a liberdade humana, e que
na busca de conciliar a fidelidade aos ensinamentos dos apóstolos, ou seja, a
Tradição, a aspiração de uma salvação universal é apenas uma hipótese mas não
deixa de ser um projeto de grande esperança ao padre alexandrino.

229 ORÍGENES, 2012, I, 2, 3.


230 Ibid., III, 5, 7.

93
3. A RELEITURA DA APOKATÁSTASIS EM ANDRÉS TORRES DE QUEIRUGA

3.1. Introdução

A ideia origeniana sobre apokatástasis foi, e continua sendo, emblemática no


discurso teológico. Mesmo depois da condenação dessa doutrina pelo V Concíclio
ecumênico de Contantinopla II em 553, nunca deixou de haver simpatizantes por esta
ideia.

Refletir sobre esse tema na teologia contemporânea deve ser destacado a


sua complexidade e o esforço de uma hermenêutica que alcance uma convergência
com a reflexão teológica atual e a experiência de fé, devido na atualidade a praxis ser
uma exigência, a custa de uma persistente resistência da esfera secular da sociedade
frente a religiosidade.

Primeiramente pela própria condição histórica da fé cristã que ainda não foi
superada devido a cristandade a Igreja ter sido uma instituição controladora, por isso
fazer a releitura da apokatástasis a partir da teologia de Andrés Torres de Queiruga é
pertinente, devido sua preocupação em responder aos dilemas atuais da existência
humana com uma linguagem teológica eficiente afim de esclarecer a fé comum sem
abster-se da aproximação e diálogo com crentes e não crentes.

Para uma releitura da apokatástasis na teologia queiruguiana, ter-se-á como


base a sua metodologia teológica a partir de baixo, ou seja, ele leva em consideração
o contexto antropológico cultural que envolve as relações humanas e com uma chave
hermenêutica pautada em Deus, que é ato de puro amor e a liberdade humana.

Tendo como pressuposto esse panorama, os critérios a seguir para a releitura


da apokatástasis serão os eixos fundamentais da teologia queiruguiana que perpassa
pela Criação, Revelação e Salvação, identificando a ação amorosa divina a partir da
realidade concreta do mundo com sua finitude, porém sem deformação de suas leis
naturais, incluindo a autonomia do ser humano.

Dentro desse processo dialético Deus/Criação, será essencial expor o


discurso teológico de um Deus que sustenta, auto comunica-se, em vista da
realização plena de sua criação, elevando-a, potencializando-a, conduzindo-a ao
94
cume, que é a superação de sua finitude e, consequentemente, do mal. Esta
esperança coerente é comum com o discurso da fé religiosa em todas crenças e não
crentes, sendo capaz de contribuir com a necessidade atual marcada por uma
desigualdade humana, desembocando na centralidade da missão de Jesus o Reino
de Deus, esta esperança está encharcada na esperança origeniana da apokatástasis.

3.2. O Perfil teológico de Andrés Torres de Queiruga

O teólogo e filósofo galego, Andrés Torres de Queiruga, é um dos grandes


expoentes na teologia contemporânea. Essa refefência não levam em conta apenas
a sua extensa bibliografia e o grande numero de artigos publicados, mas a
originalidade de seu pensamento, que se traduz numa linguagem empenhada no
dialógo entre crentes e não crentes.

O grande desafio de André Torres de Queiruga que ao vivenciar a inércia no


crescimento da fé meio cristão católico, que por rotina mantêm-se no
convencionalismo. A origem desse imobilismo está entranhada na glória e no peso
histórico do cristianismo. A Glória provém da profunda e fecunda experiência de fé,
mas o peso está ligado a experiência de fé fixada no contexto cultural de onde
habitam. Esta limitação causou no cristianismo hodierno, mesmo num contexto de
interação com a modernidade, um aspeto antiquado, ou seja, as experiência de fé que
o ancoram mesmo traduzidas em novas formas culturais ainda dão a aparência de um
cristianismo inteiramente caduco. Evidentemente esse panorama abala a transmissão
dos elementos fundamentais da fé, de modo que passa ser uma exigência no campo
teológico uma retradução global do cristianismo, ou seja, o desafio de fato é enfrentar
a dura crise vivida pelo cristianismo contemporâneo a partir de uma linguagem que
repense e recupere a experiência de fé cristã.231

Em se tratantando de crise, Andrés Torres Queiruga compreende-a de


maneira ambigua, já que desta pode sair decadência total ou a plena salvação.
Portanto, a crise é uma ocasião de discernimento, se for mais a fundo na compreensão
sobre crise, se evidenciam as crenças. Em vista disso, as ideias que muitas vezes são

231QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Criação: Por uma religião humanizadora. Trad. João
Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1999a, p. 15-17.

95
manipuladas por conceitos pré-concebidos são extremecidas pelas convicções
profundas que surgem da consciência das crenças. Nisso há o desmoronamento de
convicções superficiais e ficam expostos os fundamentos que sustentam os princípios
da fé. Diante deste dinamismo existente na crise, que Andrés Torres de Queiruga
afirma que no campo da teologia as coisas não acontecem diferente. Isso porque a
Palavra de Deus na história é entregue ao ser humano, e o fato dela ser viva e real,
sempre dinâmica e ativa, ela não se detém em uma época ou lugar, de modo contrário,
essa Palavra atravessa épocas e gerações configurando-se e encarnando-se no
mundo cotidiano. É desta forma que ela se manifesta ao ser humano, que pode
configurá-la de forma aberta mas, ao mesmo tempo, pode ser de modo fechado.

Andrés Torres de Queiruga alerta que esse aspecto da Palavra de Deus,


sempre dinâmica e viva, que tem como lugar a consciência religiosa. Daí decorre o
processo de autocrítica em vista de superaração de um contexto de crise atual de
pareceres críticos, objeções e ataques a-religiosos. Este quadro de tensão entre
religiosidade e não crentes, mesmo aparentando um choque ou um enfrentamento de
ideias, no fundo são o mesmo terreno de ideias em que todos seres humanos, crentes
e não crentes descem em suas crenças para superar o momento de crise.232

Toda esta explanação feita por Andrés Torres de Queiruga sobre a


consicência da historicidade e a compreensão da experiência de fé, no decorrer da
história da experiência de fé cristã é plenamente atestada por Libanio ao referir-se
sobre a tarefa hermenêutica:

A teologia sempre foi hermêneutica da fé. Faz parte de seu próprio conceito
e identidade. Reinterpreta e organiza os dados revelados vividos e
compreendidos na/ pela comunidade eclesial, em diferentes contextos
socioculturais e histórico. Caso não exerça essa missão, as formulações de
fé se tornam anacrônicas, reduzindo-se, com o tempo, à recitação de
fórmulas de pouca e insignificante inteligibilidade.233

Os problemas hermenêuticos para Andrés Torres de Queiruga possuem suma


importância. Ele entende que a fé, para não cair na caducidade, no imobilismo, na
infantilidade, deve ser viva e para isso deve estar em contínua atualização,

232 QUEIRUGA, 1999b, p. 11-13.


233 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 336.

96
convertendo-se em uma experiência efetiva, abstraindo-se do risco ser apenas uma
teoria abstrata ou uma doutrina sem vivacidade.

No momento atual em que o cristianismo vive é impossível não visualisar os


grandes dilemas que os cristãos estão vivenciando com a esfera secular, juntamente
com a pluralidade religiosa. É neste cenário que Afonso Maria Ligório Soares,234 no
prefácio da obra “Repensar a Ressurreição” do teólogo galego, sustenta o esforço do
autor num processo de contínua atualização da fé a nececissade de quebra de
paradigmas na reflexão teológica, e o primor dessa preocupação está a liberdade de
tentativas teológicas para esclarecer a fé comum e promover o diálogo com as demais
religiões. Afonso Maria Ligório Soares destaca, também, o projeto teológico, ou seja,
a atenção especial de Andrés Torres de Queiruga que intitula algumas de suas obras
de maior destaque com os verbos repensar ou recuperar. Esse intuito está
extremamente ligado ao despertar em seus leitores o frescor do primeiro amor já que
os conduzem para um contato direto com a experiência originária da fé.235

A contemporaneidade teológica de Queiruga pode ser demonstrada em sua


reflexão teológica a partir dos principais aspectos do Concílio Vaticano II e pós
Concílio Vaticano II, que tem como pressuposto o contexto antropológico e cultural
por entender o ser humano “que por sua própria natureza, é um ser social, que não
pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os
outros”.236 Portanto, dado que o ser humano – neste contexto se insere o cristão – é
um ser de relação, isso envolve o diálogo não somente entre aqueles de mesma
crença, mas com os de seguimento de crenças diferentes e até mesmo os não
crentes. Andrés Torres de Queiruga preocupa-se demasiadamente com uma
linguagem teológica que possa dialogar com todas essas esferas da sociedade
moderna.

Como foi demonstrado acima, a importância fundamenal do Concílio Vaticano


II na qual a Igreja se predispôs ao diálogo com a modernidade, pode-se fazer juízo
do segmento teológico de Andrés torres de Queiruga, a partir dos teológos que de

234 Foi Professor Associado do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e também
um grande estudioso do pensamento de Andrés Torres de Queiruga, e tradutor de várias de suas obras.
235 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a ressureição: a diferença cristã na continuidade das religiões

e da cultura. Trad. Afonso Maria Ligório Soares, Anoar Jarbas Provenzi. 2. ed. São Paulo: Paulinas,
2010a, p. 13-14.
236 GS, 12.

97
sobremaneira foram fundamentais e contribuiram com ideias inovadoras para o
Concílio, tais como Henry de Lubac, Marie-Dominique Chenu, e outros que vinham da
linha de pensamento sobre a volta as fontes e a aplicação do método histórico-crítico
da escola francesa de teologia a “NouvelleTheologie”. Assomando-se a esses
citados, outros grandes nomes da teologia com iniciativa inovadoras, Teilhard de
Chardin, Karl Rahner, Eduard Schillebeeckx e muitos outros.237 Em suma, o discurso
teológico queiruguiano que percorre as linhas do diálogo, da pluralidade, da análise
crítica que consequentemente implica numa quebra de paradigma no pensar
teológico, tem como herança, segundo as próprias palavras de Andrés Torres de
Queiruga no prólogo da obra Repensar a Revelação o teólogo e filósofo espanhol,
Angel María Amor Ruibal, inspiração para a sua tese doutoral em teologia a respeito
da constituição e evolução do dogma.238

Finalmente, para entender o perfil de Andrés Torres de Queiruga, é


fundamental contextualizá-lo como teólogo da contemporaneidade devido sua
profunda preocupação de querer demonstrar que o núcleo do projeto do Concilio
Vaticano II está na exigência de ser essencialmente universal permitindo que a
reflexão teológica esteja inserida na cultura, nas relações humanas e sociais e no
diálogo com as demais religiões.

Porém, a questão fundamental desse trabalho que é a releitura da


apokatástasis na contemporaneidade com bases nos fundamentos teológicos de
Andrés Torres de Queiruga não deverá prescindir de uma chave hermenêutica
apoiada em Deus, como puro ato de amor. Pois, em diversos de seus trabalhos o seu
esforço de produzir uma teologia mais universal, com uma linguagem teológica
abrangente, apresentando Deus como amor sem medida, segundo ele essa chave
hermenêutica liberta e descontamina os próprios cristãos de um cristianismo que tem
Deus como rival e está situada no centro vital do cristianismo.239 Este amor
incondicional de Deus apresenta de fato que o desejo de Deus é salvação, a
realização e a plena felicidade de todos os seres humanos, aspecto fundamental do
termo apokatástasis usado pelos padres da Igreja.

237 LIBANIO; MURAD, 2005, p. 145-147.


238 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. Trad.
Afonso Maria Ligorio Soares. 2010b, p.17.
239 QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Salvação. 1999b, p. 14-16.

98
3.3. Apokatástasis em Queiruga

O grande ícone da apokatástasis na teologia patrística é Orígenes. No


capítulo anterior foi reconhecida a sua grande capacidade intelectual com base na sua
reflexão teológica bem sistematizada que demonstrou seu profundo conhecimento
filosófico e exegético, que foram instrumentos de extrema importância no seu serviço
investigativo. Esse empenho do alexandrino na especulação sobre os dados da
Revelação proporcionou-lhe quebrar paradigmas na teologia de seu tempo e, por
tratar-se de uma investigação especulativa, Orígenes jamais quis dogmatizar suas
reflexões inéditas, porém inovadoras. A apokatástasis de Orígenes está neste
panorama original de seu pensamento e mesmo depois de ter sido condenada
oficialmente pela Igreja nunca caiu no ostracismo, pois diversos teólogos continuaram
o movimento de reflexão sobre a doutrina da apokatástasis.

Tratando-se de Andrés Torres de Queiruga, sobre a apokatástasis, deve-se


levar em consideração o seu compromisso com a tarefa hermenêutica, cuja sua
preocupação sempre foi uma linguagem de fé responsável e contextualizada e, por
isso, suas produções teológicas são dinâmicas, sua teologia sempre se refaz. Sobre
a doutrina da apokatástasis não será diferente, sua opinião não permaneceu imóvel e
muito menos limitada. Segundo Andrés Torres de Queiruga, numa objeção feita pelo
por Juan Luiz Ruiz de la Penha, referente ao inferno como morte eterna ou perda
eterna de possibilidades, este teólogo afirma categoricamente que Andrés Torres de
Queiruga se afastou da ideia da apokatástasis, sinal que o teólogo galego a princípio
comungava da ideia origeniana.240 O próprio, sobre a proposta de Orígenes referente
a apokatástasis, diz que “desde a sua defesa por Orígenes, estive presente em muitos
teólogos e não dos pequenos”,241 e cita uma lista de teólogos desde patrística até aos
contemporâneos que simpatizaram com a apokatástasis.

Cabe agora entender este afastamento, ou seja, questões que foram


suscitadas por Andrés Torres de Queiruga sobre a doutrina origeniana da
apokatástasis. Para isso, deve-se entender dois princípios hermenêuticos: O amor de
Deus e a autonomia da criatura. Referindo-se ao primeiro princípio, “Deus entra na

240 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar o mal: da ponerologia à teodicéia. Trad. Afonso Maria Ligorio
Soares. São Paulo: Paulina, 2011, p.286. nota 160.
241 Ibid., p. 287.

99
história do ser humano como pura salvação”,242 mas não de forma intervencionista,
concepção que ainda continua presente, seja na linguagem popular que herda essa
noção da transmissão histórica e mesmo na linguagem teológica essa ideia
intervencionista de Deus continua persistente. Segundo o teólogo galego a ação
transcendente de Deus só visibiliza-se, ou seja, torna-se imanente a partir da ação
mundana da criatura, esta dialética entre transcendência e imanência é constitutiva
da ação salvadora de Deus.243Andrés Torres de Queiruga demonstra a sua total
preocupação em preservar a relação Divina na obra da salvação porém respeitando
a autonomia e liberdade da criatura.

Com referência às criaturas, Deus não faz alguma coisa ao lado delas, para
completá-las, nem em seu lugar, para supri-las. De outra forma, falar, do
exemplo, da ação de Deus em nós poder-se-ia perceber como roubo de
nossa própria ação ou anulação de nossa autonomia. E, ao contrário, falar de
nossa ação daria a impressão de que Deus nada faz. Precisamente porque
Criador, a ação de Deus nas criaturas é fazer com que elas façam. Deus “faz”
de verdade, mas em sentido único e singularíssimo, enquanto dele estão
continuamente se recebendo a si mesmas as criaturas tanto em seu ser como
em sua capacidade de agir. Mas, pela mesma razão, nada falta a sua ação
de criaturas: este ser e esta capacidade são-lhes realmente entregues, de
sorte que são elas mesmas que “fazem” suas ações, que verdadeiramente
são suas”.244

É extremamente significativo a ação Divina marcada pelo amor que resulta no


segundo fundamento hermenêutico, a autonomia da criatura no seu processo de
salvação. Partindo desse pressuposto, Andrés Torres de Queiruga questionará a
apokatástasis. Na sua obra que trata sobre o inferno, “O que queremos dizer quando
dizemos “inferno”?”, logo nas primeiras páginas o autor demonstra a preocupação de
argumentar sobre o tema inferno dentro da realidade humana. Deixa evidente que a
compreensão tem como único meio a experiencia humana, e o lugar desta experiência
está na Sagrada Escritura e na Tradição, porém requer uma tarefa hermenêutica
principalmente pelo que já foi afirmado pelos “antepassados na fé”. Certamente o

242 QUEIRUGA, 1999b, p.69.


243 QUEIRUGA, 1999a, p.125.
244 QUEIRUGA, 1999a, p.127.

100
esforço do autor em garantir coerência no seu trabalho procura enfatizar uma
linguagem245 que ele resume como “a partir de baixo”.246

Andrés Torres de Queiruga reconhece como ainda é vigorosa essa noção


sobre a doutrina da apokatástasis, da qual sua raiz foi plantada na era patrística, e
salienta a persistência desse vigor pelo fato de estar arraigada sempre está
florescendo, isto por estar sobre a ótica do poder da graça de Deus e seu desejo
incondicional de salvar. Esta doutrina tem outro fundamento que é pautado na
Escritura pelo fato de várias passagens sugestionarem uma reconciliação total nos
fins dos tempos, e a crítica do teólogo galeno à apokatástasis tem dois pontos cruciais.

Conforme André Torres de Queiruga o primeiro ponto entra em choque com


a sua perspectiva hermenêutica que tem ênfase numa teologia “a partir de baixo”.
Segundo ele há um verticalismo teocêntrico excessivo e coloca o problema onde não
está, ou seja, na parte de cima, significando que o raciocínio sobre este tema parte da
ação de Deus, que na verdade sempre vai agir e fazer o possível para salvar o ser
humano, isso porque ele é um Deus de amor. Efetivamente a questão está na
liberdade humana, visto que Andrés Torres de Queiruga jamais prescinde da
autonomia da criatura, mesmo entre os teólogos mais atuais, como Karl Barth, Hans
Urs von Baltasar e o filósofo da religião John Hick, considera o argumento deles muito
artificial e propõe que mesmo partindo da ação salvadora de Deus as argumentações
sobre a doutrina da apokatástasis deve ter como pressuposto a possibilidade do
sujeito. Portanto, o ponto de partida é a limitada liberdade da criatura, e explorar como
possiblidade de salvá-la o que ela permite já que todo ser humano sempre possui algo
de bondade.247

Outra proposta de Andrés Torres de Queiruga para superar o raciocínio frágil


sobre a apokatástasis foi o apoio ao argumento de John Hick, que busca sua

245 Mesmo o autor confessando sentir uma certa limitação pessoal sobre o tema nesta obra O que
queremos dizer quando dizemos “inferno”?, no seu livro Repensar o mal, Andrés Torres de Queiruga
a partir de novas referências de linguagem aplica-se no desenvolvimento do tema sobre o inferno a
partir da teodiceia. Cf. QUEIRUGA, 2011, p. 276-293.
246 QUEIRUGA, Andrés Torres. O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?. Trad. Paulo

Bazaglia. São Paulo: Paulus, 1996, p. 6-7.


247 Deve ser posto em evidência que Andrés Torres de Queiruga partindo do pressuposto da liberdade

da criatura e do desejo incansável do amor divino em salvar o sujeito, Deus salvaria apenas aquilo
quanto pode, ou seja, aquilo que a liberdade finita lhe permite, isto para preservar o aniquilamento da
criatura devido sua natureza ser boa, jamais poderia cair na inexistência, além de ir contra a
condenação ou morte definitiva e a autocondenação. Cf. QUEIRUGA, 1996, p. 58-70.

101
fundamentação com mais rigor na tradição oriental que possui uma corrente de
discurso pautado na possibilidade de mesmo depois da morte o sujeito constituído da
sua plena liberdade poder fazer exercício dela e converter-se, ou seja, permitir que
Deus o salve plenamente.

O segundo ponto fraco que Andrés Torres Queiruga questiona é a


apokatástasis como restauração ao estado original, e com isso todas as criaturas
participam da mesma condição de beatitude. Isso afetaria a liberdade tornando-a
disforme e esvaziaria e tornaria sem sentido o antagonismo entre salvação e
condenação, já que Andrés Torres de Queiruga possui ainda a noção de condenação,
ou inferno como não-salvação. Neste argumento sobre a restauração final o teólogo
galego diz que também há um verticalismo exagerado, já que a questão antropológica
é deixada de lado frente a perspectiva de que Deus pode salvar apenas aquilo que a
liberdade humana lhe permite. Neste caso, o fato do sujeito pela sua liberdade se
fechar para ação salvadora de Deus cairá numa perda eterna e irreparável.248

3.3.1. A releitura da apokatástasis em Queiruga

Na conclusão final da obra Repensar a ressurreição, Andrés Torres Queiruga


afirma contra aqueles que o qualificam como excessivamente racionalista e que sua
teologia parte de dentro da fé, contraponto a simples critica racionalista que se situam
do lado de fora do trabalho teológico em matéria de teologia e fé. Essa defesa do
teólogo espanhol é apresentada pela sua preocupação em ter maior precisão na
“crítica dos conceitos teológicos, mas com propósito de alcançar uma melhor, mais
significativa e mais atualizada compreensão da fé”.249

Entramos novamente no terreno da hermenêutica na teologia, e cabe neste


momento apresentar a ótica de Clodovis Boff sobre a questão hermenêutica, que
sobre o tema apresenta duas propostas, sentido estrito e a segunda no sentido largo.
Referente a primeira, Clodovis Boff afirma ser uma hermenêutica teológica

248 QUEIRUGA, 1996, p. 82-86.


249 QUEIRUGA, 2010a, p.281.

102
preocupada em interpretar de forma correta a Palavra de Deus, por isso é mais estrita,
porque busca nos textos bíblicos, nos Padres da Igreja e no Magistério a verdade
contida nos oráculos proféticos e na mediação da Revelação. A segunda proposta da
questão hermenêutica abarca o sentido largo, efetivamente leva em consideração a
interpretação dos textos da Revelação na Tradição viva da fé, já que está inserida na
história viva.250

Para a pragmática da linguagem teológica, seria útil reservar o conceito


“hermenêutica” para seu uso técnico e estrito, ou seja, para o momento
interpretativo dos grandes textos da teologia, principalmente os textos
bíblicos. Para a interpretação mais larga da grande Tradição da fé e, mais
ainda, da realidade concreta em que a fé revelada é percebida e vivida,
conviria falar simplesmente em teologia ou um discurso, teoria, analítica se
ou razão teológica, embora não deva escapar ninguém que a natureza
epistemológica da racionalidade teológica é de típico nitidamente
hermenêutico.251

Partindo dessa argumentação sobre a questão hermenêutica produzida por


Clodovis Boff, Orígenes na sua investigação teológica sobre a apokatástasis faz uso
de uma hermenêutica teológica em sentido estrido, já que sua base de interpretação
parte direto do texto bíblico. Neste sentido, o discurso teológico de André Torres de
Queiruga entra na linha da segunda proposta de Clodovis Boff, já que parte da
Tradição viva da Igreja, pois o autor sempre é enfático ao afirmar que sua
preocupação teológica é adequar o pensamento da fé no contexto cultural vigente,
evitando, desta forma, a fossilização ou a imobilidade da racionalidade da fé.

Os conceitos teológicos são constructos que, sem deixar de serem


verdadeiros, nunca o são de maneira adequada, e por isso precisam estar
em contínua revisão, sobretudo quando as mudanças culturais trazem à tona
a sua inadequação dentro de um novo contexto.252

Foi apurado anteriormente a posição crítica sobre a apokatástasis de Andrés


Torres de Queiruga, e sua objeção estava ligada ao verticalismo excessivo sobre esta
doutrina. Ficou demonstrado que sua maior preocupação está na questão
antropológica, já que as construções teológicas sobre apokatástasis por ele
analisadas partem de cima para baixo, a autonomia da criatura frente ao processo de
salvação contido na apokatástasis ficou praticamente anulada.

250 BOFF, 2015, p. 87-88.


251 Ibid., p. 88-89.
252 QUEIRUGA, 2010a, p. 282.

103
Desse modo, sabendo que o eixo fundamental da teologia de Andrés Torres
de Queiruga é uma teologia encarnada, ou seja, parte da realidade histórica humana,
pode-se denominar uma teologia a partir debaixo, porém com base na chave
hermenêutica: Deus, como ato puro de amor e a autonomia da criatura. Portanto, a
releitura da apokatástasis no seu discurso teológico partirá deste propósito, que de
forma similar a Orígenes, que em contraposição a corrente cristã gnosticista fez um
esforço racional a partir de uma nova hermenêutica de ordem cosmológica,
soteriológica e antropológica afim manter-se sem desvios da tradição apostólica e dar
uma solução que não ferisse a ação providente de Deus e o livre-arbítrio dos seres
racionais.

Com efeito, a releitura da apokatástasis em André Torres de Queiruga deverá


levar em conta o seu grande desafio de responder a sociedade pós-moderna marcada
pela cientificidade que conduz há uma crítica mais intensiva a religiosidade e a
transcendência, somado a isso uma desconstrução da consciência social originada
pelo individualismo, e que também está presente uma pluralidade religiosa que deve
ser respeitada e valorizada com base na aproximação por meio do diálogo religioso,
ou seja, no propósito do teólogo galego de responder a sociedade atual com uma
linguagem teológica adequada, a releitura da apokatástasis perpassará os
fundamentos de seus conceitos teológicos em uma hermenêutica no sentido largo, e
amoldar a doutrina da apokatástasis no contexto contemporâneo.

3.4. Atributos contemporâneos da apokatástasis na teologia de Queiruga

No contexto atual em que a sociedade vive uma crise de identidade, desejo


de superação aliado ao anseio pela felicidade, as questões existenciais ainda
persistem, até porque implicam diretamente na vida concreta humana e no seu destino
último, por isso a busca de entendimento sobre a Deus (transcendência), o universo
e a vida na sua integralidade (isso envolve nascimento e morte), dimensões da vida
humana que historicamente nunca ficaram desvinculadas do desejo do conhecimento
humano.

104
Vale destacar que Gesché, no seu discurso teológico referente a questão
sobre Deus destaca, um marco importante na tradição judaico-cristã como
revolucionário perante as outras religiões.

É um dos traços mais impressionantes de nossa tradição judaico-cristã. A


Criação, a Revelação, a Encarnação, a Redenção e a Parusia, esses karoi
(eventos) maiores de nosso Deus, manifestam uma relação entre Deus e o
homem na qual Deus toma iniciativa do encontro. [...] É nesse contexto que
devemos entender o que há de mais revolucionário na famosa afirmação
joanina. “Deus é amor”. [...] É uma definição vigorosa e “metafisica” de Deus
[...] não por meio de uma dedução lógica (que pudesse levar até ela) mas por
experiência.253

Andrés Torres de Queiruga comunga do mesmo discurso teológico de Gesché


e afirma que se Deus é amor, inevitavelmente intuiremos que é o amor a chave para
encontrar o sentido da vida. Inclusive o teólogo galego também cita João para
demonstrar que o apostolo teve acesso ao amor por meio de uma experiencia de
convivência íntima com Cristo. “Nele está iniciado tudo: o amor, origem da realidade,
motivo da salvação, meio de comunhão, fonte da atividade, critério da vida...”.254

A chave hermenêutica para a releitura da apokatástasis em Andrés Torres de


Queiruga será o amor de Deus, sem prescindir da autonomia humana. Este amor
potencializa o ser humano, o plenifica, benefício que está presente plenamente na
doutrina da apokatástasis.

“Mas, uma vez, que Deus toma a iniciativa de se identificar absolutamente


com o ser humano, para elevá-lo e potencializá-lo “fraternalmente” – a partir
de dentro – a responsabilidade se faz, afinal, corresponsabilidade, e a
angústia da liberdade é assumida na gozosa confiança na redenção”.255

Nos eixos teológicos fundamentais em que Andrés Torres de Queiruga de


forma lógica e adequada a realidade atual desempenha sua tarefa teológica, tal qual
a Criação, a Revelação e a Salvação. Será extremamente conveniente decodificar o
processo apokatástico que abrange em seu panorama a bondade, ou melhor o Amor
de Deus, que por amor quer salvar a sua criação, mas sempre respeitando sua
autonomia.

253 GESCHÉ, Adolphe. O cosmos. Trad. Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 92-
93.
254 QUEIRUGA, 1999b, p. 27-28.
255 Ibid., p. 53C.

105
3.4.1. Deus cria por amor

Andrés Torres de Queiruga, na sua proposta teológica sobre a Criação


mantém o fundamento de seu discurso teológico, “Deus é amor”, esta linguagem
teológica de enfatizar um “Deus que ama está diretamente implicado na Criação, num
Deus que nos cria – que está em criando e sustentando – por amor. Porque então
compreendemos que o esquema muda totalmente. Deus não está separado de
nós”,256 e vale enriquecer esse raciocínio do teólogo galego com a afirmação de
Gesché, que a “teologia da criação é um só e único discurso sobre Deus e sobre o
homem”,257 já que a autonomia criatural é outro eixo fundante do pensamento
teológico de Andrés Torres de Queiruga.

A ênfase em um Deus que cria por amor põe em evidência a salvação,


portanto, Criação e salvação não estão desconexas. Esta linguagem teológica adquiri
grande importância porque não fica submetido apenas à lógica cristã de criação-
salvação, mas alcança outras religiões.

“O mesmo cabe afirmar do diálogo das religiões, enquanto todas elas são
também episódios na ação criadora-salvadora de Deus sobre toda a
humanidade. Eu mesmo tentei acolher esta perspectiva em uma obra de certa
amplitude: Recuperar a criação. Obra que, de modo mais significativo e sem
sequer pretendê-lo, mas sensivelmente conduzida pela lógica interna da nova
visão, se inscreve com naturalidade, aprofundando-a, na anterior Recuperar
a Salvação.258

O percurso para essa concepção abrangente da criação-salvação desdobra-


se a partir do anseio de responder as deformações que afetaram a vivência religiosa
e a teologia por meio das considerações filosóficas, tal qual na antiguidade o discurso
dualista matéria e transcendência e a questão levantada na modernidade sobre a
compreensão metafísica criatio ex nihilo. Esta fatalidade histórica acabou deixando às
margens a experiencia humana sobre o valor religioso.259

Superar essa realidade supõe deixar de insistir na dicotomia sagrado/profano,


ideia presente em correntes filosóficas. Andrés Torres de Queiruga não visibiliza essa

256 QUEIRUGA, 2010a, p. 98.


257 GESCHÉ, 2004, p. 31.
258 QUEIRUGA, Andrés Torres. A esperança apesar do mal: ressureição como horizonte. Trad. Pedro

Lima Vasconcellos. São Paulo: Paulina, 2007, p. 92.


259 Ibid., p. 93.

106
dicotomia somente na linguagem filosófica mas que muitas vezes também alcança a
vivencia religiosa, mas para não cair apenas na abstração o autor procura inserir essa
realidade na vivência afetiva e cotidiana.

Mesmo na filosofia a Criação é posta em seu antagonismo com o Criador de


modo que a criatura saída do nada só pode ser a partir da escuta, ou seja, de uma
ordem. Nada é a partir de si mesmo, a criatura só é a partir do seu criador, porém
Andrés Torres de Queiruga não descarta essa diferença criador e criatura, pelo
contrário é o primeiro aspecto ontológico dessa relação. Segundo ele em primeiro
lugar o que não pode haver é uma contraposição radical entre Deus e a criatura, ou
seja, o que um é o outro não é, até mesmo na vivência religiosa expressada muitas
vezes na própria experiencia bíblica apresenta essa dicotomia e, por conseguinte,
não pode haver também o inverso, de modo que há uma unidade e uma identificação
tão profunda que promova uma identidade total entre criador e criatura: “o panteísmo”.

Nem uma identidade total entre a relação Deus-criatura, tampouco a


competição entre ela, tal como uma no local onde uma está outra não pode estar, a
solução é compreender que quanto mais o Criador se faz presença na criatura, muito
mais essa se realiza por essa força criadora. “Significa estar sendo trazida a
existência”, essa noção de participação da criatura no ser Divino não é demonstrado
apenas pela vivência religiosa, mas, outras correntes filosóficas também expressaram
a mesma ideia. Esta dialética na relação Deus-criatura é sempre dinâmica, não está
estagnada lá no princípio da Criação, já que é o próprio Deus que continuamente abre
espaço e sustenta a criatura para a sua existência.260

Outro dilema que surge dessa relação Deus-criatura é a imutabilidade divina,


de fato Deus pode ser afetado pela criação? Gesché propõe que o eixo fundamental
para essa compreensão deve ser levado em conta o regime de gratuidade261 e que
Deus ele é o outro, ou seja, tem seu lugar, segundo Gesché:

“Deus é Deus” (ou ele não é). Portanto, ele não pode ter necessidade de nada
para ser, para “se tornar”. Ele é completo. A esse respeito, digamos bem
claramente e ao contrário de todos os dicionários que identificam Deus como
Criador, que o termo “criador” não define e não é seu nome próprio (se há um
nome conhecido de Deu, é o de Pai). Deus “é” criador no sentido gramatical
e lógico do verbo ser, porque efetivamente criou; mas ele não é criador no

260 QUEIRUGA, 1999a, p. 39-47.


261 GESCHÉ, 2004, p. 35.

107
sentido ontológico do verbo “ser” e no qual o termo criador receberia sua
definição, sua natureza, seu ser. A criação é um ato (livre) de Deus, não o
que o constitui, e o fato de ser criador o qualifica, porém não o expressa de
nenhum modo”.262

Deus sendo Deus mesmo e sua ação ser plena gratuidade em relação a sua
criação, André Torres de Queiruga não nega que a tal onipotência é abstrata, afinal
não há uma visibilidade clara desse agir amoroso de Deus. Na maioria das vezes nem
damos conta de agir do seu amor gratuito, mas este véu que encobre esse agir divino
está ligado ao funcionamento correto e concreto da realidade.

“Não damos conta de que por sua parte limites existem, evidentemente: em
si mesma e em abstrato, sua onipotência pode tudo; mas em seu
funcionamento concreto, a onipotência diz em relação ao outro, e o outro
necessariamente tem limites: o círculo não pode, sem desaparecer, fazer-se
quadrado , e a liberdade finita não pode, sem anular-se, ser forçada a fazer
sempre o bem. Deus, pelo que lhe diz respeito, “pode” tudo e quer o melhor
para todos nós; mas nem tudo “é possível” em si mesmo. O amor de Deus
consiste em “estar sempre trabalhando” (cf. Jo 5,17), contra toda inércia e
resistência por nós e por nossa salvação”.263

Andrés Torres de Queiruga preocupado com os questionamentos da


modernidade frente a realidade religiosa que muitas vezes é impregnada por
ingredientes mitológicos, sabe que deve haver no meio religioso por meio da reflexão
teológica uma mudança de paradigma afim de romper com velhos conceitos e
esquemas que diante dos questionamentos da modernidade acabam sendo
incoerentes.264

Sua proposta é quebrar o esquema antigo que descreve, no âmbito da


salvação, a sequência “paraíso-queda-castigo-redenção-tempo da Igreja – Gloria”.
Segundo ele, este esquema perverte a imagem de Deus e obscurece a sua clareza
luminosa e salvadora.265

A chave hermenêutica para se desvencilhar do antigo esquema é partir da


ideia da criação por amor, ou seja, a criatura humana desde o primeiro momento de
sua existência é envolvida pela graça de Deus, que a sustenta e a promove.
Considerando o processo natural da existência de nascer, crescer e realizar-se, este
ponto de vista abandona o antigo esquema, para que de modo mais objetivo e

262 Ibid., p. 33.


263 QUEIRUGA, 1999a, p. 117.
264 QUEIRUGA, 2007, p. 73.
265 Ibid., p. 74-75.

108
concreto possa evidenciar a gratuidade da criação e a autonomia da criatura: “criação-
crescimento histórico culminação em Cristo – tempo da Igreja-Gloria”.266

O mundo dentro do primeiro esquema queda/redenção produz uma visão


negativa da criação, segundo Andrés Torres de Queiruga, inconscientemente
“criação” se converte em “criação caída”, e tende a ser identificada como o “mundo”
mau do qual nos liberta a redenção267.

Reconfigurar essa ideia de uma criação que possui dois momentos históricos
diferentes, um antes da queda e outro pós-queda, passa também pela noção de
mundo criado conforme a perspectiva de Gesché, que entende o cosmo como lugar
da salvação, é de fato o lugar da humanidade, o habitat, a casa dele, é neste lugar
que que a humanidade encontra o sentido de alteridade, é no cosmo o lugar da
preocupação ética, mesmo que forças alienantes (cultura, economia, política e
questões morais) possam impedi-lo de evoluir, mas é o lugar em que a humanidade
possa “praticar o direito, proclamar a justiça, e tratar o outro como fim e não como
meio”.268

Essa exigência ética oriunda do habitat, ou seja, do lugar onde é a casa


comum de todos, que tem por trás as relações humanas, segundo Andrés Torres de
Queiruga, não tira do Criador a sua intenção originária de que o processo de
realização humana se dá no processo histórico, e o fato de quebrar o paradigma
queda/redenção não exclui a verdade sobre o pecado original, que é visto como
causador de uma ruptura histórica, mas apresenta de modo concreto uma
humanidade que foi criada por amor.

Sem prescindir da liberdade e finitude, limitação da humanidade, estes são


atributos que possibilitam no ser humano o mal, levando-o a falta de alteridade e a
quebra da ética, [..] a liberdade infinita, saída inocente das mãos do Criador, é
impotente de passar ao ato histórico com pureza total e sem contaminar nunca a sua
inocência”.269

266 Ibid., p. 77-78.


267 Ibid., p. 86.
268 GESCHÉ, 2004, p. 36-38.
269 QUEIRUGA, 2007, p. 89.

109
Esta exigência ética que só pode ser exercida no habitat da criatura, deve
situar-se na dialética Deus-criatura, na qual ética irrompe como resposta da criatura a
Deus, e partindo desta dinâmica André Torres de Queiruga, de expor a ação de Deus
por meio da criatura e a criatura que na sua liberdade tem seu agir em Deus porque é
sustentada por ele.

Esse movimento entre ação divina e ação criatural André Torres de Queiruga
evidência a ação de Deus, mas desvinculando do imaginário de um agir divino
intervencionista, em que Deus do seu lugar resolve em certos momentos da história
coletiva ou individual agir, de modo que se for considerado um agir divino a partir
desse horizonte a autonomia humana praticamente fica anulada. Andrés Torres de
Queiruga dentro do seu conceito teológico, em que também envolve a liberdade
humana, afirma que a ação divina é fazer com que as criaturas o façam, sem romper
com a autonomia delas, ou seja, a ação é sempre dela, é deste agir criatural em Deus
que torna-se visível e real a ação divina, mas convém não fazer uma concorrência
entre Deus e o ser humano cada qual no seu agir, mas perceber que há uma unidade
na ação, ou seja, uma co-realização, o ser humano e Deus agindo cada qual no seu
plano em prol do amor.270

“Deus age na mesma ação da criatura, e essa age sustentada pela ação
divina, a qual é de ordem transcendente e só toma corpo empírico agindo
através daquela, que por sua vez só existe enquanto apoiada na divina:
agimos porque Deus age (ordem transcendente); e Deus age de maneira
eficaz no mundo porque agimos nós (ordem categorial).271

Contudo, vislumbrar-se a co-realização entre Deus e a criatura tomando o


ponto de vista criatural, na qual supõe a sua liberdade que não deixa de estar
condicionada as leis naturais e a finitude criatural. Diferentemente de outras criaturas
que respondem a Deus por necessidade, o ser humano em razão própria de sua
liberdade só pode respondê-lo por meio da obediência, então Deus solicita a liberdade
humana sem forçar, mas porque a sustenta ele a impulsiona internamente a esta
resposta humana livre e espontânea, promovendo o dinamismo evolutivo dentro de
uma realidade de amor à sua realização plena.272

270 QUEIRUGA, 1999a, p. 124-130.


271 Ibid., p. 131.
272 Ibid., p. 131-136.

110
Essa ação de co-realização dinâmica do amor entre Deus-criatura no ponto
de vista religioso e, principalmente, a partir da confissão de fé cristã, não é estranho
ao pensamento de um crente, mas entender essa resposta a partir da liberdade de
um não crente ainda causa estranhamento, por ser difícil enxergar a relação Deus-
criatura. Andrés Torres de Queiruga busca a solução a partir de Deus, que por amor
sustenta desde o princípio e impulsiona todas as criaturas a realização, é muito feliz
em dizer que o ser humano não é só cérebro, é um ser integral e que muitas de suas
ações também são expressões do divino, por isso já são respostas ao seu chamado
fundamental. Portanto o que deve prevalecer é a honestidade autêntica, e que tal
autenticidade dever corresponder tanto no âmbito da fé religiosa quanto no âmbito
não crente.273

3.4.2. A Revelação divina queiruguiana

Fazer um discurso teológico sobre a Revelação no contexto atual é um


trabalho árduo, isso porque, segundo Libanio, a modernidade diante da ineficiência
das organizações governamentais e as situações de injustiça em diversos segmentos
da sociedade que torna a realidade totalmente injusta e a aparente conivência do
cristianismo com esta situação a Revelação perde a credibilidade.274 É diante deste
contexto de limitações e obscuridades da vida concreta que Andrés Torres de
Queiruga busca fundamentar a Revelação Divina, ou seja, a “é preciso “partir de
baixo”: tentar descobrir a experiência de base e ir reconstruindo a partir dela a
compreensão”.275

Revelação e salvação estão implicadas porque trata-se da presença ativa e


salvífica de Deus, porém Schillebeeckx faz uma alerta, que esta realidade da
Revelação não pode estar reduzida apenas na consciência ou na experiência religiosa
cristã, já que a História da Salvação não se reduz apenas à história das religiões, mas

273 Ibid., p. 181-185.


274 LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. 7. ed. São Paulo: Loyola.
2014, p. 24-25.
275 QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Revelação: A Revelação divina na realização humana.

2010b, p.17.

111
o lugar da revelação desse Deus que se Revela é a chamada história profana, é no
mundo, na história da humanidade que Deus quer elevar a humanidade a realização
plena, ou seja, a sua salvação, a história profana é a realidade salvífica que Deus quer
sustentar, agir e elevar sua criatura.276

Schillebeeckx, ao referir-se a história profana, cabe aqui uma compreensão


honesta da participação no plano salvífico divino de toda a humanidade seja ela crente
ou não crente e, portanto, Andrés Torres de Queiruga ao tratar do tema Revelação
divina a sua pretensão não é fazer uma apologia a percepção cristã da Revelação,
que foi alimentada no decorrer da história com uma pregação pautada numa teologia
impregnada de obrigações, tornando a religião cristã pesada: “fatalmente, uma
espécie de círculo vicioso: selecionamos na revelação, sem que percebamos, aqueles
dados ou expressões que confirmam a atual situação, e nos cegamos[...]”.277

Portanto, a reflexão da Revelação queiruguiana no meio cristão não é algo


que está fora de nós, muito pelo contrário, ele afirma que é a partir de dentro, partindo
da fé e da experiência na comunidade, que para ele é entendida como uma força
persuasiva da própria revelação, essa hermenêutica da Revelação já elimina o caráter
apologético e pode aproximar-se da realidade do não crente por meio de suas
indagações existenciais.

Olhando para dentro de si mesmo e pela experiência da realidade pode


chegar ao diálogo, pois ambos os lados – crente e não crentes – devem ter como
ponto de partida a própria realidade cultural e concreta imersa na presença do mal,
para que possam compreender “esse mistério magnifico que interpretamos como
revelação de Deus: isso que nos atrevemos a chamar sua palavra”.278

A Revelação não pode ser ponto de discórdia entre crentes e não crentes, ao
invés de debates agressivos o ideal é o diálogo, este esforço condiz com a proposta
da revelação, que é tornar o ser humanos mais realizado, Schillebeeckx comunga
deste conceito de Revelação:

“Homens crentes contemplam na história da libertação humana o rosto de


Deus. Incrédulos não o fazem, com efeito, mas, no nível da libertação

276 SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana: Revelação de Deus. Trad. João Rezende Costa. São
Paulo: Paulus, 1994, p. 29.
277 QUEIRUGA, 1999b, p. 31.
278 QUEIRUGA, 2010b. p. 20.

112
humana (no nível do material da revelação de Deus), podem falar, quer
crentes quer não-crentes, uma linguagem comum sobre este processo. É
possível haver acordo aí, assim como também cooperação. Decisivo não é,
portanto, o expresso reconhecimento de Deus, mas a pergunta: por que lado
eu decido na luta entre o bem e o mal, entre opressores e oprimidos?279

Por meio de uma linguagem comum entre crentes e não crentes na luta contra
o mal, Andrés Torres de Queiruga entende que mesmo o mundo contendo a presença
do mal, ainda vale a pena, apesar do mal, Deus se revela como amor ao dar a
existência a este mundo. Esta iniciativa de Deus a partir do amor não acontece fora
do mundo, mas a partir dele, ou seja, da própria história, Deus quer a sua definitiva e
plena realização, que consiste na vitória do bem sobre o mal.280

3.4.2.1. A Revelação a partir da maiêutica281 histórica

Na obra Repensar a Revelação de Andrés Torres de Queiruga, segundo o


autor a maiêutica histórica é o centro do seu discurso sobre a Revelação, além de
querer expor uma síntese entre transcendência e imanência, há também dois motivos
principais que o influenciaram a tal argumentação: o diálogo com as outras religiões
assim como os não crentes. Portanto, a partir dessas motivações a maiêutica abarca
com tal força a gratuidade da revelação sem prescindir de um aparato crítico282 e vale
expor as próprias palavras do autor ao remeter a Revelação bíblica como maiêutica:

“Definir a revelação bíblica como maiêutica quer indicar que, em última


instância, também ele é “auto informativa”. Porque a palavra bíblica informa
e ilumina, porém não remete a si mesma nem a quem a pronúncia, mas faz
as vezes de “parteira” para que o ouvinte perceba por si mesmo a realidade
que ela põe a descoberto.283

É fato a maiêutica ser um tema central na revelação divina em Andrés Torres


de Queiruga, de tal forma que ele dedicou um capítulo inteiro sobre o tema, creio que
uma síntese feita por Libanio sobre a maiêutica queiruguiana é efetiva e

279 SCHILLEBEECKX, 1994, p. 24.


280 QUEIRUGA, 2011, p. 190.
281 “A significação básica da “maiêutica” está expressa no Teeteto (148a-151e) com o estilo inigualável

do diálogo socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a
maiêutica (maieutiké techne). Mediante sua palavra tira para luz – “ajuda a dar à luz” – o que estava
dentro do interlecutor. Como no caso famoso de Menon (80d-86d), em que o escravo, graças às
perguntas de Sócrates, consegue “descobrir a geometria”, a maiêutica faz o interlocutor descobrir,
engendrar ou dar à luz a verdade que leva em si mesmo. QUEIRUGA, 2010b, p. 119.
282 Ibid., p. 105-106.
283 Ibid., p. 106.

113
esclarecedora, já que expõe os pontos principais deste conceito da revelação em
Andrés Torres de Queiruga.

É exibido primeiramente o profeta como o mediador inspirado pelo fato de já


que foi iluminado pela revelação e assumiu inteiramente e ao transmitir os receptores
reconhecem como ato revelado por Deus. Esse processo é amplo, significa que outras
religiões passam pelo mesmo processo de autoconsciência da presença do divino na
sua existência factual, ou seja, no seu meio de convivência social.

A escritura é o lugar da constatação desta revelação divina, indicando que


Israel não se isentou deste mesmo processo, e interpretou nos seus acontecimentos
históricos a iniciativa e a gratuidade da presença iluminadora de Iahweh e, por isso,
aceitou esse chamado possibilitando-os ir além de suas possibilidades. Mesmo no
Novo Testamento, não há a ruptura dessa presença reveladora de Iahweh, pois Jesus
de Nazaré, o Verbo encarnado, dá continuidade de maneira mais íntima e profunda a
ação salvadora de Iahweh.

Nisto vemos o caráter dinâmico que a concepção da Palavra de Deus como


sendo auto afirmativa mesmo trazendo à tona informações de mistérios externos e
remotos, traz a luz uma nova realidade muito mais íntima e profunda. Essa iniciativa
gratuita e iluminadora de Deus nos acontecimentos e apreendida pela inteligência, o
agente primário, ou seja, o mediador inspirado tem sua vida iluminada e apoiado na
sua interpretação da revelação e a transmite, os outros que recebem a experiência da
revelação e captam pela própria história que os clarifica, mas não há unanimidade
nessa captação da revelação.284

“O ponto de partida da intelecção da revelação não é a busca de uma ponte


entre Deus e o homem, mas pelo contrário, é a união radicalíssima, anterior
a tudo e mais profunda que tudo, da criatura com Deus, que está a criá-la,
sustenta-la. O Deus da revelação não tem de entrar na vida do homem, já
que está aí presente, sustentando o homem no ser, na liberdade, na
história”.285

Este fluxo entre o divino e o humano desembaraçado na própria história,


constitui a história da salvação. “Mas de um Deus e homem que têm uma unidade
radical anterior a qualquer evento histórico”,286 essa concepção maiêutica supera todo

284 LIBANIO, 2014, p. 303-304.


285 Ibid., p. 306.
286 Ibid., p. 307.

114
fixismo dogmático que traz à tona a ideia de verdades sempre imutáveis, mas também
não pode haver o descuido de deixar cair num relativismo que abdica de qualquer
verdade ou valor.287

3.4.2.2. A ultimidade da Revelação

Do ponto de vista cristão a ultimidade da revelação como culminação e da


realização humana tem como ponto fundamental o evento da revelação em Jesus
Cristo. Sem abster-se desta revelação divina de experiência cristã, a teologia
queiruguiana sobre a revelação a princípio tem como cerne o fato concreto, a
realidade histórica, isso porque a fundamentação de sua reflexão parte da realidade
antropológica e também de sua preocupação em demonstrar a inteligibilidade diante
dos questionamentos críticos e de caráter empírico da modernidade que, portanto,
necessariamente é preciso demonstrar o caráter real e factual da revelação na história
humana, mas o autor galego sabe da importância de outra categoria da revelação que
é a dimensão sobrenatural.

Andrés Torres de Queiruga reconhece a dificuldade de lidar com o tema


devido estudos anteriores, sobretudo na neoescolástica, que absorveu uma ideia
dualista sobre natureza e o sobrenatural (a graça). Sendo a primeira já acabada e
concluída para depois ser elevada à condição sobrenatural, o que está por trás deste
dilema desta a questão na gratuidade adequando-a no intrinsequíssimo da graça.

A saída para esta questão foi superar a visão natureza-espiritual de Henri de


Lubac em que o homem é dotado de um desejo natural da visão de Deus, que para
André Torres de Queiruga é pensada a partir de Deus.

A sua proposta é entender a revelação a partir de baixo, aproximando-o da


categoria rahneriana de “existencial sobrenatural”, em que a primeira expressão
“existencial” está ligada ao intrinsecismo da graça e, por conseguinte, o termo
“sobrenatural” ligado a gratuidade, que para Andrés Torres de Queiruga ainda não é

287 Ibid., p. 307.

115
uma solução satisfatória, devido ser considerada uma terceira categoria entre graça e
natureza,288

Já que não se pode pensar graça sem natureza, e natureza sem graça o
teólogo galego para chegar numa concepção ativa de desenvolvimento entre natureza
e graça (sobrenatural) se apoiará nas ideias de von Balthasar e Juan Alfaro, afirmando
que há uma “ordenação dinâmica” para a compreensão da revelação na dimensão
real e histórica e a dimensão transcendente e real.

Não se trata de uma sobreposição, senão de uma ordenação dinâmica, que


pode ajudar compreender o lugar autêntico da revelação e transcendência na
vida real. Juan Alfaro assinala como o espírito finito está dotado de um
dinamismo ilimitado, que tende a desenvolver-se em etapas concretas; mas
que só existe para ele uma “única plenitude definitiva possível: a comunhão
com Deus. E von Balthasar cimenta tudo isso assinalando que o sentido
teológico de “natureza” tem de ser entendido “como um sentido provisório em
relação ao único e definitivo sentido final que existe de fato, como num
momento que entra na síntese querida por Deus, síntese que não seria
possível sem uma relativa autonomia do mesmo, o qual, não obstante,
alcança a última justificação de sua existência nesta ordenação e
sobrelevação (em relação a si mesmo).289

A auto comunicação na graça, que é dom de Deus, sempre irá respeitar a


autonomia do sujeito que pode aceitar ou rejeitar esse dom. A sua grandeza estará
determinada mesmo nas situações históricas humanas, sejam elas culturais e demais
esferas, pela capacidade de pela liberdade compreender que todas as realidades
históricas estão apontadas para uma culminância, uma definição de realização última.
O sujeito que, pela luz da própria liberdade, assumir esta consciência da ação
reveladora de Deus, conseguirá definir que a última e autêntica realização como
pessoa de forma concreta real está na realização humana que se realiza na revelação.
Andrés Torres de Queiruga afirma que esta realização autêntica da criatura na
ultimidade apesar da sua condição de finitude pela sua própria liberdade, a decisão
de acolher a revelação divina como chamado a corrigir o mal em si mesmo pode
elevar, e potencializar na sua realização, esta prática torna o sujeito capaz de acolher
a ultimidade revelação divina.290

Este chamado a ultimidade da revelação, para Andrés Torres de Queiruga,


ultrapassa o fenômeno religioso, pois está implicado a consciência e liberdade do

288 QUEIRUGA, 2010b. p. 234-237.


289 Ibid., p. 238.
290 Ibid., p. 238-241.

116
sujeito. Por isso, não cabe somente analisar a culminância da realização humana na
revelação levando em consideração somente a denominação religiosa, mas a pessoa
em si. Desta maneira, perante também a questão da revelação, a teologia
queiruguiana utiliza o termo autenticidade como ponto comum entre pessoa humana
religiosa e pessoa humana não religiosa. Esta questão da autenticidade aponta para
a realização honesta da vida humana na luta contra o mal para que possa alcançar
nela a plenitude da revelação divina.

“Teríamos então o “homem autêntico não religioso”, onde indica a realização


honesta e não banalizada nem fechada, da emergência humana; e não
religioso, por sua vez, mostra que essa autenticidade não se realiza com
referência a Deus. Caberia assim contrapor a ele (como legítima
interpretação do crente pelo não crente) o “homem autêntico religioso”.
Ambas denominações podem expressar ou qualificações que sejam
necessárias [...] subsumindo o gênero na espécie, poder-se-ia simplificar – e
seria talvez o mais correto – desse modo: “homem autêntico agnóstico,
cético, ateu...”” homem autêntico religioso budista, judeu...”.291

Portanto, ao referir-se sobre a revelação promovendo uma ruptura com o


caráter transcendente que está implícito seria um equívoco, já que a partir da categoria
histórica desta revelação, elementos desse mundo estão apontados para a
transcendência, e o sujeito que é livre, autônomo pode chegar a ultimidade da
revelação plenamente transformado. Sem a presença do mal, dentro deste ponto de
vista teológico, podemos ver a factual sobre naturalidade da revelação.

3.4.3. A soteriologia queiruguiana

A questão sobre o conceito de salvação é um tema central e de suma


importância na teologia cristã e, tomando como base, o longo período histórico do
cristianismo, segundo Haight,292 jamais houve na Igreja uma formulação conciliar
definitiva sobre a salvação. Ou seja, a Igreja não outorgou nenhuma concepção
universal a respeito, conforme o mesmo autor. Isso não causou danos ou trouxe
malefícios, contrariamente, possibilitou o desenvolvimento de um pluralismo sobre a
conceitualização de salvação. Este pressuposto é favorável à teologia de Andrés

291 Ibid., p. 246.


292 HAIGHT, 2005, p. 387.

117
Torres de Queiruga, que absorve uma hermenêutica teológica do repensar, recuperar
os conceitos fundamentais deste dado da fé.

Por isso, a reflexão queiruguiana sobre a salvação procura ter como elemento
basilar “Deus é amor”, que o próprio autor vê nesta chave hermenêutica uma
capacidade de sozinha manter a esperança no mundo.293

Porém, no realismo atual, em que o mundo está submergido numa cultura


polarizada, que de um lado temos uma sociedade que emerge de um mundo rumo a
progressão do mal, sendo cada vez mais individualista, na busca imediata de suprir
suas necessidades, de tal forma que sobressaem a ganância e o poder como forma
de vida plena e realizada, além de boa parte de um cristianismo com perfil de
neocristandade e, do outro lado – mais fragilizado –, pobres, idosos, refugiados,
negros, índios, homossexuais, etc., que impotentes diante da realidade concreta, é
mais fácil ver Deus como um rival do que um “Deus Amor”.

Pode-se a partir dessa realidade do mundo atual seguir uma reconfiguração


da salvação em Andrés Torres de Queiruga e assumir a sua proposta dialética do
indicativo-imperativo, que compreende da seguinte forma:

“Deus, porque quer, desde a absoluta iniciativa de seu amor, salva o ser
humano, que se encontra assim com o fato – indicativo – de ser “alguém
salvo”. Mas Deus, porque quer realmente salvar, respeitando a irrenunciável
liberdade do que foi salvo, não força o ser humano, mas antes o chama –
imperativo – para essa salvação que já é sua, embora somente possa
florescer nas responsabilidades de sua resposta.294

O teólogo galego quer salvaguardar nesta dialética indicativo-imperativo a


autonomia da criatura e, naquilo que se estabelece como imperativo, nada mais é que
o cristão ser chamado a ser o que é, porém sem lhe tirar a liberdade. Mas é a iniciativa
divina na sua ação amorosa a partir de dentro elevando-a, potencializando-a
identificando-a com ele, demonstrando, portanto, nessa comunhão a capacidade do
sujeito a ser ele mesmo, identificando nessa dialética a sua própria norma, pode-se
dizer a superação da heteronomia pela autonomia.295

293 QUEIRUGA, 1999b, p. 27.


294 Ibid., p. 48.
295 Ibid., p. 52-53.

118
A partir desta ótica, Andrés Torres de Queiruga que supera a noção imatura
de fé muitas vezes medida somente do ponto de vista doutrinal, ou como apenas um
encargo de obediência uma fé vinda de fora, porém ele qualifica esta fé como:

“a máxima realização do conhecimento, precisamente no nível mais denso e


profundo da realidade [...] isso se sucede justamente porque nela se nos abre
uma profundidade pessoal infinita, estendida para nós como intimidade
salvadora como comunhão, sem limite e sem fronteira”.296

A coerência deste ponto de vista da fé se firma pelo fato de ser uma


experiência realizada na história, na vida concreta e real, em que o mal ainda se faz
presente. Portanto, não é negada a realidade do mal no mundo, é bem verdade que
a questão do mal coloca em xeque a fé em Deus.

O problema do mal é uma questão que André Torres de Queiruga cambia


entre a ponerologia e a pisteodicéia.297 A primeira que em sua essência é interrogação
universal – dilema de Epicuro – sobre o mal, visando dar uma solução religiosa,
advém de um período em que a fé trazia forte legitimidade para as soluções
existenciais – uma solução proposta era a de um mundo sem mal – porém, a própria
raiz da fé religiosa de um Deus onipotente e bom, mas que não evitava ou porque não
podia acabar com a presença do mal vai na contramão da fé nesse Deus.

O período da modernidade pode iluminar essa questão, porque além de


superar os fundamentalismos religiosos, entendeu a lógica do mundo e exigiu uma
nova postura, reconhecendo a autonomia deste mundo negando a intervenção divina
em suas leis.

Andrés Torres de Queiruga na sua interpretação sobre o mal, crê que a


pisteodicéia é um argumento mais favorável às questões da racionalidade lógica, pois,
mesmo partindo de um ponto de vista religioso, não assume a possibilidade de um

296Ibid., p. 61.
297 “A ponerologia (do grego ponerós, “mal”) deve construir um tratado do mal em si e por si mesmo,
com procedência estrutural a toda opção religiosa ou não religiosa. Numa cultura autônoma, esse é o
procedimento normal diante de todo o problema humano fundamental, como a liberdade, a consciência
ou a culpa. A pisteodicéia (do grego pistis,fé, aqui no sentido amplo, filosófico e relativo à cosmovisão,
de configuração da própria existência). Não indica um tratado concreto, mas antes uma mediação
necessária, na medida em que esclarece a necessidade comum de uma mediação metódica para
“justificar” a resposta da “cosmovisão” que, de modo explícito e meditado, todos nós adotamos perante
a realidade do mal”. QUEIRUGA, 2011, p. 33.

119
mundo sem mal e entende-o como autônomo. Isso porque o questionamento parte do
ponto de vista filosófico e religioso. Dessa forma, a compreensão de um mundo sem
mal é o mesmo que pensar em um círculo-quadrado, isso porque é inerente a própria
existência do mundo, a finitude. Está aí a condição do mal presente nele, e a coerência
da pisteodicéia, agora cristã, apoia-se na profissão de fé em um Deus que é amor,
mas que o mal presente no mundo não é porque ele quer ou permita, mas porque não
é um problema Seu, mas sim, da condição própria de finitude da criatura. Porém, essa
condição é do ente e não do ser de sua criação. No entanto, esse Deus que cria por
amor é um Deus Antimal, porque não abandona a sua criação, ele sempre está com
ela, sustentando-a contra o mal, e a grande manifestação desse Deus que é amor e
Antimal, para os cristãos é historicamente realizado na cruz e ressurreição de Cristo
dando a todos que nele creem, a esperança da vitória sobre todo mal.298

Ao falar do crucificado e do ressuscitado não há como contrapor-se à teologia


da redenção que foi desenvolvida em vista da própria compreensão do mistério da
paixão. Jesus não poderia fracassar, ele é Deus, e a ressurreição é o reconhecimento
dado pelo Pai, por sua morte cruenta “justo que sofre”. Todo esse panorama foi fonte
para uma teologia posterior em que vê a morte de Jesus como oferenda, expiação,
sacrifício ou preço pelos pecados, a reconciliação entre Deus e o ser humano
acontecia pela morte de Cristo na cruz, esta é a obra de Deus para a salvação.

A quebra de paradigma quanto essa teologia da redenção, em Andrés Torres


de Queiruga, está no olhar global sobre a vida e obra de Jesus, e abandonando o
caráter jurídico do plano de salvação de modo que Cristo na sua situação humana e
de impotência frente ao mal, com sua morte-ressurreição transforma o ser humano,
transformando-o em uma nova criatura, potencializando-o a partir de dentro, da
realidade humana.

O enfoque sobre a redenção muda, há uma transformação ontológica radical


e realista, pois Cristo homem verdadeiro submetido a todas as realidades do pecado
é, ao mesmo, tempo Deus verdadeiro, fazendo eclodir a partir da impotência humana,
própria de sua condição, a possibilidade de uma realização infinita. É nesta
compressão de salvação que devemos nos empenhar em absorver.299 “A salvação:

298 QUEIRUGA, 2007, p.b121-143.


299 QUEIRUGA, 1999b, p. 171-173.

120
romper uma impotência e não negar uma dívida; potencializar em vista da plena
realização e não retirar um castigo”.300

Sob o prisma da morte da cruz em Cristo, Andrés Torres de Queiruga rompe


com os padrões já existentes referente a teologia cruz-ressurreição já que a morte do
Cristo na cruz é o último limite de sua existência terrestre, identificando-o com a morte
de todo ser humano.

É no extremo da vida nesse mundo, diante da injustiça vivida por Cristo na


morte de cruz, está a revelação da presença e ação salvadora e ressuscitadora de
Deus/Abbá confirmando a ressurreição já como vida plena e glorificada. Isso supera
uma visão da vida que muitas vezes tende a ser inerte, mas que na verdade a vida é
um processo de construção e a morte na cruz é nada mais do que a realidade palpável
da culminação desse processo de avanço e progressão, originando uma nova
situação nunca experimentada até então.301

O autor galego avança mais na sua reflexão ao vislumbrar na cruz, a mudança


radical dos seus discípulos, que superam o caráter negativo da cruz e a convertem
em rocha firme da fé. A lógica dessa radical mudança de mentalidade estava em que
Deus estava agindo na história sem quebrar suas leis, mesmo não descendo Jesus
da Cruz, o Abbá continuava com ele sustentando-o com seu amor. Portanto, aquela
noção da salvação intervencionista apocalíptica de Deus da qual estavam esperando
que rompia a história, vê-se compreendida na ação de Deus que respeita a história
transcendendo-a, superando-a e destruindo todo o poder da morte mediante a
ressurreição.302

Na teologia queiruguiana, a vinculação da ressurreição de Jesus com a


ressurreição de cada ser humano, supera a visão da ressurreição de Jesus a partir do
enfoque cronológico adquirida na teologia posterior. Ou seja, como só a partir de
Jesus houvesse começado a ressureição, a primazia da sua ressurreição somente
sob este ponto de vista cronológico, não havia a exclusão de que este acontecimento
salvífico da ressurreição já não fosse vista como ação libertadora de Deus defronte à

300 Ibid., p. 173.


301 QUEIRUGA, 2010a, p. 166.
302 Ibid., p. 168.

121
morte. Porém, a ideia de ressurreição ainda não era plena, já que havia o problema
do destino do cadáver e a questão temporal (os três dias antes da aparição). Com
uma hermenêutica paradigmática o pensamento teológico queiruguiano sobre
ressurreição de Jesus, afirma que a primazia da ressurreição de Jesus serve de
exemplo para a nossa ressurreição, e isso não isenta de que esse processo da
ressurreição já não fosse dessa forma com todos aqueles que morreram antes dele,
devido essa primazia estar sustentada no seu modo específico, na sua excelência,
em uma prioridade de dignidade.

“A primazia de Jesus como “pioneiro da fé” e “primogênito dos mortos era


rebaixada à primazia empírica, interpretada como mera anterioridade no tempo físico.
Isso aparentemente ressaltava a grandeza de Jesus e exaltava a ação de Deus; mas
na realidade, não conseguia nem um nem outro. Por um lado, isolava Jesus, tornando-
o um estanho na história humana. Por outro, diminuía a ação de Deus, que só a partir
dos anos 30 de nossa era começaria a ser um “Deus dos vivos”, ocultando assim que
ele é o Pai que desde sempre ressuscita seus filhos e filhas, e não o Deus que durante
milhares de anos os deixou entregues ao poder da morte”.303

Essa interpretação inovadora da ressurreição reflete sobre outro conceito


teológico que é a parúsia, que traz em si um caráter real de espera da plena realização
escatológica, definitiva e universal. Mas, para Andrés Torres de Queiruga, é
necessário superar o problema acerca do estado intermediário, ou seja, desse
“tempo/não tempo” em que a “alma” estaria esperando pela ressurreição dos “corpos”
no fim do mundo”.304 Andrés Torres de Queiruga não nega este estado de
incompletude nesse modo de ser na ressurreição, mas em vista de suprimir esquemas
místicos impregnados na história e na teologia sobre a ressurreição ligado a parúsia,
o autor galego nesse o sentido da parúsia salienta a ótica da comunhão e
solidariedade de todos os seres humanos, sejam eles os ainda presente nessa
realidade terrestre, sejam aqueles que já estão na eternidade. Essa solidariedade está
estabelecida em Cristo que, segundo Paulo (cf. Gl 3,38), passado e futuro estão
condicionados a si. A morte não rompeu essa realidade, vemos que originando-se na
vida eterna uma comunidade que em termos de salvação não está plenamente

303 Ibid., p. 187.


304 Ibid., p. 195.

122
acabada, porque a sua realização plena acontecerá quando os outros que ainda estão
a caminho, e estiverem livres da presença do mal possam formar a comunhão dos
santos que ainda incompleta, se tornará plena. André Torres de Queiruga fundamenta
este discurso teológico na expressão paulina sobre a “salvação da esperança”, em
que a morte, último inimigo a ser destruído, torna-se caminho onde todos iremos entrar
rumo ao desejo de Deus, cujo fim é que “Deus seja tudo em todos” (1Cor, 15, 28).305

Esta solidariedade em que envolve a comunidade dos já ressuscitados na


glória com os indivíduos que caminham na história terrestres na esperança da
plenitude da glória, do triunfo sobre a morte pela ressurreição, formarão a única e
universal Igreja de Cristo, segundo Andrés Torres de Queiruga, “esse futuro só é
concebível em sua união indissolúvel com passado, que através da memória aviva o
fundamento da esperança e, sobretudo, com o presente”.306

A preocupação do teólogo galego é um discurso teológico sobre a


ressurreição sem desassociar a realidade concreta da história da vida eterna, evitando
cair num reducionismo soteriológico de um simples prêmio pós vida terrena. Essa
preocupação é demonstrada também quando ao referir-se a esperança prática que
esta fundada no realismo histórico, para fugir dos riscos de cair, por exemplo, na ideia
de ressurreição utópica, que foi pregada por muitos pensadores com conceitos
apocalípticos em que imaginavam um paraíso ainda aqui na terra, isso inclui também
os milenarista, ou mergulhar numa onda de desesperança, porque o realismo histórico
mesmo após a ressurreição de Cristo ainda se vê a presença do mal no mundo. Mas,
faz parte de uma vida cristã de fé coerente e realista mostrar que a ressurreição é a
esperança do destino salvífico envolvido plenamente no amor infinito de Deus capaz
de derrotar o mal.307

Dentro desta preocupação queiruguiana de uma concepção de vida eterna


desconectada da vida histórica presente, o objetivo cristão é sermos como Cristo
ressuscitado, e para alcançar esse objetivo a vida histórica e concreta de Jesus de
Nazaré é a grande evidência. Portanto, o seguimento que pressupõe a liberdade e
autonomia do sujeito o fará ressuscitado como ele. Isso significa que o seguimento de

305 Ibid., p. 195-196.


306 QUEIRUGA, 2007, p. 156.
307 Ibid., p. 154-155.

123
Jesus nos dá esperança da nossa realização plena e transcendente que é a
ressurreição:

“Nisso enraíza a força do chamado de Jesus ao seguimento. Sua


ressurreição, ao mostrá-lo como tendo alcançado a plenitude da realização
humana, mostra que o caminho de sua vida é o verdadeiro para qualquer
homem e mulher: não desvia da meta levando à morte, mas dirige pela via
reta rumo à vida em plenitude. Vivendo como ele, ressuscitaremos como ele.
Por isso Jesus é o verdadeiro caminho (cf. Jo 16,6). [...] A confiança amorosa
e reconciliada no Abbá, Pai/Mãe, como atitude religiosa fundamental; o amor
e o serviço aos irmãos, como práxis de vida; a esperança no Reino, como
salvação definitiva: esse é o estilo da vida verdadeira, que não será
aniquilada pela morte, mas realiazar-se-á plenamente como vida
ressuscitada”.308

A solidariedade humana no processo salvífico que num plano universal


envolve os que ainda peregrinam por esse mundo cheio das belezas de Deus, porém
ainda com a presença do mal devido sua finitude, com aqueles que já gozam da
plenitude da ressurreição, na qual Andrés Torres de Queiruga em seu discurso sobre
o tema não deixa de lado a realidade mistérica da ressurreição, e isso envolve não
somente a salvação da pessoa humana mas inclui no “mistério da ressureição em
seu alcance integral como o resgate definitivo de toda a realidade”.309 Ou seja, isso
demonstra a preocupação queiruguiana do cosmo no processo de ressurreição, já que
o fim da história humana não é o “nada” e sim Deus. Portanto, da mesma forma o
cosmo no seu final também encontrará Deus ao invés do nada, visto que a história
humana está inserida no cosmo, seria um equívoco negar uma íntima solidariedade
da vida humana com o mundo.

Andrés Torres de Queiruga sabe que a revelação não dá detalhes de como


se dará esse processo. Ao abordar o processo salvífico humano a partir do mundo e
não de fora dele, ou seja, a sua potencialização máxima, essa interdependência entre
o indivíduo e o cosmo na realidade salvífica tem como pressuposto o evolucionismo
cósmico e biológico que no passado soou como uma humilhação para o ser humano.
Nos moldes da cosmovisão pós-moderna serve de confirmação da participação do
cosmo no processo salvífico divino, pois, o pensamento evolucionista tem como
centralidade a realidade humana, que num processo de crescimento e evolução tende
a chegar ao seu cume. “Por isso afirmar que a salvação do cosmo se realiza na

308 QUEIRUGA, 2010a, p. 227-228.


309 Ibid., p. 240.

124
salvação humana não constitui uma metáfora superficial nem uma depreciação dele,
mas a sua mais profunda e autêntica realização”.310

Neste panorama de esperança na ressurreição como processo de superação


da realidade última da vida a “morte”, e reconhecida também como potencialização e
plenitude da realidade humana, Andrés Torres de Queiruga não isenta as outras
tradições religiosas na participação da realidade salvífica de Deus. Ele parte de um
elemento comum entre as tradições religiosas, que é a crença na imortalidade, e a
ressurreição não cristã diferencia-se da ideia de imortalidade, porém tem seu modo
específico de tematizá-la e vive-la, já que a centralidade está na experiência cristica.
Portanto, mesmo tendo como ponto de vista a ressurreição de Jesus com relação a
imortalidade ou a vida transcendente a esta, mostra a compreensão de uma revelação
de um “Deus dos vivos”. Essa realidade ultrapassa épocas, pessoas e tradições
religiosas, ou seja, a ressurreição não pode ser interpretada de forma isolada ou
exclusivista.311

“A ressurreição bíblica não renuncia à própria riqueza, mas oferece como


contribuição à busca comum. E, ao mesmo tempo, compreende que existem
aspectos nos quais também ela pode enriquecer-se com a contribuição
especifica das demais religiões”.312

Essa visão queiruguiana da salvação plena que envolve a ressurreição tendo


como precaução a aproximação no diálogo com as outras religiões apresentam a sua
responsabilidade como teólogo cristão que se esforça em manter uma linguagem
teológica concreta e humanizadora, porque entende que a humanidade inteira é
originada em Deus. Portanto, continua sendo Senhor de todos e seu amor é
dispensado para todos, o que importa é que “Deus é amor e que só quer e busca por
todos os meios a nossa salvação; que o faz com respeito, delicado e absoluto, à nossa
liberdade”.313

310 Ibid., p. 239.


311 Ibid., p. 275-276.
312 Ibid., p. 276.
313 QUEIRUGA, 1996, p. 88.

125
3.5. Conclusão

“Deus quer de verdade para o ser humano: sua salvação, sua realização
plena, sua felicidade total”.314 Esta afirmação de Andrés Torres de Queiruga coincide
com a ideia origeniana da apokatástasis para que “Deus seja tudo em todos” (Cf.1Cor
15,28). “Não haverá mais discernimento do mal e do bem porque já não haverá mais
mal; pois Deus é tudo para ele, e nele o mal não existe”,315 sendo esta consumação e
restauração alcançada pela progressão humana num processo de instrução pautado
em Cristo, na qual submeterá o Reino ao Pai,316 em ambos discursos a aproximação
acontece a partir do Amor de Deus e a autonomia humana.

Diante da análise feita por Andrés Torres de Queiruga na qual sua posição
crítica sobre a apokatástasis de Orígenes é o verticalismo em excesso, e sabendo que
o seu discurso teológico parte da realidade histórica, ou seja, a partir de baixo – que
seja bem claro que o teólogo galego não descarta a realidade transcendente –
simplesmente por tratar-se de uma esperança e por não haver uma compreensão
plena da vida na Glória, apenas lampejos que a revelação na história nos dá rumo
para esta realidade eterna, que pode ser tratada como uma novidade enxertada na
vida humana. No entanto, o melhor caminho a seguir é identificar na realidade histórica
o amor infinito de Deus no qual todos seres humanos estão inseridos.317

Entender a salvação a partir de baixo envolve a finitude e autonomia da


criatura e, portanto, a possibilidade do mal é realidade, tanto que está presente. Mas,
Andrés Torres de Queiruga, baseado numa teodiceia atualizada, apresenta um Deus
que diante de um ardoroso processo histórico se revela ao lado do ser humano na luta
contra o mal, ou seja, um Deus como o Antimal.318

“Fê-lo a partir de baixo e com os de baixo: com os pobres, os humilhados e


os ofendidos. Por isso pôs no frontispício de seu chamado: “bem-aventurados
os pobres”; bem-aventurados – ele, o primeiro -, porque nessa proclamação
paradoxal, nesse oximoro desafiante, anuncia que Deus que ele prega e
pratica não quer o sofrimento nem está de acordo com a injustiça, a
intolerância e a opressão, senão a justa e decididamente ao lado dos que
padecem tudo isso”.319

314 QUEIRUGA, 1999b, p. 213.


315 ORÍGENES, 2012, III, 6, 3.
316 ORÍGENES, 2012, III, 6, 9.
317 QUEIRUGA, 1999b, p. 214.
318 QUEIRUGA, 2011, p. 288.
319 Ibid., p. 289.

126
Em Cristo temos a certeza de que Deus é Antimal, e conta com o nosso
esforço e luta contra o mal, ele age a partir do agir humano, para o alcance do seu
desejo, a plena realização humana.

Nesta releitura da apokatástasis queiruguiana foi apresentado a preocupação


da universalidade da salvação humana, de forma atualizada e eficaz e sensível a
realidade concreta, expressa de forma crítica e desapegada de uma religiosidade
convencional. Esta universalidade da salvação, do ponto de vista de Andrés Torres
de Queiruga, é demonstrada com a sua preocupação de uma linguagem teológica de
aproximação dos crentes de outras religiões e daqueles que não creem. Isso ficou
evidenciado ao afirmar que Deus por meio da sua criatura age, porém somente a partir
da resposta livre da criatura, e a universalidade é pautada pela exigência ética vivida
a partir de uma honesta autenticidade. Este modo de ser na criatura humana revela a
oposição de Deus frente ao mal e que a culminância da realização humana não está
apenas dentro da fé cristã, devido ao Criador não considerar apenas a vivência
religiosa, mas a pessoa em si.

O aspecto transcendente da salvação é visibilizado na ressurreição de Cristo.


Vemos nela a infatização da criatura que supera o mal fruto da sua finitude, porém a
ressurreição de Jesus não está desvinculada da vida humana, porque vem da sua
humanidade, por isso não fica somente restrita a fé cristã, mas alcança todas as outras
crenças.

“A fé descobriu e proclamou que não foi a morte o destino derradeiro, senão


que foi a vida plena e realizada quem teve a palavra definitiva. Tem-na para
todos e para todas. Porque em Cristo culmina a revelação, de algum modo
presente em todas as religiões da humanidade, de que Deus não nos deixa
– não nos deixou nunca – cair no nada da morte, esse resumo culminante do
mal, esse “último inimigo” a ser vencido (1Cor 15,26)”.320

Para os Cristãos a ressurreição de Jesus está implicada diretamente na


história, já que para viver Cristo é viver como ressuscitados e isto requer a resposta a
partir da liberdade do indivíduo, que consiste no seguimento de Jesus, o verdadeiro
exemplo e revelador da bondade do Pai. Portanto, viver como ressuscitados é crer no

320 Ibid., p. 292.

127
Abbá de Cristo, em vista disso, requer o reconhecimento de uma verdadeira filiação e
o reconhecimento dos demais irmãos.321

Viver a autenticidade ética e viver como ressuscitados é romper com a


presença do mal e, desta forma, chegar ao cume que é a realização plena, mas sem
deixar de lado a realidade concreta para não cair numa utopia de um mundo
plenamente bom. Porém, a ressurreição assegura a derrota do mal porque o amor de
Deus foi capaz de destruí-lo, e, portanto, a humanidade poderá alcançar o desejo de
Paulo que foi assumido por Orígenes de “Deus ser tudo em todos”. O fim da história
não é o nada e sim Deus.

321 Ibid., p. 288.

128
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas diversas linhas transcorridas nesta dissertação a análise da


apokatástasis apresentou a diversidade de concepções sobre o tema. A partir do seu
desenvolvimento no ambiente filosófico, pudemos acompanhar o desenvolvimento
deste assunto na patrística, sobretudo em Orígenes, e a noção desse enunciado na
linguagem teológica de Andrés Torres de Queiruga. Porém, o que pôde-se elucidar
de todas essas diversidades de reflexões sobre a apokatástasis foi uma linha comum
que transitou em todos discursos: a de um caminho a ser percorrido com o objetivo
de realização final plena e perfeita.

Entre todas as épocas, situações e pensadores cristãos que foram analisados,


todos referiram-se ao assunto desta perfeição final não desassociando a realidade
histórica da realidade futura transcendente. O caminho para essa perfeição final não
isenta a história presente rumo a este propósito, porém a realização plena da perfeição
acontecerá fora do mundo sensível, ou seja, numa realidade ultraterrestre. Isto é, a
essência da ideia sobre a apokatástasis é a esperança de a partir desta vida suplantar
a imperfeição que ocorrerá plenamente na vida vindoura. “Em última instância, o
problema da esperança coincide com o problema da existência humana”.322

O próprio Andrés Torres de Queiruga reitera que é uma ação ingênua o ser
humano descartar a esperança transcendente para sustentar-se apenas no que se
refere ao progresso humano terrestre, ou mesmo na evolução cósmica como
realização humana, e que a própria história mostrou que tal esperança é frágil e
ineficiente, devido a própria impotência humana, mesmo com todo seu aparato de
avanços tecnológicos, vê ainda progredindo a violência, a injustiça, a opressão e a
destruição do próprio habitat, ou melhor, o meio ambiente.323

Partindo da mesma premissa de que a realização plena humana se não dá


apenas nesta vida terrena, segundo Rubens Alves, o futuro se apresenta como uma
ameaça, já que existe a realidade da morte. O contexto da esperança não pode
esbarrar-se apenas na plenitude terrestre, deve ir além. Pois, a fé no amor é capaz de

322 QUEIRUGA, 2007, p. 13.


323 Ibid., p. 36.

129
transfigurar o futuro, retirando dele a realidade ameaçadora da morte e
transformando-o numa alegre antecipação de um tempo em que a perfeição chegará,
e com isso o determinismo da morte é superada pelo poder da ressurreição, dá a vida
e a existência plenitude a cada indivíduo, esta é a possibilidade que esperança nos
dá.324

Na apokatástasis origeniana tem-se a esperança como essência, pois como


alguns cristãos gnósticos pregavam que a salvação já era predestinada para alguns,
para os outros acabavam-se as esperanças, daí a refutação de Orígenes, que elabora
sua reflexão sobre apokatástasis com objetivo prático, por mais que fizesse o uso de
um sistema filosófico, a Escritura foi a base para os fundamentos desse tema. A
prática da esperança foi demonstrada a partir da sua opinião de um início comum de
todos os seres racionais, na qual a diversidade entre bons e maus aconteceu devido
ao livre-arbítrio. Apesar disso, o desejo de Deus é no fim – na apokatástasis – sua
criação tornar-se realizada plenamente quando estiver unida a ele como estava no
início.

Essa esperança origeniana na apokatástasis está pautada em dois princípios


fundamentais: a bondade infinita de Deus, que deseja salvar sua criação
potencializando-a, planificando-a de forma progressiva, educando-a. Vale ressaltar
que Orígenes entende essa progressão a partir da historicidade humana e que há
continuidade dessa progressão na realidade transcendente e, para isso, pressupõe-
se outro princípio, que é o livre arbítrio. O desejo do ser racional querer ser salvo.

Potencializar, realizar, superar, ser salvo. De que? Tanto Orígenes quanto


Andrés Torres de Queiruga sabem que todas essas ações referidas partem do desejo
de Deus, que é amor, remover da criatura o mal que é resultado de sua finitude.
Inclusive, o último teólogo citado vai mais longe quando questiona o porquê de Deus
já não ter na Criação impedido esse mal, sofrimento, pecado e já criá-lo salvo, na
glória, divinizado? A resposta queiruguiana é muito eficiente, corresponde ao
pensamento de Orígenes. Cabe aqui colocar essa resposta nas suas próprias
palavras:

324ALVES, Rubem. Da esperança; tradução. João-Frencisco Duarte Jr. Campinas: Papirus, 1987, p.
189.

130
[...]porque isso equivaleria anular a criatura. Creio que agora é mais fácil de
compreendê-lo. Precisamente pela imensa grandeza da salvação, que exige
essa dialética essencial que descobríamos no início deste parágrafo:
novidade radical, mas em continuidade com a vida. Se a imensa grandeza da
glória, sua inaudita novidade, fosse dada ao ser humano sem mais nem
menos, este acabaria ficando totalmente anulado: não seria ele.” 325

A providência divina e a autonomia criatural estão aqui evidenciados nas


palavras de Andrés Torres de Queiruga, a mesma preocupação origeniana que busca
na teologia da apokatástasis responder em seu tempo com a mesma solução dada
pelo teólogo galego.

Fantástico vislumbrar essa dialética entre Deus que é amor e, por isso, quer
a realização da sua criação respeitando a autonomia do ser humano, que pode
responder a esse desejo de Deus a partir da realidade histórica, que podemos traduzir
como luta, combate contra o mal.

A esperança da apokatástasis como esperança de salvação universal em que


Orígenes compreendeu a partir da encarnação do Verbo que veio para nossa história
nos ensinar a unirmos ao Pai pela obediência,326 coaduna com o discurso teológico
de Andrés Torres de Queiruga, que tem como pressuposto uma teologia “a partir de
baixo”. “Cristo, contudo, espera de que em todos nós se realize também o que nele já
teve lugar.”327 Vê-se uma teologia que além de uma preocupação com uma linguagem
esclarecedora sobre a compreensão dá fé um elo com a vida e prática, que ao fazer
uma aproximação maior com a vida hodierna é legítimo que encontremos no Papa
Francisco, com seu entusiasmo e clareza, a exposição dessa realidade prática
pastoral de realização do ser humano que contribui para um discurso prático da
apokatástasis.

A proposta do chamado à santidade em que o Papa Francisco expõe na


Gaudete et Exsultate, em que afirma “A Santidade é o rosto mais belo da Igreja”.328
Porém, ele não limita o chamado de maneira ad intra, reconhece que todos somos
chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas
ocupações de cada dia, onde cada um se encontra.329 Isso corresponde com sua

325 QUEIRUGA, 1999b, p. 217.


326 ORÍGENES, 2012, III, 5, 6.
327 QUEIRUGA, 1999b, p. 215.
328 GE, 9.
329 GE,14.

131
preocupação de tornar esse chamado à santidade, encarnada no contexto atual, com
seus riscos, desafios e oportunidades.330 Esse chamado à santidade ele traduz na
Evangelli Gaudium como o Reino que nos chama e espera uma resposta de cada ser
humano dada no amor, e que na “medida que Ele consegue reinar entre nós, a vida
social será o espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos.331
Portanto, existe uma conexão íntima entre evangelização e promoção humana, aquele
que atende essa resposta reage sempre fazendo o bem aos outros.332 Nisso fica
demonstrado o critério de totalidade que o Evangelho possui, que visa fecundar e
curar todas as dimensões humanas e uní-los em torno da mesa do reino,333 a
realidade do Reino inevitavelmente alheia ao desenvolvimento pleno da vida humana
e, para isso o Papa Francisco, escolhe duas questões fundamentais no compromisso
da fé com a vida que são a inclusão social dos pobres e o diálogo social.334

Segundo Francisco, “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez


pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”.335 Por isso desejo uma Igreja
pobre para os pobres”.336 Aqui vemos de forma mais direcionada ao cristianismo o
compromisso de fé e vida para promover a realização humana e, de modo mais
universal, o Bispo de Roma identifica no diálogo social a universalidade do chamado
à santidade e reconhece que os cristãos católicos podem aprender mais com o
intercâmbio com os cristãos de outra denominações,337 e que a Igreja pode
enriquecer-se e aceitar mais os outros que pensam e se expressam de forma diferente
a sua fé. Isso envolve o diálogo inter-religioso, tal qual o Judaísmo com seus valores
já que Deus ainda continua operando sobre eles, assim como o diálogo fraterno e de
compromisso comum com os islâmicos.338

Quanto aos não crentes, o diálogo e a aproximação podem ocorrer a partir


fidelidade a consciência, que por iniciativa e gratuidade de Deus podem viver
justificados em Deus, já que o Espírito suscita em toda a criação a sabedoria.

330 GE, 2.
331 EG, 180.
332 EG, 178.
333 EG 237.
334 EG 185.
335 Esta é uma citação que o Papa Francisco faz sobre o discurso feito por Bento XVI na inauguração

da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe em Aparecida do Norte, SP.


336 EG 198.
337 EG 246.
338 EG 247-253.

132
Podemos como cristãos também tirar proveito e enriquecer nossa fé a partir desta
proposta de diálogo com os não crentes.

Esses caminhos propostos nos dão a dimensão de uma fé encarnada, longe


de mitologismos e fundamentalismos. Claro isso exige a dialética da escuta Deus e
da prática do seu amor como resposta, fato presente em todo ser humano. Todo o
itinerário está implícito no discurso da apokatástasis que se atualiza até os dias de
hoje com total absorção da proposta de Jesus:

Começamos a encontrar-nos com Jesus quando começamos a confiar em


Deus como ele confiava, quando cremos no amor como ele cria, quando nos
aproximamos dos que sofrem como ele se aproximava, quando defendemos
a vida como ele defendia , quando olhamos as pessoas como ele as olhava,
quando enfrentamos a vida e a morte com a esperança com que ele as
enfrentou, quando transmitimos a boa nova como ele transmitia.339

Fixar-se na apokatástasis somente como salvação universal, ou seja,


somente numa realidade transcendente seria um equívoco, porque ainda é um
mistério do qual podemos esperar uma acolhida potencializada e glorificada por Deus,
porém é na esperança e na práxis os instrumentos de realização humana. Isso
equivale para todas as esferas da vida social, portanto a apokatástasis não renuncia
a vida presente, porque é nela que se oferece a esperança de uma vida plena em
comunhão face a face com Deus, a verdadeira concretização “Deus tudo em todos”.

339
PAGOLA, José Antonio. Jesus aproximação histórica.Trad. Gentil Avelino Titton. 7.ed. Petrópolis:
Vozes, 2014, p. 28.

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