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Entre as muitas maneiras de abordar o estudo do


Direito nas sociedades contemporâneas, a análise
filosófica indubitavelmente desempenha papel de Coleção
grande relevância. Esta relevância manifesta-se no
modo de se conhecer as bases filosóficas de nossas Filosofia e Direito
instituições jurídicas e, desse modo, compreendê-
-las. e submetê-las à crítica. Direção
<D ;::.: 1\.) o 1\.)
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A coleção «Filosofia e Direito» passa a ser editada
em português como uma contribuição ao enrique- j 3 _ S f!' 2, ::r,, z Jordi Ferrer
8. José Juan Moreso
cimento do debate filosófico na cultura jurídica
brasileira, combinando a publicação de textos es-
critos em português com a tradução de obras erigi- ,
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nalmente escritas em outras línguas, de modo que
'as contribuições decorrentes da filosofia, da lógica,
da teoria da linguagem, da filosofia da ciência, da
filosofia da mente, da filosofia moral e da filosofia
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POSITIVISMO JURÍDICO
LÓGICO-INCLUSIVO

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Marcial Pons
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} MADRI I BARCELONA I BUENOS AIRES I SÃO PAULO

} 2012
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Coleção ( 1

Filosofia e Direito
f,
Direção
Jordi Ferrer @
José Juan Moreso
Adrian Sgarbi ÍJ
(,
Positivismo jurídico lógico-inclusivo
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão {
Capa {·
Nacho Pons
{,
Preparação e revisão (
Ida Gouveia
(
Editoração eletrônica
Oficina das Letras~ {
Impressão e acabamento (
RR Donnelley
(\
(
e
(
Todos os direitos reservados. ([
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo- Lei 9.610/1998. (
ISBN 978-84-87827-28-0 {

[2012]
{
Impresso no Brasil {
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4.
Aos Sabinianos. 4. ,
© Juliano Souza de Albuquerque Maranhão 4
© MARCIAL PONS 4. 1

EDICIONES JURÍDICAS Y SOCIALES, S.A.


San Sotero, 6 - 28037 MADRID {
1r 00 XX (34) 913 043 303
www .marcialpons.com
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) AGRADECIMENTOS
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) Este livro é um esforço de autoconhecimento, que já vem de pelo menos
uma década e foi estimulado pelos encontros e discussões com Pablo Navarro.
)
Desde a graduação em direito, foi implantado em meu DNA o livro Normative
) Systems de Alchourrón e Bulygin, mas sempre tive alguma dificuldade em
) me ver como positivista stricto sensu, já que me inclino a entender o direito
mais como o universo das razões e menos como o domínio da vontade de fato.
) Os breves encontros e a leitura de J .J. Moreso me ajudaram a contrabalançar
} minha herança biológica e entend.er, afinal, que tipo de positivista sou eu. No
final, nem só vontade nem só razão, mas a racionalização da vontade.
)
Embora maturado mentalmente em alguns anos, efetivamente escrevi e
) apresentei este livro como requisito para obtenção do título de Livre-Docente
) na Faculdade de Direito da USP, em 2010. Nesse processo de elaboração,
a leitura, crítica e aconselhamento de Samuel Rodrigues Barbosa foram de
) grande ajuda. No capítulo em que ligo a noç~o de consequência lógica com o
) argumento de redução ao absurdo, aproveitei-me bastante de discussões com
Jean-Yves Béziau e Edelcio Gonçalves de Souza. Testei alguns argumentos
) e teses por e-mail sobre alguns pontos críticos com Amalia Amaya, Giovanni
) Ratti e Giovanni Sartor, cujas opiniões e contraposições permitiram ou
enxergar melhor minha posição ou refinar mais meu argumento. As constantes
)
conversas com o Prof. Tercio, que começam com coisas do dia a dia, família,
) escritório ... , mas sempre desembocam e se alongam sobre filosofia do direito,
também passearam por aqui (normalmente encerradas por um «puxão de
)
orelha» para que eu não deixasse de publicar!). O convite de J.J. Pons e Jordi
) Ferrer-Beltrán, a admiração que tenho pela Editora e a fé que deposito em seu
) projeto no Brasil, rica e seriamente desenvolvido por Marcelo Porciuncula,
foram os ingredientes que faltavam. Aline de Souza e Bruna de Bem foram de
) grande ajuda com a formatação e a bibliografia.
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Juliano Maranhão é, hoje, seguramente, um nome expressivo no cenário tf
brasileiro do positivismo analítico em filosofia do direito. Seu domínio da
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matéria lógica, que aprendeu precocemente com o mestre Newton da Costa, o
faz reconhecido também fora do País. E só isso já seria suficiente para intro- (
duzir o leitor neste livro. (l
Mas um prefácio é também uma discussão instigadora. Não obstante a (1
inserção da temática num debate próprio da filosofia analítica: a neutralidade
valorativa é uma condição de sucesso para uma teoria do direito? - há, no (1
âmago do seu questionamento metodológico (teorias do direito descritivas ou {
avalorativas versus teorias do direito normativas ou justificadoras), a distinção
e aprofundamento da relação entre direito e moral.
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Para situar essa problemática, permito-me lançar alguns aspectos da
própria modernidade jurídica, tal como aparece no contexto ocidental. Para {
isso é necessário um recuo no tempo histórico. (
O destino da filosofia da práxis na cultura ocidental até o limiar dos (
tempos modernos conhecerá duas grandes versões da síntese entre physis e
ethos, segundo a influência preponderante seja do Estoicismo seja do Cristia- (
nismo na tradição do Direito Natural clássico. De um lado, a influência estóica {1
irá acentuar a transcendência e a imutabilidade da physis e, correlativamente,
a necessidade do logos universal em que ela se exprime e que se formula como (_
nómos eterno, sob cuja égide se constitui a unidade do gênero humano. De (.
outro lado, a tradição bíblico-cristã caminhará no sentido de um aprofunda- (
mento da universalidade subjetiva ou da consciência moral do indivíduo que
o constitui como sujeito propriamente dito ou como instância interior do dever (,
ser, em face da universalidade objetiva da lei. O aparecimento dessa polaridade 4.
entre a consciência e a lei, que irá acompanhar a evolução posterior da Ética
e do Direito, supõe, por sua vez, o fim do ciclo histórico da antiga polis e, do t
ponto de vista da evolução das instituições e das idéias políticas, a formação 4.
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) JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO PREFÁCIO 13
12
J Essa liberdade, como um dado típico da espontaneidade humana, opõe-
) dos primeiros esboços da sociedade civil no enorme corpo político do Império
Romano e, posteriormente, nas sociedades urbanas da Idade Média. se à natureza, enquanto um mundo regido por leis determinadas.
} De um lado, como a idéia de bem se toma relativa à perspectiva dos indi-
Nesse novo contexto, a natureza não é mais a physis na imutabilidade
) de sua ordem e fundamento de um nómos objetivo ao qual deve referir-se a víduos, o subjetivismo da vontade se separa e se contrapõe ao objetivismo da
práxis humana. Nem se oferece mais como um horizonte de universalidade razão e da ciência: é a separação entre consciência ética e verdade. De outro,
)
permanentemente aberto à contemplação do filósofo ou à sabedoria do legis- a vinculação das normas da moral e da religião restringe-se à esfera das deci-
) lador. Uma nova homologia deverá vigorar entre o modelo da sociedade e a sões privadas da consciência, separando-se da vinculação objetiva das normas
) nova idéia da natureza. A nova homologia fará submeter o pensamento social jurídicas: é a separação entre consciência moral e direito. Segue daí uma
e político, bem como o pensamento ético (moral e direito), aos princípios epis- terceira separação: a consciência ética deixa de ser vista como um problema
) temológicos e às regras metodológicas da nova ciência da natureza, ciência de de scientia e passa a um problema de conduta e valoração (voluntas), donde a


)
tipo hipotético-dedutivo e tendo a análise matemática como seu instrumento
conceptual privilegiado.
Já no século XVI, começa assim um movimento de interpretação do
separação entre liberdade e natureza como universos distintos.
O resultado desta liberdade é, então, a abertura de oport~nidades para
aproveitar-se o indivíduo do emprego inteligente da posse de bens no mercado
) corpus juris em que se busca distinguir entre o entendimento sistemático das sem limitações juridicamente externas para conseguir poder sobre outros
) fontes romanas e o seu entendimento histórico-cultural. Explica-se, assim, a indivíduos. Este poder assume a forma jurídica de uma autorização pré-cons-

, )

)
proposta de Donellus (Commentatorium Juris Civilis Libri) que constrói todo
o direito privado como um sistema de direitos materiais (cf. Helmut Coing,
Zur Geschichte des Privatrechtssystems, Frankfurt, 1969, p. 43). Partindo da
famosa formulação de Celsus Uus como honeste vívere, alterum non laedere,
tituída, fundada na própria liberdade, formalmente acessível a qualquer um,
de fato à disposição daqueles que detêm bens. Em conseqüência, temos uma
organização política caracterizada por uma descentralização do poder para
efeitos de produção de normas jurídicas que obrigam quem se compromete,
suum cuique tribuere), propõe ele uma definição de direito em termos de ea
) mas que exigem uma estrutura global abstrata de coordenação: o Estado.
quae sunt cuiusque privatim jure tamen illi tributa e, especificamente, como
) facultas et potestas jure tributa, expressões que denotam qualidades subje- Contudo, o crescimento desta liberdade formal não impede, mas forta-
tivas. Com isso, Donellus re-interpreta a dicotomia direito publico/direito lece a exigência de um poder central com força coativa superior. Max Weber
) privado em consonância com a idéia de suum cuique tribuere, entendendo o (Wirtschaft und Gesellschaft Tübigen, 1976, II. Halbband, VII, Par. 2.º) assi-
) jus privatum em termos de jus quod privatis et singulis quod suum est, tribuit. nala que é com o monopólio da produção jurídica pelo Estado no seu aspecto
Por conta disso, o Direito Privado passa a ser teoria dos direitos privados formal, que aparece a idéia de um lado, do direito como ordenamento, de
) individuais. outro, do direito concreto como uma garantia de ação do indivíduo. Centro
) A classificação de Donellus e sua concepção de direito subjetivo como de confluência do ordenamento incidente como fundamento dessa garantia, a
) faculdade e poder atribuídos pelo direito ao indivíduo sobre aquilo que lhe aplicação do direito-ordenamento ganha um contorno complexo.
pertence não só incorpora a noção de livre arbítrio como essência humana, A exigência de garantia cria uma forma aberta a qualquer conteúdo: o
j como também exige uma clara distinção entre a personalidade comunitária e

,
)

)
a personalidade individual. A homogeneidade da personalidade comunitária
é garant~da pela organização e, como tal, se destaca de seus membros, as
pessoas morais. Esta distinção cria condições para uma outra, aquela entre
a vinculação do comportamento derivada do estatuto social e a derivada do
direito de ação. Isto esclarece o aparecimento do aparelho judicial como uma
máquina tecnicamente racional a serviço do cálculo sobre as chances de busca
e concretização da ação, que adquire, assim, um sentido operacional proble-
mático. Ou, como diz o autor deste livro, ao aplicar, o juiz, a um só tempo,
identifica e interpreta (qual é e o que significa a regra do ordenamento?), isto
compromisso contraído, base para uma concepção racionalizada da diferença
) é, faz inferências e com isso obtém novas normas logicamente derivadas de
entre direito objetivo e subjetivo.
) normas válidas, base para sua própria norma decisória (sentença). Ora, qual
O desenvolvimento de relações juridicamente ordenadas para uma o estatuto teórico dessa operação e qual seu impacto sobre a ontologia das
) sociedade do tipo contratual e para o. próprio direito como liberdade e, em normas jurídicas?
especial, para configurações jurídicas da idéia de autonomia autorizada por
) Kelsen, em sua obra póstuma, posicionou-se com radicalismo, numa
regulamentos de um poder central resulta do enfraquecimento da noção de um
) estatuto difuso e sagrado, donde o crescimento da liberdade individual. revisão angustiada de sua obra anterior: normas são produto de vontade e,
)
JULIANO SOUZA DE AL BUQUERQUE MARANHÃO PREFÁC IO 15
14

nessa medida, não há qualquer regulador (lógico ou moral) no processo de ser deri vados da autoridade das próprias regras postas, assumindo-se a obje-
expansão normati va do ordename nto. ti vidade, ao menos parcial, do conteúdo das fo ntes. Essa incorporação apenas
indireta da moralidade, a partir de uma valoração não engajada das fon tes, dá
Esse radical ismo trouxe para o debate (de que se ocupa o autor neste li vro) novo fôlego ao ideal de neutralidade do positivismo jurídico.
a necessidade de se captar a normatividade característica do direito de forma f
peculiar a ela, isto é, independentemente da normatividade de outras práticas
sociais também baseadas em regras. Donde a crítica de Hart a Be ntham e
Em suma, a inserção deste livro no contexto de sua problematização
histórica aponta para um tema filosófico enraizado na própria existência do
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Austin, e, nessa extensão, ao próprio Kelsen. home m contemporâneo. Ou seja, se a questão fundamental da antiga filosofi a
prática no âmbito da vida socia l era a determinação dos requisitos essenciais
Para o positivismo analítico, contudo, esse debate conduz ao pressuposto que asseguravam ao homem, corno cidadão, poder exercer na sociedade polí-
de que a compreensão das chamadas fontes do direito deva ser normativa, não tica os atos próprios da vida virtuosa (eu zen) ou da vida ordenada para o bem (
obstante a perplexidade produzida pelo seu fundamento: a norma fundamental da cidade - identificado com o bem do indivíduo ou com sua autárqueia - a
kelseniana e seu pressuposto de que o ordenamento como um todo seja consi- jusfilosofia positivista analítica, no contexto do pensamento jurídico moderno,
derado, globalmente, como e fi caz; e a regra de reconhecimento de Hart , cuja acaba por presumir como sua tarefa primordial propor a sohJção analitica-
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existência é tida como uma questão de fato. mente satisfatória ao problema da associação dos indivíduos, tendo como
Situada nesse planofático, torna-se inevitável a discussão da fundamen- alvo assegurar a satisfação de suas necessidades vitais. Daí o debate sobre a
(
tação normativa em termos de sua Legitimação: reconhecime nto, por Kelsen , separação entre direito e moral.
de uma vontade instituidora como legítima; reconhecimento, por Hart, de que E j ustamente aí é que se percebe que o advento da sociedade civil como
determinados atos de determinadas instituições constitue m atos criadores (do lugar histórico da realização da li berdade e, portanto, da vigência da lei e
ponto de vista externo, como mera constatação; do pondo de vista interno, da validade do direito está, afi nal, na origem da cisão moderna entre ethos e
aceitação da validade). Tanto de uma fo rma como de outra, essa identificação 11ómos que se exprime nas diversas formas de positivismo jurídico e de positi-
do direito como fato social levanta a questão da contingência dos conteúdos das vismo analítico jurídico, corno também da separação entre direito e moral que
normas, desde que válidas; donde o tema da separação entre moral e direito (o faz a prática social chamada jurídica pesar sobre o homem moderno como um
mérito moral nada tem a ver com a juridicidade das nonnas, donde a expansão destino trágico, como forma dilacerante semelhante àquela "tragédia no ético"
normativa via interpretação ser ato valorativo subjetivo, cuja normatividade de que falava Hegel: a sociedade moderna como uma sociedade complexa e (:
decorre de vontade). altamente desagregada, donde a função do ordenamento como um sistema que
O autor percebe, no entanto, com acuidade, que esse posic ionamento compe nse a perda da homogeneidade comunitária.
depende de outro, com respeito à objetividade das fontes (cujo conteúdo, pelo
menos em parte, deveria ser identi ficável, ainda que com valoração, sem enga-
jamento moral: tema da neutralidade), que está no cerne da polê mica contem- T ERCIO S AMPAIO F ERRAZ JUNIOR
porânea entre positivistas inclusivistas e exclusivistas. Ou a ligação das formas
com as condutas teria instâncias acordadas, a partir da incorporação imediata de
crenças e valores da comunidade, com prejuízo para a separação entre direito
e moral e colocando em risco a própria possibilidade da convenção social, ou
o critério está na mera identificação das autoridades competentes, cuja decisão
soberana ou cujas decisões re iteradas seriam adotadas pela autoridade inter-
pretante, com prejuízo para o tema da legitimação. Diante do dile ma, o autor
desenvolve, com precisão e rigor, uma terceira via, que chama de inclusivismo
Lógico, ao inverter a forma usual pela qual se vê a relação entre princípios e
regras jurídicas: não são as regras derivadas ou justificadas pelos princípios
morais e de políticas públicas, mas os princípios é que se legitimam como
razões jurídicas vi nculantes na medida em que são endossados pelo conteúdo
das regras. Com isso, o autor c hama a atenção para o fato de que a autoridade
e o conteúdo de valores morai s empregados na atividade dos tribunais podem
SUMÁRIO

Prefácio. .............................. .... ....... ........................................... ................. 11


l. Introdução: lógica e metodologia jurídica ...... ......... ...................... ..... .. 21
2. O debate contemporâneo da teoria analítica do di reito.................. .... ... 31
2. 1 lntrod ução............................................... ...................................... . 31
2.2 O positivismo jurídico: primeira aproximação............ .................. 33
2.3 Críticas preliminares ...........:... .............................. .. .. ............ ........ . 40
1 2.4 A intriga ............... .... .................. ................. ................... ............... . 53
2.4. l No plano da teoria do direito ........ .... .................................. . 53
2.4.2 O salto para o plano metodológico .. .... .. .................. ...... ..... . 57
1 2.5 O dia seguinte .... ....................................................... ..................... 63
2.6 Argumentos contra a consistência da incorporação............... ....... 67
2.7 O que resta do positivismo?............................. .... ....... .................. 76
3. lnclusivismo Lógico-Jurídico ................... ....... ........ ........... .. .... .......... .. 79
3.1 Introdução.......... ......... .................. .............................. ................... 79
3.2 Formas de in ferê ncia e normas deri vadas ............... .... ........ ....... 83
3.3 Da validade à pertinê ncia..... ................. ...................................... 89
3.4 Da pertinência à origem das razões ..... ........... .................. .......... 95
3.5 Clara no11 su11t interpretando ou in claris cessai interpretatio? 100
3.6 O discurso da dogmática j uríd ica............. .. ................................. 113
3.7 Tnc lusivismo lógico como contra-argume nto a Dworkin.......... 11 7
18 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO

3.8 A objeção de Marmor .................................................................. 120


3.8.1 Consequência lógica e redução ao absurdo .......... ,........... 122
3.8.2 Normas derivadas pressupõem coerência do ordenamem0? 129
3.9 Normas dedutivamente derivadas são razões jurídicas .............. :.. 132
3.10 Princípios derivados por abdução são razões jurídicas ............... 135
3.11 Integridade................................................................................... 141
3 .12 Inferência local .. ... .... .. .. . .. .. .. .. .. ... .. ... ... .. .. .. .. .... . .. .. .. .. .. ..... .. ...... .. .. . 145
3.13 Princípios podem ser ingratos?.................................................... 155
4. Conclusão .......................... :................................................................... 169
Bibliografia................................................................................................ 174

<<Autoritatem cum rationem


omnino pugnare non posse.»

V1co, De uno universi juris


principio et fine uno, Cap. LXXXIII
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INTRODUÇÃO: LÓGICA E
) METODOLOGIA JURÍDICA
)
)
) O art. 213 do Código Penal brasileiro proibia a relação sexual violenta. O
) art. 224, alínea «a», estabelecia a presunção absoluta de que a relação sexual
com menor de 14 anos é violenta. Isso significa que o CP proibia a relação
) sexual com menor de 14 anos?
) Seria difícil alguém responder que não. Mas a pergunta facilita a resposta,
) ao colocar o tema em termos do significado do art. 213. Parece, afinal, que essa
é a interpretação «imediata» ou a consequência «indisputável» desses dois
) dispositivos. Trata-se, aliás, de mera inferência dedutiva, o que, no campo
) da interpretação, parece colocar a conclusão como aspecto necessário ou
conteúdo «implícito» do sentido dos arts. 213 e 224. A cogência da conclusão
)
é tal que diríamos que uma resposta negativa à questão acima só poderia vir de
) alguém que efetivamente não entendeu o conteúdo dos dispositivos.
) Agora retire o «isso significa que» da pergunta e coloque-a no campo
da existência ou validade da norma (não apenas do seu sentido): a proibição ...
)
de relação sexual com menor de 14 anos era já uma norma válida no direito
) brasileiro?
} Nesses termos, a pergunta, em vez de apresentar uma resposta, convida
) a novas questões. Seria mesmo possível separar a atividade de interpretação
da resposta sobre a validade da norma? Ou seja, as duas questões iniciais são
) mesmo diferentes?
) Há alguns anos, os dois dispositivos legais foram alvo de decisão polê-
} mica do Supremo Tribunal Federal, na qual foi concedido habeas corpus a
acusado que manteve relação sexual com menina de 12 anos. A comunidade
) jurídica inclinou-se a ver decisão como contra legem e, em seguida, a Lei
} 12.015/2009 alterou o Código Penal, mantendo a proibição de relação sexual

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22 JULI ANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARAN HÃO INTRODUÇÃO: LÓGICA E METODOLOGIA JURÍDICA
23
violenta (art. 2 15) e substituindo o art. 224 "a", revogado, pe lo art. 2 17-A, que das ciências naturais: a conc iliação entre cognição e volição como fu ndamento
estabelece a proibição expressa da relação sexual com menor de 14 anos. Essa das obrigações j urídicas. Trata-se da dificuldade de racionalização do direito
nova previsão efeti vamente alterou o Código Penal ou a proibição de re lação como produto da vontade, com todas as suas conotações e implicações no
sexual com menor de 14 anos j á estava lá? Essa reação curiosa do legislador campo moral e político, em tennos de um esforço de legitimação moral da
diante da decisão judicial traz duas perguntas: um ato de vontade expresso autoridade do Estado.
é requisito necessário para identificar a validade da norma? Ou é possível
identificar normas válidas recorrendo somente à cognição? O teste é impetuoso. Se a cognição preenche algum papel na identificação
de nossas obrigações jurídicas, então, no mínimo, deveríamos reconhecer que
Todas essas questões são centrais para uma teoria do direito e reações a
inferências deduti vas imediatas identificam obrigações, ou normas existentes,
elas dependerão de um posicionamento, mas também definirão esse posicio-
com força obrigatória. Se uma dedução simples como aquela a partir dos
namento acerca da questão, que agora coloco em termos mais gerais: normas
arts. 21 3 e 224 do CP brasileiro não tem essa força, então o que dizer de
Logicamellle derivadas de normas válidas são também válidas ?
outras con~truções do conhecimento jurídico? Por outro lado, se a resposta
Um dos projetos mais ambiciosos em elevar o saber jurídico ao status for afi rmall va, o problema que se coloca é: qual o limite para a cognição na
de ciência autônoma sucumbiu exatamente diante dessa questão. Poucos anos identificação/constituição de normas válidas?
após a publicação daquela que parecia ser a form ulação final de sua Teoria
A cognição parece ser capaz de revelar «conteúdos implícitos» ou
pura do direito, delineando o estatuto de uma ciência jurídica ind~pendente
suprimir «conteúdos aparentes», por exemplo, no caso de identificação de
de especulações morais e distinta da mera desc1ição de regulandades do
inconsistências entre sentidos atribuídos a duas normas distintas ou de incom-
comportamento social, KELSEN publicou o artigo Direito e lógica, em me io
patibilidade entre o conteúdo da norma e aquilo que seria seu propósito ou sua
a um período de correspondências com o lógico Ulrich KLuG, no esforço ~e ratio.
responder justamente se a lógica desempenharia algu m papel na ontologia
das normas jurídicas. A conc lusão de KELSEN foi um surpreendente «não!», Assim, o jurista não hesita em afi rmar que uma lei estabelecendo um
que desembocou no angustiado esforço de reescrever sua obra, postuma~ente imposto retroati vamente é inválida diante da norma constitucional que proíbe
publicada em Teoria geral das normas, na qual KELSEN depura sua teona de a retroati vidade de qualquer tributação. O fator por trás dessa afirmação da
todo neokantismo para cair e m voluntarismo radical. supressão do vínculo legal nada mais é do que o princípio de não contradição.
No mesmo período, um lógico finlandês sofreu da mesma angústia do Mas seria ele mesmo s uficiente para, por si, operar esse efeito na ordem jurí-
dica?
jurista que ousou flertar com a lógica, mas agora pelo caminho inverso, fler-
tando com o direito. VoN WruGHT (re)criou a lógica deôntica moderna em E o jurista, para usar o conhecido exemplo de S1cHES, também afirmaria
intervalo de seus estudos sobre lógica modal, especificamente num inocente com tranqui lidade que se for proibido, por força de uma lei, entrar com
passeio às margens do rio Cam. Foi seu artigo mais citado e seu pecado mais cachorros no t1·em, então a mesma regra proíbe que se entre com ursos no trem.
mortal. Não mais descansou, publicando diversas revisões, novos sistemas Embora a entrada com urso pareça uma instância clara de ap licação da regra,
e reinterpretações do que significaria a lógica de normas, pois jamais esteve entr~ em jogo aqui uma inferência não dedutiva, que envolve a formulação
satisfeito com a res posta oferecida àquela mesma questão, ou, e m seus termos, de hipóteses sobre a motivação do legislador. Mesmo assim, há, nesse caso,
se uma norma poderia necessariamente existir ou inexistir em função da exis- forte grau de cogência: sobre aquele que insistir em entrar com ursos no trem
tênci.a de outras, apenas por razões lógicas. No início da década de 1980, a por inexistir proibição expressa, diríamos que não entendeu propria mente a
sua identificação com Alf Ross no sentido de que o discurso jurídico seria pr~ibição de entrar com cachorros. Mas a proibição de entrar com ursos já
«alógico» e que, po1tanto, os sistemas de lógica deôntica seriam_ ape~as id~ais existe nesse ordenamento? Ou a inferência que me leva a essa conclusão tem
de racionalidade a serem comparados com ordenamentos reais foi pratica- força criadora?
mente ignorada pela já madura comu_ni~a~e de lógica deôntica, que, se~undo
VoNWruGHT, continuou seu trabalho 111s1st111do em cometer o pecado de mtro- O problema aqui está em encontrar o ponto em que passo da revelação
duzir relações lógicas no reino próprio das normas. ou descrição dessas normas «implícitas» ou «aparentes» para a criação de
conteúdo pelo próprio j urista. O jurista não estará mais tão confortável em
o radicalismo das reações à pergunta não deveria surpreender. Na verdade, afirmar que uma lei banindo a veiculação de propaganda de cigarros é inválida
ela funciona como um teste binário (sim ou não) para problema nascido na era diante de uma constituição que determina que a lei apenas «restrinja a propa-
moderna com a própria empreitada de sistemati zação do direito aos moldes ganda de cigarros». Também não estará tão seguro em afirmar que é permitido
9
) INTRODUÇÃO: LÓGICA E METODOLOGIA JURÍDICA
25
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
24
)
levada ao «pé da letra». É certo que para a explicação de qualquer fenômeno,
) entrar com uma bicicleta em parque que proíbe a entrada com veículos. Isso natural ou social, pelo menos em sentido trivial, exige-se alguma valoração,
muito embora as operações lógicas envolvidas sejam fundamentalmente as
) i.e. que o teórico selecione os aspectos que considera mais importantes do
mesmas. · fenômeno a ser explicado e o organize de determinada forma, considerando a
) Em parte dos casos, o jurista afirma que as normas já estão lá ou já não coerência de sua teoria. Esse tipo de valoração, pelo menos à primeira vista,
} estão mais lá. Em outra parte, acusa seus colegas de criarem normas onde parece insignificante, pois está presente em qualquer teoria sobre qualquer
não há ou de excluírem indevidamente normas cujas consequências não lhes domínio e não seria, portanto, peculiar ao direito. O tipo de valoração que
t agradam. Porém, não hã como delimitar precisamente esses dois conjuntos interessa aqui diz respeito a sua qualificação moral.
) de situações, de modo que é difícil estabelecer quando acaba a cognição e
Diferentemente de outros ramos do conhecimento, o direito é uma prática
} começa a volição na identificação do ordenamento.
social que envolve valorações sobre as ações dos próprios participantes dessa
Mas se na reconstrução cognitiva do ordenamento, a vontade do jurista prática. Tal condição coloca em questão a possibilidade de uma explicação
)
ou operador do direito pode fazer escolhas, expressando preferências valora- adequada desse fenômeno a partir da mera correlação causal de eventos.
) tivas, com consequências diretas na definição daquilo que é certo ou errado Explicar a prática social chamada direito não significa descrever suas causas,
) em determinada comunidade, então as regras concebidas nessa atividade mas compreender suas razões. E compreender razões de uma ação ou prática
cognitiva/volitiva são ou deveriam ser vistas como moralmente justificadas? implica atribuir propósitos aos agentes (por qual razão ou para qual fim isso ou
) E, por fim, se a resposta for afirmativa, a teoria do direito, para dar conta aquilo foi feito?). Mais do que isso, a própria compreensão de qual é a prática

, )

)
adequadamente dessa prática social de identificação do direito deveria também
se engajar em sua justificação moral?
Chega-se, nesse último passo, à questão metodológica usualmente apre-
ou ação parece depender do propósito estipulado pelo intérprete. Afinal, para
entender o que foi proibido muitas vezes dependemos da compreensão de
qual seria o propósito da proibição. Além disso, o direito é um tipo de prática
sentada pela oposição entre teorias do direito descritivas ou avalorativas, de social «reflexiva», a ser percebida de seu ponto de vista interno: o conteúdo do
) um lado, e teorias do direito normativas ou justificadoras, de outro. A linha direito, que determina como devem se comportar os participantes, é identifi-
divisória é expressa na discussão sobre a possibilidade de separação entre a cado a partir das valorações dos próprios sujeitos e agentes dessa prática sobre
) identificação do direito como ele é (Sein) em oposição à crítica sobre como o a forma pela qual se comportam. 2
) direito deveria ser (Sollen). A distinção aparece em dois níveis: o da dogmá-
tica ou ciência do direito (Jurizprudenz), consistente no trabalho doutrinário A questão é, então, a possibilidade de apreender essa prática social valo-
) contendo proposições acerca de um sistema normativo em particular; e o da rati va sobre como agir, na qual razões morais e políticas estão em jogo nas
) teoria do direito (Metajurisprudenz), cujo objeto é a atividade da ciência do interações entre os agentes, sem que o observador se envolva nessa mesma
direito. 1 A tarefa da metodologia do direito seria Meta-Metajurisprudenz, i.e. justificação moral. Esse é o sentido de neutralidade, não valorativa, mas moral
) trataria das condições de adequação e sucesso de teorias do direito. A questão do conhecimento jurídico. Para identificar aquilo que é direito, o jurista precisa
) metodológica central, portanto, em tomo da separação entre o que é e como identificar um conteúdo moralmente bom ou correto? E o teórico do direito,
deve ser o direito seria: a neutralidade valorativa é uma condição de sucesso ao traçar as condições de adequação de uma teoria dogmática qeve advogar
) princípios que entende trazer melhores consequências na identificação do
para uma teoria do direito?
) direito?
Essa última questão desdobra-se em três: Com relação a que tipo de
} valoraçâo a neutralidade se refere? A neutralidade é possível? Como pode ser No pensamento jurídico, a mais forte afirmação da neutralidade moral
) alcançada? como condição de sucesso para teorias jurídicas é formulada pelos positi-
vistas, que creem na possibilidade de apurar tais valorações dos participantes
) Já no que se refere à primeira questão, a separação entre teorias descri-
como um dado externo objetivo., socialmente identificável, sem necessidade
tivas e normativas não é inteiramente adequada se a «atividade descritiva» for
) de engajamento em considerações morais. Esse dado externo, produto de atos

. 1. Com essa distinção de níveis de discurso, Boss10 (1967: 10) identifica matriz com quatro
possibilidades: (i) Jurisprudenz descritiva e uma Metajurisprudenz prescritiva (onde ele chega
de vontade identificados como dotados de autoridade, constituiria o que o
direito é, ainda que seu conteúdo possa ser moralmente reprovável.
) a colocar o positivismo, que prescreveria à ciência do direito o uso do discurso descritivo); (ii)
Metajurisprudenz descritiva de uma Jurisprudenz prescritiva; (iii) Jurisprudenz e Metajuris- 2· HART, 1997.
J prudenz descritivas; (iv) Jurisprudenz e Metajurisprudenz normativas.
)
1
26 J ULIANO SOUZA DE ALBUQ UERQUE MA RA N HÃO INTRODUÇÃO: LÓG ICA E METODOLOGIA J URÍDICA
27
Tal ideal de neutralidade, afirmada em versões mais t"adicais como Esse problema metodológico será o pano de fundo deste trabalho desen-
exigência de um di scurso descriti vo do direito despido de qualquer valoração, volvido nos quadros da teori a ana lítica do d ireito contemporânea. '
foi alvo de uma série de objeções no âmbito da filosofi a do direito, da prime ira
metade, até o final do século passado, nas st as mais diversas correntes: Há uma diferença importan te quanto aos pressupostos e ao método
neokantianas, hegelianas, fenomenológicas, culturalistas etc. O valor moral empregado pela filosofia analítica, consistente em tratar problemas filosó-
intrínseco ao fenô meno do direito ou ao seu conhecimento por uma «ciência ficos como problemas de linguagem. Com relação aos problemas filosóficos
do espírito» é postulado por essas teorias mes mo quando se reco nhece que da «natureza do direito» e d o «método da ciência j uríd ica», esses poderi am
ser resolvidos, ou dissolvidos, seja pela reforma e precisão do sentido do
as normas jurídicas seriam manifestações de vontade ou parte de uma reali-
termo «direito» e das proposições da c iênc ia sobre o d ireito, seja pela melhor
dade socialmente determinada. A moralidade do direito penetra, seja porque
com preensã~ da forma pela q ual esse termo é empregado no discurso por seus
o direito tem que ter um conteúdo moralmente justificável, seja porque seria
operadores. E já uma questão própria se essa redução do problema à análise da
impossível compreendê-lo sem identificar seus propósitos morais. Esse
linguagem elim ina a postulação de «entidades» metafísicas na realidade, ou se
conteúdo necessário - e não socialmente contingente - de moralidade pode
pressupõe um postul ado metafísico ai nda mais fo rte sobre a correlação entre a
aparecer em diferentes formas, que , como propõe L ARENZ, 3 são de três ordens
linguagem e a realidade. 6 Mas a vantagem oferecida, apesar da,possível, mas
na história do pensamento jurídico: ou por um resgate do ideal jusnaturalisra
necessária, redução da complexidade do fenômeno analisado, es tá na precisão
(como uma ordenação racional de valores morais que condicionam a cognição)
dos conceitos e teses empregadas, inclusive com recurso a métodos formais
o u por uma perspectiva historicista (como um reflexo da inserção do jurista
para representação da linguagem ideal reformadora ou de clarificação e articu-
em determinada cultura, com valores m orais histo ricamente constituídos, dos lação da linguagem natural na qual o problema se mani festa.
quais as normas, o direito e seu conhecimento são expressão e dela não podem
ser dissociados), ou por uma síntese de ambos. O próprio positivismo jurídico foi construído com forte apoio no méto do
analítico. Na tradição continental, KELSEN, embora não seja um representante
Tais críticas procuram mostrar como a noção de «realidade» adotada típico dessa corrente e tenha recorrido a postulações neokantianas, definiu
pelos positivistas é demasiado estreita e desconsidera entidades nela presentes, projeto bastante afeito à filosofi.il analítica ao buscar a definição das proprie-
que não permitem sua redução a um ele mento externo objetivo, independente dades necessárias d o que é «direito», universalmente considerado, que fosse
de considerações de natureza moral pelo sujeito cognoscente ou manifestadas capaz de distingui-lo de outras man ifestações sociais e normati vas. Seu exame
no próprio fenô meno. 4 Da segunda metade para o final do século passado, essa dos problemas tradicionais da filosofia do direito também traz notas desse
linha de críticas torna-se mais contundente quando o foco do fenômeno a ser método, na medida em q ue KELSEN supera dicotomias por meio da precisão
investigado passa a ser, principalmente, a percepção do direito no mo mento de conceitos como «dever jurídico», «pessoa j urídica», reduzindo-as a uma
de sua concreção ou adjudicação, em que as valorações refletidas e m normas defi nição central de norma jurídica, além de seu esfo rço em precisar o tipo
jurídicas são objeto de deliberação no processo de subsunção de uma norma de discurso e estrutura das proposições da ciência do direito. Seus principais
a um caso, inclusive com deliberação de valo res aparentemente supra ou continuadores como Boamo, WEINBERGER e B u LYGIN já se enquadram típica e
extralegais.5 A cognição do que é o direito pela ciência jurídica deveria ser expressamente nessa tradição.
fiel à forma pela qual esse é interpretado e aplicado pelos tribunais, devendo
Já a tradição anglo-saxã, em particular a proven iente de H ART, define
dar conta dos mecanismos de interpretação e argumentação jurídicas que
expressamente o problema de identificação do que é o direito, co m a identi fi-
permitem a concreção de direitos e deveres particulares.
cação do significado desse conceito. E foi H ART quem colocou o problema da
Dado que o direito é entremeado de valorações morais pelos partici- valoração em relevo, ao incorporar a hermenêutica de WnTGENSTEfN, em sua
pantes dessa prática e essas se manifestam de forma particularmente aguda no análise do conceito de direito sob «o ponto de vista interno» dos participantes
momento de concreção ou adjudicação, seria possível uma descrição (ainda dessa prática. Esse ponto de vista seria capaz de identificar o compartilhamento
que valorativa) deste sem recurso a considerações morais, ou seja, se~ consi- de critérios sobre o uso do termo «d ireito» nas atitudes de aprovação ou repro-
derações sobre seu propósito moral o u uma justificação de sua moralidade? vação de co mportamentos, em particular, pela comunidade de juízes. Usa-se
o termo «direito» para se referir ao núcleo de sentido ou às instanciações não
3· LARENZ, 1989: 113 e SS.
4 6
· L ARENZ, 1989: 160. · Para uma caracte rização da virada linguística dada pela filosofia analítica ou fi losofia da
s. LARENZ, 1989: 167 e ss. linguagem, ver RoRTY, 1992: 1-40.
j)
INTRODUÇÃO: LÓGICA E METODOLOGIA JURÍDICA
) 28 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO 29
) que _seu conteúdo ~ua~da ~om ? c~nt~údo de regras que formam O núcleo de
problemáticas das regras decorrentes de fontes sociais convencionadas pela
) comunidade de juízes como dotadas de autoridade. sentido do termo dlfe1to, 1dent1ficave1s de forma independente de considera-
ções morais. Essa relação entre o conteúdo dos princípios e desse núcleo é
t O aprofundam~nto dessa postura hermenêutica de compreensão do ?ada por i~ferências lógica~ de difere~tes t~po~, ·envolvidas no processo de
) conceito de direito vai levar à qítica de DwoRKIN sobre as valorações exer- mterpretaçao, mas, em particular, por mferenc1as abdutivas. As inferências
cidas por esses participantes, em particular nos atos de adjudicação, em que abdutivas não s~o dedutivas e envolvem valorações e atribuições de propósitos

'
}
t
é posta em prática a atividade de reconstrução interpretativa do direito. O
recurso, pelos tribunais, a princípios morais e de políticas públicas, encarados
pelos positivistas como «extralegais», revelaria a ausência de convenção
sobre critérios objetivamente identificáveis sobre o uso do termo «direito».
capazes de explicar as regras de base como resultados de atos racionais, porém
dentro de um processo controlado de derivação que se reflete nas técnicas
hermenêuticas.

,' Não haveria consenso, mas discrepância entre os próprios participantes sobre
o conteúdo e propósitos morais da prática jurídica. Daí a impossibilidade de
Assim, os valores morais ou políticas públicas envolvidos na recons-
~ru~ã~ inte1:Pretativa do ordenamento pelos tribunais ou pela dogmática
JUnd1ca denvam, tal como as regras, sua autoridade de um dado externo: a

•,
compreensão moralmente neutra dessa prática, sem que o teórico se posicione
convenção social sobre as fontes de direito. Porém, esses princípios não são
sobre a mesma.
derivados imediatamente dos critérios e nem são parte dos critérios dessa
Esse ataque provocou uma grande divisão entre os positivistas, que, convenção. São, antes, derivados por inferências lógicas, não necessaria-

•,• aparentemente, convergiam sobre teses centrais, em particular sobre a objetivi-


dade do núcleo de sentido dado pelo termo «direito». A crítica, porém, mostrou
que aquilo dado como certo, envolvia diferenças importantes, principalmente
com relação ao papel da interpretação e o pressuposto de objetividade desse
mente dedutivas, a partir das regras por ela identificadas. O ponto é que se os
conteúdos de valores morais valem como razões jurídicas, valem não pelo seu
mérito, mas pelo fato de serem derivados por processos racionais a partir das
regras dotadas de autoridade, que, indiretamente, os endossam. A neutralidade
núcleo de sentido. Com isso, DwoRKIN trouxe um avanço importante ao seio moral (mas não valorativa) da ciência do direito é, assim, recolocada como
) da teoria analítica, consistente no resgate da hermenêutica e da justificação uma possibilidade teórica.
) de normas e decisões jurídicas por princípios morais ou de políticas públicas
Para percorrer esse caminhÕ, será apresentado, no Capítulo 2, o debate
colhidos pela vivência do direito em uma comunidade.
) ~t°:al da filos..ofia an_alítica do dir~ito, centrado _na crítica de DwoRKIN ao posi-
Essa caracterização dos princípios morais empregados na adjudicação, uv1smo. Sera exammada com cmdado a tese que chamo de «objetividade das
) por estarem na base das valorações que justificam a criação das normas, fontes», que reputo crucial para entender a forma pela qual DwoRKIN pretende
) funcionou como um divisor de águas: seriam esses princípios extrajurídicos minar as bases do positivismo, além do que, aponta um caminho de resposta
) ou jurídicos? A recusa em ver os princípios empregados pelos tribunais como a sua objeção.

,
parte do conceito de direito parece ignorar a forma pela qual os participantes
) aplicam esse termo, muito embora tenha sido essa a reação de muitos positi- No Capítulo 3, faço uma breve apresentação da inferência abdutiva, sem
vistas. Mas, por outro lado, se esses parâmetros normativos são jurídicos, o me ater aos aspectos formais, apesar do grande desenvolvimento de lógicas
abdutivas no campo da inteligência artificial. Estou menos preocupado em
que caracterizaria sua juridicidade?
) explicitar ou formalizar os mecanismos desse tipo de inferência no discurso
A resposta a tal pergunta é crucial para a ideia ou a possibilidade de normativo e mais em pensar nas consequências para a teoria do direito em se
t neutralidade. Caso a juridicidade decorra de uma valoração moral, pelo assumir a relação entre regras e princípios como uma relação de inferência
) observador, do mérito do conteúdo dos princípios e esses justificam normas abdutiva. Enfrento, então, a questão colocada no início desta introdução: se
válidas, então se quebra a possibilidade de captar tais valorações como um normas logicamente derivadas de normas válidas são válidas. Delimito o que
) dado externo. Mas como seria possível justificar a juridicidade de princípios entendo como dado externo objetivo que forma o núcleo de sentido do termo
t com conteúdo moral sem recorrer à moralidade? «direito» e proponho a versão de positivismo chamada aqui de «inclusivismo

•, O propósito deste livro é ensaiar uma resposta exatamente a essa


pergunta. Resgatando a questão inicial sobre a validade das normas logica-
mente derivadas, defendo que a juridicidade de valorações morais ou políticas
lógico». Como resultante dos argumentos em defesa do inclusivismo lógico
sobressai, aqui, ainda que de forma esboçada, uma concepção de direito como
o conjunto de sistemas normativos (fechados em suas consequências lógicas
abdutivas e dedutivas) que resultam de reconstruções interpretativas do orde-
) subjacentes ao direito, usualmente recolhidas sob a alcunha de «princípios

•t jurídicos», decorre, não do mérito moral de seu conteúdo, mas da relação namento jurídico. Argumento que essa concepção é capaz de explicar satis-
30 J ULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO

fatori ame nte as valorações morais empregadas pelos tribunais como razões
jurídicas, sem incorrer e m proble mas e nfre ntados por outras teorias positi-
vistas que buscaram se reformular para dar conta desse fe nôme no valorati vo
na atividade de adjudicação.
Meu intuito aqui é some nte mostrar a plausibilidade dessa alternativa de
resposta à crítica de D woRKIN, em partic ular ao seu desafio à possibilidade de
neutralidade moral da ciência do direito. Na verdade, ela consiste em recon-
siderar o papel dos princípios como justificações das normas e apontar que
não necessariamente essa relação leva ao morali smo. Assim, apenas quero
defende r que a crítica por ele formulada não leva à conclusão pretendida sobre 2
a impossibilidade de um conhecimento moralmente neutro do di rei to.
O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA (
Isso alivia meu onus probandi e delimita as ex pectati vas do leitor.
Não espere m qualquer ·afirmação, muito menos demonstração, de que seria ANALÍTICA DO DIREITO (
possível a neutralidade moral da ciência jurídica. Apenas faço uma objeção a
uma determinada crítica que pretendeu mostrar sua impossibilidade. Também
não esperem qualquer esforço de demonstração de equívoco das de mais alter-
nativas positivistas de resposta a essa crítica, ou que a minha proposta seria 2.1 INTRODUÇÃO
superior àquelas em qualquer sentido. Apenas vou indicar que algumas obje-
ções por elas enfre ntadas podem ser contornadas pela versão de inclusivismo A apresentação da teoria analítica do direito aqui desenvolvida não é
lógico aqui proposta. Em suma, quero apenas colocar mais uma possibilidade exausti va, não tem compromisso cronológico, nem é voltada para o exame
na mesa da teoria analítica do direito para discussão desta questão metodoló- das teorias de seus principais autores. Meu ponto de partida é o positi vismo
gica que reputo central: a neutralidade moral como condição de adequação e jurídico form ulado em duas versões influentes, a de H ART e a de l<ELSEN, (
sucesso da teoria do di reito. representantes, respectivamente, do positivismo anglo-saxão e continental.
Busco reconstruir o debate e m tomo das questões e principais argumentos
nele formu lados, que permi tam ao leitor situar, compreender e avaliar critica- (
mente o argumento deste trabalho.
Para a corrente analítica, a tarefa central da teoria do direito seria
explicar a natureza dessa prática social denominada «direito» a parti r da
seleção daquelas características que lhe são essenciais e distinti vas, devendo
essa teoria conter proposições ( i) necessariamente verdadeiras, isto é, verda-
deiras para todas as particulares práticas sociais às quais reservamos o termo
«direito» e ( ii) que expliquem de forma adequada essa prática. Isso significa
selecionar aquelas características que sejam necessárias,' mas também ilumi-

1. O fato r « necessidade» ou ex1gencia de que as proposições sejam « necessariamente


verdadeiras» tem sido recentemente alvo de discussões, baseadas na literatura filosófica sobre
essencial ismo deri vada da crítica de F I NE ( 1994). Segundo o critério de necessidade, posso ter
proposições necessárias como «o direito se manifesta por meio de linguagem (verbal ou não)»,
mas que não são adequadas por não serem suficientemente distintivas da prática j urídica, daí o
critério de adequação. Discute-se, porém, que uma teoria do direito poderia conter proposições
não necessárias, mas que ai nda assim seriam importantes ou suficientemente reveladoras para a
nossa compreensão da prática e mes mo para o desenvolvimento da própria prática (assim, o fato
de q ue os ordenamentos, em geral, são coercitivos como algo não necessário, mas importante
para a organização de nossas expectati vas e presunções sobre o d ireito - exemplo análogo
32 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 33
nadoras em destacar aquelas propriedades que diferenciam o direito de outros
brotaram do embate entre inclusivistas e exclusivistas - estes afirmando a
fenômenos e de demais práticas sociais e, por conseguinte, a ciência do direito inconsistência daqueles e aqueles afirmando a insuficiência da teoria destes.
de outras ciências. DwoRKIN, nesse fogo cruzado, teve o conforto, munição e habilidade suficientes
Aqui, a preocupação metodológica de fundo é como explicar o que é o para argumentar que, ou o positivismo colapsa em sua proposta de direito
direito de forma valorativa, mas moralmente neutra, dando conta do papel como integridade (inclusivismo) ou é insuficiente para dar conta do fenômeno
exercido pelas valorações morais que aparecem dentro dessa prática social, jurídico, em particular, da atividade de adjudicação (exclusivismo). 2
em particular, como essas valorações aparecem na atividade de reconstrução No seio dessas contraposições, fundamentalmente como uma objeção ao
interpretativa do ordenamento tendo em vista a solução de problemas jurídicos ataque interpretivista de DwoRKIN, desponta a versão de inclusivismo lógico
concretos ou hipotéticos. Nessa perspectiva, já aparécem três questões-chave, aqui defendida
a partir das quais é possível organizar o debate:
2.2 O POSITIVISMO JURÍDICO: PRIMEIRA APROXIMAÇÃO
E) O que É o direito? (daqui para frente referida por E)
/) Como Interpret'? o direito? (referida por[) É padrão apontar como elemento comum às diferentes versões do posi-
tivismo jurídico a tese de que o direito é identificado a partir de fontes sociais
D) Como Deve ser o direito? (referida por D) convencionadas (tese das fontes sociais ou convencionalismo).

O problema é se a forma como a prática social chamada «direito» se Há uma razão para essa convergência entre os positivistas. A grande
manifesta permite uma resposta independente para cada uma das três ques- ambição em construir com rigor uma epistemologia autônoma para o direito
tões. As disputas, em grande parte, giraram em tomo da afirmação ou negação foi tomada como possível pela própria humildade na definição de seu objeto.
da «necessidade conceituai» da separação ou da conjunção de, pelo menos, A constatação imediata de que partem os positivistas é muito simples: há casos
duas dessas questões. nos quais temos certeza em afirmar que uma ação está ou não está juridica-
mente justificada. Por exemplo, é possível afirmar, com toda a certeza que, no
Os positivistas analíticos tiveram sucesso em defender suas teses centrais direito brasileiro, o adultério cometido pela esposa não é uma razão jurídica
de forma coesa, diante de ataques jusnaturalistas, nas suas diferentes roupagens. para puni-la com o apedrejamento.
Porém, dividiram-se perante a crítica interpretivista de DwoRKIN e iniciaram
A questão epistemológica central do positivismo é «Por que sabemos
um debate que dominou a teoria do direito nos últimos quarenta anos. Apenas
o que sabemos sobre o direito?». Se temos certeza, então deve haver algum
agora há um esforço em mudar a agenda, voltando-se para questões meto-
conhecimento jurídico, i.e. deve ser possível identificar os critérios objetivos
dológicas como quais os critérios de sucesso que deve satisfazer uma teoria
de verdade ou falsidade dessas proposições sobre o direito. O outro elemento
sobre o que é direito? Mesmo nesse quadro abstrato, a neutralidade ou pelo
de convicção subjacente é que a objetividade somente poderia ser alcançada
menos a neutralidade moral continua a ser o critério mais controverso dentre
por meio da identificação de fenômenos observáveis. Ademais, uma propo-
os que pretendem fazer parte desse rol. Ou seja, o grande tema continua a ser sição claramente verdadeira em uma sociedade pode ser claramente falsa
a relação entre direito e moral e a possibilidade de um conhecimento do direito em outra (como o enunciado acima sobre o direito praticado no Irã), o que
valorativo, mas moralmente isento. mostra ser o direito uma prática cujo conteúdo é socialmente contingente. Daí
O mérito de DwoRKIN em separar os positivistas aparentemente mono- porque tomá-lo como um dado social, cuja fonte é externa ao observador.
líticos em dois times frontalmente rivais, os inclusivistas e os exclusivistas, Isso garante ao cientista do direito um input externo, independente de suas
leva-me a colocá-lo no centro. Após o racha, os argumentos mais interessantes valorações políticas ou morais.
Os dois maiores nomes do positivismo, KELSEN e lIART, porém, adicio-
seria a propriedade «voar» para a organização de nossas experiênci.as sobre os pássaros, ainda naram um ingrediente, que, apesar de colocá-los em outro patamar perante os
que não seja uma propriedade necessária da espécie). Nesse sentido, ver ScHAUER (2010) e demais positivistas, inseriu uma enorme dificuldade, talvez até responsável
SHAPIRO (2010). Não é o caso de adentrar nesta discussão no presente trabalho, mas de qua_lquer
forma, parece adequado separar projetos: um de.finitóri?,. na qual o ele~e~to de ?ecess1dade por todo o debate atual: o antirredutivismo, i.e. a explicação do direito e iden-
tem papel fundamental, e outro prático, no ~u?I caractenst1cas ?~º essenc1a1s, mas 1mportan!es tificação dos critérios de validade não podem se reduzir ao mero registro de
em alguma valoração sobre a prática do d1re1to, podem ter ut1hdade por exemplo em teorias
sobre adjudicação. 2· Ver DwoRKJN (2006: 188).
JU LI ANO SOUZA DE A LIJ UQUERQUE MARANI 11\0 O DEB ATE CONTEMPORÂNEO DA TEOR IA ANA LÍTICA DO DIR EITO
34 35
regularidades de comportamento. Tratava-se do esforço e m captar a 11on11ati- em última aná lise, seu tes te seja fáti co. E é nesse ponto que a solução revela
vidade característica do direito, de fo rm a independe nte da normati vidade de uma a mbig uid ade importante.
o utras práticas sociais baseadas e m regras. Para KELSEN, essa tese constituía A no rma fundamental e a regra de reconhecimento, de um lado, poss uem
um postul ado metodológico necessári o para di ferenc iar o direito de o utras um teste fá ti co. Para KELSEN, a press upos ição da norma fundame ntal confere
c iências sociais, e nquanto, para Hart, o reduti vis mo foi a fon te cios princ ipai s objeti vidade a uma ordem que sej a «globalmente considerada ejicaz».7 mas
erros dos seus antecessores, BENTHAM e AusTIN, po is o conceito de direito não a no rma fundamental não se confunde, de forma alguma, com descrever esse
poderia ser propriamente de finido sem a compreensão da «estrutura norma- fato (trata-se de uma condição que permite conceber a orde m jurídica pelas
tiva da sociedade». 3 categorias d o conhecimento). HART, por sua vez, afirma com todas as letras
As soluções para construir um conceito normati vo (e não fático) ele que «a existência da regra de reconhecimento é uma questão de fat o», a ser
dire ito foram ambas engenhosas e ambíguas . KELSEN e mpregou uma cons- exte rn amente descrito como uma prática complexa, mas normalmente conver-
trução neokantiana , na qual a no rmatividade ou imputação (Zurechnung) seri a gente, das cortes, autoridades e indi víduos em identificar o direito a partir
um a categori a a priori do conhecime nto, que, ao lado do postulado da norma de determinados critéri os.8 Isso s ignifica que essas reg ras não são resultado
fundamental (Gr1111d11orm ), e le mento capaz de de finir/constituir o objeto a de promulgação e nem são válidas (o que press upori a outra relação de vali-
ser conhecido ao identifi car/validar a fonte última de norm as v<llidas, tornaria dação). Po rém, de outro lado, tanto a norma furidamental,9 quanto a regra de
possível o conhecimento de atos de comandar como direito em «sentido reconhec imento, 10 cumprem uma função normati va, ao outorgar validade ao
objeti vo» em uma dada sociedade.4 HART, por sua vez, assu miu uma postura produto ela fonte identificada como dotada de autoridade. 11
hermenêutica, no sentido do segundo W JTTGENSTEJN,5 e propôs que a definição Esse duplo caráter, fat o e norma, j á é responsável por uma diferença
do direito deve partir da descrição dessa prática tal como ela é apreendida pelos entre seus he rdeiros, aparentemente de menor importância, mas que se reve-
próprios suje itos cuj o discurso e comportamento deve ser compreendido. É laria significativa mais tarde.
desse ponto de vista iwem o dos participantes que a prática se revela por me io
Alg uns colocaram a tônica no aspecto/ótico. Assim, 8 00010, por exemplo,
de atitudes normativas de justificação cio comportame nto conforme regras.
aponta para o caráter supérfluo da regra de reconhecime nto que apenas
Para HART, essas atitudes são constituídas de forma complexa, envolvendo
descreveria o fa to de que regras de segunda ordem (identificação, mudança
regras primárias de compo1tamento tomadas como vincul antes em função de
e adjudicação) identificam as normas válidas do sistema. Já com relação a
metarregras ou regras secundári as que es pecificam quais atos são jurídicos e
KELSEN, pareceu claro para 8 00010 que, sendo o poder constituinte um poder
cuja justificação, em última instância, dá-se por um a regra de reconhecimento,
de fato (a eficácia global), a função o perativa da norma fundamental somente
consistente no fato ou na convenção social sobre a fo nte última de validade.
teria sentido como legitimação desse poder. 12 Também R AZ vê na regra de
Essas duas so luções, baseadas em concepções fil osóficas distintas, mas nem
tanto,6 consolidaram o positivismo em torno de teses bastante semelhantes, (
' · «Com efeito, a 11or111a fi 111da 111e11tal determina: a coacção deve ser exercida sob os pressu-
que possibilitam uma compreensão normativa das fo ntes de direito, embora, postos e pela for111a determinados pela Constituição que seja, global111e flle considerada, eficaz,
pelas normas gerais, postas em conformidade com a Constituição, que sejam, de modo global,
). l·IART, 1997: 77. eficazes e pelas normas i11dividuais eficazes. A eficácia é estabelecida na nor111afi111da111ental
º· A literatura sobre a dimensão nc okantiana d a Teo ria pura do direito, o sig nificado da como pressuposto de validade.» K ELSEN, 1984: 288.
8
· H ART, 1997: 11 0 .
norma. fundamental e as consequências d essa dimensão sobre suas princi pais teses é enorme. 9
· Sobre as diferentes funções assum idas pela norma fundamental na Teoria pura do direito,
Recomendo principalmente VERNENGO, 1986, PAULSON. 1992, B ULYGIN, 1997, e RAZ, 2002 (cap.
II , item 7) . Para um questionamento do k antianismo em K ELSEN, ver W11.soN, 1986. ver V ERNENGO, 1960, 1-11: 220 e ss.
1
s. Para uma leitura da distinção de H ART entre ponto de vista interno e ex terno à luz da º· A função operati va não só é indicada pelo nome de regra, mas como em passagens nas quais
hermenêutica de WnTGENSTEIN, ver H ACKER, 1988 (cap. 1). H ART afi rma, por exemplo, que a regra estií contida no sistema normali vo ( H ART, 1997: 106) e
6. A semelhança das teses não deve surpreender, pois a inspiração de ambas tem uma que estabelece o critério supremo de val idade ( H ART, 1997: 107). A sua identificação como um
prox imidade. Conforme analisa H ACKER ( 1975: 30-3 1), tanto KANT quanto W1TTGENSTEIN fato e sua operação normativa pode ser apreendida em duas dimensões distintas do discurso.
focaram sua preocupação relati va ao método fi losófico em estabelecer os l i mites da razão e d o D o ponto de vista externo, trata-se de uma constatação e, do ponto de v ista interno trata-se do
conhecimento, bem como em identi ficar as condições de sua possibilidade. Se para KANT essa reconheci mento da val idade de uma norma d o sistema ( I-IART, 1997: 108).
11
tarefa consistiria em estruturar os princípios a priori do conhecimento, em uma cr ítica da razão · G uASTJNI, 2005.
11
· 8 0 0010, 1970. D aqui dá para entender reações como a de A l f Ross ( 1982: 153 e 155) que se
pura, para W rrrGENSTEIN a tarefa consistiria em uma c rítica da linguagem , com a identificação
das condições de possibilidade do sentido e da compreensão. referiu a K ELSEN como um q uase-positi vista (para não dizer quase-jusnaturalista).
)
)
36 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 37
)
) reconhecimento nada além do fato de que determinados atos de determinadas Mas para que a separação entre E e D seja hem sucedida, o positivismo
instituições são reconhecidos como atos criadores de direito. 13 depende ainda da tese de objetividade das fontes, segundo a qual pelo menos
)
Outros, como CoLEMAN, colocam a tônica no aspecto normativo, apon- parte do conteúdo proveniente das fontes deve ser claramente identi 'kável
) tando não só um critério de identificação de fato praticado pelos agentes, como sem a interferência de considerações valorativas.
} também um dever destes em seguir o critério de reconhecimento. 14 BULYGIN, Essa tese não é normalmente considerada nem destacada como condição
por sua vez, vê na regra de reconhecimento efetivamente uma regra, mas de para caracterização do positivismo, mas considero-a fator central, muitas
) caráter constitutivo ou definitório, o que tomaria equivocada a afirmação da vezes implícito e tomado por óbvio. Essa enganosa impressão de obviedade
) existência de um dever - pelo menos no sentido prescritivo - de obedecê-la. 15 esconde discrepâncias importantes entre as diferentes versões de teses posi-
) Não importa aqui tentar justificar ou reinterpretar as teorias de HART e KELSEN tivistas que vão se revelar decisivas principalmente com relação à afirmação
para dar sentido a esse duplo caráter. Importa apenas destacar que a ambigui- de E;é/. Não vou problematizá-la agora, pois boa parte do argumento deste
) dade gerou, entre seus seguidores, duas versões da tese das fontes sociais. trabalho reside em trazer esse aspecto à luz, de forma que sua importância será
) Segundo a versão fraca, a norma fundamental (ou a regra de reconhe- melhor compreendida, principalmente, na Seção 3.5.
) cimento) é simplesmente a constatação do fato de que as fontes dotadas de Por enquanto, usarei a concepção de objetividade padrão entre positi-
autoridade são identificadas conforme determinado critério. Segundo a versão vistas, enunciada por MARMOR, como a existência de casos claros nos quais
) forte, a identificação das fontes, conforme esse critério, seria o conteúdo de as regras decorrentes da fonte podem ser entendidas e aplicadas de forma
) uma regra obrigatória para os participantes da comunidade. Há outro ponto imediata, sem necessidade de recurso à interpretação. 11 Nesse sentido, a
) ambíguo decorrente desse. Em geral, para adeptos da versão fraca, o critério resposta à questão I também seria simplesmente «não importa», pois naquilo
identifica a autoridade e obrigatoriedade das regras (ou das instituições que que conhecemos e podemos justificar como conhecimento do direito, a inter-
) ditam as regras), dado que a forma pela qual são reconhecidas é uma questão pretação não intervém e não precisa intervir.
) de fato que constitui o critério. Já para adeptos da versão forte, em geral, como
Na verdade, esse «não prec_isa» é, antes de tudo, um «não pode» intervir.
o critério desempenha função normativa, então quem detém autoridade e obri-
) Trata-se aqui de tecer um cuidadoso cordão de isolamento. Justamente na
gatoriedade é o critério, como uma regra jurídica de determinado conteúdo
interpretação há uma referência inevitável ao conteúdo, o que abre um peri-
} (embora nem posta, nem válida). 16
goso ponto de contato entre a cognição e valoração (moral) de seu sentido.
) Essa divergência (até aqui, menor) não afeta a ideia básica dada pela Foi essa proximidade que inclinou os positivistas a descartarem o chamado
versão fraca da tese das fontes, capaz de responder à questão E acima. Como o «método hermenêutico» do romantismo alemão. 18 É essa abertura da inter-
}
direito é identificado por esse fato social contingente e a autoridade das regras pretação à valoração moral que faz os positivistas identificarem as questões
) é proveniente, em última análise, de quem comandou e não do que foi coman- I e D, a ponto de KELSEN encarar a interpretação como ato político, atividade
) dado, qualquer aonteúdo pode ser conteúdo de regras jurídicas válidas. Daqui consistente em escolhas baseadas em convicções subjetivas, interessando ao
decorre a separação entre moral e direito, ou seja, o mérito moral do conteúdo direito apenas separar aquelas escolhas autênticas (realizadas por autoridades)
) das normas não é elemento relevante para a definição de sua juridicidade (tese das não autênticas.
) da separação). A resposta, portanto, à questão D é: para o conhecimento do
Embora entrar no conteúdo das normas coloque em risco a tese da sepa-
direito não importa como o direito deve ser. Para muitos positivistas, em geral
) ração, os positivistas não podem abdicar da tese de objetividade das fontes.
céticos quanto ao cognitivismo ético, a resposta à questão D não importa, pois
Essa também pode se dividir em duas versões, fraca e forte. A versão fraca
} qualquer tentativa de fornecê-la seria o resultado de uma valoração subjetiva
afirma que a identificação das fontes dotadas de autoridade é objetiva. A
) sobre o conteúdo do direito. versão forte acrescenta a essa identificação das fontes a tese de que parte do
) conteúdo promulgado também é identificável sem necessidade de recurso a
13•RAz, 1986. considerações valorativas. KELSEN, por exemplo, defende a versão fraca, ao
14. COLEMAN, 1998: 381-426.
) 15 afirmar, metaforicamente, que as normas seriam molduras nas quais caberiam
· BULYGIN, 1991: 383-391.

} 16
· Só esta última distinção já é tomada por HlMMA (2002: 128-129) como divisora de águas
entre inclusivistas, que vêm o critério como dotado de autoridade e os exclusivistas, que vêm as 17
· MARMOR, 2005: 96 e SS.
) regras como dotadas de autoridade pelo fato de ser usado o critério. 18
· Ver Alf Ross, 1994, e KELSEN, 1984.
j
)
38 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 39

diversas atribuições de sentido e mesmo atribuições fora dela. 19 Já HART, em crenças e valores da comunidade sobre a relação da natureza com o homem,
sua crítica sobre o ceticismo sobre as regras resguarda pelo menos um núcleo sendo, em última análise essa a fonte de razões jurídicas para as ações.
de sentido para as normas, que traz instâncias de aplicação objetivas. 20
No caso «a. l» é viável a atitude crítica, mas esse se confunde com a
Embora busque segurança contra a contaminação moralista por meio da versão forte da tese de objetividade. No caso «b», a atitude crítica também
abstração do conteúdo das fontes, a tese da objetividade fraca não é suficiente é possível, porém às custas da tese de separação, já que o conteúdo não é
para sustentar a tese da separação, pois é incapaz de conferir um mínimo de determinado, em última instância, pela fonte. Por sua vez (a.2) não se coaduna
racionalidade ao convencionalismo sobre as regras. à tese aceita pela grande maioria dos positivistas (pelo menos os herdeiros
de HART e KELSEN) segundo a qual, em sociedades minimamente complexas,
Para conferir essa afirmação, suponha uma comunidade que justifica
o critério de identificação das fontes envolve uma relação entre regras de
juridicamente suas ações a partir das formas das nuvens. Para tomar decisões
competência e regras de conduta (pedigree ou estrutura escalonada). Se essas
sobre como agir, a fonte é clara e simples de ser acessada: basta olhar para o
metarregras partissem também da observação das nuvens, seria impossível
céu. Portanto, fica satisfeita a condição mínima de objetividade da fonte. Mas a própria convenção sobre as fontes dotadas de autoridade. Foi esse o argu-
a sua ininteligibilidade, pelo menos no estado atual de conhecimento, toma-a mento empregado por HART contra o ceticismo absoluto acerca. do conteúdo
insuficiente para uma justificação independente das ações. das regras, que o levou a uma posição moderada.
A versão fraca de KasEN incluiria molduras de referência de possíveis O positivismo, assim, assentado na tese de objetividade forte das fontes,
instanciações do conteúdo das fontes. Nesse caso, para uma forma x das cumpre a tarefa a que se propôs: explicar de forma objetiva por que sabemos
nuvens, alguns membros da «comunidade nebulosa» agiriam de modo y, o que sabemos sobre o direito. Os próprios positivistas têm ciência de que
talvez a maioria, outros de modo z, outros de modos. Mas não haveria um isso significa restringir drasticamente o objeto de conhecimento do direito,
caso claro sequer de instanciação para qualquer forma x. Será que poderíamos deixando de lado a explicação de qual é o conteúdo do direito naqueles casos
tomar efetivamente essa resposta como a descrição de uma atividade de de penumbra em que o conteúdo das regras é sub- (lacunas, vagueza) ou
seguir regras? Ainda que a maioria se comporte de forma convergente, nessa sobre- (conflitos) determinado. Nesses casos, quais seriam as razões jurídicas
descrição não há a percepção nem a possibilidade de atitudes críticas com empregadas para a ação? A resposta dos positivistas apoia-se, de novo, na tese
relação ao comportamento em conformidade com as nuvens, isto é, não há de objetividade das fontes: as autoridades objetivamente convencionadas tem
padrão convencionado que permita àqueles que interpretam x como y criticar poder para decidir esses casos, inclusive com base em razões extrajurídicas
o comportamento daqueles que fazem z ou· s ao observarem x. Restam duas (tese da discricionariedade). Mais uma vez, evita-se entrar no conteúdo e nos
alternativas para o comportamento crítico (racional) convergente na comu- critérios empregados na atividade de interpretação, abstraindo-se de como as
nidade nebulosa: (a) ou são identificadas autoridades na comunidade que decisões sobre a ação são juridicamente justificadas nesses casos pelo intér-
«interpretam» as formas das nuvens, situação na qual a convenção de validade prete ou pelas autoridades, para se concentrar no fato de que decisões sobre
jurídica seria efetivamente sobre essas autoridades e, nesse caso, (a.l) ou as a ação são consideradas juridicamente justificadas, independentemente de
regras válidas seriam dadas pelas decisões reiteradas destas sobre como agir, seu conteúdo, porque foram tomadas por autoridades (não importa como são
em diferentes situações, identificando-se aqui um mínimo de objetividade decididas, mas que são decididas).
sobre algum conteúdo, ou (a.2) o critério socialmente identificado ficaria Em geral, os positivistas clássicos encaram as questões iniciais como
reduzido à vontade de algum soberano firmado na ameaça de sanção, sem que E#=D e oferecem as seguintes respostas, calcados em quatro teses (fontes
haja qualquer possibilidade de crítica ao conteúdo de suas decisões; (b) ou a sociais, objetividade forte, separação e discricionariedade):
ligação das formas com as condutas teria instâncias acordadas, baseadas em
E) O que é direito? É o conjunto das regras provenientes das fontes
sociais convencionadas como dotadas de autoridade (tese das fontes sociais);
t9. KELsEN, 1984 (cap. VIII); na mesma linha RArn, 2008. KELSEN, quando afirma que uma
norma de um escalão superior determina parcialmente o conteúdo da inferior (por isso a metáfora 1) Como o direito é interpretado? Não é, ou não importa. O conteúdo
da moldura), parece se aproximar da versão forte. Mas ao assumir a possibilidade de decisão do direito é dado pelo núcleo de sentido claro das regras válidas (tese da
fora da moldura como parte da atribuição da competência, i.e. ao assumir que interpretar não é
ato de conhecimento, ele se toma inequivocamente um autor da versão fraca (sobre sua virada objetividade forte das fontes). Naquilo que não for claramente indicado pelas
irracionalista, ver Seção 3.3). regras, as autoridades convencionadas têm poder para determinar o conteúdo,
20. HART, 1997 (cap. VII). inclusive com base em razões extrajurídicas (tese da discricionariedade);
40 JULIANO SOUZA DE ALB UQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEM PORÂNEO DA TEORIA ANA LÍTICA DO DIREITO 41

D) Como deve ser o direilo ? Não im porta para o co nhecime nto o u iden- A fórmu la d e RADBRUCMIALEXY pode se r inte rpre tad a de duas formas. Ou
ti ficação do que é o dire ito, ape nas pa ra sua c rítica (tese da separação). é contraditó ri a, po is esta belece do is c rité ri os incom patíveis co mo condição
de validade. Esse é o to m, po r exe mplo, da c rítica de B uLYGIN. 24 Ou reafirm a
2.3 C RÍT ICAS PR ELIMINA RES o positi vismo e m sua teori a da validade, inc luindo apenas cons ideração de
orde m política so bre o dever mo ral de não seguir normas válidas que sejam
Os ataques ao positi vismo ou ao es forço e m se produzir uma teori a mo ral - graveme nte injustas. Dessa última perspec tiva, os o pone ntes atacariam tão
me nte neutra do direito são provenie ntes, como be m apa nhado por D1CKSON, some nte que a ne utralidade positi vista s ig nificaria o missão no deve r do teóri co
de três linhas : do direito de c riti car a ord e m como antijurídica.
(i) a ide ntificação moralme nte ne utra do direito pode traze r consequê n- Mas ta mbé m e m te rmos de moralidade po lítica há respo sta do s p osi-
c ias mo rais indesejáveis (tese das consequências morais); tivistas a esse ataq ue, muito be m art ic ul ada por SCHAUER,25 que desd ob ra o
(ii ) o d ire ito é visto pelos parti cipa ntes como prá ti ca social moralme nte e píte to de HART sobre os ri scos d a mo ralidad e imo ral26 (imoral morality). A
justifi cada (tese da justificação moral); proposta metodo lógica d o positi vismo pode ser d efe nd ida també m por s uas
(iii) para compreende r o direito como práti ca social é necessá ri o atri - consequê ncias morais benéficas, na medida e m que o aco rdo _sobre as fontes
buir-lhe al gum propósito, o que carrega valorações mo rais (tese da valoração (convencionali smo) pe rmite ide ntificar co m cla reza o objeto de c rítica moral.
moral). A expressão jusna turalista «a Lei má não é lei» some nte pode ser fo rmul ada,
antes de tudo, pelo fato de haver um acordo sobre o que é a lei. 27
A primeira linha de a taque, e mbora se a presente, po r vezes, e m roupagem
d escriti va o u conceituai, é me no s um argume nto decorre nte da a nálise da O positi v is mo , ao se resumir a ofe recer c rité rios de ide nti ficação das
natureza da prá ti ca social e mais uma reco me ndação po lítica aos teóricos do regras dotadas de a uto ridade, pauta-se por me todologia que traz maior cla reza
direito no se ntido de que a ide ntificação do direito deve levar e m conta fins e pe rmite definir com mais precisão as p osições dos de batedores mo rais e m
morais, sob pe na de se legitimar, como dire ito, orde ns imorais (ou sej a «deve j ogo. Se confundirmos de te rminad a defesa moral da lei co m o co nteúdo do
ser que E=D» ). Esse ri sco justificaria o e ngajame nto do teórico do direito na que a pró pria lei di z, e ntão se rá.difíc il afirmar se aque la lei é ou não imoral ou
de fesa de perspectiva moral capaz de trazer consequê ncias be né ficas pa ra a se traz ou não consequê ncias moralme nte maléficas, o que tom ari a o debate
sociedade, o que implica uma teoria normativa defe nde ndo como o d ireito opaco e pe m1üiria, aqui sim, a afirmação de Estados auto ritário s que vio le m
d eve ser, d e forma a exercer algum tipo de controle so bre o conte údo do s atos velad ame nte o direito posto em nome de um a prete nsa moralidade supe ri o r.
d e autoridades. Assim, qua ndo questi onado sobre seu valo r moral, o positi vismo o defende
com base e m ideal de mocrático procedime nta l, inspirado pela to lerâ ncia de
Essa linha, representada po r RADBRUCH21 e subj acente à controvérsia qualquer co nteúdo como possível conte údo de direito . De qualque r fo rma, para
entre HART e FuLLER,22 o fe rece um co ntra-argume nto aos positi vistas no que os positi vistas, a questão sobre o melhor comporta me nto social dos teó ri cos
se refere ao exame conceituai d a prática. O argume nto (i) implica reconheci- do direito não se confunde com o exame d a natureza de seu objeto de estudo.
mento implíc ito da possibilidade de ide ntificação de uma o rde m jurídica com
conte údo conflita nte ao de uma orde m moral. A famosa fórmul a de R ADBRUCH, 24 V er cont rovérsia entre Robert A LEXY e Eugênio 8 ULYGIN em A LEXY e 8 ULYGIN, 2005 ; A LEXY,
inclusive, é construída sobre base positi vista (co mo se sabe, RADBRUCH so bre- 20 LOb, e B uLYGIN, 20 1O.
punha o valor ele segurança jurídica à justiça pe rfilha ndo o positi vis mo a té 25 · SCHAUER, 1996.
26
testemunhar os horrores do nazismo): o direito positi vo decorre nte do poder · H ART, 1983 (cap. 2) .
27 · D rCKSON, 200 1, critica a defesa de Schauer sobre as consequências benéficas do positi vismo
constituído te m precedê ncia ainda que sej a injusto ou falhe em be nefi ciar o
co mo « ilusória» (wislifull 1hi11ki11g) e que incorreria em uma petição de princípio. O u sej a,
povo, a não ser que o conflito e ntre a lei e a justiça alcance grau in tolerável. Schaucr defenderia q ue seria preferível uma teoria do direito descriti va a uma nom1at iva por
ALEXY fica be m próximo disso, ao te ntar conciliar a tese pos itiv ista das fo ntes suas consequências benéficas cm perm itir um debate sobre a moralidade do direito mais clara
sociais à pre te nsão de correção moral, que estaria na base da re lação comuni- e precisa, co mo prem issa para a conclusão de que o direito pode ser abordado descritiva e
avalorativamente (que j á estaria pressuposta na sua premissa) . A crítica tal vez possa se adequar
cativa d as autoridades com os suj eitos normativos. 23 ao conteúdo do artigo Positivism as Pa riah (SCHAUER, 1996), mas certamente não faz j us à
teoria do d ireito por ele defendida (Sc1·!AUER, 1998) . O argumento das consequências morais
2 '- RADIJRUCM, 1946. 1947 ; H ART, 1983 (caps. 2 e 16); RADIJRUCH. 2006. benéficas·apenas aparece para ScHAUER, no conjunto de sua obra, assim co mo para H ART, para
22
· FULLER, 1958 ( item V I ), e HART, 1983 (caps. 2 e 16). contrapor até mesmo um argumento moralista contra o positivismo, que, para ambos, é retórico,
23 · A LEXY, 20J0a. não conceituai, e sujeito a contra-argumento também moralista e retórico.
42 JULI ANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANl-l/\0 O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANAlÍTICA DO DIREITO
43
A segunda linha de ataque ao positivis mo (tese ela justificação mora l) é um_a razão objetiva para ag ir. 32 O própri o RAz também assu me haver, neces-
dad a pela identificação das questões E e D, caminho empregado, por exemplo, san amente, uma_pretensão de Le~irimidade moral das normas jurídicas, que,
por FINN IS.28 por vezes fa lsa, e o pon to d e partida para a explicação racional d a autoridade
do di reito.33
F1NN1s parte da proposta hermenê utica ele HART de compree nsão d a
normati vidade do dire ito pelo ponto de vista interno de seus participantes, Dessa concessão, i.e. da presunção pelos participantes de moral idade
que justificam seu comportamento a partir da con venção sobre a coordenação das obri gações j urídicas, F1NN1s avança a tese de que o teórico do direito tem
desse compo rtame nto por meio de regras. Mas um d os aspectos importantes n~cessariam~nte que se pos ic ionar sobre a correção dessa compreensão refle-
nesse comportamento, justamente do ponto de vista dos participantes, está na x1va.34 Ou seJa, não basta entender o di reito como insti tu ição a o ferecer razões
consideração de que, em linhas gerais, esses valoram e atribuem legitimidad e para a ação, mas s im como instituição capaz de oferecer boas razões para a
moral às no rmas que aplicam e estão suj eitos, ou, no mínimo, d e que a própria ação confo rme padrões de razoabilidade prática que justifiquem moralmente
prática social é co nsiderada como moralmente justifi cada. 29 essa forma de coordenação35 (pois é assim que os participantes a valoram).
Essa reflexão sobre como são obtidos os benefícios com uns presumidos ao
Esse fa to r é reconhecido pelos pró prios positi vistas. HART claramente se coordenar o com portamento confo rme regras, que consiste 11a base última
toca nesse aspecto como relevante para a explicação do fenômeno jurídico, da autoridade do legislador, fo rmari a o sig nificado focal (focai 111ea11ing ) do
ao falar que, normalmente, espera-se dos s uj eitos que justi ficam s uas ações ~ermo «di~·e ito». Mas é_in teressante que F1NNIS não endossa a tese de que O
com base em regras um mínimo de adesão, ou que haja um rrúnimo de compa- J~snatura lismo, e m partic ular a sua versão, esteja necessari amente comprome-
tibilidade entre a orde m e as convicções morais e po líticas da comunidade, ttdo com a tese «lex injusta non est Lex». 36 Seu ponto é q ue:
caso contrári o, seri a d ifíc il a manutenção daquela. Note que HART não coloca «( ... ) a principa l preoc upação jusfi losófica de uma teoria do Di reito natural
a moralidade como cond ição necessári a de validade, apenas pondera que a é, a~sim, identificar o~ princípios e limi tes do Es tado de Direito e traçar O
absoluta incompati bilidade e ntre a o rdem e a moralidade dos sujeitos tende a caminho pelo qual leis corretas, e m toda s ua positividade e mutabilidade,
levar à perda de eficácia. 30 Ou seja, a validade, em última análise está sempre devem ser derivadas (não us_ualmente deduzidas) a partir de princípios imutá-
veis - princípios que reti ram s ua força de sua razoabilidade, não de qualquer
ligada à existência ou não da convenção social manifestada pelo comporta-
ato ou c ircunstância geradora.»37
me nto crítico convergente, portanto à ide ntificação de um Jato social. Alf
Ross, por sua vez, defi ne norma vigente como aquela que provavelmente será Portanto, F1NN1s parece propor que o núcleo de sioni ficado do termo
aplicada a partir da observação da experiência ps icológica dos j uízes, o que «d ireito», dado pelos padrões de razoabi lidade prática,º deve exercer uma
não deixa de ser info rmado por determinada «ideologia». 31 Mesmo KELSEN, ao espécie de «co ntrole de deri vação» das normas do direi to pos itivo, olhando-
se afastar do reduti vismo, assume, no mínimo, que a prática social de cumprir as como resultantes da persecução desses princípios jusnaturalistas, o que se
normas seja normativa111e11re j ustificada e a função operativa da no rma fu nda- apr~xima bastante da ideia d e LEIBNIZ e do esforço de juristas de seu tempo no
sentido de «demonstração» das normas do direito positi vo a partir do direito
mental, como aponta BoBDIO, funcio naria como uma legitimação, o u, como
natu ral, trazendo-as para a sua melhor justificação como parte da ati vidade
coloca RAz, essa normati vidade carregaria uma «ideologia específica» de
de interpretação. 38 O caminho, então, parece ser, de in íc io, a convicção de
justi ficação do compo rtamento confo rme à ordem estabelecida, ou seja, como
que o di reito é, em seu sentido focal , aquilo que deve ser (E=D ). Mas para
identificá- lo como tal há uma atuação da in terpretação do material positivo, a
28 · Í'INNIS, 1980. parti r dessa j ustificação mora l (!=D) .
29· D1c KSON insere F1NNIS dentro da tese da valoração moral, pois também aqui Finnis faz a
assertiva de que a valoração do que é importante para o direito parte da valoração dos próprios
32
agentes e, uma vez seguido esse caminho, não há como evitar que o teórico tome uma posição · RAZ. 2002 (cap. ll, i1em 7).
33
valorativa sobre o direito. Esse é basicamente o argumento de FINNIS no Cap. 1de Natrtral Law RAZ, 2001: 215.
·
34
c111d Natural Rights . Para uma apresentação e crítica do argumento ver especialmente (D1CKSON, · fJ NNIS, 1980: 13-1 8.

200 1: 38-49). Como a valoração em questão é a j usti ficação moral da prática, prefiro tratar o Js. Esses padrões de razoabil idade prática são desenvolvidos e discu1idos longamente por finnis
ataque dentro da tese de justificação moral. em obra sobre filosofia mora l (F1NN1s, 1983). Ver B1x, 2002, para uma apresentação resumida e
.10. PERRY, porém, defende que :i teoria do direito do próprio I-IART, em função da justificação comparação com outras propostas jusnaiuralisatas mais recentes.
36
moral presente no ponto de vista interno, não possa ser lida como descritiva ou avalorativa · fl NNIS, 1980 (l:ap. XII).
37
(PERRY, 1998). FiNNIS, 1980: 35 1 (lrad. li vre).
38
" Alf Ross, 1994 (caps. II e XV II). · Ver LEIUNIZ. 2008: 83.
}J
1) JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALfTICA DO DIREITO 45
44
.)
) A resposta positivista restringe-se a reafirmar E*D. O reconhecimento que esse mínimo de valoração para identificação do direito está necessaria-
de que os sujeitos consideram a prática de seguir regras como moralmente mente ligado a uma justificação moral substantiva da prática jurídica.
t justificada não implica posicionamento do teórico sobre sua correção ou


A assunção inicial é a de que o propósito básico do direito é guiar a conduta
incorreção moral (i.e. se a prática é boa ou má ou se os sujeitos normativos por meio de regras. 42 Para que cumpra bem essa função há uma «moralidade
estão corretos na sua avaliação, ou ainda, considerar como direito apenas mínima interna ao direito» (inner morality of Law), que ele também chama
l aquilo que, segundo determinada perspectiva, seja moralmente justificado). A de «princípios de legalidade», segundo a qual as regras devem ser: a) gerais
) legitimidade da prática de seguir regras não depende da efetiva legitimidade (para todos); b) públicas (os sujeitos afetados devem conhecê-las); c) abstratac;
) moral das mesmas. Apenas, pressuporia, para RAz, 39 por exemplo, a crença dos (referir-se a hipóteses prospectivas e não regular retroativamente); d) claras e
participantes na legitimidade das regras (a crença de que as razões das regras, inteligíveis; e) livres de contradições; f) passíveis de cumprimento; g) razo-
t em geral, são boas, ou a crença em que provavelmente estarão melhores, no avelmente estáveis (não podem ser alteradas a todo momento); h) aplicadas
t agregado, se as seguirem em vez de seguirem as próprias deliberações). HART
propõe uma versão ainda mais fraca, em que nem mesmo a crença na legitimi-
de forma congruente pelas autoridades. 43 Até aqui, embora os positivistas não
) assumam tais pontos como condições necessárias de identificação, é razoável
dade das regras seria necessária, bastando somente a crença na legitimidade assumir que as regras cumpririam melhor sua função de guiar a conduta
t da prática de se seguir regras, em vez de não segui-las: caso se aproximassem ao máximo dessas características. O próprio FULLER
) «Até mesmo a condição mais fraca de que, para a existência de uma regra reconhece ser a satisfação desses requisitos questão de grau, com exceção da
social, apenas é preciso que os participantes acreditem haver boas razões publicidade, além de admitir que um princípio possa excepcionar o outro em
) morais para obedecê-las é já muito forte como condição geral de existência algumas circunstâncias. 44
de regras sociais. Pois algumas regras podem ser aceitas simplesmente em
função da deferência à tradição ou do desejo de se identificar com outros ou Nesse mínimo de moralidade, porém, não há propriamente ligação com a
1: da crença de que a sociedade sabe melhor aquilo que beneficia os indivíduos. crítica moral ao conteúdo das regras. O exemplo subjacente à discussão, aliás,
! } . Essas atitudes podem conviver com a percepção, mais ou menos vívida, de que é o direito praticado na Alemanha nazista e, embora esse violasse diversos
1:): tais regras são moralmente questionáveis.» 40 desses requisitos em larga extensão, não é propriamente esse o motivo pelo

1}. No fundo, a justificação moral em seguir regras pode ser lida no sentido
de justificação racional da escolha (autônoma) pela heteronomia, que foi justa-
qual o condenamos moralmente. FuLLER, porém, esforça-se em fazer uma
ligação entre a violação a esses requisitos internos de moralidade e a «imora-
l) mente o desafio enfrentado pelos contratualistas, resultando em concepções
lidade externa» da ordem, isto é uma ordem injusta e contrária ao bem estar.
O argumento de FULLER é complexo e instancia-se em exemplos de governos
que vão do extremo hobbesiano, em que praticamente não há restrições à sobe-
) rania, 41 à afirmação de direitos humanos contra a autoridade do Estado. Assim,
autoritários nos quais a ausência de clareza, publicidade ou retroatividade foram
mecanismos para ocultar injustiças cometidas (aqui o argumento aproxima-se
) pelo menos conceitualmente, a justificação da coordenação por meio de regras
também da tese sobre as consequências moralmente benéficas de ordens que
pode ser «oca», no sentido de que é melhor ter regras do que não tê-las, e não
1) pressupõe que as regras devam oferecer razões moralmente aceitáveis.
satisfaçam os princípios de legalidade). O problema está na dificuldade em
) mostrar uma ligação conceitualmente necessária entre a moralidade interna
A terceira linha de ataque (tese da valoração moral) é bem representada e externa, sintetizada na tese de FuLLER de que «coerência e o bem têm mais
) pela famosa polêmica entre HART e FULLER, que se travou em duas frentes, a afinidade do que coerência e o mal». 45 Tal tese apoia-se na crença de que o
') afinnação de E=D e a afirmação de E=l. dever de justificação das decisões perante os comandados constrangeria as
Na primeira frente de ataque, E=D, FuLLER parte da tese da valoração autoridades a construir e operar em uma ordem baseada ou que pelo menos
}
moral, porém busca reduzir a atribuição de um propósito ao direito a um
J mínimo aceitável até mesmo pelos positivistas. Seu passo seguinte é mostrar
42
· Tal propósito mínimo é aceito pelos positivistas. HART, além de aceitá-lo como mínimo,
postula-o como limite máximo: «/ think it quite vain to seek any more specific purpose which
} law as such serves beyond providing guides to human conduct and standards o/ criticism o/
39. Esse é o conteúdo da tese de justificação normal da autoridade de RAz. Para um exame such conduct» (HART, 1997: 249).
) 43. FULLER, 1969: 41-42.
crítico das diferentes formulações dessa tese na obra de RAz, ver SousA, 2012. Ver também
44
1) HIMMA, 2005. · FULLER, 1969.
4s. FuLLER, 1958: 636 (trad. livre): «coherence and goodness have more affinity than coherence
40· HART, 1997: 257 (trad. livre).

} 4
1. Contra essa leitura de HOBBES, ver ZAGORIN, 2009. and evil».
j
JULIANO SOUZA DE ALB UQUERQUE MARA NI11\ 0 O DEBATE CONTEM PORÂNEO DA TEORIA AN ALÍTICA DO DIR EITO
46 47

guarde coerê ncia com um bom pla no, o u me lhor, um pla no moralme nte bom, suas val orações e cxpectativas .51 Uma le itura do positivismo descompromis-
com relação ao qual a ordem serviria como instru mento. sad a com esse ideal de fidelidade à le i seria, para FULLER, me todologicamente
des inte ressante, sendo a ne utra lidade ac lamada pelos posi ti vistas nada mais
HART observa que FuLLER confunde as noções de eficiê ncia de algo e m do que uma te ntati va de mascarar a presc rição de fidelidade .52
relação ao seu propósito com a moralidade desse propósit0. 46 Na verdade,
No que toca e m geral à tese da valoração moral, avançada por FuLLER e
há nesse aspecto, uma mistura d os três tipos de c ríti ca a um a teori a moral-
também por F1NN1s (este ú ltimo qua ndo toma a justificação moral como uma
mente ne utra d o direi to, a valorativa, a das consequências be11.éficas e, por valo ração dos partic ipan tes), o pos iti vista te m a dizer que a observação de
fim, ajustifzcação moral da ordem, todas decorre ntes cio fa to de FuLLER usar o uma valoração não necessariamente implica uma valoração pelo observador,
mesmo termo, «be m» (goodness), e m três sentidos di versos . ao me nos não no se ntido de tomada de posição moral, ou como HART coloca,
FULLER parte de um mínimo de valoração mo ra l baseado em uma noção de «uma descrição pode ainda ser uma descrição ainda quando o que descre ve
be m, que VoN WR1GHT" 7 chama ele be m instrume ntal (instrumental goodness). f or uma valoração».53 Ainda que se conceda haver necessari amente valoração
O be m instrume ntal é o bem para um propósito e te m a ver com a e fic iê ncia da práti ca pela teori a do di reito ao captu rar esse aspecto valorativo interno,
não se trata aqui, necessaria me nte, de valoração moral. Continuaria a se r
pela qual algo é tomado co mo bom exemplar ou re presenta nte de seu ti po
poss ível respo nde r como o d ire ito é, abarcando os va lores reconhecidos no
(good of its kind). Um direito que satisfaça o s princípios de legalidade de
interior dessa práti ca, sem fo rmu lar um a teoria norma ti va sobre como deve
FuLLER é um bom exemplar de uma o rde m c ujo propósito st:j a g ui a r a conduta.
ser essa prática. Essa distinção é bem e la borada por D1c KsoN com a noção de
Mas o insucesso da orde m e m satisfazê-los não s ignifica que seja uma ordem j uízos valorati vos indiretos (indirectly evaluative j udgements).54 Ao escrever
moralme nte má, a pe nas uma orde m pobre o u deficie nte para esse propósito.4 a biogra fia de alg uém , a partir de suas próprias va lorações, posso selecionar,
E tais juízos, segundo VoN W RIGHT, são verd adei ros o u fa lsos, de fo rma q ue valorativamente, a importâ nci a de uma viagem ao exterior, o que seria um
essa valoração, por e nqu anto, não implica atitude moral. O o utro passo de j uízo valorativo indire to, mas isso não s ig ni fica tomada de posição sobre se
FuLLER, ao defender que uma o rde m conforme aos princípios de legalidade ter viajado ou não foi bom ou ruim para a vida daq uela pessoa (o que seria
difi culta ria governos malévolos, e mprega a noção de bem 11tilitário,·19 que te m um j uízo valorati vo dire to). D a-mes ma fo rma, a seleção dos aspectos impor-
a ver com algo ser be né fico para alg ué m (good for ou gooci to have). A o rdem ta ntes da prá ti ca que chamamos dire ito, mesmo o fato de q ue os participantes
conforme aos princípios de legalidade seria não só boa e m seu propósito como valoram a ordem j urídica, em geral, como moralmente justificada, não implica
benéfica. Aqu i s i111 a noção contrári a ao be m é o malefíc io o u o prejudicial e um julgamento sobre o va lo r moral desses aspectos.
há uma ligação com a noção é tica ele be m-esta r. Mas a fo rma pela qua l FuLLER FULLER aind a traz um a rgu mento importante contra a pretensão descritiva,
(ioa
o o be m instrumental da o rde m ao seu be m utili tário implica um a a mp liação desta vez a tacando a tese da objetividade forte das fon tes sociais. A c rítica é
d o seu propósito orig inal, ou seja, esse não se limitaria a g ui ar a conduta, mas construída sobre a a ti vidade d e interpretação e sua relação co m a ide ntificação
consistiria e m g uiar a conduta para o be m comum (tese d a justifi cação moral do conteúdo das fon tes , afi rma ndo E=l, o que , dado a concord ância de HART
da o rde m), e ntra ndo j á e m uma te rceira noção de be m, q u·a 1 sej a, be m no com l=D, leva imediatamente a E=D .
sentido de bem humano ou bem estar (good of men, we~fare).50 Na tese d e va loração defendida po r FULLERestá e mbutida a ideia de que a
Nesse último passo, FuLLER passa a uma consideração me to dológica, atribuição de um propósito moralme nte aceitável à orde m j urídica está neces-
argume nta ndo que o ideal de fide lidade à le i, no se u e nte nde r, comparti lhado
pelo positi vismo, some nte faz sentido caso o teórico assuma postura c ríti ca i a. Com o Fuu .ER coloca: «Ili this I believe he {Ha rrj is profo1111dly 111istake11. /1 is his 11eglec110
sobre a sua justifi cação, o u do be m a ser pe rseguido , e não trate a o rde m j urí- a11a/yze the de111n11ds of a 111ornli1y of o rder 1ha1 leads him thro11gho111 his essay 10 trem law as n
dat11111 projec1i11g itself i1110 h11111a11 experie11ce a11d 1101as an objec/ of !111111cm strivi11g» (F ULLER,
dica co mo dado exte rno, pois essa consti tu i o pro duto do esforço h umano com 1958: 646).
ii. Esse po nto metodológ ico é bem marcado por FuLLER na seg uinte passagem: «There is i11deed
110 f rustrmio11 greaier 1/w11 10 be co11f romed by a 1heo1J• which p11rpor1s merely 10 describe,
46. 1-!ART, )983: 350.
1vhe11 ir 1101 on ly plai11ly prescribes, b111 owe ils specia/ prescriplive po wers precise/y to the fact
J7 VON WRIGIIT, ) 972.
1hat il disclaims prescriptive i11te11tio11s» (F ULLER, 1958: 632).
, s Sobre a cli stint,;ão e a q ual ificação neg ativa cio bem instrumental, ver V oN WRIGHT, 1972a: 3
i . I-IART, J 997: 244 (tracl. li vre): «a descriptio11 may s1il/ be descriplio11 eve11 whe11 what il
20-24. describes is a va/11atiom>.
49 VON WRtGIIT, 1972a: 4 1 e ss. 4
l . DICKSON, 200 ).
50 V ON WRIGIIT, 1972a: 86 e ss.
j
)
48 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO
) 49
) sariamente presente, pois suas normas devem ser sempre interpretadas. O alvo c~edren~efico~ odprod~ós~to geral perseguido pela ordem jurídica. Nessa medida
aqui é a leitura que FuLLER faz sobre a concepção de linguagem adotada por a i ent1 caçao o uetto pressupõe sua valoração e tomada d · - b '
) HART, que permitiria identificar, nas palavras, um .núcleo de sentido e uma l · Ih . e posiçao so re
qua se~a o me or propósito para a ordem como forma de guiar a conduta d
) zona de penumbra. FULLER atribui a HART a tese de que a objetividade dos comumdade para o bem comum. ª
,} casos claros de aplicação, identificáveis de modo imediato, seria decorrente
desse núcleo de sentido das palavras, enquanto a interpretação seria dedi-
cada aos casos situados na zona de penumbra dos termos empregados nas
regras. Contra essa tese, argumenta, com apoio na autoridade do segundo
A crítica de FuLLER não é propriamente fiel à concepção d
as sumI"da ~or HART, que nao - . .
·d
e senti o
se 1imita a um núcleo de significado pré-fixado
à palavra, mdependentemente de seu uso, embora muitos atribuam a 1 tal
t WmGENSTEIN, RUSSEL e WHITEHEAD, ou pelo menos em determinada interpre-
- A ., .
~donc~fipçao.
bé ee
c~dt1ca tam m n~o é fiel ao segundo WtTIGENSTEIN, que, ao
) tação desses, que a interpretação ou identificação do sentido dos termos da I entt car o senti o com o dommio do uso de uma palavra ou explies -
·d d 1· · sao em
) linguagem ordinária não pode ser dissociada do contexto no qual esses são ~~a c?°!um a e mguística, não quer com isso dizer que uma palavra se· a
mmtehg1vel fora de um ato particular de fala. 1
enunciados. Caso contrário, a aplicação irrefletida do núcleo de sentido de
)
um termo em uma regra poderia gerar absurdos, como a aplicação. da regra :ara o segundo W1TIGENSTEIN, o significado e a referência não dizem
) «São proibidos veículos no parque» para retirar do parque tanque de guerra respeito a um vínc?!º entre símbolos ou imagens mentais e coisas, mas consiste
) desativado e lá colocado em memória a soldados mortos. Mesmo quando há a antes em uma hab1hdad_e p~a ~omear objetos e empregar sentenças de acordo
impressão de que o propósito da regra não entra em questão na identificação com as regras de uso hnguisticas nas situações apropriadas, habilidade essa
) de seu sentido, essa decorreria do fato de que seu propósito é óbvio e não que some~te pode ser apreendida se nos colocarmos na posição daqueles que
) conflita com a orientação da regra em uma instanciação particular: ~sam o~ s1mbolos e empreg!m os con~eitos dentro da comunidade linguís-
«Se, em alguns casos, parece que somos capazes de aplicar a regra sem tica _(me~odo de c~mpreensao e empatia). Nesse sentido, a identificação e
) exphcaçao _do se~tido, para WITTGENSTEIN é social, não individual, i.e. não
nos perguntarmos sobre seu propósito, isso não ocorre porque podemos tratar
} de um diretivo como se esse não tivesse propósito. Mas porque, por exemplo, se trat~ de m~est1g~ um processo mental individual de correspondência, ou
se a regra tenciona preservar o silêncio no parque, ou evitar que transeuntes um objeto psicológico, mas de Gompreender as convenções sociais sobre uso
) desatentos se machuquem, nós sabemos, <sem pensar> que um automóvel baru- e e~prego de símb~los e expressões, ou compreender o comportamento dos
) lhento deve ser excluído.» 55 praticantes de uma lmgua em seus atos particulares de fala como baseado em
. 57
) FULLER parece falar aqui, quando se refere a «saber o propósito sem regras Gogos. de 1mguagem). Assim, o fato de que o abandono do contexto
pensar», em algum tipo de inferência imediata, na qual a razão para a criação ou do prop~s~to pos~a gerar absurdos na interpretação da linguagem não signi-
) da regra determinaria, de modo evidente, a solução naquela instanciação. O fica qu~ seja imp_ossive1compreen~ê-la sem um coo.texto particular de uso por
) caso claro seria aquele em que esse propósito confirma o «núcleo de sentido» um. emi~sor particular. 58 Retomarei a esse tema mais adiante, para um exame
inicial da regra, mas pode haver conflito, como no caso do tanque de guerra mru~ cuidadoso. Porém, vale destacar, desde já, que FULLER avança algo novo
} exposto no parque. Para FuLLER, nesses casos, aplica-se sempre o propósito, aqm ao colocar em questão a tese da objetividade dos casos claros ou melhor
) ou melhor, o que conta como instância de uma regra é dado pelo propósito a ao questionar particularmente que essa objetividade seria i~dependent~
ela atribuído e não por um suposto núcleo de sentido dele independente. de u~a valoração s?~r~ os propósitos da regra. Portanto, Fuller não rejeita
) propnamente a possibihdade de objetividade na instanciação de determinados
O sentido da regra é, portanto, determinado pelo seu contexto, que, para
) casos, mas transfere_ a d~sc~~são das regras para os propósitos das regras, que
FuÚ.ER, abrange tanto o propósito particular pelo qual a regra foi criada quanto
aparecem como razoes jund1cas para solução dos casos claros e também não
} o quadro normativo ou a estrutura de regras no qual essa norma se insere. 56 claros.
) Isso significa que a identificação do direito pressupõe sua interpretação e isso
envolve a inserção da regra em estrutura mais ampla, com a atribuição de A difi_culdade para o positivismo está na forma oblíqua pela qual a tese
) determinado propósito para o ato particular de enunciado da regra, que seja ~a valoraç~o (E=D) é proposta: se o direito é identificado por intermédio da
:. ss. 1958: 663 (trad. livre).
FULLER,
i~terpretaçao (E=~ e se essa atividade envolve um posicionamento dos parti-
cipantes (e do teónco) sobre como a prática deve ser (/=D), então as questões
) 56· FuLLER, «Can it be possible that the positivistic philosophy demands that we abandon a view
of interpretation which sees as its central concem, not words, but purpose and structure ?» 57
) (FULLER, 1958: 667).
· Ver WmoENSTEJN, PI(§§ 185-242) e HACKER, 1996: 123-130.
ss. Ver SCHAUER, 1998: 59 e ss.
:i
I~
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE M ARANH ÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO Di\ T EOR IA ANALÍTICA DO DIREITO
50 51

E=l =D de mandam um esfo rço de argumentação normati va e não de expli - ma is .ª :cito critério para d istingui r e ntre esses dois momentos de revelação
e revisa_º: ~un_d~do na di st inção e ntre juízos de fato e juízos de valor, agora
cação descriti va.
parece f ragil: JUIZOS de valor ocorrem , como veremos brevemente, em todas as
Como vimos, a tese da obj eti vidade fraca (objeti vidade das f~n t~s! não fases da pesqui sa do jurista e não apenas naquil o em que, posicionando-se fora
é capaz de sustentar, por si, a tese da separação,' de fonr~a ~ue ~ o bJet_1 v1dade de dado siste ma normativo, ele propõe novas regras para um novo s istema.»6()
forte (identificação objetiva de parte do conteudo do d1re1to) e crucial p~ra
A virada funci ona lista ele 8 0131310 é baseada em crítica profunda ao
O positivismo. M as se a identifi cação dess~ c~nteúdo, sobre o qual recai-~
pretensão de objetividade, exigir inte rpretaçao, 1sso_pode s~r ~1111 problem~, Jª posiLi vismo, por ele mesmo lo ngamenle defendido, que antecipa em pontos
que a tinha divisória, nessa ati vidade, e nt~e re~elaçao do d1~e1to_ e sua r~v1~ao importantes a discussão metodo lógica que estaria por vir após o debate Hart
é mu ito suti l. A atividade de interpretaçao seJa pelos o perado,es_ do direito, vs. Dworkin. 8 0l3BIO faz as seguintes constatações: a) a interpretação está
seja pela dogmática, envolve reconstrução_ ~o ~r~enamento, dai porq~c o_s presenle em cada ato de cognição cio direito pelo j urista; b) a interpretação
positivistas tratam-na como atividade ~iscn c10~1ana, fora do campo «c1ent1- implica a compreensão ele atos sociais de legislação à luz de um propós ito
fico» (importa a escolha feita pela autoridade, nao o que escolheu e nem como identificado a partir dos sinais li nguís Licos desses atos; c) o d ireito merece
escolheu) . constante redefinição para se adaptar a novas ideologias e situações. Conclui,
Mas mesmo a interpretação cons iderada pelos positi v!s.tas _cº',11? discri- assim, que a ide ntificação do que é direi to não pode ser parte do discurso
cio nária constitui parcela importante da ativ idade da dog mat1ca JUnd1ca e, ~a descriti vo, tampouco prescri ti vo, mas, em linha intermediária, do d iscurso de
medida em que essa uniformiza entendimentos, po~e _transformar casos nao «recomendações», cujo conteúdo não deixará de ser info rm ado pela reflexão
claros em claros, ou, quando busca adaptação do dtre1to a novas demandas, do jurista sobre sua função social. Em Lermos metodológicos, a única alter-
pode transformar casos claros em não claros . [ss~ P?de to rn ar controversa a nativa vislu mbrada por BoBBIO para uma teori a descriti va do direito, se,ia um
presunção de existência de base objetiva para o d1re1to. Afinal, o ~rod~1t? d~ in ventário de possíveis teorias do d ire ito informadas por d iferentes atribuições
teórico sobre O direito pode influenc iar os próprios ~pera~~res cuJ a _µrat1ca e possíveis ou historicamente determinadas de funções sociais à pratica j uríd ica,
observada pelo teórico e, assim, transformar a pró pna pratica e aqutlo que o o que jogaria o teórico descriti vo para o nível da Meta-111eraj11risprude11z. 6 1
direito é. A c rítica ao positi vismo a partir da identificação das questões E e / é bem
Esse drama representado pela incorporação dos mecanismos ~alorativ~s mais delicada cio que a tentati va de ide ntificação entre E e D, pois atinge-o
da interpretação jurídica como fenômen~ relev~nte d_entro da teona da val~- em seu elo fraco: a tese da disc ricionariedade. É verdade que o positivismo
dade das normas foi vivenciado com particular 111t: ns1dad~ por _Bons10, _m~t,- cumpre a s ua função ao explicar aque les casos claros em que concordamos
· ada do positivismo para uma concepçaof1111c1011al1s1a do d1re1to. sobre o conteúdo do direito, mas o faz a um custo e levado em termos de
vand o sua V lí "S ll " · L /
Um artigo em especial revela esse mo mento, «"Sein" cmd o en _m_ ega poder explicativo: nos casos não claros e m que a ident ificação do direito não
· 59 ai s analisa 'as Rechtssatze
· . • de . .e, relat1 v1zando
. K.ELSEN
Sc1e11ce», no qu, 08810 ' é imediata, impo rta apenas quem decide e não como se j ustifica o conteúdo
O ideal de neutralidade (Wertfreiheit) para a c1en_c1 a do d1~e1to, assum~ que
da decisão.
há uma inevitável normatividade (pressão normativa) exercida pela teon a cio
Espera-se que a teoria construída para os casos claros seja útil para a
direito:
aouda di visão que a J11 riz.prude11 z posi tivista de limita, por explicação do direilo em geral, mas, como iron iza DwoRKIN, o positivismo
« A pesar da , º , . . ._ ' · ·
• , -es teóricas e ieleolog1cas (d1v1sao ele trabalho e ntre os van os a101es parece deixar de fo ra j ustamente os casos interessanLes, aqueles que comportam
e 1,tr,IS raz 0 · d ·
jurídicos, separação de poderes, dog~a ?'~certeza), entre pes_qutsa < e ; ure discussões jurídicas e que frequentam os tribunais. Ou melhor, esses casos são
co 11ditio, (que chamamos de revelação JUnd1ca) e propostas <de p ,_re c~11de11do, todos explicados pe la ampla tese da discricionariedade. É difícil deixar de
(que c hamamos de revisão), a passagem ele uma fase para a segL~1111e e gradual admitir desapontamento com essa tese, po is destoa da forma pela qual a cons-
imperceptível. Nenhum sistema jurídico é estáuco: o trabalho
e aIgum as Vezes Tb . d. • . 1 trução interpretativa desenvolvida na adj udicação é vista pelos participantes
da Jurisprudenz serve para mantê-lo e m estado de cqut •. n o tn~m1co pe a
descoberta de novas normas e pelo descarte de outras antt gas. Ate mesmo o e o peradores do dire ito: urna atividade racio11al e, mais, baseada em razões
jurídicas, não ex trajurídicas.
s9 Booeio 1967 o texto final é uma elaboração de uma apresentação de BoulllO na conferência
60
d !\I R de' 1966 .. Contam os presentes àquele evento que Bonmo ch~gou a ref?rm~lar e entregar B OBIJIO. 1967: 18.
~ -es d·, 511·nta" do texto tido (comunicação pessoal com Terc10 Sampaio FERR AZ JUNIOR).
ires verso . 0
6
'- Borrn10. 1967: 24.
J
)
52 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO
) 53
) Essa incapacidade em lidar com a racionalidade da interpretação e adju- leg~ti~o do que perguntar como :ssa comunidade as interpreta e justifica suas
dicação foi uma das fraquezas da teoria pura do direito de KELSEN, que optou dec~so~s com base no que ~~ns1deram «direito». Essa pergunta é perigosa
) pela tese da objetividade fraca e acabou por ser arrastada para o irracionalismo e. n~o e a toa que a nova pag1?? do debate sobre a teoria e metodologia do
) e voluntarismo radicais quando sua raiz positivista entrou em choque com sua direito, dentro da filosofia anaht1ca, começa com a seguinte afinnação:
) raiz neokantiana.62 Para HART, que entrou apenas timidamente no conteúdo
das normas, defendendo a objetividade forte da tese das fontes, muitas ques- «Importa como os juízes decidem os casos.» 66
) tões ficaram insatisfatoriamente respondidas. É por isso que MAcCoRMICK, por

,
)

)
exemplo, vê seu livro Legal Reasoning and Legal Theory como uma espécie
de complemento à obra de HART, desenvolvendo uma teoria da interpretação e
argumentação com ela compatível. Para MAcCoRMICK «a abordagem positivista
analítica à teoria do Direito esposada por HART está aberta a questionamento,
2.4 A INTRIGA

A crítica de DwoRKIN impactou a teoria do direito desde sua primeira


formulação em The Model of Rules.67 O artigo discute a insuficiência no trata-
e foi questionada, pela alegada incapacidade em dar tratamento satisfatório ao mento dado pelo positivismo aos chamados «princípios jurídicos» por meio do
) raciocínio jurídico, especialmente o raciocínio na adjudicação». 63 critéri~ de pedigree_ (r:g~a de reconhecimento), inc~paz de captar a distinção
) A crítica de BOBBIO e FULLER levanta, assim, dois temas delicados e conceituai entre pnnc1p1os e regras bem como a importância· <.laqueies nas
importantes relativos à interpretação: i) trata-se de atividade jurídica, i.e. decisões dos tribunais. Essa crítica ganha força nos artigos publicados em A
)
tomada pelos participantes como racional e fundamentada em razões jurídicas; Matter of Principle,68 no qual aparece uma argumentação mais contundente
) ii) envolve valorações, escolhas e atribuição de propósitos ao conteúdo das no sentido de que os princípios jurídicos são necessariamente desprovidos de
) regras provenientes das fontes. Essas duas premissas levam à identificação fonte. Nesse passo, a crítica já foi suficiente para dividir os positivistas entre
entre as questões E e D, pois, inserem, na identificação do direito, via inter- inclusivistas e exclusivistas. Em Law 's Empire, 69 a crítica ganha dimensão
) metodológica mais pronunciada, ao transformar essa insuficiência da tese das
pretação, a justificação moral da regra e, no passo seguinte, da própria ordem
) jurídica (a fundamentação de um plano justo e coerente, ou compreensão do fontes em verdadeiro equívoco sobre o seu papel na identificação daquilo que
direito dentro de sua função social). é o direito, o que é então generalizado ao se tratar como equivocada qualquer
) tentativa de identificar critérios semânticos para o conceito de direito, dado
) Até aqui, enquanto a crítica aponta uma inadequação do positivismo o caráter interpretativo desse conceito. Há um salto importante da primeira
para explicar a atividade de interpretação jurídica em geral, o efeito é apenas crítica ao positivismo para a crítica geral a qualquer metodologia descritiva
) mostrar uma insuficiência (e não equívoco) do positivismo (ou pehmenos da na teoria do direito, pautada principalmente pela tese de valoração moral.
) tese da discricionariedade ), que pode ser complementado por uma teoria da Todavia, há um contínuo na crítica já que a evidência usada por DwoRKIN
interpretação ao lado de sua teoria da validade. 64 O problema vai se agravar para apontar defeito no tratamento dos princípios e caracterizar a profundi-
) quando essa linha de crítica se concentrar na atividade interpretação exercida dade da discrepância sobre critérios de identificação do direito é a mesma:
) pelos tribunais e justamente naqueles casos claros, mas moral ou politica- os chamados «casos difíceis» (hard cases). Isso permite uma apresentação
mente complexos. Aqui a conexão entre E e l fica mais forte. Quando esse unificada do argumento.
) passo for dado, duas teses fundamentais do positivismo são atingidas: em
) primeiro lugar, a tese da objetividade forte das fontes e por consequência, a 2.4.1 No plano da teoria do direito
própria tese das fontes.
) Como visto, o positivismo é construído sobre a convicção de que existe
Se, para os próprios positivistas, é na atividade de adjudicação que se
) observa a convenção sobre as fontes (são os juízes que tomam o conteúdo
um dado externo objetivo para o conhecimento jurídico, independente de
} proveniente das fontes vinculante para suas decisões), 65 nada parece mais
também deixa bem claro que a convenção da regra de reconhecimento é observada na prática
) 62· loSANO,
dos tribunais « ... the rule of recognition, which is in effect a Jorm of judicial customary rule
1985. existing only if it is accepted and practiced in the law identifying and law-applying operations
) 63• MAcCORMICK, 1994: xiv.
of the courts» (HART, 1997: 256).
66
64
é,
· Essa em linhas gerais, a proposta de MARMOR (2005). · DWORKIN, 1986.
) 6S. KELSEN centraliza a noção de dever jurídico nodever dos juízes em aplicar a sanção (chamado 67
• DWORKIN, 1996 (cap. 2).
68
inclusive de «dever primário») de fonna que a «eficácia global da ordem jurídica em suas linhas · 0WORKIN, 2001.
) gerais» é testada, em última análise, pelo exercício desse dever (KELSEN, 1984, cap. 28). HART 69
· 0WORKIN, 1986.

)
JULI ANO SOUZA DE ,\L13UQUERQUE i\l ARAN I I ÃO O DEBATE CONT EMPORÂNEO DA TEOR IA ANA LÍTICA 0 0 DIREITO
54 55

valorações morais. Isso permite sabermos o que sabemos sobre o di reito. Esse claro, e m função da vagueza, ambi guidade ou dimensão valorati va dos termos
dado externo é explicado pela tese das.fontes sociais (há uma co nvenção social empregados na reg ra. Antes, são casos nos quais a regra com pedigree é c lara,
sobre os atos normati vos d otados d e au toridade) e pela tese da sua objetividade mas a solução po r e la apontada é claramente injusta, imoral o u poli ticamente
forte (pelo menos parte do conteúdo das regras é identi fkada de modo não indesejável. O sentido d a regra aponta para uma solução, mas princípios de
proble mático). Até aq ui , as considerações morais não entram e não prec isam moralidade o u de políticas públicas apontam para a solução oposta naquela
entrar em j ogo (tese da separação). Há os casos de pe1111111bra, nos quais a instanciação particul ar. E o ponto re levante sobre a prática dos tribunais é que,
instanciação das regras não é objeti va e cuja determinação pode depe nder muitas vezes, esses princípios prevalecem sobre a solução indicada pela regra
de escolhas sobre possíveis atribuições de sentido basead as em valorações com pedigree, o u, no mínimo, esses princípios não são ignorados e demandam
morais. Nesses casos, o direito é apontado pela identificação das auto ridades esforço de co ntra-arg umentação, o que mostra seu caráter vinculante, mesmo
que fazem as esco lhas válidas sobre a instanc iação, ainda que baseadas em para os caso s que os positi vistas estari am dispostos a chamar de claros. Nesse
critéri os ex trajurídicos (tese da discricio11ariedade) . passo do argume nto, DwoRKIN já coloca em questão a tese da objetividade
forre das fontes.
DwoRKI N foca seu ataque, inicialmente, sobre a inadeq uação da tese da
discricionariedade quando se leva a ·éri o como os trib unais justi ficam suas Existiriam, portanto, razões j uríd icas to rnadas corno vincul antes pelos
decisões. Aponta o rec urso pelas cortes a certas razões, que são to madas como trib unais mes mo sem satisfazer a regra de reconhecimento, de fo rma que
vincul antes, mas são incompatíveis com o critério de pedigree suposto pela sua força vinc ulante não pode ser explicada pela tese das fontes. Mais, esses
70
tese das fontes. Essas razões são dadas pelos chamados princípios jurídicos. princípios vincul antes e extraj urídicos são capazes de afastar razões jurídicas
A razão pela qu al DwoRKJN acredita que os princípios não pode m ter pedigree com pedigree em casos claros. Portanto, a força vinculante desses princípios
é instruti va, pois resgata o c isma adormecido entre os positi vistas a respeito ela somente pode ser explicada pe lo mérito moral de seu conteúdo. Poré m, se há
tese das fo ntes sociais, em suas versões forte e fraca. Primeiro DwoRKIN inter- razões v incul antes para os tribunais cuj a força decorre de seu méri to moral e
preta a regra de reconhecimento positi v_ista na ~ua versão fr~c~, i.e. c?~1? um a essas competem com razões de pedigree, então fica comprometida a tese da
asserção de fato (ex terna) sobre a práttca social que constttu1 os c ntcn os de separação e ntre dire ito e mo ral.
identificação de atos dotados de autoridade, para depois criticá-la, justamente
O último passo é o ataque à própria tese das fon tes. Como os princípios,
por não comportar norrnatividade. 71 Em seg uida, consi?~ra que ~rn critéri_o
por seu conteúdo controverso, não podem ser parte de uma convenção o bje-
de identificação de regras válidas dOLado de normalJ v1dade nao podena
ti va sobre quais atos normativos detém autoridade e como a razão indicad a
compo rtar princípios mo rais, pois uma co nvenção não pode ser contro versa e
12 pe lo critério de pedig ree é colocad o em ques tão nos casos c laros e c laramente
o conteúdo de princípios envo lve valorações morais co ntroversas (ou sej a,
injustos, isso sig nifica que não há urna regra mestra aceita pelas autoridades
ficaria comprometida a tese da objetividade f raca das fontes que, aparente-
para identificação d as razões às quais os juízes podem recorrer em suas deci-
mente , DwoRKIN também subscreve ao to mar as decisões po líti cas prévias
sões.73
corno formadoras de um material pré-i111erpretativo).
Esse ataque à tese das fontes passa a ser o foco princ ipal de DwoRKIN em
Se permanecer adstJ·ita aos casos de penumbra, a críti ca não incomoda,
Law's E111pire, que é apresentado como « 11111 livro sobre o desacordo teórico 110
pois apenas di z que há razões de d ecidir distintas das razões jurídicas (dadas
direito», 14 e o argumento j á ganha dimensão metodológica. Se antes DwoRKJ N
pelo pedigree). Porém, o emprego dessas razões dá-se também nos casos q:1e
pretende te r mostrado o equívoco da tese das fo ntes, agora explicará a razão
DwoRKIN chama de «difíceis». O s hard cases ex plo rado s por DwoRKI N nao
para o equívoco, oferecendo, e m troca, uma teori a do d ire ito que acredita ser
são propriame nte o s casos de penu mbra em que o sentido da no rma não é
metodologicamente adequada.
10 DwoRKIN faz uma distinção conceituai ou «lógica» entre princípios e regras colocando A razão para o equívoco estaria na enfermidade chamada por DwoRKJN
somente os primeiros como razões primafacie a serem sopcsadas DwoRKI_N. 1_996 (cap. 2). ~ão de «ag uilhão semâ ntico» (sema11tic sti11g ), da qual sofreriam os pos itivistas.
acredito na possibilidade de se sustentar essa distinção com base cm cn1én os bem dcfin1d~s
(ver cap. 3, item 3. 1), mas ela não é efet i vamente relevante para o argumento. Tanto exclusi-
vistas. como llAz, 2002 (cap. li, itcm 4): 1972, e inclusivistas, como 11,,RT ( 1997: 262), também n. A tese de Dwo RKIN sobre o caráter emi nenternc111e controverso do comportamento dos
atribu~rn caráter prima facie às regras, dada a possibilidade dessas col idirem com outras regras 1ribunais, inclusi ve sobre os critérios de identificação elas razões jurídicas vi nculantes, corno
mais fortes em determinados casos. algo a impossiblitar uma convenção sobre a regra de reconhecimento, j á aparece cm DwnRKIN
" D woRKIN, 1996: 50-58. ( 1984: 247).
74
n. 0 WOI\KIN, 1996: 58.
0WORK IN, 19 86: 11.
;;
}
56 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO
) 57
} Trata-se da crença na possibilidade de caracterizar o que é direito a partir da
identificação de critérios abstratos necessários e suficientes para o emprego
como
. ,. . nos quais a regra a .aplicar é clara e dispensa interpretaçao.
casos - 76 A
} d ~screpanc1a ocorre por~~e os ~nbunais, ao ide~t!fi_carem as razões jurídicas
do termo «direito» (concepção e riteriológica de sentido). 75 Esses critérios não
vmculantes . em. suas dec1soes, nao seguem um cnteno semântico pré-defi mo, 'd
} podem ser encontrados no limitado exercício positivista de compreensão do
mas real1zam interpretação construtiva das decisões políticas prévias com
) ponto de vista interno ao direito, justamente porque, para DwoRKIN, os posi- justificadas por princípios morais ou políticos que refletem determinad:
tivistas não levam às últimas consequências a atitude hermenêutica que esse concepção do que é o direito (ou, diria Boee10, de sua função social). Se essa
} ponto de vista implica.
é a postur~ v~lorativa dos participantes e se esse aspecto é relevante para a
} Aqui, DwoRKIN desenvolve sua versão da tese da valoração moral. O te~na do d1re1to, ao captar seu ponto de vista interno, a mesma postura valo-
} ponto de vista interno exige interpretação da prática social, o que somente é rattva deve ser tomada pelo teórico do direito. Isso porque, para DwoRKIN
possível pela atribuição à mesma de um propósito. O direito é um conceito ~sim ~o~o para os defensores anteriores da tese da valoração, todo juízo d~
t interpretativo, de forma que cada afirmação sobre a existência de determinado 1mportanc1a sobre uma valoração moral necessariamente envolve a tomada de
) direito subjetivo pressupõe a valoração do propósito moral de toda a prática posiç~o moral so~re a prática por parte do teórico, sendo inadequada qualquer
jurídica e a defesa de particular concepção sobre esse propósito. A novidade tentativa de ~e~cnção de um acordo sobre critérios semânticos P,ara emprego
t aqui é que DwoRKIN discute os efeitos desse exercício interpretativo estar do termo «direito» ou de determinada concepção valorativa do direito como
} presente na própria prática dos operadores do direito. Juristas, advogados se fosse a única.
} e, principalmente, os juízes, ao identificarem ou discutirem qualquer direito
subjetivo, colocam em questão ou defendem concepções concorrentes sobre o 2.4.2 O salto para o plano metodológico
)
conceito de direito. É por essa razão que discrepam em casos aparentemente
) claros pelo critério de pedigree: esse corresponde a apenas uma das possíveis A diferença no emprego da tese da valoração com relação a seus ante-
concepções do que é direito, isto é, sobre qual seria o propósito dessa prática cessores é que DwoRKIN pula para um nível acima da linguagem (entra no que
) Boee10 chamou de Meta-metajurisprudenz), ao cotejar e criticar diferentes
social.
) concepções de teorias normativas do direito, 77 cada uma em defesa de deter-
Esse ponto é chave na compreensão sobre a profundidade da discor- minado propósito moral (entre elas o positivismo, tratado, assim como fizeram
) dância entre juízes. Se a tese é que juízes discordam sobre a convenção que Boee10 e FULLER, como teoria prescritiva da descrição), antes de descer um
) identifica as escolhas políticas prévias criadoras de direito, há três alternativas degrau e defender sua própria teoria normativa chamada de «direito como
possíveis sobre o foco dessa discordância: (i) juízes não conseguem identi- 78
integridade». Antes de descrever esse argumento de DwoRKIN, quero ilustrá-
) ficar e discordam sobre quais seriam as escolhas políticas prévias relevantes; lo por meio de argumento análogo, mais mundano, com o diálogo abaixo, de
) (ii) juízes identificam as escolhas políticas prévias, mas discordam se essas forma a aguçar a intuição sobre sua malícia, ou astúcia.
deveriam ser aplicadas baseados em razões morais; (iii) juízes decidem base-
) No último andar do Edifício Aguilhão, de propriedade do escritório
ados em razões morais distintas das escolhas políticas prévias, acreditando
J que estão aplicando o direito. A primeira alternativa é afastada por DwoRKIN, Claro Advocacia, o jovem advogado, Ronaldo Íntegro, entra repentinamente
uma vez que ele mesmo identifica um material pré-interpretativo dado por na sala do sócio fundador Dr. Herbert Claro, que conversava amigavelmente
) com seu rival, Dr. João Natural:
decisões políticas prévias sobre o qual atua a interpretação do direito pelos
} participantes. A segunda alternativa confirmaria a objetividade forte da regra Ronaldo: Herbert, é impressionante como o mercado de advocacia anda
) de reconhecimento, a qual DwoRKIN claramente não esposa. Assim, apenas a agressivo!
terceira alternativa exporia adequadamente a profundidade efetiva da discre-
} Herbert: De fato e para mim é extremamente desconfortável a ideia de
pância entre os juízes. que advogados se engajem em estratégias de marketing em vez de se dedi-
) carem ao conhecimento do direito.
Entra em cena, aqui, o caráter construtivo da interpretação jurídica levada
) a cabo pelos tribunais, já acenada por Boee10, colocando em xeque a tese da
76
objetividade forte dasfontes, pelo menos da versão que encara os casos claros
J • Mais adiante, na Seção 3.5, vamos rever o efeito dessa crítica em outra definição de «caso
claro».
77
} 7
s. DwoRKIN, 1986: 31-44. 78
· DwoRKIN, 1986 (caps. IV e V).
· DwoRKIN, 1986 (cap. VI).
)
JULIANO SOUZA DE A LB UQUERQUE MARf\ I IAO O DEBATE CONTEt- 1PORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO
58 59

Ronaldo: 8 0111, w11 escritório de advocacia é uma empresa. ncio é '! a questão por meio de uma nova moldu ra. Não se trata apenas de corno fazer
com que o timbre ide11tijiq11e o escritório e seus advogados da melhor forma
H erbert: Sim, mas a relação co111 nossos clientes baseia-se 11a co11Jia11ça
o que traria questões sobre c lareza e menor custo para o escri tório, mas com~
que depositam em nós, ou melhor, em nosso conheci111e1110. Essa história de
fazer com que o timbre seja o melhor veículo para convencer os clientes de
111arketi11g de certa forma corrompe essa relaçcio.
que aquele é o melhor escritório dentro de um determinado perfil ou tipo a ser
João: Você deveria escutar o garoto Herb. Se não seguir seus concor- também estipulado (entre valores como austeridade, conhecimento técnico,
rentes, a Claro Advocacia pode fi car obsoleta ( aliás, já é, ele p ensou). conservadorismo, inovação, resultados benéficos) como o mais atraente para
H erbert: Duvido. Mas por que exatamente você interrompeu nosso chá os clie ntes .
da tarde? Herbert acusa Ronaldo de passar por cima da questão inicial, i.e. se
Ronaldo: Precisamos contratar uma empresa de publicidade para deveri a o u não haver engajamento em marketing, na confecção do timbre. Mas
cuidar de 11ossa ide11tidade visual. para Ro naldo, a atividade de confecção do ti mbre pressupõe e já é uma forma
de marketing. Esse conflito mostra urna diferença impo rtante na forma como
Herbert: Isso é realmente necessário?
Herbert e Ronaldo veem o escritório. Herbert vê o escritó rio co;no instituição
Ronaldo: Claro! Nosso timbre, folder, pastas, blocos de papel, home- de advogados que opera defendendo causas de clientes. Para identificar esse
page, todos os nossos documentos devem comunicar nosso perfil, qualidades conjunto de pessoas e sua operação como advocacia, o timbre não precisa dizer
e visão sobre o propósito da advocacia, ou ao menos fa zer com que nossos se o escritório e seus membros são competentes e para q ual propósito o são. Já
clientes nos vejam da melhor perspectiva possível. Ronaldo vê o escritó ri o como uma empresa e que, portanto, quer atrair clientes.
Herbert: Calma, você já passou longe da minha questão básica. Não Isso significa que em qualquer re lação particular de contratação (adjudicação)
estou sequer convencido de que precisamos de qualquer tipo de propaganda. com seus cl ientes (sujeitos normativos) o escritório (direito) normalmente é
e deve ser apresentado de forma convincente sobre sua qualidade e a de seus
Ronaldo: Entendo. Ma s você concorda que precisamos de timbre em
membros, ou seja, constrói-se a melhor imagem possível deste como um todo.
nossas petições, certo ?
Se o escritório é contratado em função da sua melhor apresentação possível,
Herbert: Óbvio! é inevitável que a atividade de identificação dessa empresa (teoria do direito )
Ronaldo: E11tão precisamos contratar um designer pa ra esse timbre. não faça parte do mesmo discurso pers uasivo sobre como o escritório deve ser
visto na sua melhor perspectiva, i.e. não só como uma empresa, mas como a
Herbert: Não podemos nós mesmos apenas escrever Claro Advocacia mel hor empresa, com o melhor produto.
na margem das petições, com os nomes dos advogados da equipe, como todos
O artifício do argumento está e m capturar Herbert dentro dessa nova
fazem?
moldura conceituai, ele modo que q ualquer proposta sobre o timbre de identi-
Ronaldo: Bom, eu não estaria tão certo quanto ao que todos fazem. De ficação, mes mo aquela que nega a necessidade de marketing é lida como uma
qualquer modo, sua sugestão já indica 11111a escolha de identidade visual,
fo rma de marketing. A estratégia lembra a brincadeira e ntre crianças em que
expressando austeridade e uma pitada de conservadorismo... Se é essa a
aquele que falar primeiro perde e, mesmo a fa la " não q uero brincar", é lida
mensagem de publicidade que o Sr. tem em mente, eu ainda acredito que
como um movimento já dentro cio jogo.
devei11os deixá-la nas mãos de profissionais, que podem fa zer com que o timbre
passe a melhor ideia possível de austeridade, tomando-o mais persuasivo. Para superar o positivismo, D woRKIN emprega o mesmo tipo de argu-
mento usado po r Rona ldo. Seu argumento baseia-se na combinação da tese de
A questão inicialme nte colocada é se, na confecção do ti mbre (teoria do
direito) para identificação do escri tório e seus membros (direito e suas regras) , justificação moral com o e nquadramento prévio da teoria do direito em uma
deveria haver ou não um engajamento em marketing para colocar o escritó ri o moldura interpretati va que D woRKJN propõe ser sufic ientemente abstrata e acei-
na sua melhor perspecti va para os clientes (justificação moral do direito e tável pela maioria dos teóricos. Essa moldura «abstrata», que D woRKIN propõe
de suas regras) . A resposta de Herbert é «não». João Natural discorda e di z como agenda bás ica para qualquer teoria do direito assume «tão somente» que
«sim». Já o tipo de discordância de Rona ldo com Herbert é be m diferente . E le o «direito» seri a um instrumento de controle do exercício da coerção pelo
não di z «sim», mas discorda da própria questão. Em seu argumento, recoloca Estado por meio de decisões políticas prévias sobre quando esse exercício seria
}
)
60 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO
l 61
79
) legítimo. Esse seria o conceito de direito «incontroverso» a ser refinado pelas DwoRKIN como uma teoria normativa de um direito particular (theory of the
diferentes concepções de direito. 80 Law) voltada para a justificação da atividade de adjudicação. 84 Na verdade,
}
Mas no momento em que o direito pré-definido como «instrumento para essa reaçã0 subestima o ataque. O que DwoRKIN faz, nesse passo do argu-
) mento, é desafiar a própria metodologia descritiva e a possibilidade de separar
algo», o propósito que deveria estar em aberto para o debate já é fixado, ainda
a teoria do direito da atividade de adjudicação.
l que de modo genérico. Mais do que isso, uma vez visto como uso «justificado»
) ou «legítimo» da força coletiva, qualquer proposta de teoria do direito passa Note que, embora o enquadramento do direito em «legitimação do
a ser lida como uma proposta sobre como melhor legitimar Uustificar moral- uso da coerção pelo Estado» pareça ser neutro para a atividade de adju-
) mente) a coerção pelo Estado (se o timbre já for tomado de antemão como peça dicação, a qual é efetivamente um momento de uso da força coletiva a ser
) de marketing da empresa, qualquer timbre, mesmo a simples identificação legitimado com base em decisões políticas prévias (da mesma forma que a
dos advogados, já é interpretado como mensagem de propaganda). Dentro persuasão sobre a qualidade do escritório é uma boa moldura para compre-
} desse quadro de referência pré-estabelecido, para DwoRKIN, o positivismo, ao ender o momento de contratação), o mesmo não se dá com relação à teoria
) propor a apresentação do direito como o conjunto do conteúdo das decisões do direito (ou à identificação do escritório como instituição). A construção
políticas prévias (regras), sem que se coloque em questão a moralidade polí- interpretativa está presente na atividade de adjudicação, na q~al princípios
) tica dessas decisões para legitimar a coerção, na verdade defende uma forma jurídicos jogam um papel importante e foi mérito de DwoRKIN trazer esse
) de legitimação da coerção baseada no que chama de «ideal de expectativas aspecto à luz. Mas não está claro, em primeiro lugar, se a própria teoria
resguardadas». Esse ideal seria pautado por determinada noção de legalidade, do direito tem que ser lida como construção interpretativa do direito em
) calcada em previsibilidade (segurança jurídica) e igualdade procedimental sua melhor perspectiva com base em princípios morais que justifiquem as
) (procedural faimess ). 81 decisões políticas prévias (se o timbre deve convencer que o escritório é o
) «O convencionalismo fornece uma resposta aparentemente atraente àquela melhor) e, em segundo lugar, se essa construção interpretativa deve partir
questão. Decisões políticas prévias justificam a coerção porque, e portanto do conceito de direito proposto como «legitimação da coerção pelo Estado»
} somente quando, elas provêm justo aviso, ao tornar a ocasião de coerção e não de outro conceito. 85
} dependerem de fatos claros acessíveis a todos em vez de juízos ad hoc de
moralidade política, os quais juízes distintos podem fazer de forma diferente. HART, por exemplo, rejeitou o propósito abstrato de DwoRKIN e colocou,
) Esse é o ideal de expectativas resguardadas.» 82 em seu lugar, o propósito de guiar a conduta por regras 86 (o mínimo interno
) DwoRKIN passa, em seguida, a mostrar as razões pelas quais essa não do qual havia partido FuLLER para tentar ligá-lo a uma moralidade externa).
seria uma política eficiente para a legitimação da coerção pelos tribunais, Na verdade, esse propósito elencado por HART é menos uma valoração e
) o que para HART pareceu um despropósito, pois jamais viu sua teoria como mais uma caracterização do direito como uma instituição que fanciona de
) proposta política sobre a forma pela qual os tribunais devem justificar suas uma determinadaforma, ou seja, cria regras de conduta (assim como Herbert
decisões. 83 Daí porque HART, no início de seu Postcript, não vê conflito entre via seu escritório simplesmente como uma instituição que patrocina causas),
) o que pode ser visto de modo independente da qualidade moral destas (da
teorias com projetos tão distintos, situando sua proposta como uma teoria
) descritiva do direito (theory of Law), como instituição em geral, e a teoria de competência do escritório).
) DwoRKIN não admite essa neutralidade (e aqui transparece sua versão da
79
· 1986: 93: « ••• we might understand law better ifwe couldfintl a similar abstract
DwoRKIN, tese de justificação moral do direito), pois vê o direito como uma empresa
) desi:ription of the point of law most legal theorists accept so that their arguments take place on coletiva que se justifica moralmente em cada ato de adjudicação (o que é
the plateau it fumishes. (... ) Our discussions about law by and large assume, I suggest, that the
) most abstract and fundamental point of legal practice is to constrain the power of govemment distinto de entender o direito como moralmente justificado). Os juízes
) in the following way. Law insists that force not be used or withheld, no matter how useful tluu compromissados em justificar a coerção aos sujeitos de direito (ou os advo-
would be to the ends in view, no matter how beneficial or noble these ends except as licensed gados empenhados em convencer os clientes a contratá-los) necessariamente
} or required by individual rights and responsibilities jlowing from past political decisions about reconstroem e devem reconstruir as decisões políticas prévias como decor-
when collective force is justi.fied».
} 80
• DwoRKIN, 1986: 94: «Conceptions of Law refine the initial, uncontroversial interpretation /
84
just suggested provides our concept of Law». · HART, 1997: 240-242.
) 9 1. DwORKIN, 1986: 95. 8
~- Nessa linha de crítica ao conceito de direito de DwoRKJN proposto como «plataforma neutra»
82 · DWORKIN, 1986: 117 (trad. livre). de debate, ver DICKSON, 2001: 103-114.

'
)
83 · HART, 1997: 248-250. 86
· HART, 1997: 249.
62 JULI ANO SOUZA DE ALO UQUERQUE MARAN HÃO O DEUATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA 1\N1\LÍTICA DO DIREITO 63
re ntes de, e jus tificadas po r, um propósito mora l ou po líti co que se apresente Ronaldo: Na verdade, acabo de inco,porar o seu. Espero que não
como legítimo (ou apresentar o escritório como o me lhor de ntro de um perfil desconfie da minha integridade. ss
atraente para os c lientes). O u seja, as decisões prév ias são reco nstruídas
com o boas justificações para coerçã0, o u, no mínimo, a sua instanc iação é 2.5 O DIA SEGU INTE
justificada como boa (por exemplo, para proteger ex pectati vas legítimas).
DwoRKJNdeu nova coloração às teses da valoração e dajusti.ficação moral
E, para DwoRKIN, na mes ma trilha de FuLLER, se a ide ntificação do dire ito
como aspectos, não do d ireito e m geral, mas da atividade de adjudicação. As
e m cada ato de adjudicação e nvolve essa reconstrução interpretativa, não há valorações se apresentam na reconstrução interpretativa do direito pelos juízes
como identificá-lo em geral sem se engaj ar no mes mo processo. Portanto, a e, po r meio destas, em cada ato de adjudicação, o direito é mora lmente justi-
atitude valo rati va dos partic ipantes, por envolver um a justificação moral do ficado. Menos convincente é a ligação entre a adjudicação e a necessidade da
direito (da coerção com base em decisões prévias), exige do teórico q ue a própria teoria do dire ito em ass umir um a atitude normati va de justifi cação do
toma como re levante, a mesma atitude e engajame nto na mesma prática. Daí uso da coerção pelo Estado. Para que essa ocorra, a grande questão, que HART
po rque DwoRKI N vê a fil osofi a do direito como um prólogo sile nc ioso na base reconhece não te r sido suficiente mente tratada em sua obra, 89 está na compre-
de cada ato de adjudicação. 87 ensão do papel desempenhado pelos princípios jurídicos na inte rpretação, e m
particular, se isso afeta uma teoria da vali dade (E=!?). O foco na ati vidade de
Da mes ma forma, cada proposta de contratação tem por trás um a deter- adjudicação é sensível para mostrar essa identidade e, a sua consequência,
minada estratégia de marketing. A única questão para Rona ldo é se cada como aponta DwoRKJN, será (E=D). Em outras palavras, se os princípios, além
ad vogado deveria usar a própri a estratégia, ou se a Claro Advocacia deveria de participarem da reconstrução interpretati va na ati vidade de adjudicação,
contratar uma e mpresa de marketing (teoria normativa do direito) capaz de constitue m razões jurídicas vá lidas com fundamento moral e não social, então
oferecer um pró logo geral un ívoco e capaz de determinar cada contratação. O aq uilo que o direito é dependerá de uma arguição sobre a sua moralidade.
diálogo pode terminar as im : A evidência da qual parte D woRKIN é aceita pelos positivistas: princí-
pios morais ou de políticas públicas são empregados na fundamentação de
Herbert: Você é impossível! Eu jamais fui 011 me apresentei como
decisões . Essa constatação també m se dá em ambiente do fenômeno j urídico
conservador. particulannente relevante para os pos iti vistas: é na ati vidade dos ju ízes onde
Ronaldo: Então vamos transmitir inovação! Gosto dessa perspectiva... se constitui a convenção sobre as fo ntes dotadas de autoridade. Daqui segue
mas vai exigir também o trabalho de profissionais. seu argumento. Como os princípios são razões vi nculantes para os juízes, mas
não podem satisfazer uma convenção sobre as fontes, a única fo nte de sua
Herbert: Lá vem você de novo... eu não quero convencer o cliente de validade deve ser o mérito moral de se u conteúdo. Em cada ato de adj udicação
algo tflle nós não somos. Precisamos apenas de 11111 timbre de identificação. estão e nvo lvidas concepções dis ti ntas sobre o propósito moral ou po lítico das
Não é nosso papel consrruir uma idenridade, nós simplesmente a temos. decisões políticas prévias e de nosso dever em segui-las. Os princípios morais
Ronaldo: Isso é mesmo uma questcio de fato ? ou de políticas públicas presentes nas decisões cristaliza m essas concepções
e informa m a reconstrução da históri a po lítico-jurídica como atos justificados
Herbert: Pode apostar que sim. dentro de determinada perspecti va mo ral. Isso sig nifica que princípios de
moralidade política estão necessariamente inco,porados ao direito. Essa
Ronaldo: Eu diria que nossa identidade está na forma como os clientes
explicação, além de implodir a tese da separação, afeta, pelo caráter contro-
nos veem e eles nos ,,eem da fo rma como nos apresentamos. Por isso preci-
samos nos apresentar da melhorfonna possível. 88· D entro desse propósito «neutro e incontroverso» de legitimação da coerção pelo Estado
Herbert: Meu caro, está na hora de você abrir o seu próprio escritório. fi xado na Me1a -111etaj11risprude11z. D woRKIN constrói sua própria Metaj11risprude11z, defendendo
sua concepção do direito como i111egridade (Law as i111egrity). Como nes1a seção estamos mais
preocupados com a crítica ao positi vism o e à possibilidade de uma metodologia jurídica isenta
de val orações morais, não será necessário entrarmos na teoria do direito como integridade.
Mais à frente, na Seção 3. 11. será i mportante comparar a versão aqui defendida de inclusivismo
a1. «Jurisprnde11ce is 1/,e general pa ri of adj11dicatio11. sile11ce prologue to a11y decisio11 ai law» lógico com a concepção de D wORKIN. Po rtanto, prefiro aprese111á-la no momento oportuno.
(DwORKIN, 1986: 90). 89· H ,1RT, 1997: 259.
p
) JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 65
64
)
verso atribuído aos fundamentos do direito, a própria tese das fontes e, assim, Assim, a distinção entre interpretivistas (e jusnaturalistas contempo-
)
todo o edifício positivista. râneos), inclusivistas e exclusivistas está, respectivamente, na necessidade,
) contingência e impossibilidade da incorporação de parâmetros morais na
Co1~10 então explicar a força vinculante atribuída pelos tribunais a prin-
) identificação das normas válidas. 92 Enquanto os inclusivistas cedem espaço
cípios morais e de políticas públicas empregados na interpretação do direito e
à moralidade e sua incorporação pelos critérios de validade, os exclusivistas
} justificação de suas decisões?
reafirmam as teses do positivismo clássico e as desenvolvem para fechar a


)
A resposta dada pelos inclusivistas (também chamados de incorporacio-
nistas ou positivistas soft-core),90 consiste em admitir a possibilidade da regra
de reconhecimento conter critérios morais, além da indicação de instituições
possibilidade de incorporação, que, conforme o próprio HART, não estava
excluída em The Concept of Law. 93
Parte dos inclusivistas considera o exclusivismo falho diante da evidência
) dotadas de autoridade para criar regras. Com essa especificação na tese das
dada pelas constituições democráticas contemporâneas, que positivam direitos
fontes, torna a relação entre princípios morais e o direito apenas contingente.
) fundamentais, 94 de forma que o inclusivismo ofereceria uma explicação mais
Esses critérios de moralidade, eventualmente incorporados na regra de reco-
) razoável e adequada da prática jurídica nessas sociedades. O fiel da balança
nhecimento, podem ser condições positivas que geram standards de conduta
nessa discussão, porém, não é a adequação empírica, mas em que medida a
) ou apenas estabelecerem limites (negativos) ao uso da autoridade pelas
incorporação de critérios morais na regra de reconhecimento é consistente
instituições (e.g. «é direito tudo o que autoridade determinar a não ser que
) com a tese das fontes e seus pressupostos de objetividade (no mínimo a obje-
se viole a igualdade entre cidadãos»). Em última análise, seria a convenção
tividade fraca, mas, preferivelmente, a objetividade forte). A questão é como
) social um fato contingente a determinar a presença ou não de critérios morais
na regra de reconhecimento, quebrando-se assim a premissa de DwoRKIN de seria possível uma convenção apurada em uma prática convergente que incor-
) pore critérios morais, diante do caráter controverso da moralidade.
que haveria necessariamente razões jurídicas sem pedigree, cujo fundamento
) de validade seria seu mérito moral. Para os inclusivistas, portanto, princípios Com relação aos limites constitucionais dados pelos direitos fundamen-
). são vinculantes se e porque em conformidade com os critérios morais da regra tais como critérios morais da regra de reconhecimento, os inclusivistas contam
de reconhecimento. Com essa saída, a atividade de interpretação e argumen- ainda com a autoridade de HART, que faz, em certas passagens, a mesma inter-
} tação com base em princípios é abarcada pela teoria da validade (E=[), sem pretação dessa regra. Assim, por exemplo, diz que:
J que, com isso, se permita a ligação /=D. A interpretação principiológica é «( ... ) não há nada em meu Jivro sugerindo que os critérios fáticos dados
jurídica porque baseada em critérios socialmente identificados, ainda que com pela regra de reconhecimento devam se restringir a questões de pedigree, eles
} conteúdo moral, mantendo-se distinta a questão entre o que o direito é e como podem ainda ser requisites substantivos sobre o conteúdo da legislação como
} ele deve ser. Ou seja, podemos tomar o inclusivismo como uma afirmação de a décima sexta ou décima nona emendas à Constituição norte-americana a
E=#D. respeito da liberdade de religião ou acolhendo o direito ao voto.»9s
)
A resposta dada pelos exclusivistas91 (também chamados de positivistas Mas também em outras passagens, HART interpreta o princípio moral
)
hard-core) aceita que a força vinculante dos princípios esteja fundamentada «ninguém deve se beneficiar da própria torpeza» citado por DwoRKIN em um
) em seu mérito moral, porém rejeita que esses façam parte do direito ou cons- de seus hard cases, como identificado pelo pedigree, i.e. pelo critério e não
) tituam razões jurídicas. A existência de razões morais empregada pelos tribu- como critério.96
nais que não satisfaçam a regra última de reconhecimento apenas prova, para

'
)
)
os exclusivistas, a tese da discricionariedade. Aliás, afirmam que razões de
fundamento moral necessariamente não fazem parte do direito e consideram
a tese de incorporação de critérios morais de validade inconsistente com a tese
das fontes. Ou seja, o exclusivismo firma o pé na proposição E#=D.
92· WALUCHOW (2003, cap. 4). Uma apresentação detalhada das distinções entre inclusivismo
e exclusivismo e apreciação dos argumentos e teses em favor de uma ou outra versão do
positivismo pode ser encontrada em MARMOR (2002) e HIMMA (2002). Interessante também é a
visão de DwoRKIN do debate em DwoRKIN (2006: 187-222).
93. HART, 1997: 250.
) 94 · Por exemplo, WALUCHow (2003: 140-141 e cap. V) e MoRESO (2007). Para ATIENZA e

90• Entre seus representantes estão HART ( 1994, Postscript), CoLEMAN (2003), WALUCHOW MANERO, mesmo o positivismo inclusivo não teria poder explicativo suficiente para dar conta
j do direito praticado nas democracias constititucionais contemporâneas (ANTIENZA; MANERO,
(2003), HlMMA (2002) e MORESO (2002).
j 9 1. Entre os mais destacados estão RAZ (2001; 2002) e BuLYGIN - ver em particular os artigos 2006).
de sua polêmica com At.Exv (BULYGIN, 2005; BULYGIN, 2010) - MARMOR (2005) e SHAPIRO 9S. HART, 1997: 250 (trad. livre).

) (2005).
96• HART, 1997: 265.

)
~
66 JULIANO SOUZA DE A LB UQU ERQ UE M/\R/\NI IÍ\0 O DElli\T E CO TEMPORÂNEO D1\ TEORI A J\Ni\LÍTICA DO DIREITO
67
Há dois proble mas com relação ü illlerpretação dos d ireitos fundame n- validade ou in validade de uma regra pa rticu lar por um j uiz. A questão na
tais como critérios da própri a regra de reconhecimento. O prime iro é que seu metalinguagem é e m que medida tais pro posições podem ser encaradas como
conteúdo nas co nstituições co nte mporâneas é ele ta l fo rma amplo e poten- j uríd icas (ou baseadas em razões jurídicas), co nforme determ inada defi nição
c ialmente conflitante, ao assegurar val ores como v icia, ig ualdade, liberdade. ou conceito de dir.:.: ito.
di gni dade, segu rança, legalidade etc. que, prat ica mente, não haveri a li m ite ao
Assim, a perspectiva in te ressante de análise te m a ver com a consis-
d omínio de razões mo rais possíveis a figu rar como fundame nto de validade e,
tência da tese de incorporação em relação à tese d as fontes. Inclusivistas
portanto, não haveria p ropriamente uma d istinção entre razões morais e razões
arg umentam q ue a incorporação é consistente e exclus ivistas argumentam
jurídicas como base ele qualquer d ecisão a partir d o direito positi vo. Parece
que a incorporação é inconsistente e ta lvez, por esse mo tivo, seja até mesmo
ig ualmente um a evidênc ia c lara que o d ireito limita o domínio d e razões morais
melhor chamar esses últimos ele anti-inclusivistas (só não o faço porque,
possíveis em uma decisão, por meio ele no rmas jurídicas. 97 Caso contrário,
obviamente, argumentos contra a incorporação contingente refutam também a
a regra de reconhecimento, no limite, anul ari a o cri téri o de pedigree, pois
poderi a ser reduzida a conceitos morais fin os (tliin moral concepts)98 como «O tese de incorporação necessária dos interpretivistas e jusnatu ralistas). Chamo
a atenção para o fato ele que, nessa perspectiva, os arg u mentos incorporacio-
direito é dado pelas normas justas (boas, corretas)» o u, no sentido de limi-
tação material de competê ncia exercida pe los d ire itos fu nd amentais <<Apenas nistas ficam mais fortes se restringem o tipo de c ritérios de m? raliclade que
normas justas (boas, corretas) postas pela auto ridade são válidas», o q ue podem ser incorporados na regra de reconhecimento para conceitos morais
seria absolutamente incompatível com o pos itivismo . Nesse limi te, ta lvez la rgos (thick moral concepts) como vedação à crueldade, liberdade religiosa,
fosse mais adequado abandonar o positi vismo o u usar uma versão radical da devido processo legal. A extrapo lação desses para todos os direitos funda-
tese da discricionaried ade, como a de KELSEN - um convite ao vo luntaris mo. mentais enu nciados nas constituições democráticas enfrenta os proble mas
acima destacados. Assim. deve-se cuidar para, da conclusão da possibilidade
O segundo problema é a confusão apare nte e ntre no rmas constituc ionais lógica de incorporar algu m c ritério moral na regra de reconhecimento, não
e regra de reconheci mento e, por trás disso, entre as ling uagens da J11rispru- saltar para a identificação de constituições conte mporâneas como a regra de
denz e da Metajurisprudenz. As no rmas constitu cio nais são identi ficadas como reconhecimento.
válidas, a partir da convenção, observada pelo compo rtamento dos juízes e m
identifi car normas postas confo rme a constituição, como vincul antes. A regra Como é o inclusivismo q ue concede espaço à crítica interpreti vista, com
de reconhecimento é essa co nvenção. lsso s ignifica que os atos legislativos o u o obj etivo de dar conta do recurso cios tribunais a princípios como razões j urí-
criadores de no rm as confo rme procedime ntos determinados na constituição dicas, quero apenas identi ficar os tipos de argumentos contra a consistência ela
têm sua autoridade reconhecida, o que se co nfirma mesmo quando normas incorporação. O excl us ivismo, por não ceder nen hum espaço, continua com
têm seu conteúdo questio nado como inconstituc ional. Os di reitos fundamen- o mesmo prob lema cio peso excessivo jogado sobre a tese de discricionarie-
tais tê m papel importante no controle ele consti tucio nalidade do conteúdo das dade, sendo incapaz de ex plicar satisfatoriamente a ati vidade de interpretação
normas jurídicas, mas o fa to ele norm as serem julgad as in válidas, po r contra- juríd ica (o q ue, para os exclus ivistas, seria um projeto d istinto ele uma teoria
riedade a um d ireito fundamental, serve para mostrar que as mesmas não da va lidade).
foram e não podem ser ignoradas pelos operado res do dire ito. Dessa form a é Já q ue meu obj eti vo é ind icar um caminho Iógico- inclusivista, cedendo
preciso distinguir o termo «validade» na ling uagem obj eto dos operadores do a lg um espaço à interpretação e aos princípios na teoria da va lidade, não
direito e mesmo da d ogmática jurídica (J11risprude11.z), d o termo «validade» preciso carregar o ônus ele mo strar que uma ou outra vertente cio positivismo
na.ling uagem da teoria do direito (Metajurisprudenz). A busca de critérios de estaria «errada». Basta ident ificar as pri ncipais d ificuldades na tentati va de
identi ficação pela teoria do direito não se con funde com pro posições sobre incorporação.

7
9 . S CIIAUER, 2004. 2.6 A RGU MENTOS CONTRA A CONSISTÊNCIA DA INCORPORAÇÃO
98
Em filoso fia moral, princi pal mente no debate sobre o não cogn iti vismo ético, há uma
·
separação entre os conceitos morais conforme o seu grau de conteúdo descritivo. Os concei tos O primeiro obstáculo para a incorporação está na ambiguidade da regra
morais finos (1/zi11 moral co11cep1s) são aqueles mais gerais com pouco ou quase nenhum ele reconheci mento ou da no rma fundamental, já apontado anteriormente.
conteúdo descriti vo, como «bom», «correto», «i nj usto», «devido» etc. Já os conceitos morais
largos (1hick moral co11ceprs) possuem algum conteúdo descri tivo de determinados fatos Co mo vi mos, em uma interpretação, a versão fraca da tese das fontes, essa
gerais acerca do tipo de comportamento que pode ser qual ificado pelo conceito. como «cruel», pode ser reduzida a uma descrição, cio ponto de vista ex terno, ele um critério
«honesto», «diligente» etc. que é de fato seguido pela comun idade ele j uízes para identificar atos norma-
;p
)
68 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 69
)
) tivos como criadores de regras jurídicas. Essa não seria propriamente uma definido e há mais de uma solução igualmente aceitável. O comportamento
regra do ordenamento e não imporia propriamente um dever aos juízes, como convergente, nesses casos, não é só um fato, mas traz uma pressão normativa
) postula a versão forte da tese. Em geral, os exclusivistas a veem dessa forma e sobre os agentes que participam da prática. Sendo a convenção sobre as fontes
) DwoRKIN também descartou inicialmente a incorporação, justamente por esse a solução de um problema de coordenação, estaria justificada a existência de
motivo. Vale dizer, as regras aplicadas têm sua autoridade constituída por pressão normativa sobre o conteúdo da convenção, que seria, por sua vez,
} uma prática convergente, que pode ser descrita por um critério, mas, diriam fandada no fato da convergência de comportamento.
} RAZ e BuLYGIN, a regra de reconhecimento não é uma norma estabelecendo
Porém, a nota característica do modelo é que tais soluções são arbitrárias.
o dever de cumprir os critérios pelos quais os juízes identificam o direito. Se
) não é norma com conteúdo de dever, mas simples fato de que regras ou atos
A natureza arbitrária frente a várias alternativas de equilíbrio torna inade-
quado encarar a convenção sobre as fontes de direito como a resolução de
) criadores de regras são identificados por certo pedigree, então não há como
um problema de coordenação. Afinal, a convenção sobre as fontes de direito
embutir nessas qualquer dever de respeitar determinados valores morais, seja
) parece ser o produto de uma escolha baseada em razões que fundamentam a
como condição suficiente para criar regras (por exemplo, o princípio de que
) preferência por essas fontes e não outras. Certamente substituir as fontes de
ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, como critério moral, seria
direito não é o mesmo que substituir o lado da rua, para os mqtoristas, uma
) uma condição suficiente para validar uma série de regras em situações nas
vez que a mudança poderia trazer problemas para convergência de compor-
quais se observa esse efeito), seja como condições necessárias negativas para
) tamento.102 E isso é ainda mais provável quando se pretende que a conver-
criar regras (por exemplo uma cláusula restritiva determinando que são regras
gência gire em torno não só da identificação de autoridades como também de
) válidas as normas conforme a constituição, a não ser que criem desigualdades
injustificadas). determinados valores morais, como querem os inclusivistas. O problema se
) agrava se pensarmos a convergência como um jogo de repetição, pois não há
Para superar esse obstáculo inicial, o inclusivista precisa resgatar e no modelo qualquer elemento que impeça os agentes de trocarem arbitraria-
) fundamentar o caráter normativo da regra de reconhecimento. Nessa linha, mente de solução (embora se possa admitir a troca de solução em dirigir pela
) CoLEMAN faz distinção entre os fu.ndamentos e o conteúdo dos critérios de esquerda e não mais pela direita, não se substitui facilmente, por exemplo, o
validade. As condições sociais fáticas para enunciado externo da existência da compromisso em seguir a Constifuição brasileira pelo compromisso em seguir
} regra de reconhecimento dizem respeito aos seus fundamentos, mas o conteúdo a Constituição francesa). 103
) dos critérios não necessariamente precisa ser a descrição do fato social que a
fundamenta. Os critérios são constituídos pela prática, mas seu conteúdo pode Para contornar esse problema, pode-se tomar a convergência sobre as
) exercer, do ponto de vista interno, uma pressão normativa sobre os agentes.99 fontes de direito como resultante da ação cooperativa ou coletiva intencional
A ideia de que essa normatividade do critério seria resultado de acordo (shared cooperative activity). A convenção seria resultado de uma série de
)
expresso é descartada, em geral, por sua imp!ausibilidade. A saída encontrada ações coletivas por membros de um grupo com a intenção de contribuir para um
) foi apontar algum elemento de mútuo compromisso existente na convenção resultado comum (efetuar um plano geral a partir da execução independente,
) sobre as fontes, a partir da observação do comportamento independente, mas mas cooperativa de sub-planos). De modo resumido, para que uma ação seja
convergente, da comunidade de juízes. cooperativa e intencional, conforme BRATMAN, 104 é necessário e suficiente que
) cada participante esteja comprometido com o resultado comum (plano geral),
Uma primeira ideia foi ver a convenção como regularidade de compor- seu papel esteja entrelaçado com o papel dos outros participantes (sub-planos)
)
tamento entre indivíduos para solucionar um problema de coordenação. 100 e que haja um compromisso de mútuo suporte e prestação de contas (respon-
) Problemas de coordenação são situações que envolvem decisões interdepen- siveness) na realização de cada papel. 1º5 SHAPIRO (um exclusivista) adapta esse
) dentes dos agentes, nas quais predomina, sobretudo, o interesse na conver- modelo para caracterizar uma estrutura cooperativa incluindo uma ou mais
gência da decisão e há mais de uma alternativa de equilíbrio. 101 Por exemplo, autoridades, com a substituição de alguns elementos, como mútuo suporte
) a convenção entre motoristas em dirigir pela direita resolve um problema de e responsiveness, considerados inadequados na relação entre autoridade e
) coordenação. As escolhas de todos sobre o lado da pista são interdependentes sujeito, além da incorporação da coerção como uma «estratégia de backup»
e o interesse maior é que todos atuem pelo mesmo critério, seja qual for o lado
) 102
• Nesse sentido, MARMOR (1998: 509-532) e SHAPIRO (2002: 387-441).
) 99
·CoLEMAN,2003:88-107. 103
· SHAPIRO, 2002.
100. CoLEMAN, 1998: 381-426. 104
· Michael BRATMAN, 1999.
) IOI. LEWIS, 2002: 5-24. ios. A base do modelo é dada por BRATMAN (1999).

)
70 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATECONTEM l'ORÂNEO DA TEORIA ANALÍT ICA DO DIREITO
71

para assegurar o compromisso de a tu ação co nvergente. O passo segui nte é «( ... · .s - seu e Iemen l o
, ). essa prát ica tenta alca nç ar um conJ'unto de ben s 111o ra· 1
ap licá- lo à ação cooperativa de j uízes e m mante r um sistema unificado de teleolog_1co_; ou a m ora lidade forma pa_ne do elemento intencional da prátic a,
regras com estrutu ra de auto ridade (j uízes se comprometem a ide ntifica r as o que s1g n~fica sua regra de reconhec i mento, fornecendo diret amellle, dessa
forma, razoes subs ta nti vas p ara cu mprir as regras jurídicas.»'09
regras de macio comum e a resolver e ntre si as di sputas sobre o a a plicação
dos c ritérios). Com essas adaptações, SHAPIRO e nte nde que o mode lo de ações A primeira alte rnat iva é uma nova versão da tese de valoração, descar·-
coletivas inte ncio nais possa explicar a natureza convenc ional não a rbitrária tada pelos autores já q ue o propósito atribuído à prática pode ser simplesmente
e estável de uma estrutu ra de a utoridade, co mpreende ndo-se o dever d e seus c riar e manter a estrutura de autoridade como um bem e m si (na linha da
me mbros com a estrutura assi m o rganizada, sem que seja necessária refe- resposta de H ART a FULLER). A segunda alternati va é a tese de justificação
rê ncia à mora lidade. 106 moral em nova roupagem. Mais do que isso, co mo os autores não deixam de
r~co_nh~~er, o_a r? u~ne~to leva a uma incorporação necessária da moral pelo
Por ironia, a funda me ntação desse dever e m seguir os c ritérios de orga- direito e a 1ns1stenc1a desses na fo rça da moral como eleme nto de coesão
ni zação da estrutura de autoridade, proposta po r um exclus ivista, é a porta e comprometime nto mútuo reverbera a noção de integridade de DwORKIN,
de e ntrada para o e mprego de c ritérios morais na regra de reconhecime nto, e m particular o espírito de comunidade baseada em princípios de justiça. 111
uma vez concebida, do ponto de vista interno, como a ti vidade cooperativa Portanto, se a estrutu ra de autoridade fruto de uma prática coletiva intencional
intencio nal. A ideia de SHAPIRO foi mostrar a desnecessidade de referência à depende r da mora lidade da cooperação intencional, pode ser a moral o fato r
moral para que haja com pro misso com a estrutura de autoridade. Mas para o de autoridade e não o fato da convergência cooperati va.
inclusivismo, basta que a inclusão de princípios morais não seja impossível
e, nesse modelo, é possível reunir a cooperação e m torno de uma estrutura de Assim, a compreensão da regra de recon hecime nto como o dever de
autoridade, mas com o obje tivo de atender determ inados c rité rios de mora- respe itar o c ritério ele ide ntificação, por força de um mú/110 compromisso, é
lidade. A dificu ldade nesse tipo de construção, a inda quando restrita a uma proble mática quando pensamos em práticas de larga escala. A solução explo-
estrutura de autoridade, está e m como extrapolá- la para práti cas coletivas de rada traz como elemento e explicação do vínculo a própria moralidade desse
larga escala e para a prática jurídica em geral. 101 O proble ma te m a ver com a compromisso, o u seja, propõe que esse comprom isso atenda a um plano gera l
idealização, presente no modelo, do comprometimento e ntre todos os envol- c ujo conteúdo seja moralmen te j Üstificado para os participa ntes. A dificuldade
apontada pelos a ntipositiv istas reaparece aqui: as «razões morais substan-
vidos com a unifi cação do sistema de regras e a possibilidade de se resolver de
tivas» para o comprometimento mútuo e m seguir o c ritério (que são por isso
modo uniforme e e ntre laçado as d isputas sobre os c ritérios.
incorporadas no próprio crité rio) são, por s ua natureza, controversas.
BoNGIOVANNI et alii, ws por exemplo, te ntam explicar quando e porque
CoLEMAN admi te a possibilidade de controvérsias sobre os c ri térios de
critérios morais são incorporados na regra de reconhecime nto tomada como
moralidade incorporados à regra de reconhecimento e, mais, que a resolução
ação cooperati va inte ncional. A resposta oferecida, após c ríticas às limita-
dessas disputas possa envolver apelos ao próprio prupósitc da prática social
ções da sanção para assegurar a cooperação, está na moralidade como fator
baseados em conce pções distintas sobre qua l seria esse propósito. 112 A questão
instrumental. A questão passa a ser como in terpretar essa instrumentalidade.
que naturalmente aparece, e DwoRKIN não perde a oportunidade de explorá-la,
Se essa significa r correspo ndê ncia mínima e ntre regras e moralidade, en tão
é como conciliar essa natureza controversa com o caráter co nvencional da
não há propriame nte e ne m é necessári a a incorporação, po is essa seri a uma
prática. Se esse objeti vo não for alcançado, o inclusivis mo seri a uma teoria
condição extern a, que tem a ver mais com a eficácia do crité ri o do que com a
interpre tiv ista, ainda que não adm ita esse nome. A resposta de CoLEMAN reside
inclusão de crité ri os morais (le m bre que a e ficácia do c ritério é justamente o e m duas distinções: prime iro, e ntre grounds (fundamento fático da regra de
que se quer explicar ao se tomar a prática co mo convenciona l no sentido de reconhecime nto) e criteria (conteúdo da regra de reconheci mento) e, segundo,
cooperati va). T odavia, esses autores colocam a moral como fato r inerente, que e ntre co111eúdo dos c ri té rios e aplicação d os mesmos. A regra de conhecimento
viabiliza a gene ralidade e estabi lidade da coope ração e m uma prática jurídica
de larga escala. Levantam duas alte rna ti vas para essa incorporação:
I09. BoNGIOVANI et alii (2009).
11 0 · «This seco11d optio11 is rherefore substamially alig11ed with Colema11 's co11c/11sio11, eve11

106. SHAPIRO, 2002. though ir /ooks m11ch stro11ger beca11se it assumes (as we arg11ecl) thar morality ca111w1 be easily
º
1 7· Nesse senlido ver KuTZ (2000). Especificamente para uma crítica ao modelo de SHAPIRO para dispe11sed wirh.» ( 13oNGIOVANNI et alii, 2009: 19).
a prática juríd ica, ver BRíG100 (20 1O). li 1. 0 WORKIN ( 1986: 189- 190).
111 COLEMAN (2003 : 99 e ss. e 157-158).
IOS. BONGIOVANI et alii (2009).
)
) JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 73
72
) .,.,

,
)

)
funda-se no fato social de convergência. Mas essa convergência constrói-se a
partir de uma pressão normativa em tomo de determinados critérios, que podem
ter conteúdo moral. Ademais, pode haver discrepância sobre como aplicar
esses critérios de moralidade incorporados na regra de reconhecimento, o que
base comum, por exemplo, uma discussão sobre se um escargot está bem
temperado pressupõe que ambos os debatedores considerem o escargot comes-
tível. Essa base comum, por outro lado, pode ser construída a partir de revisões
de crenças dos debatedores no curso racional da discussão até identificarem

,
não significa haver discordância sobre o fato de que tais critérios fazem parte bases comuns (o que ocorre, por exemplo, no aprendizado sobre qualidade de
l dela. Por exemplo, pode-se divergir sobre como instanciar o conceito «liber- vinhos). Diferentes concepções de direito podem revelar ideologias e meto-
dade de expressão» sem haver discordância (pelo contrário, pressupondo-se o dologias distintas, sem que haja uma base comum, o que não impede que haja
consenso) de que de fato a liberdade de expressão é um critério de moralidade acordo sobre proposições de direito (a proposição de que é proibido apedrejar
) presente na regra. O caráter distintivo entre inclusivismo e interpretivismo a mulher adúltera pode ser verdadeira em todas as concepções ou ideologias
} estaria, assim, na crença dos inclusivistas de que os critérios identificados possíveis como base de interpretação do direito penal brasileiro).' 15
(embora com instanciação controversa) têm fundamento em uma convenção
) Se, para os exclusivistas, esse tipo de desacordo sobre fundamentos é não
social de fato observada.
genuíno, revelando possíveis atitudes opostas sobre soluções não comparáveis
J Mas DwoRKIN quer apontar justamente que o tipo de controvérsia entre racionalmente, a serem decididas pela escolha entre uma das a~itudes a partir
) juízes em tomo de princípios morais tem a ver com os fundamentos do que de um acordo sobre a autoridade última competente (discricionariedade),
é direito (the grounds o/ law) e não apenas proposições sobre direitos em MoRESO os vê como um processo de busca por uma base comum, que pode
)
particular (propositions oflaw), supostamente baseadas em um mesmo funda- gerar uma revisão constante da base pressuposta em cada questão jurídica.
1
J mento. Por exemplo, na medida em que defendem concepções distintas sobre Portanto, os desacordos acerca de fundamentos de direito são vistos como
a prática jurídica, os juízes discutem efetivamente se a noção de liberdade genuínos, apenas a base comum é constantemente revisada. A proposta de
) de expressão deve ser um critério de validade. Obviamente, para reafirmar o MoRESO é tão complexa quanto concisa e, se compreendi bem seu reflexo para
'.)
1
consenso sobre os fundamentos do direito, o inclusivista pode reinterpretar a teoria do direito (o artigo não parece preocupado em definir isso), a linha
esse tipo de controvérsia e recolocá-la na aplicação de conceito mais abstrato, entre os inclusivistas e o direito como integridade fica bastante tênue. A cons-
1) por exemplo, como uma discussão sobre a aplicação do critério moral de liber- tante reformulação da base comum poderia ser lida como uma estratégia de
) dade, em que a liberdade de expressão é confrontada com a liberdade de ir e abstração, cujo desfecho DwoRKIN já apontou. Mas a base comum não significa
) vir. E se a discussão for entre liberdade e igualdade como critério, a mesma propriamente generalização dos critérios morais de validade e sim construção
pode ser tratada como uma divergência entre qual é a forma «mais justa» de e refinamento da base, a partir de um debate racional, o que significaria
) resolver a questão. Porém essa estratégia de abstração, 113 para situar a contro-
«( ... ) um convite a lidar com nossos desacordos como se fossem desacordos
) vérsia como algo intracritério e não intercritério de identificação, pode levar genuínos, como um convite a revisar infinitamente os fundamentos do Direito
à explosão do universo de razões jurídicas para o universo de razões morais no intuito de encontrar um equilíbrio reflexivo entre nossas práticas jurídicas e
) e, ou se adota uma noção de convenção muito abstrata, na qual também a nossas convieções práticas.» 116
) moral seria uma prática convencionada do mesmo tipo, 114 ou se abandona a
convenção social como fundamento de validade. Não fica claro como essa base comum instável e mutante pode preservar
) a tese de convenção social sobre critérios que incorporem parâmetros morais,
Uma linha nova para explicar a natureza da controvérsia sobre critérios nem se é essa a sugestão de MoRESO.
}
de validade (grounds o/ law) foi proposta por MoRESo e consiste em distinguir
) desacordos genuínos de não genuínos. Os acordos genuínos pressupõem uma Como visto, a incorporação de critérios morais de validade, ainda que se
admita um conteúdo de dever para a regra de reconhecimento, traz dificuldades
} para manter a tese de convenção sobre as fontes, pela natureza controversa
113• Esseargumento é desenvolvido por DwORKIN (2006: 191-194).
) 114
Esse ponto é aplicável à concepção da convenção como prática coletiva intencional, quando

desses critérios. O risco está nas razões jurídicas colapsarem com as morais.
se pretende caracterizar a cooperação de forma abstrata e a estrutura de autoridade depender A via natural para evitar o colapso está em explicar como essa convenção
} apenas do compromisso fraco em se coordenar o comportamento e resolver entre si as disputas estabelece uma estrutura de autoridade capaz de distinguir a prática jurídica
) entre critérios (como reflexo de mutual responsiveness). Assim, a formulação de CoLEMAN,
segundo a qual «it is a conceptual truth about law that officials must coordinate their behavior
) with one another in various ways that are responsive to the intentions and actions o/ others» 11s. Essa possibilidade pode ser descrita, como sugere MoRESO (2009) em um modelo de super-
(COLEMAN, 2003: 98) é tomada por DwoRKIN como incapaz de distinguir o direito de uma série valorações.
'} de outras atividades socialmente coordenadas no mesmo sentido (DwoRKJN, 2006: 196). 116 · MoaESo, 2009: 71 (trad. livre).

}
74 JULIANO SOUZA DE A LB UQUERQUE MARANI IÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORI A ANALÍTICA DO DIREITO
75
da moral, ca minho que vai levar não só à des necessidade de rec urso a cri1érios Mas pode ríamos de li bera r sobre a adequação e m seguir ou não a razão
de moralidade, como à incom patibilidade conceituai destes co m a ideia ele oferecida pela regra, colocando nesse balanço o fato dessa ser uma regra
convenção social.
(razão independen te), como u ma razão adici o nal. Não pode ria ser também essa
É esse o ca minho tri lhado por RAz pa ra rejeitar o inclusivismo, ao d iscutir uma desculpa para agirmos incorretame nte (conforme o b alanço de razões)?
as implicações conceituais ele se admitir a autoridade d as razões decorre ntes A resposta de um defensor da tese forte da autoridade das regras é negativa,
de regras. O a rgume nto é construído e m torno da compree nsão de nossas de li- pois o «peso» da regra na de liberação teri a a ver a ntes com o valor atribuído
berações práti cas sobre como agir, o u sobre como decidir. pelo agente à fide lidade às regras e, dessa forma, a ação fi nal seria resu ltante,
Antes de apresenta r o a rgume nto, va le uma d iscussão mais intuiti va. não da auto ridade da regra, mas do próprio balanço de razões pelo agente, no
Suponha que precisamos tomar uma decisão sobre co mo agir e m de terminada qua l prevaleceu o va lor ele fidelidade.
circ unstâ ncia. Para tanto delibe ramos a partir ele u ma série ele razões (de nat u- RAZ defende a versão forte da autoridade das regras, i. e. tanto a neces-
reza políti ca, moral, in teresses pessoais etc.) a favor e contra de te rminado cu rso sária inde pendê ncia ela regra com relação às razões de fundo que a justificam,
de ação, ele forma que a ação ou decisão tomada é o resultado desse ba lanço de quanto a preclusão (preemption) do balanço ele razões. 117 Sua tese sobre
razões. O que muda qua ndo di zemos que decidimos o u agimos confo rme uma a utoridade parte da concepção mediadora do dire ito (service con'ception ). RAz
regra, ou seja, quando apelamos para a autoridade de uma regra? (
conside ra uma verdade conceituai a pre tensão de legitimidade da autoridade.
Uma primeira tese é que embora o conteúdo dessa regra se baseie nas Essa pre tensão pode ser falsa, mas necessariame nte existe, caso contrário, a (
mesmas razões de fundo que se ap lica m à delibe ração do agente acerca ele a utoridade do direito não pode ria se susten tar. Se pre tende tal legiti midade,
certa ação, a regra te m necessariame nte que e ntrar no processo de de li be ração e ntão deve ser ao me nos capaz ele tê-la. Para tanto, o d ire ito e suas regras devem
como razão indepe11deme e adicional às razões de fundo que justifi cariam agir ser necessaria mente capazes de mediar e ntre o s suj eitos e as razões corretas
conforme a regra. Ela oferece uma razão para agi r pelo s imples fato ele ser que se apliquem sobre suas ações. A racionalidade dessa mediação está em {
uma regra e o fato de um a razão ser o com eúdo de uma regra é inde pe ndente uma de liberação no senLido de q ue os sujeitos que se subme tem à autoridade
da própria razão que é o con teúdo da regra. Nesse sentido, pode mos dizer (creem que) provavelme nte esta1:ão em melhor si tuação se seguirem as regras
que a razão dada pela regra é dotada de a utoridade . Ou sej a, dentre as razões por ela c ri adas como vinculantes do que se ag irem com base nas próprias
consideradas para agir, incluo aque la de ri vada d a regra de modo indepe n- razões (lese da justificação normal). Porém, as razões que se aplicam às suas
de nte, mas as outras razões podem me levar a c rer que, e mbora, em geral, ações e decisões são as mesmas que justi ficam e estão por trás da deli beração
sej a mel hor seguir regras do que não segui- las, talvez naq uela circ un stância de c riação das regras (tese da dependência). Decorre di sso que os sujeitos
seja melhor não segui-la. Aqu i, a autoridade ela regra traduz-se no fato ele que não podem, ao mes mo te mpo, seguir as regras e seguir as razões de fundo das
não podemos ig norá-la e m nossas d elibe rações, ai nda que nossas delibe rações regras, caso contrá rio, o di reito não poderi a exercer seu papel mediador. Isso
possam supla ntá-la.
significa também que uma regra dotada ele autoridade deve ser sempre identifi-
Outra tese, mai s forte, é que a lé m de inde pende nte e distinta d as razões cável sem recurso às razões de fundo que teria m justificado a sua criação. Esse
de fundo que a poderi a m justifi car, a regra, para ser dotada de a uto ridade, ú ltimo passo prova a independência da regra com relação a sua j usti ficação e
não pode ser s imples me nte uma razão adicio nal no processo de del iberação já constitui argumento contra a incorporação de c rité ri os morais co mo condi-
sobre como agir, e la te m que excluir ou precluir o processo d e de li be ração. Só ções suficientes ele va lidade de regras . Com relação à preclusão, R AZ consi-
pode mos dizer q ue agimos conforme a regra o u «por causa da» regra se essa dera-a essencial, caso contrário, não seria possível distingu ir regras de meros
não só é independente de suas razões de fundo, como exclui razões que pode- conselhos que e ntram no balanço de razões . Se o balanço de razões inclui r a
riam inte rv ir no processo ele delibe ração. Isso sign ifica que, sem a preclusão , conveni ência o u não de se seguir regras, e ntão fica contradita a tese da justi -
a regra não p ode ser efe tivame nte uma razão independente de suas razões de fi cação normal e a capacidade do dire ito e m assumir uma função mediadora.
fundo. Isso porq ue, q ua lquer críti ca ao conteúdo da regra na definição sobre Nesse último passo, fica excl uída também a possibi lidade de incorporação de
como agir imp lica deli be ração e atuação conforme as próprias razões e não critérios mora is como condições necessárias de va lidade.
em função d a regra. Ou seja, co ndição necessári a para que a regra te nha a uto-
ridade é que seja capaz de se rvir co mo descu lpa (racional) para não se agi r 117
Ver RAz (2001, cap. 1O; 1990). Para uma d iscussão mais completa dos argumentos e contra-
con forme a melhor razão resu ltante da ponderação. argumentos dos inclusivistas a respeito dessa tese, ver H 1MMA (2005 ; 2002).
76 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO O DEBATE CONTEMPORÂNEO DA TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO 77

Por fim, outro argumento relevante contra a incorporação diz respeito à O significado da regra de reconhecimento e sua relação com critérios morais,
tese da diferença prática (practical diference thesis). 118 A base do argumento elimina qualquer possibilidade de conciliação.
está novamente na assunção mínima de que o propósito do :Jireito é guiar A saída é generalizar suas teses de forma a abranger tanto inclusivistas
a conduta por meio de regras. Daqui, SHAPIRO deriva que as regras devem, quanto exclusivistas, mas também evitar que a generalização esvazie seu
necessariamente, desempenhar algum papel motivacional relevante, nas deli- conteúdo de forma que não mais se permita distinguir positivistas de antipo-
berações práticas sobre como agir. Mas se a regra é válida em função de sua sitivistas.
correspondência a um princípio presente na regra de reconhecimento, então, Tanto exclusivistas como inclusivistas acreditam ser o direito decorrente
em nenhuma hipótese a regra decorrente ou compatível com o princípio moral de um dado externo: a convenção sobre as fontes. Essa foi a solução encon-
fará alguma diferença prática. Essa seria tão somente um indicador sobre quais trada para permitir o conhecimento do direito de forma independente de consi-
as razões morais relevantes, ou qual o conteúdo da regra de reconhecimento. derações morais. Para que esse dado externo cumpra essa função, deve ter um
mínimo de objetividade, i.e. sua identificação deve ser possível independente-
2.7 O QUE RESTA DO POSITIVISMO? mente de nossas crenças sobre qual é ou deveria ser seu conteúdo. Os exclusi-
vistas não acreditam que a concepção dos inclusivistas sobre es~a convenção
Como já alertado, não foi o intuito desta seção expositiva tomar posição satisfaça esse mínimo. Os inclusivistas acreditam, porém, que a separação das
por um dos lados do confronto. Apenas houve, em primeiro lugar, uma razões jurídicas com relação às razões morais continua possível, a partir da
concessão sobre a importância da crítica interpretivista Uá em BoBBIO e FuLLER) convenção, ainda que essa endosse algumas razões morais. Isso, na medida
em questionar a afirmação positivista E# (o que não significa concordar com em que essas razões morais não sejam pré-determinadas para se caracterizar
a crítica). Em segundo lugar, entendemos que o positivismo inclusivista, de a convenção como convenção jurídica, mas sejam o produto contingente da
certo modo, aceita E=l, dado que a identificação das regras válidas depende convenção.
da interpretação dada aos princípios presentes na regra de reconhecimento
Assim, ambas as correntes, apesar de discordarem das caracterizações
(vide a distinção de CoLEMAN entre fundamentos dos critérios de validade, propostas por uma e outra, creem·e defendem que há uma determinação externa
que é uma questão de fato, e a aplicação desses critérios, cuja controvérsia é e contingente do conteúdo das normas jurídicas, o que fica bem marcado no
admitida, exigindo interpretação). epíteto positivista «qualquer conteúdo pode ser conteúdo. do direito»: 11 ~ Existe
Em terceiro lugar, como o inclusivismo incorpora a justificação de uma realidade externa, mesmo que captada pela perspectiva dos part1c1pantes,
decisões com base em princípios como razões jurídicas, mas, mesmo assim, que não se confunde com a perspectiva do observador. E isso é o que permite
pretende manter EiD, pois essas razões seriam jurídicas ainda em função do a compreensão do direito de forma valorativa, mas moralmente neutra. Se
teste das fontes sociais, procurei elencar os principais argumentos contra essa essa determinação de conteúdo é contingente, isso significa que há algum
pretensão. Esses argumentos são de três ordens. A primeira, tenta mostrar que recorte no universo de razões morais que podem ser validamente empregadas
a regra de reconhecimento é uma afirmação sobre uma convenção de fato. em nome do direito. 12º Portanto, o aspecto crucial para o positivismo jurídico
não é se esse autoriza ou não o emprego de princípios morais como razões
Não há como pretender ver na regra um dever de seguir algum parâmetro a ser
jurídicas válidas, mas sim a possibilidade de identificar, objetivamente, quais
interpretado e aplicado. É a convergência na aplicação que revela o critério
razões morais foram efetivamente endossadas pelas escolhas dotadas de
apto a identificar os atos criadores de normas como atos juridicamente válidos.
autoridade. Esse mínimo é expresso na seguinte passagem por RAZ, o que
A segunda, tenta mostrar que a incorporação de critérios morais de validade, mostra a compatibilidade dessa tese geral com o exclusivismo:
pelo seu caráter controverso, leva inevitavelmente ao colapso entre direito
«O i11sight presente na tese das fontes é a importância da distinção entre
e moral. A terceira tenta mostrar que a incorporação desses critérios como
aquelas considerações morais (válidas ou inválidas) que receberam o endosso
fundamento de validade é incompatível com a obviedade de que as regras têm público dotado de autoridade e aquelas que não receberam.» 121
autoridade em nossas deliberações práticas.
Assim, temos duas teses mínimas:
Cabe, agora, perguntar se, após o confronto entre positivistas, resta algum
traço comum, ou se a profundidade do seu desacordo, até então oculto sobre 119
· ÜARDNER, 2001.
120· SCHAUER, 2004.
11 ª· SHAPIRO, 2005. Uma resposta à tese pode ser encontrada em CoLEMAN (2003). 121. RAz, 1997: 249 (trad. livre).
78 JULI ANO SOUZA DE A LB UQUERQUE MA RAN I I ÃO

a) O d ire ito é uma pratica socia l que, de alguma fo rma, restringe o


uni verso de razões morais dis poníveis para a solução ele conflitos e justifi-
cação ele ações;
b) A defi nição cio domíni o ele razões jurídi cas é dada po r uma convenção
social contingente sobre determinada estrutu ra ele autoridade, de fo rm a que
não há conte údo necessário o u pré-determ inado para o direito com qualquer
fundamento independente do fato de ter s ido convencio nado o u ser decorrente
da convenção.
O que o exclusivis mo não ad mite é que o recorte ou endosso de parte das
3
razões morais como razões jurídicas seja, e le próprio, um critério de validade,
pois isso, o u não pode ser observado, ou comprometeria a objeti vidade da
observação. Em outras palavras, o recorte ele razões morais não pode produzir
INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO e
ou restringir a prod ução de regras, mas é, ele mesmo, o resultado das regras
decorrentes da con venção social. Essa é a intuição que pretendo seguir para
conciliar com o positivismo o emprego de razões morais, sem pedigree, como
juridicame nte válidas. 3. 1 INTROD UÇÃO
Como visto no capítulo anteri o r, uma elas gra ndes questões ligadas ao
debate contemporâneo sobre a neutralidade ela ciência do dire ito li ga-se ao
papel dos chamados princípios jurídicos como razões vinculantes na recons-
trução interpretati va do ordenamento pelos juristas e o peradores do dire ito.
De início, parece surgir uma dificuldade dada pela equi vocidade cio
termo «princípio jurídico». A me lho r forma de contorná-la é simplesmente
apelar para o senso comum dos juristas. Não usarei aqu i qualquer defi nição ou
critéri os de ide ntificação de princípios j urídicos que seja capaz ele separá- los
ela c lasse das regras o u normas como parâmetros de conduta conceitualmente
distintos, simplesme nte porque não ac redito na viabilidade de sucesso dessa
tarefa.
Prime iro, porque há di fere ntes ex pressões usadas («princípios constitu-
c io nais», «princ ípios fundamentais», «princípios implícitos», «princípios de
direito natural», «princípios sistemáti cos», «princípios ele interpretação») para
se referi r de forma cruzada e imprecisa a objetos di stintos (dire itos funda-
menta is como dignidade humana; enunciados de políticas públicas como
<~fun ção social da propriedade», critéri os gerais de interpretação e resolução
de conflitos como lex posterior ou interpretação restritiva de exceções;
e lementos de interpretação ou valores específi cos ele determinado do mínio,
como a boa f é ou vontade das partes no direito pri vado e legalidade estrita no
direito público; esquemas de argumentação ou topoi da praxis jurisprudencial
como «o acessório segue o principal» ; regras de moralidade como «ning uém
pode se bene fic iar da própria torpeza», critérios de ponderação para decisão
como o princípio de proporcionalidade; institutos o u concei.tos abstratos de
direito provenientes das pandectas etc.). Como destaca GuASTINI, não há como
80 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
81

reconduzir os princípios a uma categoria unitária dada por critérios precisos e) Razões prima facie e ponderação: 3 regras jurídicas ofereceriam
cuja extensão coincidiria com as diversas diretrizes que os juristas, em geral, razões definitivas (necessárias e suficientes) para a ação, aplicáveis mediante a
estão dispostos a chamar de princípios. 1 Abaixo tratamos brevemente de presença das condições nela previstas, enquanto princípios ofereceriam razões
algumas sugestões nesse sentido: prima facie, de forma que as primeiras entram em relações de contradição,
ao passo que os últimos não se contradizem, mas envolvem uma «dimensão
a) Positivação: princípios seriam normas não positivadas, enquanto as
de peso». Esse critério é, por si, polêmico, ao tocar na difícil discussão
regras seriam normas positivadas. Inadequado dada a positivação dos princí-
sobre a derrotabilidade das normas frente a princípios (trataremos do tema
pios nas constituições contemporâneas e legislações que os incorporem para
na Seção 3.13). De todo modo, regras jurídicas também podem ser tomadas
«balizar a interpretação»;
como prima facie, pois suas razões podem entrar em conflito com razões de
b) Grau de abstração: os princípios, diferentemente das regras, seriam outras normas em circunstâncias específicas, que levam a um refinamento das
fórmulas abstratas ou vagas que não definiriam uma conduta particular. Inade- condições de aplicação de uma ou outra, sem que seja necessária a de~ogação
quado já pela vagueza do próprio critério, mas também pelo caráter geral das de uma delas. 4 A operação de qualificação das condições de aplicação das
regras jurídicas, que podem se referir tipos genéricos de ações ou a definições regras, como forma de solução do conflito, pode ser baseada em argumentos
bastante abstratas de conceitos. O critério acaba por se diluir na distinção de semelhantes àqueles empregados na ponderação para definir a· preferência da
que princípios são «mais gerais» do que regras, em algum sentido não muito solução especificada por uma ou por outra regra;
} bem definido; f) Mandatos de otimização: 5 princípios estabeleceriam valores ou fina-
) e) Grau de importância da norma no sistema jurídico: princípios seriam lidades a serem alcançados pelos meios capazes de maximizar o atendimento
) as normas fundantes das regras. Se essa importância tem a ver com critério daqueles, ao passo que regras seriam comandos de ação. Há, porém, dire-
hierárquico das fontes, então, além de restritivo, seria supérfluo (bastaria falar trizes de otimização que são consideradas regras, como regras constitucionais
) de princípios constitucionais ou direitos fundamentais, cláusulas pétreas). Se programáticas (salário mínimo, atendimento do sistema de saúde) ou regras
) tem a ver com a importância da norma do ponto de vista social, o critério é que estabelecem os objetivos d_e agências setoriais (preços módicos para o
vago. Pode ter a ver com a capacidade destes em justificar ou dar razões para serviço, universalização dos postos de atendimento). Por outro lado, embora
) princípios que enunciem políticas públicas pareçam se encaixar bem como
o conteúdo de outras normas do ordenamento. Porém, como há princípios que
) são mais gerais e explicam outros princípios (liberdade com relação à livre mandatos, o mesmo não se dá com direitos fundamentais, cujos represen-
expressão), alguns princípios ficariam de fora, a não ser que se utilizasse um tantes são usualmente considerados princípios (a liberdade de expressão, por
) exemplo, não pode ser violada e não falamos em protegê-la com relação a
termo vago para se referir àqueles que explicam uma «boa parte» das regras;
) um indivíduo em maior ou menor grau, i.e. não se tem direito a um grau de
d) Estrutura categórica: 2 princípios seriam normas categóricas. Inade- liberdade de expressão, essa é uma garantia cuja violação pode ou não ser
) quado, pois não só há normas categóricas como «é proibido matar», como reconhecida em um caso).
) também há princípios de estrutura condicional ou que podem ser enunciados
Cada um desses critérios poderia sofrer reformulações e qualificações,
) de modo condicional «se alguém agir de forma torpe, não pode se beneficiar
para tentar se adaptar às críticas brevemente lançadas acima e gerar rica
como resultado dessa ação», que é o sentido de «ninguém pode se beneficiar
) discussão, encontrada principalmente no campo dogmático constitucional,
da própria torpeza». Pode-se, com esse critério de distinção, querer aludir para
normalmente em defesa de determinada concepção sobre conflitos entre
) o caráter aberto ou genérico das condições de aplicação, em contraposição
normas constitucionais.
ao caráter fechado das condições de aplicação das regras, i.e. regras teriam
) especificadas todas as suas condições necessárias e suficientes de aplicação, o É desnecessário entrar nesse debate, pois o objetivo aqui é simplesmente
) que desemboca na pretensão de distinção abaixo; mostrar as consequências para a teoria do direito do fato de que normas jurí-
dicas são consideradas, no processo de interpretação, como o resultado de
}
1. ÜUASTINI, 1996.
) 2. Para uma discussão mais completa das diversas propostas de separação conceituai entre 3· Essa é a proposta de DwoRKIN (1996, cap. 2).
normas e princípios ver ZoRRILLA (2007). ZoRRILLA, ao final de sua análise, toma os princípios 4
Remeto o leitor a MARANHÃO (2004 e 2006) onde o tema é tratado em detalhe. Ver também
·
) como normas categóricas, o que é insuficiente e sobre-inclusivo, porém está bem ciente das MoRESO (2003 ).
5· Essa é a proposta de ALEXY (2008).
} limitações e considera o critério apenas como tentativo.

)
82 JULIANO SOUZ A DE /\ LBUQUERQU E MARANI IÃO INCL USI V ISMO LÓGICO-JURÍDICO
83

alas rac ienais de pro mul gação, de fo rm a q ue e nco ntram sua juslificação em que normas dedutivamente derivadas e princípios abduti vamente deri vados,
o utras normas o u d irelrizes mais gerais. Normalmente, essas direlri zes gerais apesar de não serem d iretamente proveniente de fo ntes dotadas de auto ridade,
que jusLificam a cri ação de no rmas coincide m com o que os juristas es tão são razões jurídicas. Comparo então na Seção 3. 11 o inc lusivis mo lógicn aq ui
dispostos a denom inar princípios, qu~ usuaJme nte en unc iam va lo res morai s defe ndido com a teori a do «dire ito como integridade» de DwoRKIN. A principal
ou o bjeti vos de po líticas públicas. diferença está na base de norm as com relação a qual as inferências dedutivas e
Embora não haja defini ção criteriológica ele sentido para o te rmo «prin- abd uti vas operam. Enquanto apenas admitimos normas provenientes de fontes
cípio», basta assum ir o que já sabemos: que os juristas sabem apo ntar dire- dotadas de autoridade , DwoRKIN admite, já na base, valores morais e objetivos
tri zes que são típicas formul ações cio q ue chamam de «princípios jurídicos». de políticas públicas. Outra cli fere nça está no caráter local e não global das
Esses nor111al111ente encontram-se nas constituições de mocráticas contem- infe rênc ias aq ui propostas, de forma que, na Seção 3. l2, especifico melhor
po râneas, 11or111al111ente são «muito importantes social e siste maticamente», essa dis tinção e defendo in ferê nc ias locais. Na Seção 3. 13, po r fim , discuto a
normalmente são vagos e genéri cos, normalmente tem condições abertas de possibilidade de conflitos entre regras e princípios delas derivados.
ap licação, 11or111al111e11te resolvem-se por ponderação e, pelo menos para uma
3.2 FORMAS DE INFERÊNCIA E NORMAS DERIVA DA~
classe importante destes, normalmente podem ser satisfeitos em gradações
(max imização). Podemos dizer que há, basicamente, do is tipos de inferênc ias: dedutivas
Feito esse esclarecimemo, este capítulo percorrerá o seguinte caminho: e ampliativas. As inferências deduti vas levam a conclusões menos informa-
ti vas do que as premissas, limitando-se a desdobrar e explicitar conteúdos
Na Seção 3.2 apresento os diferentes tipos de inferê nc ia, conforme a c las- nelas implícitos, de modo que a negação da conclusão é incompatível com
s ificação de PEIRCE (dedutiva, induti va e abduti va) e des taco o papel das infe- as premissas. Uma inferência deduti va Lípica é a dada pelo silogis mo «T odo
rênc ias abduti vas na interpre tação ele normas como justificadas por princípios. cão é mam ífero, todo mamífero é vertebrado, logo todo cão é vertebrado». As
Na Seção 3.3 localizo a discussão sobre a validade elas normas deri vadas no premissas j á contêm os termos que aparecem na conclusão e esta é informa-
aspecto de pertinência destas ao o rdename nto. Em seg uida, na Seção 3.4 espe- tivamente mais fraca d o que o conjunto de premissas (a relação de dedução é
c ifico, mais uma vez, essa discussão como uma indagação sobre a o rigem das linear : a conc lusão é deduzida das premissas, mas não posso deduzir qualquer
razões de autoridade das normas, propondo que uma razão é jurídica (válida) das premissas com base na conclusão).
se for possível traçar sua origem ao ordenamento jurídico. Na Seção 3.5 busco
As infe rê ncias arnp liativas, por sua vez, levam a conclusões com infor-
esclarecer o que entendo por o rdenamento jurídico, pelo aprofunda mento mações adicio nais o u logicame nte mais fortes (do ponto de vista deduti vo) do
daquilo que chamei de tese da objetividade forte do pos itivismo. Concluo que que aquelas contidas nas premissas, de forma que a negação da conclusão não
a o bjeti vidade na qual se assenta o u pode se assentar o positivismo não está no
é impossível diante das pre missas, mas apenas improvável ou implausível. A
conteúdo claro das normas, mas no consenso sobre instanciações típicas. Com dificuldade está com o grau de gar<1ntia epistêmica que são capazes de propor-
isso, os chamados hard cases de DwoRKI N de ixam de afetar a base objeti va c ionar. De acordo com PEIRCE,6 as inferê nc ias ampli ativas são compostas por
das razões ele au to ri dade. Na seção seguinte, espec ifico o que entendo como (
doi s tipos independentes, a indução e a abdução, que podem ser distinguidos
discurso da ciência cio direito, em s ua função ele gui ar a conduta com base no confor me s ua estrutura s ilogísti ca. O quadro abaixo sintetiza a estrutu ra das
ordenamento jurídico. Com essas fe rramentas e m mãos, apresento, na Seção três formas de inferênc ia: 7
3.7 , meu arg umento central , na fo rma de um contra-argumento à c rítica de
DwoRKIN ao posiLivismo. Trata-se de mostrar que é precipitada a conclusão de Dedução Inclução Abdução
D\vORKIN de que a fo rça vinculante dos princípios so mente poderia decorrer Regra: Todo A que é B é C Premissa Conclusão Premissa
de seu mérito mo ral. Enfrento en tão, na Seção 3.8, a objeção de MARMOR
a qualquer tentati va ele cons idera r razões provenie ntes de normas derivadas Caso: A é B Premi ssa Premissa Conclusão
como razões juríd icas. No debate com MARMOR, especifico em que sentido Resultado: A é C Conclusão Premissa Premissa
norm as dedutivamente deri vadas e princípios abduti vamente deri vados são
razões jurídicas. O resultado da di scussão traz uma concepção alternati va de
6· PEJRCE. 1958.
direito como um conjunto de siste mas normativos decorrentes de reconstruções 7 Para uma abordagem detalhada elas formas básicas de inferência conforme a evolução cio
interpretati vas cio o rdenamento, que inc luem regras e princípios como razões pensamento de P EtRCc ver H1u •tNEN (2004). Em HtLPINt;N (2000) encontra-se uma anál ise da
jurídicas vinc ul antes. Nas Seções 3.9 e 3. 10 argumento, respecti vamente, origem aristOlél ica da teoria da i nferência de P EIRCE.
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84 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
85
t•
'} A dedução desdobra a conclusão com base na regra geral e na consta- poderiam ser testadas (por exemplo, a grama está molhada pois passou a
1,
tação de que o caso previsto na regra está presente. Com isso, garante-se que verter água). Daqui decorre a distinção entre o contexto de descoberta e O
} o resultado da regra geral também está, caso contrário, essa regra seria falsa contexto·de confirmação. A etapa de geração de hipóteses seria uma espécie
} ou a constatação estaria equivocada. Daí porque a assunção da verdade das de adivinhação, guiada pela intuição do cientista. A segunda envolveria um
premissas, pela estrutura do argumento, garante a verdade da conclusão. método de prova em que as hipóteses são contrastadas com um conjunto de
,}
A indução parte de constatações de que um resultado está presente observações.
) quando um caso está presente para concluir, por generalização, a regra. No
Recentemente, no campo da inteligência artificial, o desafio em desen-
) caso da indução, não se introduz novo vocabulário, apenas se generaliza as
volver representações lógicas de agentes em condições de incerteza - tais como
observações. A verdade dessa generalização não é garantida pelas premissas.
) planejamento de ações com base em informação incompleta, diagnóstico de
Porém, há algum grau de suporte probabilístico da conclusão pelos eventos
) observados. causas para falhas em aparelhos ou em medicina, raciocínio sobre evidências
judiciais e interpretação de textos - motivou a investigação da estrutura lógica
i) A abdução, por sua vez, parte da observação de um resultado para desse mecanismo de inferência. 11
1 concluir que algo ocorreu como sua causa, dada a assunção de uma regra

1: )
que correlaciona aquela causa com o resultado. Por exemplo, da observação
de que a grama está molhada, infere-se que choveu, pois se sabe que a chuva
molha a grama. Trata-se da falácia chamada de «afirmação do antecedente»
No campo da filosofia da ciência, as ideias de PEIRCE sobre inferências
abdutivas foram, por muito tempo, relegadas, dada a ênfase científica no
contexto de confirmação. Dentro do debate recente entre teorias do conheci-
e, a primeira vista, é curioso entender porque PEIRCE a chamou de inferência, mento baseadas em relações de coerência entre suas proposições, a inferência
) dado que a conclusão não tem suporte nas premissas, apenas se sabe que, se abdutiva aparece como uma alternativa para precisar essa relação: trata-se
} fosse verdadeira, então estaríamos garantidos em deduzir a observação. do ajuste mútuo de proposições para explicar um determinado conjunto de
) Na verdade, a teoria da abdução de PEIRCE está imersa em sua epistemo- evidências. Nesse resgate, tomou-se padrão estudar a inferência abdutiva na
logia. Sua preocupação filosófica central consistia em estender a lógica e as forma de «inferência à melhor explicação possível». 12
) categorias kantianas de forma a construir uma lógica de juízos sintéticos como Nesse formato, a inferência abdutiva descreve a estrutura de um proce-
) método de aquisição de ideias novas. 8 PEIRcE chegou a defender que a infe- dimento de geração e seleção de hipóteses para explicar uma observação
rência abdutiva seria a única verdadeira forma de aquisição de novas ideias
) surpreendente, que leva a uma conclusão com grau aceitável de garantia epis-
com o propósito de explicar observações, ao passo que o raciocínio·indutivo
) têmica, dado um corpo de proposições já aceitas e um conjunto de evidências.
serviria apenas para testar as hipóteses geradas pela abdução. 9 Importa aqui a
inserção da inferência abdutiva dentro de um processo de investigação cien- A formulação padrão, de LYCAN 13 E JosEPHSON 14 estabelece que:
)
tífica no qual observações que geram surpresa demandam a formulação de D é uma coleção de dados (fatos, observações)
) hipóteses explicativas. Assim, em formulações posteriores da inferência abdu-
H explica D (se verdadeiro explicaria)
tiva, PEIRCE delineava como conclusão do silogismo não a afirmação do caso,
t mas uma razão para suspeitar de sua veracidade. 10 Tais hipóteses deveriam Nenhuma outra hipótese pode explicar D tão bem quanto H.
) então ser testadas perante as evidências para confirmar sua verdade.
Logo, H é (provavelmente) verdadeiro
} Separa-se, dessa forma, um processo de formulação de hipóteses de um
) processo de teste de hipóteses. O próprio PEIRCE já atentava para a parcimônia 11
• Ver JOSEPHSON, 1994.
na primeira etapa, descartando-se hipóteses que, embora fossem capazes 12· O nome ficou consagrado por HARMAN (1965). Ver também JosEPHSON (1994). Contra essa
) de explicar a observação, não teriam um mínimo de plausibilidade ou não leitura e uma proposta de entender a abdução a partir de uma lógica de questões associada a uma
estratégia ver HINTIKKA ( 1999). Embora «melhor». em inferência à melhor explicação possível,
} induza a entender que a conclusão é unívoca, na verdade pode haver mais de uma explicação
)
8· Ver AL1sEDA (2000) para uma discussão da abdução dentro da epistemologia de PEIRCE. igualmente preferível como resultado e mesmo nenhuma das explicações pode alcançar nível
9.Ver KAPITAN, 1997: 477-478. mínimo de garantia epistêmica, ou seja. pode haver hipóteses igualmente boas ou nenhuma das
) º· Na formulação clássica de PEIRCE: «The surprising fact C is observed; but if A were true, C
1
hipóteses pode ser suficientemente boa.
would be a maner of course; Hence, there is a reason to suspect that A is true» (PEIRcE, 1958, 13
• LYCAN, 1988.
') § 189). 14
· JoSEPHSON, 1994.

)
I'
JULIANO SOUZA DE AL13UQUERQUE MARAN I 1/\0 INCI.LJSI V ISMO LÚGIC'O-JURÍDICO
86 87
O mes mo esq uema pode ser aplicado para o «primeiro fi llro» e m que Embora haja uma série de modelos lógicos para representação de inferên-
todas as hipóteses possíveis são ava liadas e para o «segundo filtro» e m que cias abduti vas, que não ve m ao caso ex pl icitar aqu i, vale destacar que, ai nda
apenas as hipóteses mini mamente plausíveis são testadas. 15 Normalme nte que as noções de consistênc ia c capacidade e,xplicativa possam ser form al-
só se considera o segundo fi ltro, o qu al poderi a ser chamado de in fe rê ncia à me nte capturadas pela contrad ição e o conjunto de consequências lógicas, os
melhor das explicações plausíveis. cri térios de escolha das hipó teses a e las não se limitam. Não se trata propria-
me nte de selecio nar a hipótese que deri va mais evidências, ou a que deriva
Há urna evidência q ue cria surpresa e exige ex plicação. Essa surpresa todas as evidênc ias, mas a que deriva melhor. A s im, as hipóteses preferidas
pode ser de dois tipos: uma novidade, que não é explicada pela base; ou uma são aquelas q ue mel ho r se aj ustam ao conj un to: (i) confirmam as evidências
anormalidade, qua ndo a base deri va a lgo que é, e m alg um senti do, incom- consideradas essenc iais (pode r explicati vo e consistênc ia com evidênc ias),
patível com a evidênc ia. Mas a evidência surpreendente, para levantamento não desafiam, ou exigem pouco aj uste cio conhecimento de base (conservado-
das hipóteses explicati vas, é tomada em conjunto com outros dados conside- ris mo), não assumem condições cm demasia (simplicidade), integram-se bem
rados relevantes e ace itos que devem também ser ex plicados pe la hipótese em a hipóteses já assumidas o u perm ite m reduzi-las (un ifi cação), e são precisas
conjunto com a base. Essa é urn a no ta crucial cio rac iocínio abd uLi vo, pois os em explicar os dados selecio nados e não um conjunto maior de dados irrele-
dema is dados selecio nados têm a mes ma importânc ia da evidência para o teste van tes (precisão). Essas «virtudes» são típicas de episte mologias baseadas em
da qualidade da hipótese. avaliação de coerênc ia de teo rias, de forma que a inferê ncia abdutiva, nesse
Tal conj unto de dados pode co;1ter elementos co11fir111adores e e lementos fo rmato, pressupõe essa avaliação.
refutadores das hipóteses. Ele me ntos confi rmadores são aque les també m O processo de interpretação de atos de fala, o u interpretação pragmá-
explicados o u que são compatíveis com hipótese. Re fu tadores são aque les tica, é estrutu rado por meio desse processo de investigação abduti vo daquilo
que contradizem a hipótese. Por exemplo, a hi pótese de chu va ao se observar q ue o fa lante quis d izer, a partir do que se disse e ele evidências ad icionais
a ::,orama molhada é to mada com urn a série de outras observações que estão no retiradas do contexto de fala. 16 A própri a pragmática da interpretação parte
meu campo de visão. Assim vou considerar també m se a rua está mo lhada. se de urna crítica, com GR1CE, 17 da dedução clássica, mostrando como, a partir
há nu vens no céu, se há alguém regando o jardim etc. Os ele mentos confirma- cio compartilhamento de determ inadas assunções de racionalidade é possível
dores aumentam o poder explicati vo da hipótese. Usualmente, a presença de fir mar inferências sobre o propósito cio fa lante em um alo de comunicação,
um refu tador eli mina a hipótese. que permite especificar o sentido de sua locução. A base dessa racionalidade
está no q ue GRICE chama ele princípio ele cooperação (faça com que sua fala
Esse conjunto de evidências é explicado a partir de uma teoria de fi111do contribua, 110 estágio em que ocorrer, co111 o propósi10 estabelecido para a
ou de um conhecimento de base que é já assumido pelo teórico (no exemplo, co1111micação 110 qual você está engaj ado). A partir desse pri ncípio, são desdo-
a crença em que a ch uva mo lha o jard im etc.). Avalia-se se cada hipótese, em bradas máx imas ou competências postuladas ao fa lante, como relevância do
conjunto com essa base ele assunções, o u de conhecimento, ou ele razões j á que disse para a d iscussão, q uantidade adeq uada de in formação, ordem na
aceitas, explica o u deriva as evidê ncias (confir mação) sem derivar a negação exposição, que constrangem as possibilidades de atribuição de significado ou
de a lg uma das evidênc ias (re futação). in tenção ao falante. Ou seja, tais máx imas, aliadas a evidências contextuais,
Po r fi m, há um conjunto de hipóteses potenc ia is, de fo rma q ue há um a perm item reduzir o universo de possíveis atribu ições de sentido, indicando
valoração sobre o poder explicati vo de cada uma delas com relação às evidên- conc lusões sobre o que se quis di zer a partir do que se d isse. A essa forma de
cias selecionadas. Novas evidênc ias podem fazer com que hi póteses an tes inferência, não deduti va, GRICE dá o nome de implicaturas, que nada mais são
preferidas sejam preteridas em seu poder explicativo, de forma que a conclusão cio que infe rências abdut ivas sobre a intenção do fa lante capazes de explicar
ela inferência é falível ou «derrotável». Po r o utro lado, uma hipótese mais a sua locução.
informativa não necessariamente será me lhor, pois pode se confro ntar com Esse modelo, com algumas adaptações, pode ser aplicado ao raciocínio
e le me ntos re futado res que a mais fraca não e nfrentava. Há também «derrota- sobre normas. De acordo com SCHAUER, 18 as prescrições teriam por base gene-
bilidade» nesse sentido. ralizações acerca de um mal o u um bem que a ação regulada, categori camente

16
,s. Esse ponto j á é tema de debate HtNTIKKA ( 1999) e KAPtTAN ( 1997) entendem que as inferências ÜASCAL, 1984: 655.
17
no pri meiro e segundo filtro são de natureza distintas. O padrão é entender o processo de maneira GRICE, 199 1.
18
unificada (ver. por exemplo, LwroN, 2004, cap. 4). S CII/\UER, 1998.
,j
l 88 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
89
)
) ou em determina condição, pode causar. Promover esse bem ou evitar esse concorrente como explicação para o conjunto de dados normativos relevantes.
mal constitui o objetivo e, portanto, o fundamento da norma, que ScHAUER Dessa forma, a conclusão de uma inferência abdutiva normativa é derrotável
) chama d.e justificação da regra. Tais generalizações são feitas com base em e pode ser sub-determinada (pode haver conclusões concorrentes), mas O que
observações ou na experiência moral ou política da comunidade. Por exemplo, importa, em termos de garantia epistêmica, é o fato de que, dentro de cada

'
l
)
observa-se que acidentes, nos quais um dos veículos trafegava em alta velo-
cidade, causam mais mortes do que acidentes em que os veículos trafegavam
em velocidade inferior. Com isso, faz-se a generalização de que o tráfego de
interpretação pautada por uma hipótese resultante do processo comparativo de
sua coerência, para aquela base de dados selecionada, a sua aceitação decorre
da aceitação das premissas. 20
} veículos acima de um patamar de velocidade é um mal, o que justifica a sua Assim, ainda que contenha esse elemento conjectural, o processo de
proibição. inferência é submetido a controle racional. As hipóteses formuladas são
)
Essa descrição não é diferente do que a hermenêutica jurídica clássica constrangidas pelo conjunto de razões práticas já aceitas como vinculantes
t denomina ratio legis ou «o objetivo prático a que alei se propõe a obter» o que (ou seja, as hipóteses devem ser compatíveis com o conteúdo do conjunto de
também pode ser tomado como seu fundamento ou princípio. 19 Assim toma- normas que consideramos válidas) e pela teoria de fundo sobre ações e suas
t possíveis consequências. Ou seja, a inferência é um processo.controlado no
se como evidência um conjunto de atos normativos (leis, jurisprudência) e
) busca-se o princípio que poderia explicar de modo mais coerente a razão pela qual a razão para aceitar e agir conforme a conclusão é resultado da aceitação
) qual aquele conjunto de normas foi criado com aquele conteúdo e com aquela das premissas como razões dotadas de autoridade para a ação e de um método
formulação normativa. de raciocínio.
)
A «descoberta» do propósito é obtida a partir de uma avaliação de Com isso, há uma relação de transmissão de razões entre as premissas e
) a conclusão de uma inferência abdutiva normativa. A conclusão, i.e. o prin-
hipóteses que toma por base uma teoria de fundo sobre valores (morais ou
} objetivos de políticas públicas) já endossados pelas normas tomadas como cípio jurídico, é aceito como razão porque e na medida em que seja a melhor
evidências já aceitas bem como sobre relações entre ações e suas relações com explicação para aquele conjunto de normas selecionado como relevante para
) a ação em questão.
aqueles valores.
}
Outro conjunto de assunções diz respeito a postulados de racionalidade, 3.3 DA VALIDADE À PERTINÊNCIA
} a partir de uma construção contra/ática de uma vontade unitária e racional
) por detrás dos textos legais, bem próximas às máximas de conversação de Esclarecidos os possíveis sentidos de derivação entre normas, que pode
GRICE. Dentre seus atributos, estão os seguintes postulados de competência, abranger, além das inferências dedutivas, as inferências abdutivas, podemos
) desenvolvidos pela dogmática alemã do séc. XIX: a) o legislador não cria retomar a questão colocada na introdução deste trabalho.
) normas impossíveis de serem executadas, daí por que não se pode desejar que Normas derivadas de normas válidas são válidas? .
alguém realize e deixe de realizar o mesmo ato; b) o legislador não cria normas
) Para o jusnaturalista, que toma como fonte de normatividade justamente
sem algum propósito c) as condutas exigidas ou permitidas nas normas são
a derivação de regras jurídicas a partir de princípios morais revelados pela
J aptas a levar os sujeitos normativos à consecução dos propósitos da regulação
razão, essa questão é trivial. Já a dogmática alemã do séc. XIX via na sua
) (coerência entre meios e fins); d) a vontade do legislador é unitária, de forma
atividade científica a própria identificação do direito como ordem (orgânica)
que as regras estão sistematicamente relacionadas; e) a vontade do legislador
) construída a partir das fontes reconhecidas e não como fruto de uma vontade
é completa, no sentido de que soluciona todos os casos por ele reputados como
soberana. Ademais não havia identificação muito clara do sentido de lógica
) relevantes; t) o legislador é rigorosamente preciso e não cria normas inócuas nessa atividade construtiva, que ora indica sistema (nexos lógicos entre
ou redundantes. Esses postulados restringem possíveis atribuições de sentido normas), ora método filosófico de interpretação (interpretação lógica) paralela
) ou propósito ao legislador que violem alguma dessas competências. e integrada ao processo histórico, ora argumentos (analogia, a contrario) na
} A ampliação ou redução do conjunto de dados normativos altera a relação identificação da ratio juris e que podem envolver dedução, indução e abdução.
} de preferência entre os princípios que melhor explicam o conjunto selecionado. Para o pensamento jurídico oitocentista, a cognição claramente identificava
Mas como os parâmetros podem conflitar, pode haver mais de uma hipótese normas, mas essas eram tomadas menos como normas postas (voluntas)
)
) 19. BEm, 2007: 208-209. 20· Nesse sentido, ver Ps1LLos, 2002.
)
t \
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
90 INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
91 ()
do que como ratio scripta, notadamente as fontes de direito romano. 21 Não (
necessária da ordem jurídica apresentada pelo conhecimento decorreria da
havia aqui propriamente um problema, pois não havia propriamente volumas, necessária consistência da cognição. 25 (1
apenas cognitio. (J
Já na 2ª edição da Teoria pura do direito, l<ELSEN colocou a dinâmica jurí-
Essa questão foi formulada com precisão, no centro de um esforço de dica na posição central (pergunta-se como o ordenamento validamente muda), {,i
conciliação entre cognição e volição na identificação de normas, somente no tornando a estática jurídica (pergunta-se como se organizam os conceitos
século passado, nos quadros do positivismo jurídico. O problema foi mais fundamentais do ordenamento) mera decorrência daquela. 26 Na dinâmica, os {)
agudo e explicitamente formulado pelos positivistas continentais, raciona- dados fáticos representados pela vontade e pela eficácia das normas, seja a f/
listas, não tanto pelos positivistas anglo-saxões, empiristas. 22 eficácia global do ordenamento (que passa a ser, praticamente, um critério {,.
para o pressuposto da norma fundamental), seja um mínimo de eficácia da
Para os «empiristas», a explicação da normatividade do direito deveria {
norma particular, ganham relevo. O resultado é que a consistência do ordena-
r
1,
estar, em última instância, pautada por fatos sociais, fator que, pode-se pensar,
levá-los-ia a não aceitar normas derivadas como válidas. Todavia, a possibi-
mento deixa de ser um pressuposto do conhecimento do direito como sistema
( ·'
1 de normas e fica em posição ambígua. Passa a ser, em parte, um pressuposto
lidade de uma lógica de normas genuína não foi efetivamente problematizada (
i e, em geral, houve aceno positivo para a validade de normas derivadas, em
do conhecimento do direito de que a interpretação pode resolver o conflito,27
e, em parte, uma consequência do fato de que duas normas inconsistentes ([
breves passagens. 23 não podem ser ambas aplicadas e, assim, não podem ser ambas minimamente (
O tema mostrou-se central para um racionalista como KELSEN, em termos eficazes (aqui KELSEN já fala da validade de normas individuais). 28 Essas situ-
ações, porém, que eliminam contradições, são ainda remetidas ao conteúdo {
de uma disputa sobre o critério último de validade: o fato da volição ou o
conhecimento desse fato? Como vimos, seu projeto metodológico partia da da norma fundamental, dado que essa incorpora a condição de eficácia global (J
separação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) de forma que a ciência jurídica, e o mínimo de eficácia individual em seu conteúdo. 29 Por outro lado, l<ELSEN
(,
para ser autônoma, não poderia explicar a normatividade das regras apenas ainda mantém em 1960 a ideia de que os ordenamentos seriam necessaria-
pela identificação de atos de vontade. A norma é, antes, «o sentido objetivo do mente completos com base no'" princípio lógico de que «tudo o que não está (
ato de vontade» e esse sentido, obviamente, só pode ser dado pela cognição. proibido está necessariamente permitido» (o que decorre da vinculação da (
Aqui firma-se sua inspiração neokantiana para explicar a normatividade: atos (
de vontade ganhariam sentido objetivo somente mediante postulados a priori
25
Na 1ª edição da Teoria pura, KELSEN ( 1941: 215, tradução nossa) afirma que «O conhecimento
·

cujo pressuposto é condição de possibilidade de seu conhecimento como


normativo não tolera uma contradição normativa entre duas normas do mesmo sistema». Os (
casos de incompatibilidade entre normas de diferentes escalões foram equiparados a casos de
normas jurídicas. Tais postulados são, basicamente, a categoria de imputação24 descumprimento, cuja validade é precária, até sua correção, razão pela qual KELSEN preferiu o (
e o pressuposto da norma fundamental. termo «normas defeituosas».
6
2 - Ver BULYGIN, 1986. l
27
Na 1ª edição da Teoria pura do direito, essa solução neokantiana aparen- · «Como, porém, o conhecimento do direito - como todo o conhecimento - procura apreender
seu objeto como um todo de sentido e descrevê-lo em proposições isentas de contradição, ele (_
temente explica porque o conjunto de normas identificadas em seu «sentido parte do pressuposto de que os conflitos de normas no material normativo que lhe é dado - ou
objetivo» (no qual os planos de existência, pertinência ao sistema, validade e melhor, proposto - podem e devem necessariamente ser resolvidos por via da interpretação»

eficácia se identificam) é logicamente consistente e fechado. A consistência (KELSEN, 1984: 286). {l
28 · «O conflito [entre duas decisões judiciais] é resolvido pelo facto de o órgão executivo ter

1989: 40.
a faculdade de escolher entre observar uma ou outra das decisões; quer dizer: efectivar ou 4.
21. LARENZ, não efectivar a pena ou a execução civil, observar uma ou outra das normas individuais. Se é
22. PAULSON, 1993: 227-246. executado o acto coercitivo que põe a primeira norma como devida, a outra norma permanece {·
23· HART (1983, cap. 3), por exemplo, tratou a questão como trivial, recusando prontamente por muito tempo ineficaz e, assim, perde a sua validade; se o acto coercitivo não é executado,
a ideia de que normas ou comandos não se submetessem a relações lógicas pelo fato de não observa-se a norma que absolve o demandado ou rejeita a pretensão, e a outra norma, que
{
possuírem valores de verdade ou falsidade.
24. A categoria de imputação é apresentada por KELSEN como o paralelo normativo da categoria
põe o acto coercitivo como devido, permanece por longo tempo ineficaz e perde, assim, a
sua validade» (KELSEN, 1984: 288). Em seguida KELSEN ( 1983: 289) descarta uma sentença
4. )
de causalidade para organização conceituai dos fenômenos empíricos naturais: «Em um dos
cas~, a forma de conexão dos fatos é a causalidade; no outro, a imputação, que é conhecida pela
individual conflitante como um problema de perturbações mentais do juiz.
29· «Assim, a norma fundamental toma possível interpretar (pensar) o material que se apresenta
l
Teoria pura do direito como a legalidade particular do Direito» (KELSEN, 1941: 48, tradução ao conhecimento jurídico como um todo com sentido, o que quer dizer, descrevê-lo em l
nossa). proposições que não são logicamente contraditórias» (KELSEN, 1984: 289).
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JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 93
92

norma à sanção; ou há sanção e a conduta é proibida, ou não há e a conduta é Essa conclusão de KELSEN foi responsável pela guinada voluntarista que
permitida). encontramos em sua obra póstuma Teoria geral das normas. 31 KELSEN reor-
ganiza a teoria pura praticamente como uma teoria de comandos individuais,
O que KELSEN entendia por lógica de normas na Teoria pura de 1960 é traduzida no jargão «nenhum imperativo sem imperador, nenhum comando
um tanto obscuro. Essa seria uma lógica vigente no campo de suas proposi- sem comandante». A cognição do cientista do direito seria ativada somente
ções normativas (Rechtsiitze ), com toda a problemática que a sua conceitu- diante do advento de ato de vontade concreto emissor de determinada norma
ação como proposições descritivas de um sentido normativo envolve, mas que individual imputando uma sanção a alguém. Sua tarefa seria então recons-
refletiria relações lógicas das próprias normas. truir a cadeia normativa de validação daquele ato de vontade encontrando
A obscuridade e mesmo potencial inconsistência das posições sobre o as normas correspondentes. Isso significa que o sistema normativo deixa de
ser um sistema de normas gerais para ser um sistema de normas individuais
tema na Teoria pura de 1960 levaram KELSEN a enfrentar especificamente a
reconstruídas, o que aproxima KELSEN do ceticismo e simplesmente implode
questão. Sua principal dúvida estava na própria possibilidade de uma lógica
a concepção do direito como um sistema que regula previamente o comporta-
de prescrições, haja vista não serem essas últimas suscetíveis a valores de mento ao solucionar casos individuais a partir de regras gerais.
verdade e falsidade, tal como as proposições descritivas (conhecido como o
Dilema de J~rgensen). 30 Em seu debate com Klug, o lógico apresenta a KELSEN A solução de KELSEN é insatisfatória porque deixa de explicar a racionali-
a possibilidade de derivações lógicas independentemente de semântica ou de dade prática da atividade de legislação e leva ao irracionalismo. 32 Afinal, qual
seria a diferença dada pela promulgação de uma lei geral se cada um somente
atribuição de valores de verdade. Mas KELSEN estava justamente interessado na
estaria obrigado ao comportamento legislado diante da sua imposição concreta
interpretação dos sistemas de lógica deôntica, i.e. em refletir sobre o que tais
pelo juiz? Como coloca RAz:
sistemas representariam e se poderiam representar normas válidas ou relações
necessárias do discurso prescritivo. Sua conclusão, ao final, exposta no artigo «Ela leva diretamente à conclusão de que a razão prática é impossível e
o discurso prático igualmente impossível ou inútil para quaisquer efeitos. O
«Direito e lógica» foi reconhecer que haveria uma relação conceituai entre o parlamento pode legislar impondo que todos devem pagar um percentual de
conteúdo de normas e o conteúdo de suas normas derivadas, mas tal relação sua renda como imposto. Não se segue daí, de acordo com a nova doutrina
conceituai não seria decisiva acerca da existência ou validade de qualquer kelseniana, que eu deva pagar o imposto. Apenas se e quando um oficial de
norma. No máximo, seria possível dizer que uma decisão, norma individual, justiça me ordenar a pagar eu tenho que pagá-lo. Mas não há razão pela qual o
cujo conteúdo seria correspondente logicamente ao conteúdo de uma norma oficial deva me ordenar a fazê-lo. É verdade que existe uma lei determinando
que os oficiais de justiça exijam o pagamento dos devedores, mas pela mesma
geral, estaria justificada conforme aquela norma, mas o que faria dela uma lógica maluca, nem esse oficial, nem qualquer outro oficial está obrigado a
norma válida seria o fato de que foi o conteúdo de determinado ato de vontade, exigir de mim o pagamento.» 33
jamais podendo ser a validade uma propriedade de ~eu conteúdo (isso poderia
Note que mesmo o juiz ou o oficial de justiça não estaria obrigado,
levar à aceitação de normas necessariamente válidas, uma ameaça à ideia de
embora pudesse ser avaliado com justificado em aplicar a lei geral. É a sua
que qualquer conteúdo pode ser conteúdo de direito).
aplicação pelo juiz que permitiria identificar que a lei foi tomada por ele como
vinculante. Ou seja, as normas gerais ou superiores teriam apenas um papel
30· É enorme a literatura sobre o dilema de J~rgensen. Tratei do tema em outra oportunidade e secundário: seriam promulgadas para que o jurista pudesse ligar os pontos
remeto o leitor a MARANHÃO (2009a), onde se pode encontrar bibliografia mais completa. Entre
os lógicos, como MAKJNSON notou, o problema foi «sutilmente varrido para debaixo do tapete» e representados por atos de vontade de diferentes hierarquias. Em outras pala-
são poucas as soluções técnicas visando a se desvincular de uma semântica que atribua verdade vras, serviriam para que os juristas pudessem «legitimar» a prática como se
ou falsidade às normas como prescrições (MAKINSON, 1999). As alternativas encontradas são: essa fosse racional e juridicamente justificada.
a) tratar a lógica de normas como uma lógica de proposições normativas (ALCHOURRóN, 1969)
e (STENIUS, 1963); b) usar uma versão mais sofisticada do truque de Dubislav, tratando de uma A desvinculação de KELSEN da percepção dos agentes de que a prática
lógica sobre o conteúdo dos imperativos (HANSEN, 2001), (VAN DER TORRE, 1997); c) interpretar judicial é racional e justificada com base em normas é total, refletindo uma
as inferências entre formulações de norma de um sistema sintático de lógica deôntica com
base em uma definição de consistência que representaria a racionalidade legislativa (VoN
WRIGHT, 1983); d) usar a lógica como uma ferramenta de desdobramento de consequências de Jt. LoSANO, 1985.
do conteúdo de normas postas (ALCHOURRÔN; BULYGIN, 1991), (MAKINSON, 1999) e (MAKINSON; 32· LosANO, 1985.
33 · RAz, J. «Kelsen·s General Theory of Norms», Criticai Study, Philosophia, 6, 1976, p. 503.
VAN DER TORRE, 2001 e 2003). Meu foco aqui não está na possibilidade da lógica de normas.
mas na identificação de qual o status de normas derivadas como razões jurídicas para decisão. apud NAVARRO e RODRIGUEZ (no prelo).
JULIANO SOUZA DE ALB UQUERQUE MARANI IÃO INCUJSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
94 95
11
desvinc ul ação abso luta e ntre cognição e volição. Dessa fo rma, aca ba por
• va lidade no se ntido de pe rtin ê ncia. Há nt1rmas pe rtinentes ao ordenamento
implodir a noção positi v ista de au to ri dade, no se ntido de que o conteúdo mas que não são dotadas ele obri gatoriedade (vacatio legis, por exemp lo)~
vinculante das nonnas jurídicas deveria limita r o uni verso de razões di spo ní- s iLUações nas quais uma norma não pe rte nce ao orde name nto e, ainda assim,
veis para justificar as ações. Não só qua lquer conteúdo pode ser co nteúdo d e tem fo rça vinc ulante (no n n,,s ele d ireito inte rn ac iona l com aplicabilidade local
norma jurídica, mas o conte údo da no rm a jurídica, seja qua l for, não importa. ou no rmas posteriormente dec laradas inconstitucionais, mas que constituíram
Logo, se o conteúdo da norma não importa, o direito não é capaz de restringir relações jurídicas reconhecidas).
o universo de razões práticas para a ação e para as decisões.
Com essa di stinção, BuLYGIN36 pe rmite localizar me lhor o proble ma da
No fim, normas jurídicas deixam de ser razões jurídicas (do tadas d e validade das no rmas derivadas. A ques tão aqui é especificame nte sobre a
normati vidade), o que é muito estranho, e passa m a ser apenas razões, den tre existência e pertinê nc ia dessas ao siste ma de normati vo, não sobre sua o brioa-
outras, à disposição dos juízes. E d eixam de ser razões jurídicas vinc ula ntes, w riedade, muito embora esses conceitos di stin tos devam, em geral, coincidir º
pois, para o KELSEN póstumo, some nte a decisão individual é dotada de autori- (até para que se permita falar e m «eficácia g lobal do orde na me nto e m suas
dade e representa a única o portunidade de identi ficação do que é direito. Mas linhas gerais» ). A no rma de ri vada pode ser afastad a por uma deci são indi-
sé a conc lusão é que normas não são razões para ação, isso parece afetar até vidual e não te r força obri gatória em determinada relação, o ql;le não re tira a
mesmo aquilo que e nte nde mos por norma. O que sobra, ou, para que serve? sua pertinê ncia, sendo que a autoridade continua vincu lada normati vamente
O absurdo a que o último K ELSEN leva faz aparecer a ligação intrínseca e ntre a decidir de forma pe rtin e nte ao sistema. O contrário pode ocorrer - e essa
de ri vação lógica de uma norma indi v idual da geral e a inteligibilidade da possibilidade é inclusi ve ma nifesta e m expressões como «decisão contra
própria norma geral como tal. legem», que o vocabulário da Teoria pura não permitia explicar. Resgata-
se, com essa di stinção, o pape l das no rmas gerais como razões jurídicas, i.e.
Essa consequê ncia parece ter s ido prevista pelos comentado res e críticos
razões pertence ntes ao direito.
de KELSEN que j á e ntrev iram o desfecho vo luntarista e o cola pso da Teoria
pura e m uma breve passagem do capítulo sobre interpretação da edição de 3.4 DA PERTfNÊNCIA À ORIGEM DAS RAZÕES
1960, no qual KELSEN ad mite que o inte rpre te autê nti co pode não só esco-
lher de ntre as possíveis inte rpretações da norma su perior pertencentes à Out ro positi vista importa nte a lidar especificamente com o proble ma
moldura, como també m pode d ecidir, validamente, fora da mo ldura. 35 Aqui, da validade das normas dedutivamente d e ri vadas foi Alf Ross. Sua primeira
KELSEN avança o que foi c hamado pelos críticos de tese da «cláusula alte r- reação, na d écada de 40, foi de ale rta, com a formul ação de seu fa moso para-
nativa implícita» das normas de compe tência, segundo a qual , a delimitação doxo.37 Se o truque de DuorsLA V38 para justificar a lógica de normas consiste
material d e compe tência (conte údo) te ri a sempre uma alte rnativa vácua. Na e m fazer derivações proposicionais a partir do conteúdo das normas, e ntão é
tentati va de resgatar a Teoria pura e manter sua co nsistê ncia, BULYGIN aponta verdade que de Op segue-se Opv q (pois p-)pv q é urna tautol ogia proposi-
como proble ma central o fato de KELSEN identificar seu conceito de validade cional clássica). Inte rpre ta ndo essas normas e m linguagem natural poderíamos
normati va com «existê nc ia específica da norm a», «pertinê nc ia da norm a ao extrair e ntão que «Se é obrigatóri o e nviar uma carta, e ntão é obrigatório
sistema norma tivo» e «força obrigatória de se u conte údo» . Propõe e ntão e nviá- ia ou (]Ueimá- la». Mas se o comando «Envie a carta o u queime-a»
uma inte rpretação na qual separa va lidade no sentido d e o brigatoriedade e for uma con equê ncia comand ada da mes ma forma que o comando original
«Envie a ca rta! » e for vá lido com o mesmo status, e ntão pode-se o bedecer ao
34.. A semente para essa radicalização e sua desvinculação com a prax is dos juristas, q ue comando derivado queimando a carta e, ass im, tornar impossível a obediê ncia
aliás KELSEN nunca se sentiu comprometido a preservar, mas e m corrigir com o rigor de seus ao comando ori g ina l.
conceitos, aparece j á na Teoria pura de 1960, quando faz qui mera da distinção da dogmática
processualista entre «sentenças declaratórias» e «se me nças constitutivas», pois, a seu ver, todas Ex iste m tipos diversos de reação entre lógicos deônti cos ao paradoxo: a)
as sentenças judiciais seriam c riação de normas indi viduais e portanto constitut ivas de direitos, ignorá-lo co mo decorrê nc ia de uma s ituação já paradoxal na inte rpretação da
j amais reconhecedoras de direitos pré-existentes, mesmo que tais d ireiws fossem correspon- d isj u nção na lógica proposicio nal c lássica, partic ularme nte ilustrada por um
dentes ao conteúdo de normas gerais postas.
exempl o in feli z (a grande maiori a); b) colocar o proble ma na lógica subjacente
Js. Nesse se ntido: «A propós ito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer
dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente
se realiza uma das possibilidades reveladas pela i111erpre1ação cognoscitiva da mesma norma, 36
B ULYGIN, 1995.
como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a 37
• Ross, l 94 1.
norma a aplicar representa» (KELSEN, 1984: 47 1). 18
· D UBISLAV, 1937.
. iff·
ºl';
.. :!,. 96 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
97
.1:
,1 à lógica deôntica, tratando-o a partir de uma lógica não clássica ou usando uma
extensão modal não normal; 39 c) reinterpretar o significado e o status atribuído
W1TTGENSTEIN, afirmando que a existência/validade ou não existência/validade
da norma derivada dependeria da razoabilidade de se assumir a racionalidade

,
à norma derivada. 40 O paradoxo de Alf Ross é menos um problema lógico e r.a atividade de promulgação de normas.
j mais uma questão filosófica sobre o status ontológico da norma derivada, de Ao colocar a existência da norma derivada dentro da discussão sobre
11)
forma que vale olhar a terceira via. como entendemos, pragmaticamente, a prática legislativa a partir de seus
O próprio Alf Ross,41 depois de radicalizar com a conclusão de que o propósitos, VoN WRIGHT se aproxima da praxis jurídica de interpretação de
1· discurso jurídico seria «a-lógico», chegou a investigar e elaborar o que seria normas como um processo de investigação da ratio, em tomo da figura meta-
j uma lógica de diretivos, na qual recoloca a norma derivada em termos de fórica do legislador racional.
um ideal de racionalidade para o ordenamento. Na mesma linha, mas com
•• maior sofisticação, VoN WRIGHT, depois de uma longa oscilação,42 passou a
O paradoxo de Ross tem outra nota importante, ao questionar a adequação
da linguagem formal à linguagem natural, ou melhor, a adequação de uma
} ver na noção de padrões ideais de racionalidade do legislador a chave para
semântica formal (composicional45 ) à pragmática empregada na interpretação
reinterpretar o paradoxo de Ross e a própria lógica deôntica, de forma a se
t libertar também do dilema de J0rgensen e outros paradoxos, principalmente o
da linguagem natural. O que provoca estranheza no paradoxo é justamente
) o choque entre a pragmática e a semântica. É certo, semanticamente, que
de obrigações em contrariedade ao dever. 43
cumprir o comando original com o envio da carta seria uma forma de cumprir
) VoN WRIGHT parte da hipótese de que se a prática de legislar tem como o comando complexo «envie a carta ou queime-a», mas qual a relevância
objetivo guiar a conduta humana (poderia ter outros objetivos), então um dessa constatação para a explicação do comando original?
)
ideal de racionalidade para a vontade do legislador é que suas normas sejam
) Assim, apesar de tratar de uma consequência na lógica clássica, uma
conjuntamente executáveis (doable). Outra noção relevante nesse contexto de
compreensão da vontade do legislador como racional está no entendimento do vez colocado nessa perspectiva da vontade racional do legislador, o paradoxo
) serve apenas para mostrar que há outros processos racionais, além da dedução,
que seria a demanda «oposta» ao demandado em outra norma, que chama de
) norma-negação. Assim, o oposto à obrigação de uma ação seria a permissão que intervém no processo de inteligibilidade do conteúdo das normas. Nesse
da sua omissão e, vice-versa, o oposto à permissão de uma ação seria a obri- quadro, o paradoxo, antes de colocar em crise a possibilidade de uma lógica
)
gação de sua omissão. Entender um conjunto de normas e suas implicações entre normas, simplesmente ilustra que algumas derivações lógicas possíveis
) necessárias significa raciocinar sobre o que seria admissível ou inadmissível são pragmaticamente irrelevantes no processo de interpretação. Isso é tão
) (irracional) dado aquele conjunto. Dessa forma, uma norma é derivada de óbvio quanto inofensivo. O jurista, e mesmo o leigo, ao identificar o direito
um conjunto de normas se sua norma negação for inexecutável com aquele por meio de sua interpretação, descartaria naturalmente o paradoxo de Ross,
) assim como descartaria, como pouco informativa, qualquer tautologia propo-
conjunto.44 Vale dizer, o fato de a norma oposta ser inexecutável com o conjunto
) de normas é que traz a conclusão de que a norma em questão é necessária ou sicional ou teorema de uma lógica deôntica.
seria necessariamente derivada de uma vontade racional. Nessa interpretação, Mas, enfim, as derivações dedutivas relevantes em termos de inteligibili-
)
o exemplo de Alf Ross simplesmente significaria que comandar o envio da dade de um conjunto de normas seriam pertinentes a esse conjun~o?
) carta e, ao mesmo tempo, permitir não enviá-la e queimá-la seria irracional.
No final, depois de fazer coro a Alf Ross sobre a alogicidade do discurso Suponha que uma mãe peça a sua filha que vá a feira comprar maças
) ou pêras. Chegando à feira, a menina não encontra pêras. Se comprar maçãs,
normativo, VoN WRIGHT adota outro tom, próximo aos language-games de
) atende o pedido da mãe?
1
) 39
· CHELLAS, 1980 (parte III, item 7) e HANSSON, 1988a e 1988b. É claro que sim. O que diríamos de seu comportamento se ela retomasse
40
• Von WRIGHT, 1983. para pedir novas instruções à mãe?
} 41
• Ver Ross, 1971.
· Ver MARANHÃO (2009a) para uma apresentação dos dilemas de VoN WRIGHT e o caráter
42
) terapêutico de sua solução final para a «natureza» da lógica deôntica. 45 ·A composicionalidade do sentido refere-se à tese de FREGE expressada na Seção 32, v. 1 de
43· Sobre o paradoxo, ver CHtSHOLM ( 1963: 33-36) e José CARMO e Andrew JoNES (2002). Sobre seu Grundgesetze der Arithmetik (1962) de acordo com a qual o significado de uma sentença é
) dado por suas condições de verdade que, por sua vez, são uma função das condições de verdade
o sucesso ou fracasso de VoN WRIGHT em superar o paradoxo de CHtSHOLM com sua lógica de
implicação normativa, ver HANSEN (1999) e MARANHÃO (2009b). dos componentes da sentença. Há uma literatura enorme sobre o tema. Para uma introdução

'
)
J
44· Para uma representação formal dessas definições e da lógica de implicação normativa de

VON WRIGHT ver MARANHÃO (2009b).


dentro da evolução da filosofia da linguagem ver ÜARCfA-CARPINTERO ( 1996). Para uma análise
crítica ver CHATEAUBRIAND (2001, cap. 8-11).

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~
'<e? INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
98 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO 99

Suponha então que a mãe responda: «Ora, compre maçãs!» Ou suponha norma ou o sistema de normas não se confunde com seu texto ou formulação
que a menina retorne com maçãs e a mãe a critique: «Você não deveria ter sintática. De fato, do ponto de vista sincrônico, as razões para ação são as
comprado as maçãs sem me consultar!» Na primeira hipótese, a instrução é mesmas. Mas, do ponto de vista diacrônico, i.e. da mudança de um sistema de
uma nova norma ou a insi.rução para comprar maçãs já estava lá? No segundo Q para Q 'pela intervenção do legislador, há uma diferença prática importante.
caso, a nova instrução é compatível com a original ou representa uma revo- Vejamos o que acontece com a promulgação de N4:
gação? N4: «a maioridade é atingida aos 21 anos de idade»
A intuição nos diz, nesse exemplo da conversação ordinária, no primeiro A promulgação de N4 trará efeitos práticos distintos em Q com relação
caso, que a nova orientação da mãe não faz diferença e, no segundo, que a mãe a Q'. Em Q+N4 é natural que N4 simplesmente substitua N2, gerando um
mudou de ideia e está sendo injusta com a filha obediente. A pergunta sobre sistema normativo determinado cujas consequências são «todos os homens
se a norma faz ou não faz diferença tem a ver, aqui, com o seu papel como acima de 21 anos devem prestar serviço militar» e «todos os homens acima de
razão prática para a ação. Nesse exemplo, a instrução derivada parece exercer 21 anos devem votar». Porém Q '+N4 trará, no mínimo, uma dúvida razoável
o mesmo papel da instrução original e daquela posteriormente especificada sobre o sistema resultante. Uma interpretação pode postular Q '+N4=Q+N4,
como razão para ação do sujeito normativo. A compreensão da norma deri- defendendo uma ratio comum para a maioridade em ambas as ·ações. Outra
vada como razão é parte da própria cognição da norma original. pode postular que do sistema resultante deriva-se «todos os homens acima de
Isso nos inclina a identificar a questão sobre a pertinência da norma deri- 21 anos devem votar» mas que «todos os homens acima de 18 anos devem
vada ao ordenamento com o seu papel como razão para a ação. Mas suponha prestar serviço militar», pautando-se, por exemplo, pelo conflito entre N3
agora um ordenamento Q com as seguintes normas: versus N4+N1 e, a partir do postulado de racionalidade do legislador, que N3
não pode ser interpretada como redundante. Isso significa que Q '+N4 permite
N 1: «é obrigatório aos homens maiores de idade votar e prestar serviço duas interpretações justificáveis, ou seja, gera dois sistemas normativos possí-
militar» veis, consistentes, mas conflitantes entre si, cada um com suas consequências
N2: «a maioridade é atingida aos 18 anos de idade» lógicas.
Suponha agora que é promulgada mais uma norma, criando-se o orde- Os exemplos acima mostraram que nossa intuição inclina-se a identificar
namento Q': a existência da norma derivada com o fato dela exercer uma razão normativa
para ação ou decisão, cuja origem se atribui ao ordenamento expressamente
N3: «todos os homens acima de 18 anos devem prestar serviço militar» posto. Aqui, dizemos: a norma já estava implícita lá. Porém, essa identificação
A promulgação de N3 faz alguma diferença no ordenamento jurídico? se mostra inadequada quando percebemos que sua presença explícita faz
Essa pergunta, no ambiente mais técnico do jurista, inclina para uma resposta diferença na dinâmica de revisão do sistema. Aqui, dizemos: ela não estava
positiva, ou pelo menos não provoca uma resposta negativa tão imediata lá expressamente, apenas implicitamente. Portanto, a pertinência da norma é
quanto no exemplo anterior. O ordenamento jurídico parece ficar diferente, uma noção ambígua. O mesmo vale para existência. Existir do ponto de vista
mas isso não ocorreu com as singelas instruções da mãe. Como pode ser? de nossas razões para ação a partir do sistema normativo é uma coisa e existir
Recolocando, podemos perguntar: a norma N3 faz alguma diferença do ponto de vista de razões para a mudança do sistema é outra. No primeiro
prática para a decisão dos jovens de 18 anos em prestar serviço militar? A caso, parece razoável falar de existência implícita como algo equivalente à
resposta, aqui, será não. Das normas N 1 e N2 obtenho as regras derivadas existência explícita. No segundo, a equivalência prática não se obtém.
«todos os homens acima de 18 anos devem prestar serviço militar» e «todos Assim, para localizar novamente nossa preocupação, pretendemos discutir
os homens acima de 18 anos devem votar». As normas derivadas explicitam validade, no sentido de pertinência, da perspectiva sincrônica, i.e. para um
as razões para a ação do jovem de 18 anos. E são razões provenientes de Q. sistema dado e já indexado por uma interpretação (note que no processo inter-
Fica evidente o fato de Q' fornecer as mesmas razões de Q e, nesse aspecto, pretativo, para chegar ao sistema final, o intérprete pode se valer de elementos
que podemos chamar de sincrônico, os ordenamentos são idênticos. diacrônicos). Nesses termos, a pergunta relevante e que basta para a afirmação
Mas quando afirmamos a identidade com todas as letras, parece que há de nossa tese deixa de ser a pergunta original (normas derivadas logicamente
são válidas?) e passa a ser: qual a origem da razão prática relevante para a
algo forçado. Existe uma diferença: a formulação sintática do sistema (das suas
normas) é diversa. Mas isso é relevante? Aparentemente não, diríamos, pois a ação ou para a decisão?
jj;i:i

~ 100 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO lNCLUSlVlSMO LÓGICO-JURÍDICO 101


ll SARTOR46 chega a uma conclusão semelhante e dá menos importância
J decorrentes dessas promulgações. Mas não é possível reduzir o ordenamento
}! à norma e mais às razões em seguir as pautas presentes na norma como jurídico a sequências de símbolos, na medida em que o critério de identi-
«vinculantes para a decisão». Se pudermos traçar essa origem da razão ao ficação envolve pedigree (pelo menos para a tradição de HART e l<ELSEN).


); ordenamento jurídico, a partir dos métodos de derivação, então a trataremos Portanto, há referências dos textos uns aos outros (atribuições de competência
como uma razão jurídica e, nesse sentido, como uma norma jurídica pertinente especificando critérios de identificação de autoridades de hierarquia inferior)
,1 ao sistema interpretado (válida nesse sentido). De imediato, surge a neces- e a compreensão desses é necessária até mesmo para se identificar objetiva-
~! sidade de precisar o que se entende por ordenamento jurídico como origem
de razões. Em particular, como entender a objetividade do conteúdo desse
mente as fontes de regras válidas. Tem-se, necessariamente, que lidar com O
sentido dos textos como condição para validar até mesmo a versão fraca de
J: ordenamento. objetividade.
) 1 O problema em lidar com o sentido está na indeterminação inerente à
) 3.5 CLARA NON SUNT INTERPRETANDA OU IN Cl.ARIS CESSAT linguagem natural. Daí porque HART distingue entre casos claros e casos de
INTERPRETAT/0? penumbra. A base da distinção é a interpretação que W AISMANN dá à teoria do
)
significado de WnTGENSTEIN no texto «Verijiability». 41 Aqui nã~ é o lugar para
) Como destacado no capítulo anterior, o ataque de DwoRKIN ao positi-
entrar na complexidade dessa teoria, basta destacar a ideia de que conhecer
vismo foi particularmente contundente ao tocar na tese de objetividade forte
) o sentido de um termo da linguagem significa dominar uma habilidade em
das fontes. Foi esse o caminho encontrado para afetar a própria tese das fontes

,
)

)
sociais. Argumentamos na Seção 2.2 que, se o direito for conhecido a partir
de um dado externo contingente, pelo menos parte de seu conteúdo deve ser
identificado objetivamente, de modo que a objetividade não pode se limitar
à identificação da fonte dotada de autoridade. Isso dá margem à crítica de
aplicá-lo, o que pressupõe, no mínimo, a possibilidade de identificação e apli-
cação desse termo em algumas instâncias de forma não problemática. Ou seja,
conhecer o sentido significa conhecer casos padrão ou típicos de aplicação.
Por isso, é uma verdade conceituai haver um núcleo de instâncias do termo
reconhecidas pela comunidade linguística, sem o que não haveria um uso
DwoRKIN que, com seus hard cases, buscou mostrar que não há essa obje-
) compartilhado deste e, portanto, não haveria sentido. 48
tividade e, mais do que isso, ela não é compartilhada pelos próprios juízes,
) cujo comportamento deveria constituir a convenção sobre as fontes. Se não há Essa tese reconhece que necessariamente há acordo nesses juízos de
convergência, não há convenção e, portanto, o conhecimento do direito não instanciação, mas deixa em aberto o que se deve entender por «identificação
) não problemática de instâncias de aplicação de um termo» ou, para o que
pode se limitar a descrever esse dado externo, devendo argumentar e defender
) uma posição a partir dele. Já notamos anteriormente que DwoRKIN não descarta interessa aqui, de uma norma jurídica.
) a possibilidade de identificação de um material jurídico pré-interpretativo, MARMOR descreve tais situações como aquelas nas quais o sentido dos
consistente nas decisões políticas prévias que formam a base da justificação termos da norma é claro e dispensa interpretação para sua aplicação.49 A inter-
) do emprego da coerção pelo Estado. Porém, atribui a esse material um caráter pretação só é chamada a atuar quando a formulação da regra criar dúvida.
) apenas preliminar, sujeito a revisão. Trata-se da posição clássica sobre a interpretação, expressa pelo brocardo
Assim, é fundamental precisar o sentido de objetividade que permite falar clara non sunt interpretanda, que pode já ser encontrada, por exemplo, em
J LEIBNIZ, para quem a clareza é uma qualidade do significado das palavras da
em casos claros e casos não claros, até porque não há efetivamente consenso
) lei e está presente quando a apreendemos de forma imediata. 50
sobre o que isso significa e há mesmo indeterminação terminológica, com
} menções a casos «claros», «fáceis», «objetivos» (às vezes tomados por sinô- A interpretação significa para MARMOR a substituição do texto da norma
) nimos, às vezes não), em oposição a casos de «penumbra», «difíceis», «não por uma formulação mais precisa, levando em conta uma compreensão contra-
claros». f ática da intenção do legislador. Para MARMOR, portanto, caso claro também
J A tese fraca da objetividade das fontes postula que essas devem ser tem a ver com a clareza da fonnulação nonnativa, ou seja, é identificado
J objetivamente identificáveis. Tal identificação é dada por um critério que quando a norma não precisa ser interpretada para a sua aplicação. A condição
reconheça atos de promulgação (comandos) como criadores de normas jurí-
J dicas. O primeiro elemento que se tem à disposição, portanto, são os textos 41. WAISMANN, 1945.
) 4 8. (PI, §§ 185 e ss.)
Wl1TGENSTEIN
49. MARMOR, 2005: 96 e ss.
) 46
· SARTOR, 2009. so. Ver DASCAL, 1984: 347.
)
~
,,j
t )
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
()
102 INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 103
(
mínima de sentido de WITTGENSTEIN seria violada se, para toda aplicação, fosse terceira por refinamento K. ={ 124.. 128} . A solução adotada foi K* pois ~
52
(1
necessário recorrer a algum esforço de interpretação. Segue-se, desse conceito, e K 3 realizam um corte muito radical no sistema original. Portanto, para se
a concepção do ordenamento como o conjunto das normas que decorrem do f;
chega~ a K* há não só uma reformulação, como também uma escolha entre
significado claro e imediato da fonnulação normativa. alternativas possíveis (orientada por esquemas de interpretação). {,
Vejamos se tal concepção se encaixa em nossas intuições. Suponha então um caso no qual houve o aborto de um feto gerado pelo f,
O Código Penal brasileiro estabelece, em seu art. 124, que «o aborto marido para que o casal pudesse, sem complicações, fazer uma viagem. Os {1
é proibido». O art. 128, por sua vez, estabelece que «é permitido o aborto fatores relevantes, à luz das normas, são que a gravidez não foi resultante de
realizado por médico se a gravidez for resultante de estupro ou não houver estupro e nem há risco de vida da mãe. Diríamos, naturalmente, que se trata de
«" 1

outro meio de salvar a vida da gestante»: um caso claro ou fácil de aplicação dos arts. 124 e 128 do CP brasileiro. Mas (;
«Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho não poderíamos fazê-lo se aceitarmos a definição de MARMOR de casos claros, (;
Í:' provoque. pois a instanciação foi precedida de reformulação e escolha entre alternativas
1 (
'~!'·!·.'.
Pena: detenção de l (um) a 3 (três) anos possíveis, ou seja, de interpretação.
,· Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: ('
1f1:" Parece inadequado, portanto, definir casos claros como aqueles nos quais
.t_[', 1 - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; (
a norma não precisa ser interpretada.53 Como o próprio termo «claro» já induz
f II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento
essa ideia, é melhor até mesmo calcar a identificação da objetividade forte (
,,, da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.»
em outra distinção terminológica. Não se trata de saber se a norma é clara
1 ~- . Há alguns anos esses dispositivos ficaram no centro de uma polêmica ou não. «Caso claro» ou «caso fácil» diz respeito a uma propriedade do caso
()
1:-

~t decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o direito da mulher a abortar fetos com relação à norma, ou melhor, da objetividade da instanciação da norma (;
anencefálos (ADPF 54-8/DF). Nenhum Ministro questionou o fato óbvio ao caso. Portanto, o que se quer saber é se essa instanciação é determinada (,
de que, de acordo com o art. 124., «o aborto é proibido se não for feito por ou é sub-determinada. Para ficai em termos mais intuitivos, melhor falar, por
!)_ médico ou, o sendo, se a gravidez não for resultado de estupro e não houver ('1
;: enquanto, na distinção entre «casos fáceis» e «casos difíceis».
risco de vida da gestante». (
Nessa linha, que toma a instanciação como noção central, MAcCORMICK
~ Usei um asterisco para o art. 124, pois o que o Código Penal original- defende a existência de decisões jurídicas suficientemente justificadas em (
mente diz é bem diferente da formulação do parágrafo anterior. Como pode
forma puramente dedutiva. {
haver tamanho consenso sobre a identidade entre 124 e 124*? Alguns podem
achar minha pergunta estranha, mas o fato é que os arts. 124 e 128 são incon- {'
s2. Há todo um ramo da lógica voltado ao estudo de revisão de sistemas e conjuntos de
sistentes! Não vemos a inconsistência, pois alguns mecanismos de inferência sentenças, originado a partir de ALcHoURRóN, GÃRDENFORS e MAKINSON -AGM ( 1985). Uma boa
presentes na atividade de interpretação são colocados em prática. Essas infe- (
introdução pode ser encontrada em (HANssoN, 1999). A operação de refinamento oferece uma
rências podem ser traduzidas em princípios consagrados na hermenêutica, tais alternativa mais Hexível às operações tradicionais de contração e revisão. Uma apresentação {)
como lex specialis derogat generalis, para excluir o art. 124, e, para introduzir completa de refinamento para teorias e bases encontra-se em MARANHÃO (2007). O modelo
de refinamento questiona, na verdade, o princípio de minimalidade que pauta os modelos do ({_)
124•, exceptio firmar vim legis in casibus non exceptis. 51 tipo AGM. Em MARANHÃO (2009c), mostro que uma versão generalizada de contração, que
chamei de conservative contraction, quando se consideram bases estruturadas de crenças, perde {
Olhando mais de perto, vê-se que a conclusão por 124* é resultado de
menos informação do que os modelos baseados na noção de minimalidade. O modelo proposto
uma revisão do conjunto original de normas. Vamos chamar de K 1 o conjunto satisfaz de forma mais adequada o princípio de conservatismo de HARMAN ( 1986) na revisão de 4. 1
original com os sentidos claros dos arts. 124 e 128 do Código Penal brasileiro. crenças. (_';
53 · Giovanni RA rr1 (2008) também rejeita o conceito de MARMOR de casos claros como casos que
O conjunto K 1={ 124, 128} é inconsistente. Diante da inconsistência, o intér-
prete, que quer dar sentido ao material, revisa-o de forma a eliminá-la. Há três
dispensam interpretação. Sua crítica, porém, diz respeito à derrotabilidade interpretativa, i.e. à
possibilidade de casos claros serem reinterpretados à luz de novas circunstâncias, derrotando-se
i)
alternativas mais imediatas de reconstrução para chegar a conjuntos consis- a instanciação proposta pela norma. Em minha opinião, nem é necessário ir tão longe para ver \1
tentes de normas: as duas primeiras, por contração ~={124} e ~={128}; a a inadequação dessa definição. RAm, porém, vai longe demais acerca das consequências da
derrotabilidade e acaba por rejeitar a própria tese da objetividade parcial das fontes, ficando \.'
só com a versão fraca, o que, como vimos é também impróprio. Na seção 3.13, trataremos dos
51. BACON (apud DEL VECCHIO, 1978: 89). casos de derrotabilidade aludidos por RATII.
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104 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO

« ... algumas
pessoas negam que o raciocínio jurídico possa ser alguma vez
INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO

Vê-se que a descrição proposta já excluiu uma possibilidade, no mínimo


teórica, de fixação das premissas normativas, pois o texto não especifica se
105

estritamente dedutivo. Se essa negativa pretende ser estrita, implicando que o


) raciocínio jurídico não é ou jamais pode ser somente dedutivo em sua forma, os incisos devem ser lidos conjuntivamente («e») ou disjuntivamente («ou»).
então a negativa é manifesta e demonstravelmente falsa. Algumas vezes é Aqui, já houve uma escolha dada pelo postulado de precisão do legislador
t possível demonstrar conclusivamente que uma dada decisão está juridicamente racional: se fosse uma conjunção, ele não teria utilizado dois incisos. Mas as
} justificada por meio de um argumento puramente dedutivo.» 54 descrições de propriedades em cada inciso não são mutuamente excludentes
e, nesses casos, a divisão em incisos não é determinante, já que, em diversos
t Atria 55 interpreta essa sugestão em contraposição à tese de ALEXY, 56 da
dispositivos, a separação pode ser usada para condições conjuntivas (é comum,
) perspectiva de sua teoria da argumentação, segundo a qual toda a fundamen-
inclusive, discussões doutrinárias em cima da leitura cumulativa ou disjuntiva
tação de decisão, para ser considerada suficientemente justificada, deve neces-
) de incisos de detenninado dispositivo legal). O que torna a leitura disjuntiva
sariamente conter uma justificação interna (dedução da conclusão a partir
mesmo «indisputável» é a tentativa de compreensão da hierarquia dos princí-
:t das premissas) e uma externa (argumentação em defesa das premissas e sua
pios subjacentes que seria capaz de explicar uma ou outra leitura.
) atribuição de sentido, com base em legalidade, moralidade, consequências,
intenção do legislador etc.). Assim, no contexto de nossa discussão, a sugestão O tema do aborto divide-se, em primeira linha, pela oposição entre o
) seria que os casos fáceis são aqueles para os quais a justificação externa das direito à vida do feto e a liberdade da mãe em dispor de seu corpo.·o art. 124
premissas normativas seria desnecessária. 51 · faz uma clara opção pela vida do feto. Seria difícil dar sentido ao seu conteúdo
')
(proibição de aborto) se o feto não fosse sujeito de bem moral com direito à

,
}

)
Essa definição talvez já não passe no teste anterior, pois no processo de
revisão há algum grau de justificação das premissas, ou pelo menos da escolha
de K•. Mas vamos admitir que a aplicação seria determinada já pelo esquema
de interpretação empregado, e que, ademais não houve recurso à moralidade
vida, conforme a escolha do legislador. A referência aos casos de estupro e
risco- de vida da mãe nos permite inferir outros valores de justificação, sem
grande dificuldade: a dignidade da mulher e sua vida. Essa inferência ganha
força quando se observa o poder explicativo desses princípios para outras
ou a possíveis atribuições de intenção ao legislador para definição do sentido normas correlatas do próprio código penal, como a punição ao estupro (art.
),
das premissas normativas. Casos com recurso a justificação externa exigiriam 213 do CP brasileiro) e o conceito· de «estado de necessidade» como exclu-
esse tipo de argumentação para pennitir a dedução. dente de ilicitude de um homicídio (art. 23 do CP brasileiro). A liberdade da
'~
ij Para testar essa definição, vamos então olhar de novo o art. 128 do Código
mãe também recebe alusão quando seu consentimento é exigido no caso de
Penal. Ele foi descrito como «é pennitido o aborto praticado por médico estupro.
)
quando a gravidez é resultado de estupro ou há risco de vida da gestante». É coerente explicar o conteúdo do art. 128 como o esforço do legislador
J Esse é o significado «indisputável» do texto (pergunto se alguém teve alguma racional em compatibilizar esses outros valores com a vida do feto. Aparecem
) objeção a minha descrição). Porém, vale uma releitura: duas alternativas: a leitura «disjuntiva» e a «conjuntiva». Na primeira temos
que, em caso de estupro, a dignidade da mãe prevalece sobre a vida do feto e,
!• «Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
em caso de risco de vida da mãe, esse valor prevalece também sobre a vida do
1.} 1- se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento
feto (assim como na previsão do estado de necessidade, que justifica o homi-
cídio). Essa hierarquia também é imediata e harmônica, a partir do conteúdo
!)
! .
da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.»
disjuntivo das normas.
I}
Agora, se fizermos uma leitura conjuntiva, a hierarquização acima
f(] 54• MAcCORMICK,

ss. ATRIA, 1999.


1994 (trad. livre).
não mais funciona em sua capacidade de explicar o conteúdo da norma. A
tt S6. ALEXY, 2005, parte III, item 1-2.
s7• Obviamente trata-se de uma leitura feita por ATRIA da posição de MAcCORMICK em Legal
nova hierarquia seria: o direito à vida da mãe somente em conjunto com
sua dignidade prevalecem sobre o direito à vida do nascituro. Embora essa
,.
~-
~
i
Reasoning and Legal Theory. Já na reedição de 1994 daquele livro, como o próprio ATRIA
~ .Jf destaca, MAcCORMICK marcou no prefácio uma alteração em sua compreensão do papel da hierarquização explique a leitura conjuntiva dos incisos do art. 128, ela tem
dedução no raciocínio jurídico: «That shows why deductive reasoning from rules cannot be a uma fragilidade patente. Que sentido poderíamos construir sobre a diferença
rl: •i self-sufficient, self-supporting, mode of legal justification. lt is always encapsuled in a web of entre a vida de uma mãe e a vida de uma mãe estuprada? O fato de ter tido a
i .t anterior and ulterior reasoning from principies and v~s. even although a purely pragmatic sua honra violada lhe confere maior direito à vida? Mais do que uma escolha
li J ! view would reveal many situations and cases in which no one thinks it worth the trouble to go
beyond the rulesfor practical purposes.» (MAcCORMICK, 1994: xiii). em termos de outro princípio, o de igualdade, que mexe com um senso de
r. . .
~-'~ .·11
w·~
106 JUI.I/\NO SOUZA DE /\LB UQUGRQUE M AR/\N I IÃO INCL USIV ISMO LÓGICO-JURÍDI CO 107

justiça, está a dific~ildade e m dar uma explicação racional para essa escolha. di stintos, além do que. a razão de fundo da norma, co mo diretri z de conduta,
A incoerê ncia nessa lei tura fica evide nte quando se procura jus ti fi car também pode oferecer uma razão para a ação co ntrári a à razão oferecida pe la própria
a no rma re la ti va ao estado ele necessidade como exclude nte ele homicídio. Se norma, d epe nde ndo da instanciação particular (essa possibilidade será tratada
e m 0.utros casos ele estado de necessidade não se pune o ho micídio e o aborto na Seção 3. 13).
implica també m tirar a vida de um sujeito ele dire ito, po rque aqui , e não ali,
A argume ntação sobre as razões pe las quais a no rma com de te rminado
se exige que aquele cm risco ele vida tenha a sua dignidade de alguma forma
conte údo foi posta não versa propriame nte sobre a inteligibilidade ela norma,
violada?
mas sobre a co mpreensão desta como resultado de um ato racional. Portanto,
Pa rece que a inabilidade e m conceber a le itura conjuntiva como uma o texto pode se reduz ir ao seu aspecto locucionário, como «é proibido fumar
escolha racional to rna a leitura di sjunti va óbvia ou indis putável. Assim, um nesta sala» ou o próprio símbo lo frequente me nte usado para re presentar essa
caso no qual a gravidez é resultante de estupro, mas a ges tante não corre risco proibição, que pode ser objeti va mente co mpreendido . O aspec to ilocucio nário
de vida, seria um caso de fácil instanciação, mas isso não quer dizer que não te m a ver com a co mpreensão dessa locução como racional. Nesse se ntido, é
seja necessá ria uma justificação exte rna. Essa apenas não é exigida pragma- preci sa a menção de FERRAZ J UNIOR d e que a locução é «sempre aco mpanhada
ticamente, pois é já pressuposta, dado o consenso na inte rpretação. Po rém, de a lguma iloc ução ( fumar faz mal à saúde), na qual as disputas axiológicas,
conceitualme nte, não pode ser descartada. T e mos, portanto, um caso fácil, ideológicas e ntre os próprios intérpretes aparecem».59
mas com justificação externa.
O grão de verdade e m F u LLER está e m destacar que o significado tomado
Há um grão de verdade no arg umento d e FuLLER de que, por vezes, o como claro ou fácil pode ser já o resultado determinado de uma possível
propós ito por trás da regra é tão óbvio que não nos damos conta de que foi di sputa interpre taliva e argume ntativa Uuslificação ex terna, na te rmino logia
levad o e m cons ide ração na ide ntificação d o seu sentido o u na determinação de de ALEXY6(>). que e nvolve controvérsia sobre as premissas de uma insta n-
uma instanciação. FERRAZ JUNIOR faz ponto semelhante à concepção de F ULLER ciação, com atribuições d e sentido concorrentes ou justificações de fundo
de que o propósito de termina o se ntido, qua ndo fa la da clareza da norma como concorre ntes. Ou seja, assim como aquil o que, no direito, é adjetivado co mo
uma «qualidade do contexto em que ela se insere e que é inerente ao seu claro (settled 111eani11g) pode não ser uma qualidade semântica da fo rmul ação
significado» .58 norm ativa, o adjetivo « fácil» para uma instanciação não significa que essa seja
Minha diferença fica ape nas no que se refere à inerência do contexto e do «purame nte deduliva».
propósi to ao sig nifi cado da norma. A tese wittgensteiniana de «sentido como C omo ex iste m casos fáceis e nvolve ndo reformulação de conte údo e justi-
uso cio te rmo», em c uja autoridade F u LLER se baseia, não implica que esse ficação externa das premi ssas, é preciso buscar uma pe rspecti va mais geral.
some nte possa ser apreendido por me io da identificação do propósi to e contexto Propomos que o adjetivo « fácil» refira-se à indisputabilidade da Uustificação
específico de um ato de fala (wterance). Como j á destacado anteri ormente, externa e interna de uma) instanciação da norma a um caso. O caso é fácil
a noção de uso, e m W1rrGENSTEIN, te m a ver com as regras de instanc iação naquelas instanciações que são geralme nte consensadas pela comunidade jurí-
compartilhadas pela comunidade linguística, sendo mais um conceito «social» dica, independente me nte de ser necessário recurso a revisões da formulação
do que «subj etivo». Embora o propósito possa justificar uma dete rminada original ou a argumentos de justificação d as premissas. Basta apenas que não
atribuição de sentido para um termo ou conteúdo da norma, o conteúdo desta haja argume nto justificável ou minimame nte plausível conLra a instanciação.
não se ide ntifica com aq ue le. Assim, por exemplo, João pode perfeitamente Na verdade, essa é concepção do próprio H ART:
e nte nde r e c umprir seu dever de pagar impostos, sem que compreenda a razão «Os casos claros são aqueles nos quais existe consenso geral de que se
pela qual os impostos são cobrados pelo Estado. inserem no escopo da regra e é tentador atribuir esse consenso simplesme nte
Do ponto de vista prático, essa separação é importa nte, pois, além de ao fato de que necessariamente há tais acordos no uso de convenções compar-
tilhadas da linguagem. Mas isso seria uma simplificação demasiada, pois ela
oferecer uma justificação para a criação da norma, o propósi to ou princ ípio de
não abriria espaço para convenções especiais do uso jurídico das palavras, que
fundo també m oferece uma razão pa ra a ação o u decisão conforme a norma podem divergir do uso comum, ou para a forma pela qual o significado das
(essa é a base da tese de dependência de RAZ). E o ponto que não se pode palavras pode ser claramente contro lado com referência ao propósito de um
perder é que um mesmo conteúdo pode ter justificações a partir de propósitos
s9 FERRt\Z J UN IOR,2008: 266.
' 8 F ERRt\Z J UN IOR. 2008: 266. 60 A LEXY, 2005: 226.
'j
t JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 109
!l 108

') ato legislativo, que pode ele mesmo ser afirmado explicitamente ou geralmente
acordado.» 61
por não oferecer propriamente critérios de aplicação do termo e, assim, não
propiciar a identificação da extensão desse predicado. E esse conceito é chave,
')
Nessa passagem, HART distingue o sentido leigo, dado pelo consenso no pois dele depende a base objetiva para a descrição do <:lireito como ele é.

'
uso ordinário dos termos empregados na regra, daquele sentido técnico-jurí- Mas justamente essa definição de sentido de «caso fácil» mostra porque
dico dado pelo emprego de técnicas de interpretação jurídica, já envolvendo não sofria, e o positivismo não precisa sofrer, da enfermidade que
.} HART

.,
.'t
o controle do significado por meio de convenções especiais ou do propósito
claramente atribuído ao ato de promulgação ou decisão. Aquele sentido leigo
tem a ver com o material que é dado ao jurista. Este sentido técnico já pode
DwoRKIN chamou de «aguilhão semântico», i.e. a crença na existência de
critérios semânticos de identificação do termo «direito». A crítica de DwoRKIN
seria válida se a única concepção de sentido disponível para a teoria analítica

,
.,
ser o resultado da atuação da interpretação, tomada, mesmo por HART, como do direito fosse a criteriológica. Porém, HART parece defender uma concepção
) forma de identificação dos casos claros. É a interpretação, ao chegar a uma de sentido como habilidade de uso e a noção de casos fáceis não como resul-
conclusão indisputável ou geralmente consensada, que toma o caso claro. tante de aplicação de critérios pré-determinados, mas como a simples exis-
Nesse sentido, pode-se fazer uma interpretação do brocardo in claris cessat tência de situações prototípicas de emprego do termo,63 compartilhadas pela
) interpretatio como referente ao resultado de um processo dinâmico de inter- comunidade linguística, o que é, inclusive, uma condição de sentido (pode-
) pretação que cessa com a clareza, algo distinto do conteúdo de clara non sunt
se tomar essa concepção de «casos fáceis» e, portanto, de «dtreito» como
interpretanda. 62
) metafísica e não epistêmica).
Isso significa que a identificação daquele conteúdo na base da tese de
) Pode-se, inclusive, pensar na situação prototípica de aplicação proto-
objetividade forte das fontes pressupõe atuação interpretativa (inclusive com
típica do termo «direito» como aquela na qual uma norma, identificada pelo
L) recurso ao legislador racional), o que já é uma concessão a E=/. Essa identifi-
seu pedigree, tem sua formulação normativa clara, com aplicação puramente
cação não será nociva caso I seja determinada em parte dos casos, o que Hart
) dedutiva em caso cuja justificação de fundo oferece uma razão no mesmo
postula e Dworkin desafia.
') sentido. Essa, porém, não esgota a identificação da base objetiva da tese das
Deve ficar claro, porém, que não se afirma aqui a inexistência de casos fontes.
) em que o sentido da norma seja claro, ou inexistência de casos em que, em
função dessa clareza, não seja necessário recurso a justificação externa. O que Como a preocupação aqui é identificar o ordenamento jurídico como
) fonte originária das razões jurídicas válidas e a definição de «caso fácil» não é
se busca é apenas uma definição capaz de destacar as características essenciais
) e distintivas do que se aponta como «caso fácil». A observação foi que a noção epistêmica, é conveniente usá-lo em seu sentido mais cru, i.e usaremos o termo

, de «clareza da formulação normativa» e a ideia de instanciação por meio de «ordenamento jurídico» para designar aquele material pré-interpretativo,
) que não se reduz a textos promulgados, mas consiste no conjunto daqueles
«silogismo dedutivo puro» deixam de abarcar situações importantes de uso do
adjetivo «fácil». Por sua vez, a mera assunção de que os juristas consensam sentidos preliminarmente atribuídos aos textos dotados de autoridade, com
instâncias típicas de «casos fáceis», na linha de HART, parece insatisfatória base nas convenções linguísticas ordinárias (não técnicas) sobre os termos
)
empregados nas formulações normativas. Para exemplificar, recorrendo às

' 6
1. HART, 1983: 106 (trad. livre).
regras sobre aborto, a norma que considero pertencente ao ordenamento é
) 62
·Em clara non sunt interpretanda tem-se o adjetivo clãra [clãrus (masculino), clãra aquela expressa pelo art. 124. A norma 124• já é o resultado de interpretação,
(feminino), clãrum (neutro)] substantivado no neutro plural: «coisas claras», «textos claros», ainda que objetiva e pertencente a uma reconstrução do ordenamento que não
} «discursos claros». A esse adjetivo se associa outro, o particípio futuro passivo, também enfrenta rivais plausíveis (sua justificação externa é, praticamente, mas não
chamado gerundivo: «coisas claras não são "interpretandas"»; ou seja, «o que é claro não
) deve ser interpretado». Note-se que o centro da frase, ordenada à guisa de latim medieval (o
conceitualmente, dispensável). Embora não se saiba determinar quais são os
clássico decerto ordenaria diferentemente), é clãra. Já em in claris cessat interpretatio tem-se casos fáceis, há os casos fáceis que resultam de interpretações consensadas
) o mesmo adjetivo substantivado, agora no caso ablativo (a rigor, locativo) e o centro da frase é do ordenamento jurídico, tomado como esse material pré-interpretativo.
) o substantivo interpretãtTo: «em coisas claras cessa a interpretação», «a interpretação cessa no DwoRKIN está em linha com essa ideia na medida em que, como vimos, apesar
que é claro», «o que é claro põe termo à interpretação». Entende-se que - havendo interpretação
) em andamento -, quando se chega a pontos claros, estes façam cessar a interpretação. Assim,
63 ·
em clara non sunt interpretanda não se pressupõe interpretação; segundo in claris cessai Sobre a teoria prototípica do significado, que tem sua origem na filosofia da linguagem
) interpretatio a interpretação, pressuposta, cessa. (Agradeço a Clóvis Luiz Alonso Júnior por ordinária do segundo WJTrGENSTEIN ver LAKOFF ( 1990, parte 1, item 3) e a coletânea de ensaios
esse esclarecimento sobre o latim, que se alinha à interpretação aqui sugerida para os brocardos, (MARGOLIS e LAURENCE, 1999). Uma leitura de HART como adepto de uma concepção prototípica
) normalmente tomados, no meio jurídico, como equivalentes.) de sentido pode ser encontrada em (EN01corr. 2005).
:)
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!i 110 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 111
r t!l'li
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ti j. do profundo desacordo que postula sobre os fundamentos do direito, concorda Foi assumida a existência de um conjunto de casos fáceis, nos quais a
1;.:i;lij' com a possibilidade de convergência entre proposições de direito nas dife- identificação da ação conforme o direito é determinada, i.e. na qual o sistema
:)1, :
rentes concepções.
•I'
normativo reconstruído a partir do ordenamento, no caso em questão, deter-
r:
.1, mina uma solução deôntica. Para precisar a terminologia, a partir de agora,
Mas ainda há outro aspecto para o qual HART chama a atenção, quando'
aborda a noção de «caso claro», colhendo algo do ceticismo sobre as regras: esses casos serão chamados de «casos determinados» a partir do ordenamento.
; .
Há, porém, uma série de casos em que a instanciação é subdeterminada, na
:\! . «Tod~via, .º c~ti~i.smo desse caráter, embora inaceitável, serve para enfa- medida em que o ordenamento permita reconstruções de sistemas normativos
!('il tizar que e mmto d1f1cd oferecer uma abordagem exaustiva do que faz um "caso
:···~
claro" ser claro ou faz uma regra geral ser unicamente aplicável a um caso concorrentes para a mesma ação em dada descrição de circunstâncias.
particular. Regras não podem pretender instanciações próprias e situações de Esses «casos subdeterminados» podem ser de dois tipos: a) casos inde-
fato não aguardam o juiz emblemadas com a regra a elas aplicável.»64 terminados ou b) casos incoerentes. Os primeiros subdividem-se em: a. l)
Hart acena aqui para o caso como elemento determinante da facilidade «casos de penumbra», nos quais a indeterminação da instanciação decorre
ou .d!ficuldade da ,instan~i?~ão, o que inclusive é a porta de entrada para O da vagueza ou ambiguidade dos termos presentes na formulação normativa,
ceticismo quanto a poss1b1hdade de sua solução prévia por meio de regras. o que dificulta o reconhecimento do caso em questão como .qentro ou fora
Não são as regras que determinam as suas instâncias de aplicação, mas é a do âmbito de referência do termo (diferentes fixações possíveis de sentido
partir do caso que se identificam, por interpretação, as regras a aplicar e qual indicam diferentes instanciações); a.2) «casos de lacuna», nos quais, aparen-
seria o conteúdo claramente aplicável a esse caso. temente, não há uma solução, dentre as regras que se aplicam à ação em
E isso é particularmente importante se tomarmos a noção ampla de questão, para um caso decorrente das combinações possíveis entre presença
ordenamento como .aquele material pré-interpretativo. Nesse caso, a pergunta e ausência os fatores selecionados como relevantes nessas regras (o caso em
abstrata sobre o COOJUnto de todas as suas normas válidas não faz muito sentido questão identifica-se com uma dessas combinações de fatores sem solução). 66
prático para qualquer operador do direito. A pergunta sobre o conteúdo do Os casos de incoerência subdividem-se em b.l) «casos de inconsistência», nos
orde~amento, na voz dos operadores, está ligada à resolução de um problema, quais normas distintas do ordenamento indicam soluções opostas para a ação
ou seJa, a questão é saber o que isso que nós consideramos «o ordenamento» em questão; b.2) «casos difíceis», nos quais há conflito entre a norma e o prin-
diz sobre o status deôntico dessa ação nessas circunstâncias. Em outras pala- cípio subjacente que justifica a criação da norma ou conflitos entre princípios
vras, qual solução ou quais razões o direito oferece sobre como agir nestas subjacentes a distintas normas igualmente aplicáveis. Essa classificação pode
circunstâncias. ser resumida no diagrama abaixo:
Diante dessa pergunta, a não ser que se faça uma descrição inútil (como
no caso dos arts. 124 e 128 do CP, no qual diríamos que «de acordo com O
determinados (fáceis)
1 i penumbra
direi~o bras~leiro é permitido e proibido provocar o aborto de mulher cuja
gravidez foi resultante de estupro») a nossa descrição do conjunto de solu-
ções do ordenamento para uma ação, em diferentes circunstâncias nas quais
casos
1 .
subdetermmados
indeterminados

. 1
mcoerentes
lacuna
inconsistentes
ela pode ser realizada, envolverá interpretação e construção de um sistema
normativo capaz de oferecer razões sobre como agir conforme o direito. Com difíceis
isso, faço uma distinção entre o ordenamento jurídico, como a base pré-
Normalmente, quando se destacam os chamados «problemas de inter-
interpretativa e sistemas normativos jurídicos, que oferecem as razões para
pretação», são os quatro casos nas pontas do diagrama (penumbra, lacuna,
agir conforme o direito. Esses sistemas são determinados da mesma forma
proposta em Normative Systems65 i.e. a partir da especificação de um tipo de inconsistência e incoerência) que pautam as classificações. É usual, desde
conflito (universo de discurso), no qual se pretende definir o status deôntico
66·Os casos de penumbra identificam-se com o conceito de «lacunas de reconhecimento» de
(universo de soluções) de uma ação (universo de ações) em certas descrições
ALCHOURRÓN e B uLYGIN ( 1997: 63-64) e os casos de lacuna identificam-se com o conceito desses
de casos possíveis correlatos (universo de casos).
autores de «lacunas nonnativas» (Idem, ibidem: 41 e ss.). A descrição das lacunas nonnativas
pode ter parecido desnecessariamente complexa, ma~ não é o caso de construir detalhadamente
64
· HART, 1983: 106 (trad. livre). ou explicar essa definição. Como a empresto de (ALCHOURRóN e BuLYGIN, 197 l ), remeto o leitor
65
· ALCHOURRON e BuLYGIN, 1993; ver, em especial os capítulos l e 2. àquela fonte.
r àmfl
~ /f'fJ! ·; tit:::t
··:iI• 112 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO fl INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 113
ji I 28 do CP brasileiro). O custo nessa taxonomia, obviamente, é enfraquecer a
,:1.I SAVIGNY,67 dividi-los entre problemas das leis consideradas singularmente e
l): das leis consideradas em sua relação com o sistema jurídico, de forma que,
penumbra e casos difíceis passam a pertencer à primeira classe, enquanto
noção de ordenamento jurídico e ampliar a possibilidade de subdeterminação,
além de não oferecer uma definição criteriológica para a base objetiva da tese
! 1 lacunas e conflitos passam a ser problemas de sistematização. SA VIGNY deno- das fontes.
t:
': 1
minava «leis defeituosas» os problemas ligados a leis singulares, distinguindo
Outra nota crucial. Com essas distinções, os hard cases de DwoRKJN que
entre leis indeterminadas e leis inexatas. As indeterminadas são aquelas que
não indicam perfeitamente um pensamento. As inexatas são leis que mani- apresentam conflitos entre regras e princípios morais subjacentes deixam de
·~
acertar o alvo, i.e. a tese de objetividade forte. O ataque final de DwoRKIN à tese
;l festam um pensamento diverso do seu «pensamento verdadeiro» (conflito
das fontes depende da implosão dessa base objetiva. Os hard cases, portanto,
): entre a regra e sua ratio ). 68
têm que estar nessa base para a crítica funcionar. Isso acontecia com as defi-
) . Essa tradição é preservada em Normative Systems, embora com um nições de «casos fáceis» calcadas na dispensa de interpretação ou de justifi-


)
)
enquadramento positivista, preocupado em separar descrição de crítica valora-
tiva do ordenamento. Os problemas de sistematização ali tratados, descritiva-
mente, são lacunas e conflitos, que recebem definições estritamente sintáticas.
Casos de penumbra e incoerência são tratados como versões não genuínas de
lacunas. Casos de penumbra são vistos como problemas semânticos, já elimi-
cação externa. Ou seja, casos difíceis seriam aqueles casos fáceis (do ponto
de vista do sentido expresso na norma), mas claramente injustos, segundo
determinada valoração do propósito da regra. Nesse ponto ficaria· manifesta a
discrepância entre o critério de validade baseado no pedigree contra o baseado
) nados na abstração feita pela sistematização, que já fixa significados. Casos na moral. Nesses termos, a tensão para preservar a objetividade da base fica
difíceis, ou de incoerência, chamados de «lacunas axiológicas», são tomados insustentável. Ou essa é abandonada, como propõe DwoRKIN, ou se admite
) que decisões juridicamente válidas são tomadas com base em fundamentos
como espúrios e indicariam a pretensão de alterar o sistema normativo69
} (movimento bem diverso de SA VIGNY, que via como espúria, ao contrário, a extrajurídicos, com o que convivem bem os exclusivistas. Já o inclusivismo
solução manifesta explicitamente na fonte jurídica). insiste na objetividade ainda que a moralidade seja incorporada nas fontes.
)
A classificação aqui proposta não se encaixa bem naquela tradição, na Na classificação proposta, que decorre de uma possível leitura de HART,
)
medida em que não trabalho com a noção de sistema como base unívoca. porém, essa tensão não aparece, pois os hard cases simplesmente não são
)' Tomo sistemas normativos como reconstruções interpretativas possíveis do casos de instanciação consensada e não versam sobre a base objetiva sobre a


)
ordenamento, a partir de normas singulares ou de normas que se refiram a
uma ação particular em classes de circunstâncias correlatas. Ou seja, todos os
problemas têm a ver com sistematização e são problemas por gerarem sistema-
tizações alternativas não resolvidas, a partir da mesma fonte. Deve ficar claro
qual se edifica o positivismo. Obviamente, só mudar de lugar não resolve o
problema, mas já é um passo para enxergar onde ele está. Para eliminar a crítica
à objetividade e ao consenso sobre as fontes, o desafio reside em mostrar que
t que a determinação ou subdeterminação tem a ver com a competição entre
os casos difíceis não representam um embate moral, alheio à positivação, mas
uma busca, ainda que valorativa, bem mais próxima do que SAVIGNY chamava
) sistemas normativos que podem ser gerados a partir do ordenamento jurídico. de «verdadeiro pensamento» da própria regra.
) As definições de cada tipo de subdeterminação olham para possíveis causas,
mas não caracterizam condições suficientes para esses, dado que, a determi-
} 3.6 O DISCURSO DA DOGMÁTICA JURÍDICA
nação ou subdeterminação identifica-se pelo consenso na solução (ausência
) de um contra-argumento defensável a favor de outra solução) e não se refere A noção de ordenamento aqui empregada o coloca como material a partir
a m~a propriedade da formulação normativa ou da instanciação. Assim, todas do qual razões são construídas por meio de interpretação. Essa construção
)
as situações descritas podem ser tais que, apesar de poderem gerar teorica- parte de questões dirigidas ao ordenamento sobre se determinada ação, em
) mente mais de um sistema normativo concorrente, há apenas um sistema iden- determinadas circunstâncias, é permitida, proibida ou obrigatória. Assume-se
tificado pela comunidade jurídica como aquele justificado (consenso geral).
) que deve haver consenso quanto a uma base de razões construída interpre-
Portanto, as situações de subdeterminação podem estar presentes, mas a sua
tativamente. Mas há possibilidade de subdeterminação, nas quais diferentes
} instanciação ser fácil ou determinada (é o caso do conflito entre os arts. 124 e
sistemas normativos resultantes de interpretação concorrem. As normas
) derivadas ou derivações lógicas referem-se ao fechamento lógico (conjunto
67
· SA VJGNY. 1886.
) 68
· SAVIGNY, 1886: 229.
de consequências lógicas) desses sistemas normativos, i.e. das razões recons-
69 · ALCHOURRóN; BuLYGlN, 1997 (cap. VI e VII). truídas a partir do ordenamento.
}
)
g~:1·
7/.?1
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114 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
115
Nesse quadro, a dogmática jurídica (Jurisprudenz) assume alguma
postura ativa na identificação das razões jurídicas, a partir do ordenamento. comando. Trata-se de um tipo específico de «recomendação», chamado por
Como nossa preocupação, na Metajurisprudenz, é discutir as condições de VoN W RIGHT de «regras técnicas» ou «deveres técnicos». 73 Regras técnicas são
identificação das razões jurídicas válidas, importa a fundamentação da ativi- instruções sobre o que é necessário fazer para que se chegue a determinado
dade da dogmática e as condições de verdade das suas proposições. Entramos objetivo (podem ser também tomadas como condições suficientes, embora
aqui no difícil tema de caracterização das proposições normativas, que KELsEN VoN WRIGHT tenha deixado essas de lado, dada a dificuldade de sustentarem
chamava de descritivas, porém descritivas de um «sentido normativo», o que um silogismo prático74). Possuem um elemento valorativo ou volitivo, o fim
lhes daria uma dimensão de «dever-ser». pretendido, e um elemento descritivo, as relações entre a ação e seus efeitos
(no caso, o fim é cumprir as normas jurídicas válidas). O elemento descritivo
Ninguém conseguiu decifrar exatamente o que KELSEN tinha em mente. traz seu caráter teórico, podendo tais proposições assumir valores de verdade,
HART7º propôs identificá-las a partir do uso e menção das palavras, o que foi o que é uma vantagem importante com relação aos «conselhos» como proposta
rejeitado por KELSEN. Apesar da rejeição, positivistas posteriores conceberam- de interpretação das Rechtsiitze, pois permite uma conceituação neutra da
na no sentido de descrição do fato de que as normas são prescritas (depurando-a ciência do direito, ainda que tais proposições dependam de valorações (a prin-
da dimensão normativa). Nesse tipo de discurso, o fato de serem promulgadas cipal delas, a valoração sobre a própria va]idade das normas jurí~icas que se
normas inconsistentes pode ser naturalmente descrito sem ofensa a qualquer pretende obedecer).
]imite racional.
Tentativa anterior de compreender as proposições sobre o direito como
Porém, justamente pelo fato de que a identificação de normas pela dogmá- regras técnicas foi feita por AARNio, 75 separando duas perspectivas, uma
tica, mesmo que objetiva e determinada para os casos claros, pode envolver secundária, na qual essas seriam proposições aos sujeitos normativos sobre as
um processo de revisões e reformulações, a descrição da ocorrência de atos condições necessárias para se obter proteção do direito, outra primária, na qual
de legislação pode ser desinteressante para que a dogmática jurídica preencha essas estatuiriam aos juízes condições necessárias sobre como interpretar as
a sua função. E essa é a questão-chave: qual afanção pragmática preenchida normas para se alcançar determinados efeitos sociais. A primeira perspectiva
pelo discurso da dogmática jurídica? é descartada com base em argumentos semelhantes aos dirigidos por HART à
Foi nessa perspectiva que Boee10,71 ao constatar a interferência, pelo teoria preditiva da validade de Alf Ross. A segunda é tomada como insufi-
jurista, no material jurídico dado, quando identifica ou explica o direito, propôs ciente para dar conta da complexidade das razões empregadas pelos juízes e
que a dogmática faria «recomendações» ou «conse]hos» sobre como agir, a dos fins sociais perseguidos pela prática jurídica. Em seu lugar, AARNIO volta
partir do ordenamento. Boee10 vê, aqui, no mínimo, uma função da ciência à proposta de BoeeIO em tomar proposições da ciência do direito como reco-
do direito em guiar a conduta, mas não por prescrições. Acredita ser isso mendações e, nesse momento, revela-se o efetivo motivo de sua insatisfação
possível na medida em que se supere a dicotomia prescrições/descrições como com as regras técnicas. AARN10, assim como o Boee10 funcionalista, acredita
um tudo ou nada para abordar o fenômeno jurídico (ou se descreve o conteúdo ser tarefa não só da dogmática, mas também da teoria do direito, uma tomada
da norma ou se pretende prescrever condutas, o que seria tarefa apenas das de posição sobre os objetivos morais e políticos a se alcançar na identificação
autoridades). O conselho é também uma forma de pressão normativa, embora do direito.
não tenha império. A abordagem de Boee10, porém, tem o inconveniente de «A sentença de interpretação genuína, de outro lado, difere de uma regra
atribuir à ciência jurídica também uma atitude valorativa, inclusive mora] e técnica na medida em que o jurista agora também toma posição sobre o propó-
política, apenas não dotada de autoridade institucionalizada. sito mesmo [do direito]. ( ... ) Minha discussão, ao mesmo tempo, diz algo
Defendi em outra oportunidade que não só são possíveis outras formas concernente à asserção de que o jurista busca influenciar a sociedade quando
propõe sentenças de interpretação genuínas. O jurista mira na realização de
de pressão normativa, como, do ponto de vista pragmático e dos efeitos perJo-
cucionários dos atos de fala, 72 a descrição de que um comando é vinculante, 73
• VoN WRIGHT (1963, cap. 1). A ideia de que o discurso da dogmática jurídica seria constituído
aliada a uma descrição de seu conteúdo, necessária e imediatamente implica
por regras técnicas foi apresentado na minha tese de doutorado (MARANHÃO, 2004), e rearti-
ser o ato de fala a descrição daquilo que se precisa fazer para cumprir o culado no artigo (MARANHÃO, 2010) como um discurso intermediário entre o ser e dever ser, na
linha sugerida por 800010. Jorge RODRIGUEZ defende a mesma tese como forma de preservar a
70· HART, 1983 (cap. 14). neutralidade do discurso da ciência do direito (RODRIGUEZ.. 2010).
74
· Ver (MARANHÃO, 2006). Para um esboço de alternativas de construção de um sistema lógico
71. BOBBIO, 1967.
12. Ver AUSTIN (1975) e MARANHÃO (2004). para validar os silogismos propostos por VoN WRIGHT, ver SEGERBERG (2009: 93-109).
75
• AARNIO, 1977: 304-312.
~ j' .
1..... ,
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INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
;,
1 .
116 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO 117

mentar escolhas pela ciência do direito em processos intermediários de revisão


certo (usualmente prevalecente) objetivo e acredita que é exatamente uma

\?
li
escolha específica que levará a ele ou pelo menos promoverá seu alcance.» 76
Não proponho como discurso da dogmática o discurso de regras técnicas
do sistema normativo, até que se chegue a uma construção que passe nos
testes de racionalidade. Assim, es~es sistemas intermediários podem figurar
em argumentos, que mostrem, por exemplo, a inconsistência de determinada
'::
:t
em sua dimensão empírica, no sentido do que precisa ser feito para elevar a
probabilidade de obtenção de proteção pelo direito, nas quais possíveis estraté-
atribuição de sentido, para sustentar atribuição de sentido alternativa. Ao final
1,1, desse processo, o sistema normativo apresentado como resultado da interpre-
gias de cumprimento/descumprimento podem ser pensadas, mas como simples
i ). tação identificará aquilo que precisamos fazer para cumprir o ordenamento,
decorrência lógica da combinação de propriedades do discurso que, ao mesmo
como um conjunto de casos e soluções, a partir das normas interpretadas, que
:-...
1
tempo, descreve uma norma como vinculante e explicita seu conteúdo.
possa ser atribuído ao legislador racional.

·,
\

J
Já a versão primária de AARNIO inclui elemento adicional, o objetivo
social que se busca alcançar com a interpretação proposta para uma norma
particular, o que é desnecessário. Trata-se de descrever o que se precisa fazer
com o objetivo de cumprir o ordenamento, não determinado efeito social em
3.7 INCLUSIVISMO LÓGICO COMO CONTRA-ARGUMENTO A
DWORKIN
determinada perspectiva deste. Para os casos determinados, isso não significa Finalmente, estamos em posição para apresentar o argumetlto do inclu-
:,
-~ qualquer tomada de posição. Para os casos subdeterminados, o intérprete
dogmático genuíno, ao arguir por uma, dentre outras interpretações concor-
sivismo lógico. Esse deve ser tomado, fundamentalmente, como uma possível
objeção ao ataque de DwoRKIN contra o positivismo. Embora não acredite que
) rentes, pode fazer uma atribuição de sentido pautada por determinada escolha a posição aqui defendida possa ser chamada propriamente de «inclusivista»

.- )
de propósito para a regra, mas, nesse seu discurso, tal objetivo aparece como o
«real» propósito do legislador, porque é Q melhor (ou pelo menos se apresenta
e se justifica como o melhor), e não como um propósito que seria melhor esco-
lher, dentre outros. Daí porque podemos tomá-lo como regra técnica, ainda
(o que ficará mais claro adiante), tomo o termo emprestado de MARMOR, que,
por sua vez, o atribui a RAz. 78 MARMOR descartou a hipótese por acreditar ser
essa algo próximo da teoria do direito como integridade do próprio DwoRKIN.
De fato, como já destacado, DwoRKIN resgatou para a teoria do direito a noção
)
que haja aqui uma assunção contrafática. O importante é o reflexo para a teoria inferencial de coerência, incluindo, em sua concepção de direito, as razões
~ do direito (Metajurisprudenz). Para essa, continua a ser possível identificar, de que melhor explicam um determinado material dotado de autoridade. Porém, a

)• forma não engajada, tanto a base objetiva do direito como também sistemas
normativos concorrentes como conjuntos de regras técnicas informados por
objetivos distintos.77
forma pela qual esse inclusivismo inferencial foi proposto na teoria do «direito
como integridade» é incompatível com a concepção positivista do direito. Tal
consequência pode ser evitada. Ou seja, o que DwoRKIN considera «uma teoria
) Assim, o discurso da ciência do direito tem como função prática guiar adequada de adjudicação», i.e. uma teoria capaz ·de refletir a racionalidade

,,
) a conduta pressupondo-se o cumprimento do ordenamento. As normas são
tomadas, ainda que contrafaticamente, como produtos de atos racionais. Desse
modo, assume-se que a realização das ações conforme as regras pelos sujeitos
presente na reconstrução interpretativa pelos tribunais com o apelo a princí-
pios, pode ser compatível com a tese positivista das fontes sociais.
Portanto, após apresentar minha versão da objeção lógico-inclusivista ao
normativos conduz aos objetivos que se imputa ao legislador (racional). argumento de DwoRKIN, devo me concentrar nas objeções já antecipadas por
) Portanto, o discurso da dogmática é voltado para orientar a conduta por meio MARMOR ao «inclusivismo lógico», de forma a precisar minha versão, que é
de regras técnicas, pautado pela assunção de validade das razões provenientes compatível mesmo com o positivismo exclusivista.
) do· ordenamento, além da assunção, contra/ática, de que tais razões são o Resgatando o argumento de DwoRKIN exposto na seção anterior, na
} resultado de escolhas racionais. forma própria para identificar onde está meu contra-argumento, tem-se como
) O discurso descritivo do ordenamento jurídico, como material interpre- ponto central a tese de que o nível de discordância na atividade de interpre-
tativo, não fica descartado. Esse pode estar presente como base para funda- tação e argumentação jurídica é tão profundo que não permite apontar uma
J convenção sobre critérios de identificação de normas válidas ou do signifi-
) 76. AAiooo, 1977: 321 (trad. livre). cado ou extensão do termo «direito» (semantic sting). Juízes discordam não
11. Boss10 via a possibilidade de uma Meta-metajurisprudenz descritiva, na qual várias só na interpretação de decisões políticas prévias dotadas de autoridade, mas
J atribuições possíveis de função social ao direito definiriam ordens jurídicas distintas. Essa

,
} metateoria do direito descreveria os ordenamentos juridicamente possíveis à luz de diferentes
ideologias (BOBBIO, 1967). 78. MARMOR, 2002.
118 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 119
. ,!
•. i

também sobre qual seria a sua função como juízes e inclusive sobre sua atitude ante: «a força vinculante dos princípios como razão jurídica não pode
com relação a essas decisões. Decorreria disso que, se a ciência do direito ser baseada na convenção social sobre as fontes»
pretende ser descritiva (ou na expressão do Boss10 funcionalista, se pretende Esse antecedente constitui a conclusão a partir das premissas a, de que a
prescrever a descrição), então defende moralmente uma determinada atitude convenção social não inclui os princípios, e b de que os princípios são pautas
de fidelidade à lei ou de segurança jurídica. Se o direito não pode ser um de comportamento vinculantes para os juízes. Como de a e b tenho ante, isso
conceito criteriológico, DwoRKIN aponta que se trata de conceito interpretativo me permite derivar o consequente de e:
: e a identificação concreta de qualquer direito subjetivo dependeria, necessa-
j
'

consc: «a força vinculante dos princípios como razões jurídicas decorre


riamente, de uma concepção global sobre qual seria o propósito da prática
do mérito moral de seu conteúdo»
jurídica, em termos de justificação da coerção coletiva. Isso acabaria com a
pretensão de uma teoria geral descritiva ou independente de engajamento do A proposição ante é na, verdade, uma conjunção entre duas ·proposições:
teórico na valoração moral do direito. Esse engajamento deveria colocar o ante,: «princípios são vinculantes como razõesjur(dicas» e ante2: «não podem
material jurídico disponível como justificado por determinada moralidade fazer parte da convenção sobre as fontes». Nesses termos a tese exclusivista
política, também arguída. consiste basicamente em negar ante1:

Dentre as três possibilidades de interpretação do desacordo na atividade -ante,: «princípios são vinculantes, mas não como razões jurídicas»
de adjudicação - desacordo sobre quais são as regras postas, desacordo Isso significa atribuir casos envolvendo princípios à discricionariedade
sobre a moralidade de aplicar regras e desacordo sobre a autoridade das da adjudicação, no sentido de que as autoridades podem empregar tanto razões
regras postas - DwoRKIN pauta-se pelo terceiro, no sentido de que os juízes jurídicas como outras razões extrajurídicas que os vinculem.
aplicam os princípios morais e de políticas públicas como razões jurídicas Já a tese inclusivista consiste em negar antc2 :
vinculantes, ainda que não satisfaçam a regra de reconhecimento das fontes
dotadas de autoridade. E, mesmo na sua segunda formulação interpretivista, -antc2 : «princípios podemfazer parte da convenção sobre as fontes»
a evidência básica tomada para o desacordo está no fato de que os juízes Já vimos na Seção 2.6 que a incorporação de valores morais aos critérios
justificam suas decisões, e se sentem vinculados a fazê-lo, com base nesses de validade enfrenta uma série de problemas. Precisa nos convencer de que essa
princípios (valores morais ou objetivos de políticas públicas), principalmente incorporação de valores naturalmente controversos não explodirá o universo
naqueles casos difíceis. de razões, nem frustrará a convenção e, por fim, que é compatível com a natu-
reza da autoridade. Desses obstáculos, o último parece o mais difícil. Afinal,
Importa agora olhar com cuidado as conclusões que DwoRKIN retira dessa
se a prática de seguir regras consistir em fazer aquilo que seria meritório fazer
evidência contra o positivismo: a) a tese das fontes sociais é insuficiente para
independentemente das razões oferecidas pelas regras, então essa não seria
explicar o conjunto de direito;; ou razões que os juízes consideram como legal- uma prática de seguir regras, mas os próprios valores reconhecidos.
mente vinculantes; b) a tese da discricionariedade está equivocada, pois em
casos não claros as escolhas não são arbitrárias, sendo antes fundamentadas Por outro lado, firmar o pé na discricionariedade sem dar conta da racio-
nesses princípios vinculantes; e) se a força vinculante dos princípios como nalidade na atividade de interpretação e do papel jogado pelos princípios
razão jurídica para a ação ou decisão não pode ser baseada na convenção como razões jurídicas parece um preço alto a pagar. A exclusão completa da
social sobre as fontes, então deve decorrer de uma valoração do mérito moral atividade de interpretação da teoria da validade também enfrenta problemas,
quando se assume a tese da objetividade forte das fontes e se verifica, como
de seus conteúdos.
fizemos acima, que tal objetividade não se confunde com sentido claro ou
O golpe ao positivismo e à própria pretensão de neutralidade está no instanciação fácil dos termos das regras dotadas de autoridade. Ademais,
consequente da conclusão e, que liga a identificação do que é direito a valora- deixar a interpretação do lado de fora empobrece demais o poder explicativo
ções morais. Desdobra-se, já na abordagem interpretivista, na tese de que essa da teoria e o deixa vulnerável ao ataque interpretivista. A carga colocada pelos
valoração moral determinante do conteúdo de decisões em casos difíceis é exclusivistas nas costas da tese da discricionariedade é muito pesada.
resultado de uma valoração do propósito que os juízes atribuem a sua própria Assim, aceito inteiramente as teses que compõem ante. Portanto, a única
atividade e ao direito como um todo. forma de impedir a derivação de consc é negar e por meio da negação da
A conclusão e é um condicional que tem como antecedente: relação de implicação entre seu antecedente e seu consequente:
120 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
121
-(ante-> canse): «princípios são vinculantes como razões jurídicas e Nos quadros da discussão entre antipositivismo vs. positivismo e entre
não fazem parte da convenção sobre as fontes, mas sua força vinculante pode positivismo inclusivista vs. exclusivista, MARMOR chega a considerar, para
não decorrer do mérito moral te seus conteúdos» rapidamente descartar, 79 a hipótese de inclusivismo lógico, ou seja, de que
Ou seja, admitir que os princípios podem ser razões jurídicas mesmo normas derivadas lógica ou moral-valorativamente seriam parte do ordena-
desprovidas de fonte (fora dos critérios da convenção) não implica necessa- mento. MARMoR fala nessa hipótese como teórica e que não teria sido seria-
riamente aceitar que tais princípios sejam razões jurídicas unicamente por seu mente assumida pelos inclusivistas. Sua refutação consiste em duas premissas:
mérito moral. Há um salto no argumento de DwoRKIN. O universo de possibili- a) que a existência de qualquer norma derivada implicaria a assunção de que o
dades para explicar a força vinculante de razões não é uma partição (exaustiva ordenamento é necessariamente coerente; b) a assunção de coerência é falsa.
e mutuamente excludente) entre ter fonte, de um lado, e ter mérito moral, do «A ideia básica é muito simples e parece estar de acordo com o fundamento
outro. Diante dessa partição, se DwoRKIN busca reduzir a convenção ao mérito convencional do Direito. Suponha que um sistema jurídico Si contém as normas
moral, a resposta inclusivista reduz o mérito moral das razões a um dos crité- Ni ... 0 • Suponha, ademais, que as normas Ni ... 0 implicam a verdade de outra
rios da fonte. Mas ser propriamente parte dos critérios da convenção sobre as norma N". Não poderíamos concluir, então, que N" também é juridicamente
fontes também não é a única forma de uma pauta de comportamento adquirir válida em Si? Mas o que significaria dizer que N" é derivada de N. ... ? Há
juridicidade. Esse seria o caso se fosse demonstrado que os princípios morais várias possibilidades aqui. Na mais restrita noção de derivaçãó; pen~aríamos
nisso apenas como implicação lógica (acompanhada, presume, de algumas
e de políticas públicas são completamente independentes da convenção sobre verdades sobre fatos). Na noção menos restrita, alguém poderia também pensar
as fontes. Todavia, essa independência foi apenas presumida ou tomada como em implicação moral-avaliativa. Se for o caso que normas N.... incorporam
óbvia com a partição entre «ter fonte» e «ter mérito moral» no pano de fundo. ou manifestam um princípio moral M e M requer moralme~te N então N
Resta ainda a possibilidade de que a autoridade jurídica dos princípios seja também é parte de Sr Essa última concepção nos leva muito pert~, é claro:
herdada da própria autoridade das regras baseadas nas fontes, pela relação tanto da visão de Dworkin, quanto do tipo de positivismo inclusivo que consi-
específica que guarda com o conteúdo dessas regras. deramos anteriormente.
Apesar das diferenças consideráveis entre essas duas noções de derivação,
É essa possibilidade que afirmo aqui: princípios morais e de políticas e talvez outras noções possíveis entre esses dois extremos, elas compartilham
públicas são jurídicos porque e na medida em que proporcionem uma justifi- uma assunção crucial: a saber, que o direito é necessariamente coerente.
cação coerente das normas jurídicas válidas (e não o contrário, i.e. tais regras ( ... )Portanto, a única questão que devemos perguntar agora é se faz sentido
são válidas por conta de seu mérito moral ou porque aderem a um conjunto de assumir, logicamente ou de alguma outra forma, que a lei seja necessariamente
valores morais). Ou seja, princípios jurídicos são razões jurídicas, pois estão coerente. Uma resposta negativa a essa questão é dificilmente refutável.»so
implícitos no conteúdo conceituai das regras quando tomadas como resultantes Concordo, mediante importantes qualificações, com a primeira premissa
de um ato racional em determinada construção interpretativa. São o resultado do argumento. Discordo da segunda, mas há uma grande diferença entre 1
de inferências abdutivas a partir do conteúdo dessas regras. forma como vemos o que é o ordenamento e a base objetiva de razões jurí-
Nesses termos, uma possível interpretação da tese acima pode identi- dicas provenientes do ordenamento. MARMOR considera a identificação das
ficá-la com a própria teoria do «direito como integridade». Assim, merece normas válidas uma atividade conceitualmente independente da interpretação.
algumas qualificações exploradas abaixo em confronto com objeções atuais Apontei na seção 3.5 que essa base objetiva pode ser já o resultado de determi-
ou hipotéticas. nada interpretação (que é indisputável frente a rivais teoricamente possíveis).
É curioso que uma refutação recente e competente do artigo de MARMOR,
3.8 A OBJEÇÃO DE MARMOR especificamente voltada para normas dedutivamente derivadas, feita por Pablo
NA VARRO e Jorge RODRIGUEZ, 81 tenha seguido o caminho inverso. Rejeitam
A discussão nos itens precedentes mostrou que a pergunta sobre a vali-
a primeira premissa, embora aceitem a segunda. Discutirei o argumento de
dade (no sentido de pertinência) de uma norma é mais precisa quando pergun-
MARMOR, paradoxalmente, a partir da defesa de sua primeira premissa. Embora
tamos: i) por seu papel como razão para a ação ou para a decisão; e ii) por
bastasse apenas atacar a premissa da qual discordo, explorar e aperfeiçoar a
sua origem. Se tem algum papel, então é razão que vincula, i.e. que não pode
ser ignorada. Sendo a origem dessa razão o conjunto de regras emanadas por 79• MARMOR, 2002: 123.
fonte dotada de autoridade jurídica, podemos chamá-la de uma razão jurídica 80
• MARMOR, 2002: 123 (lrad. livre).
e, nesse sentido, de uma norma pertinente ao direito. 81
• NAVARRO e RODRIGUEZ, 2010.
t )
122 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLLJSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
123 ()
(':
primeira premissa de MARMOR, ou uma versão generalizada dela, permitirá dar sentenças. Se uma valoração v atribuir valor verdadeiro a todos as sentenças
melhor sentido à ligação que faço entre derivação lógica na identificação do der, então dizemos que v é um modelo der. Podemos, assim, construir uma ()
direito e a própria atividade de interpretação. Essa ligação permitirá entender função mod que leva cada sentença a. ao conjunto de seus modelos (mod( a.)), (')
também porque, e em que sentido, discordo da segunda premissa. i.e. todas as valorações nas quais a. é iricerpretada como verdadeira. Esten-
dendo a noção para conjuntos de sentenças, temos mod(r) como a intersecção (}
3.8.1 Consequência lógica e redução ao absurdo entre os modelos das sentenças que o compõem (i.e. mod(f) ={rvnod(a.): f:
ae f) }). Com essas noções à mão, podemos definir o conceito de consequência
NA VARRO e RODRIGUEZ questionam três aspectos sobre a ligação entre semântica clássica como r~a se, e somente se, todos os modelos de r são f':·
derivação de normas e a consistência do ordenamento: (i) se ordenamentos também modelos de a., ou mod(f)gnod(a.). Vale dizer, todos os modelos (';
efetivamente consistentes conteriam normas derivadas; (ii) uma inconsistência que interpretam as premissas r como verdadeiras atribuem valor verdadeiro à (;
não impediria derivações, mas levaria à derivação de qualquer norma; (iii) sentença a. (note o exame de todas as possibilidades como parte do conceito
inconsistências entre normas geralmente se referem a conflitos parciais entre de inferência). e,
normas, que não são propriamente inconsistentes, nem impedem derivações.
Acredito que MARMOR tenha se referido ou transferido para o direito esse (
,, · 1 A primeira delas parece perder o ponto. Quando MARMOR fala na neces- tipo de relação quando fala de consistência necessária do ordenamento como
~!· f:
HI
~~ ~ i
sidade da consistência para a derivação, não assume que todos os ordena- pressuposto da existência de uma norma derivada. E isso tem sentido, quando
(.1
mentos são necessariamente inconsistentes, como sugerem e logo descartam pensamos no teste de validade da inferência por meio do argumento reductio
; 1
os argentinos, nem assume que a derivação estaria ligada à consistência de um ad absurdum. O argumento de reductio foi uma das grandes descobertas da ('
sistema particular. Não se trata de derivação que poderia ocorrer em ordens geometria grega como método de demonstração e alguns historiadores, nota-
consistentes e não naquelas inconsistentes. Trata-se da noção de consistência damente Frederigo. ENRIQUEs, colocam o seu emprego, por Zenão de Eléia, ()
como própria condição de validação da inferência, o que pressupõe a avaliação como o marco de nascimento da lógica. 82 Por esse argumento, prova-se uma (,
'. l
de todas as possibilidades. Essa noção está diretamente ligada à semântica da tese por meio da demonstração da inconsistência de sua negação. No caso da
lógica clássica. demonstração de que uma conclusão segue de premissas, assume-se a negação ()
Derivações lógicas podem ser definidas sintaticamente em um sistema da conclusão e verifica-se se essa é inconsistente com as premissas. Se for (:
inconsistente, isso significa que não há um contra-exemplo, i.e. não há atri-
pela aplicação de regras sintáticas de transformação (de sequências de (',
.;
símbolos em outras sequências de símbolos) sobre um conjunto de premissas buição de valores de verdade possível, na qual as premissas são verdadeiras e
na linguagem, independentemente de qualquer conceito como verdade, consis- a conclusão falsa. Logo, a inferência é válida. O argumento pode ser expresso (
no seguinte esquema: r~a.. se, e somente se, r,{-a.}~ (3, -(3 , o que é o
tência ou coerência. Porém, MARMOR, assim como KELSEN objetou a KLuo, (
mesmo que dizer que r u {-a.} é inconsistente. Do ponto de vista da semân-
parece aludir justamente ao significado desse processo sintático de inferência.
tica clássica, isso significa dizer que r u {-a.} não tem modelo (nenhuma {
Como seria possível interpretá-la ou construir modelo semântico que reflita
valoração pode atribuir verdade a todos elementos dessa união, dada sua (
aquilo que estamos dispostos a afirmar no discurso sobre as normas. Um
inconsistência), ou usando nossa função, mod{r}nmod(-a.)=0.
descuido de MARMOR está em falar em verdade e falsidade, o que os argentinos (l
questionam em termos da distinção entre normas e proposições normativas. Obviamente, o argumento não é interessante quando o conjunto de
M~ isso não me parece essencial. O que parece essencial é como validar premissas já for inconsistente. Assim, essa relação de inferência, de certa 4. )
semanticamente a inferência, o que, para MARMOR, pressupõe a consistência forma, conta com a consistência das premissas, pois a necessidade da conclusão {_'.
do conjunto de premissas. provém da inconsistência que a sua negação provocaria. Isso é assim, pois no
caso em que o conjunto de premissas for já. inconsistente, então a derivação é e_',
Na semântica da lógica clássica, a derivação de uma proposição a partir
trivial, i.e. se mod{r}=0, trivialmente, mod{r}rvnod(-a.)=0, de forma que l.'
de determinado conjunto de premissas é válida se, e somente se, a conclusão r=>a., para qualquer sentença a..
for verdadeira em todas as valorações possíveis em que as premissas recebem l)
valor verdadeiro. Interpretar, aqui, significa valorar, i.e. definir se uma sentença Aqui entramos na segunda consideração de NAVARRO e RooRIGUEZ, de
acordo com a qual, a inconsistência em vez de impedir a derivação, expio- (_ /
é verdadeira ou falsa. Uma valoração ou interpretação clássica (ou pelo menos
bivalorativa), portanto, separa o conjunto de sentenças de uma linguagem em l_.1
82
dois grupos: as verdadeiras e as falsas. Considere um conjunto r qualquer de · ENRIQUES, 1919; 1929.
(. '.·
fL;,
~
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 125
124

diria o conjunto de normas derivadas. Como visto, isso vale trivialmente nais sem trivialização. Isso pode não ser assim em outras lógicas deônticas
na lógica clássica e em suas extensões modais. Mas NA vARRO e RODRIGUEZ diádicas. 85 De novo, o argumento fica restrito a determinada lógica.
não consideram que essa propriedade não vale para outras lógicas, como a De fau, posso construir lógicas de proposições normativas que
classe de lógicas paraconsistentes (ver abaixo). Isso impõe que observemos a descrevem consistentemente inconsistências normativas, ou lógicas deôn-
semântica, ou como interpretamos normas derivadas, de uma perspectiva mais ticas paraconsistentes,86 nas quais uma inconsistência entre normas pode ser
geral e não restrita a uma lógica em particular (no caso, a clássica ou de uma representada de forma localizada, sem resultar na explosão ou trivialização do
extensão desta). sistema normativo (ou de sua descrição). O que quero ressaltar é que a lógica
Antes, vale examinar o último argumento usado por NAVARRO e RODRI- de proposições normativas já representa alguma seleção sobre quais tipos de
GUEZ para separar as noções de «consistência» e de «norma derivada». Apro- inferências são razoáveis na descrição de um sistema normativo e, dentre elas,
veitando o exemplo de Normative Systems, os autores destacam a tarefa de acertadamente não está o princípio ex falso quod libitur, que resultaria na
sistematização consistente em explicitar todas as soluções normativas para os trivialização (inferência de qualquer norma formulável) a partir da constatação
casos relevantes derivados das condições de aplicação indicadas na norma. de uma inconsistência normativa. Isso quem mostrou não foi a lógica. Antes,
Para simplificar o argumento, imagine um conjunto de normas p/Oq e r/0-q foi determinada compreensão das inferências admissíveis da int~rpretação de
(se p for o caso, então a ação q é obrigatória e ser for o caso então a ação q normas e descrição de seus desdobramentos. A lógica, no máximo, explicita
é proibida). Esse caso geraria, segundo a construção de Normative Systems, esses tipos de inferências que são intuitivamente aceitáveis nesse domínio,
quatro casos possíveis, l: pAr, 2: pA-r, 3: -pAr, 4: -pA-r. As soluções mas as inferências são aceitáveis e válidas nesse domínio independentemente
derivadas e explicitadas no sistema seriam 1: pAr!OqAO-q, 2: pA-r!Oq, 3: de serem representáveis por uma determinada formalização lógica. 87
-pArlO-q, 4: -pA-rl-. Assim, teríamos uma inconsistência no caso 1, uma Parece-me, porém, que MARMOR defende uma posição arraigada na sua
lacuna no caso 4 e soluções distintas para os casos 2 e 3. Argumentam, a partir concepção de teoria do direito e da definição de casos claros como aqueles que
daí, que a inconsistência é apenas localizada em um ou mais casos e isso não dispensam interpretação. A base objetiva independe de qualquer ato cognitivo
afeta as soluções normativas para os outros casos. do intérprete. Se a cognição do ordenamento derivar normas, então essa deri-
Porém, a inconsistência entre normas não é problema em Normative vação já provoca alterações neste e essas alterações têm a ver com a tentativa
Systems, quando se trata de uma lógica de proposições normativas, que de conceber o ordenamento como um todo consistente. E quando é feita a
descrevem de forma consistente a existência de inconsistências e lacunas ligação entre derivação e consistência, pesa a intuição que nos é trazida pelo
do sistema de normas. A lógica de proposições normativas, como notou argumento de redução ao absurdo: as normas derivadas estão implícitas no
ALCHOURRóN, 83 não necessariamente é isomorfa a uma lógica de normas. ordenamento, pois uma norma em sentido contrário seria com ele inconsis-
Todavia, deve-se notar que, em Normative Systems, de uma proposição norma- tente. Foi justamente essa a semântica ou quase-semântica construída por VoN
tiva p/Oq admite-se inferir pAr/Oq, e de r/OqAs, a proposição r/Oq. Essas WRIGHT para reinterpretar, «naturalmente», sistemas de lógica deôntica sem se
inferências não decorrem simplesmente de uma lógica descritiva das normas perturbar com paradoxos. 88
positivadas, mas já assumem alguma relação de derivação entre as próprias Essa ideia básica de VoN WRIGHT me parece acertada e bastante próxima
normas (foi isso o que levou KELSEN e VoN WRIGHT a falarem que a lógica da prática de interpretação com base no postulado de legislação racional. Porém
de proposições normativas refletiria a lógica de normas84). Ou, pelo menos, é ainda demasiado restritiva, pois vinculada a inferências dedutivas clássicas,
que é possível inferir a existência de algumas normas a partir da descrição da o que merece um esforço de generalização da relação entre consequência
exístência de outras normas. lógica e o método de redução ao absurdo, do ponto de vista semântico.
Mas na lógica de proposições normativas ali empregada, do esquema Seria possível objetar a relação proposta entre as noções de «conse-
a/ObAO-b não se deriva o esquema a/Oc, para e qualquer. Isso significa que quência lógica» e «redução ao absurdo» com o fato do esquema de redução ao
o esquema -(a/ObAO-b) não vale nessa lógica (admite-se o conflito entre o
consequente de normas condicionais para uma mesma condição). Ou seja, a
ss. Ver CHELLAS, 1980, e AQVIST, 1987 (cap. 5 e apêndice).
própria lógica deôntica subjacente já admite conflitos entre normas condicio- 86· Ver CONIGLIO, 2009, e DA COSTA; CARNIELLI, 1986.
87
· Ver DA COSTA, 1980. A concepção da relação entre a lógica e epistemologia que adoto aqui
83. ALCHOURRÓN, 1969. se aproxima daquela defendida por BRANDOM ( 1998).
88· Ver VON WRIGHT, 1983, e MARANHÃO, 2009.
84
· VON WRIGHT, 1963, e KasEN, 1983.
~-~
~p
126 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO ("')
127
absurdo não ser válido em uma série de lógicas, como as lógicas intuicionistas (",
forma que não valha necessariamente o princípio de não contradição -(a.1\-0.)
e as paraconsistentes. Ambas as lógicas concordam na sua parte positiva com
e edificar sobre ela a matemática. O ponto relevante da lógica paraconsistente
(',
a lógica clássica, mas interpretam de forma diversa a noção de negação, de
forma que a concepção de negação e inc.onsistência clássicas, na base da noção
está na emancipação do conceito de trivialização de uma lógica do conceito f".:
de inconsistência, antes tomados como equivalentes, em função da validade
de derivação aludida por MARMOR e VoN WRIGHT, não funcionariam aqui. 89
do princípio de explosão: O.l\-a~l3. A inconsistência, nessas lógicas deixa
f
As lógicas intuicionistas90 originaram-se de uma crítica dos matemáticos de indicar o limite de racionalidade, que passa a ser dado então pela noção de f'i
construtivistas à matemática clássica no sentido de depurá-la de seu realismo, trivialização. Um conjunto é inconsistente se dele posso derivar uma incon- (::'.
i.e. da ideia de que números, conceitos, e demonstrações matemáticas corres- sistência a.A-a., mas é trivial somente se o conjunto de suas consequências
ponderiam a objetos reais. Essa convicção traz para a matemática clássica uma lógicas for o conjunto de todas as sentenças bem formadas na linguagem.
(1
noção de verdade como correspondência, o que tem implicação imediata para
É possível examinar propriedades das lógicas intuicionistas e paracon-
f,
a noção de negação: ou o objeto existe, ou não existe, portanto a afirmação
• i
sobre sua existência é verdadeira, ou falsa, tertium non datur. Isso significa sistentes, de um ponto de vista abstrato, a partir das propriedades decorrentes
de sistemas lógicos nos quais não valem, respectivamente, o princípio do
<··
• 1 que uma prova de um objeto ou relação matemática a. pode ser feita ~ela (
.! demonstração de que sua negação não pode existir: se for falso que o obJeto terceiro excluído e de não contradição (ou ambos, nas chamadas lógicas
paranormais). DA CosTA e LoPARIC mostraram que essas lógicas, assim como {
não existe, então ele existe. É isso, aliás, que sustenta o método de redução ao
absurdo. qualquer lógica, possuem uma semântica bivalorativa, por meio do método (
de valorações. 92 A chave do método está na noção de trivialização, que toma
Para os construtivistas, porém, tal assunção não passaria de misticismo e o papel de inconsistência na lógica clássica. Com esse conceito, pode-se
(
o único método de prova admissível para a. seria a prova direta, construída, de resgatar o argumento de redução ao absurdo em lógicas paraconsistentes e (\
a.. A prova de que a. é falso teria que ser uma prova direta de -a.. Isso muda intuicionistas, por meio de alguma tradução sintática, definindo uma noção
completamente a noção de negação. Por exemplo, o esquema a.v-a., válido na {
mais forte de negação. Por exemplo, no cálculo C 1 de DA CosTA, define-se
lógica clássica, não é válido aqui, pois pode não haver uma prova direta de a., {)
a negação forte como -,a.=d,-a.1\-(a.l\-a.), ·e em lógicas intuicionis~s, por
nem uma prova de -a.. Também não vale a ·equivalência entre uma sentença
exemplo, pode funcionar -,a.=a.~-a. ou -,a.=dr-a.l\(a.v-a.)). A negaçao forte (.·
e sua dupla negação. Portanto a redução ao absurdo cai, persistindo somente
permite introjetar a negação clássica no cálculo e pode ser pensada, intuitiva-
uma versão mais fraca: r.~ 13, -13 se, e somente se, r=>-a.. ('
mente, como levando de uma fórmula a seu «oposto». Com a negação forte,
As lógicas paraconsistentes91 tiveram por motivação original funda- a relação de consequência lógica de uma sentença a partir de um conjunto (
mentar a teoria dos conjuntos e a aritmética por meio da lógica, sem que a pode ser demonstrada pela trivialização desse conjunto com a negação forte
inconsistência gerada pelo paradoxo de RussELL fosse um problema. Até então,
{.
daquela sentença.
as soluções faziam restrições à lógica subjacente para evitar a auto-referência, {
Mas mesmo para lógicas nas quais não se encontre uma tradução que
como a teoria dos tipos de RussELL, ou aos axiomas da teoria dos conjuntos.
DA CosTA propôs então algo, à época, inusitado: pode-se mudar a lógica de tal permita nela inserir uma negação clássica e nas quais não seja possível recons- l
truir a redução ao absurdo na sua linguagem objeto, o argumento de redução (:
ao absurdo continua a ser importante para a conceituação de consequência
s9. A abordagem que farei aqui é bem suscinta e foca _nas l~gicas paraconsistentes e in!'1ici_?-
nistas dentre as não clássicas, pois ambas desafiam, mclus1ve como parte de sua motrvaçao lógica. Persiste a mesma ideia de que a validação de uma inferência dá-se i~
filosófica, o método de redução ao absurdo, que tomo como intuição central no conceito de pela comprovação de que não há um contra-modelo para as premissas e a ('
consequência lógica do ponto de vista semântico. Para uma introdução completa e formalmente conclusão. Trata-se agora do emprego do argumento por absurdo na metalin-
competente sobre lógicas não clássicas ver P1uEST (2008). guagem em que se constrói a semântica do cálculo. Isso pode ser mostrado a

90. Para uma introdução ao intuicionismo, ver HAACK (1974). Para uma abordagem completa
das relações entre a lógica intuicionista matemática e a filosofia, o locus classicus é DuMMET partir da abstração proporcionada pela teoria das valorações. 4. '
(1977). . . . t)
91. As lógicas paraconsistentes podem ser examinadas de um ponto de vista mais gera}, como
92. Ver (LoPARIC; DA COSTA, 1984). Na verdade, a tese central daquele artig?, de que
lógicas que introduzem o conceito metalingu~stico de inconsistência na lingu~gem o~Jeto ~or qualquer lógica pode ter uma semântica bivalorativa_, ~estringe-se a l_ógicas que sat1s~~m as (_'.
meio de um operador lógico. Desse ponto de vista podem ser chamadas de «lógicas de mcons1s- propriedades estruturais de TARSKI, a saber, monotomc1dade, compacidade, autodedut1b1hdade
tência formal». Para uma apresentação e taxonomia dessas lógicas ver (CARNIELLI; MARCOS, e idempotência. Também se deve notar que, embora bivalorativa, a semântica pode não ser
l:
2007). veri tativo-funcional.
j
) JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO


128 INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 129

) Retomemos a função mod. Ela leva sentenças ao conjunto de seus negação forte não puder ser satisfeita no modelo com aquele conjunto. Em
~odeios. ~a versão clássica esses seriam as valorações nas quais a sentença outras palavras, mais intuitivas, tomando «negação forte» como aquela noção
) e verdade1r~. Agora podemos abandonar a noção de «verdade» e pensar que
de «oposto» e «poder ser satisfeito no modelo», que se identifica com «não levar
cada valoração (ou inte~retação ou modelo) separa o conjunto das sentenças
J entre aquelas que se aceita e aquelas que não se aceita. A função mod leva a
à trivialização», como «poder dar um sentido racional», temos: uma conclusão
) sentença às interpretações ou modelos nas quais ela é aceita ou «satisfeita». é necessária quando não conseguimos dar sentido racional ao que seria o seu
Agora, podemos pensar em uma noção metalinguística de negação, que oposto em conjunto com as premissas. Algo muito próximo dessa noção foi
)
ch~maremos de contra-modelos. Escrevemos mod(a) para designar o conjunto a chave para a concepção de consequência lógica do segundo WtTTGENSTEIN,
) de mterpretações nas quais a não é satisfeita.93 para quem a impressão de necessidade da conclusão decorre do fato de que o

,
} O problema com a trivialização está na perda de poder informativo da
teori~. Dada determinada ló~ica subjacente, o conjunto trivial deixa de separar
falante competente daquela linguagem «não tem um conceito claro de como
seriam as coisas se fosse ao contrário. E isso é muito importante». 94

•, o umyerso de sentenças aceitáveis, das não aceitáveis: se algo for aceito, tudo
passa a ser aceito. Portanto, a única restrição a fazer às interpretações ou
modelos é que esses não sejam triviais. Vale dizer, para todo modelo m, existe
uma sentença a tal que memod(a.). Nesses termos abstratos, vale a mesma
3.8.2 Normas derivadas pressupõem coerência do ordenamento?
Vimos que a noção generalizada de consequência lógica gua'rda forte
) relação com o argumento de redução ao absurdo. Isso se encaixa com a
relação r::::>a se, e somente se, mod(r)ç;mod( a), o que é o mesmo que dizer
) intuição de WI1TGENSTEIN, segundo a qual, a ideia de necessidade de uma
que "!º?fr}rvnod(<:-)=0, em uma redução ao absurdo na metalinguagem.
inferência está ligada à nossa percepção, como participantes de uma comu-
) Esse ultimo passo diz que a segue de r se não há modelo de r que seja contra-
nidade linguística, de que se não fosse esse o caso, haveria um sem-sentido
model_o de a. Como na lógica clássica tem-se que mod(-a)=mod(a), podemos
) enun~1ar a relação de consequência lógica r::::>a como mod{r}nmod(-a.)=0, ou uma incapacidade de compreensão. É a falta de habilidade em dar sentido
ou seja, ru{-a} não tem modelos, ou não podem ser satisfeitos em nenhuma racional ao oposto da conclusão que a valida, dada a aceitação das premissas.
}
interpretação possível, exatamente porque são triviais. E a relação semântica Vale agora perguntar que tipo de redução ao absurdo pode validar ou trazer
) de co~seq~êncja para~onsistente, p~acompleta ou de qualquer lógica cuja a percepção de necessidade para inferências jurídicas. A primeira pergunta,


)
?ega~ao seja nao clássica, pode descnta, naquelas lógicas em que for possível
msenr, por tradução, a negação forte, por mod{r}nmod(-*a.)=0 (onde-* é
a negação forte).
naturalmente, é: a contradição entre normas é um limite racional?
Com relação especificamente ao princípio de não contradição,
WITTGENSTEIN defendeu que esse somente pode ser aceito se a contradição
) Revela-se, assim que o método de redução ao absurdo está intimamente não tiver qualquer função no jogo de linguagem em análise. 95 Ele joga
t ligado à noção de consequência semântica, seja pelo uso da negação clássica com hipóteses nas quais uma contradição pode ser útil, e.g. ditar normas
na metalinguagem, seja pelo seu uso na linguagem objeto do cálculo. Na inconsistentes quando o propósito de legislador for produzir perplexidade ou
t concepção clássica, o limite de racionalidade de uma teoria está na consis- garantir punição. 96 Assim, a assunção da consistência como uma condição de
) tência. A inconsistência leva à trivialização. Mas o problema efetivo da perda derivações normativas dependeria da compreensão do tipo de discurso que se
) ~e poder explicativo está na trivialização e a semântica pode captá-la pela deseja investigar.
1de1a de que conjuntos ou teorias triviais são aquelas que não têm modelo, i.e.
} não podem ser racionalmente interpretadas como algo com sentido naquela Na Seção 3.5 vimos que mesmo casos tomados como fáceis, determi-
) estrutura semântica. nados, podem ser o resultado de interpretação a partir de conteúdos incon-
sistentes no ordenamento, tomado como material pré-interpretativo. Mas é
) Usamos essa ideia para generalizar o conceito de consequência lógica.
frequente a situação inversa. O sentido de elementos do ordenamento que,
Olhando para aquelas lógicas em que há uma sentença trivializadora (com base
) preliminarmente, podem ser considerados claros e consistentes, podem se
na negação-forte), a redução ao absurdo basicamente diz que uma conclusão
é uma consequência lógica de um conjunto de premissas se, e somente se, sua revelar inconsistentes em determinada instanciação.
)
) 93
94 · WmGENSTEIN, 1964: 29 (cap. III).
Esse mecanismo para inserir a negação na metalinguagem da semântica de valorações me
·
95 · WmoENSTEIN, 1976: 183-184.
) foi sugerido por Jean Yves BÉZIAu. 96· WmoENSTEIN, 1964: 57 (cap. III).
)
130 JULI ANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANH Ã O INCLUS IV ISMO LÓG ICO-JURÍDICO
13 l

Tome-se, por exemplo , o art. 15 1 do Código de Águas (Decreto 24.643 Situações como essa fo ram chamadas por H1LPI NEN de conflitos norma-
de 1934) e o art. 11 da Lei de Contratos Admin istrativos (Lei 8.987/1995 ). ti vos escondidos (hidde11 normative conjlicts). 98 Normas aparentemente
consistentes podem con Aitar e m situações específicas de aplicação e m que
Código de Águas, art. 151. «Para executar os trabalhos definidos no
estão presentes as cJndições de ambas as normas e sua execução, ao mesmo
contrato, bem como, para explorar a concessão, o concessionário terá, alé m
tempo, pode ser, de fato, inviável. Aqui , os sentidos claros das normas seriam,
das regalias e favores constantes das leis fi scais e especiais, os seguin tes
aparentemente, consistentes. Mas ambas poderiam ser inconsistentes em
direitos:
determinadas situações e não há determinação sobre o sistema normati vo
c) estabelecer as servidões permanente ou te mporárias exigidas para as prevalecente. Não há um sistema normativo «indisputável» como no caso do
obras hidráulica e para o transporte e distribuição da energia e lé trica;» conflito entre arts. 124 e 128 do Código Penal.
Lei de Contratos Administrativos, art. 11. «No atendimento às peculiari- Portanto, os ordenamentos contemporâneos em sociedades minima-
dades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da mente complexas são muito provavelmente inconsistentes, não só de uma
concessionária, no edital de licitação, a possibi lidade de outras fontes prove- perspectiva social (pois refletem escolhas das autoridades de diferentes insti-
nientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos tuições, e m tempos diferentes, a partir de uma pluralidade de valores morais
associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade e propósitos políticos), mas também de uma perspectiva lógica (é dificílimo
das tarifas, observado o disposto no art. 17 desta Lei.» ou praticamente impossível que legisladores concretos possam processar todo
o conjunto de normas e combinações possíveis entre suas condições de apli-
j· As duas normas acima são inconsistentes? Aparentemente não há qual-
cação, para di ferentes sujeitos, de forma a evitar inconsistência em cada uma
quer inconsistência: uma regra autoriza o concessionário de energia elétrica a
das possíveis combinações).
estabelecer servidões para transporte de energia; a outra autoriza o estabeleci-
mento de concessões com a permissão de explorar receitas complementares. Mas isso apenas significa que o ordenamento jurídico , ou o material pré-
Mas as duas normas foram palco de grande disputa e ntre concessionárias interpretativo, é inconsistente. No discurso descritivo sobre o conteúdo desse
de energia elétrica e concessionárias estaduais e federais de rodovias sobre ordenamento jurídico, não haveria proble mas ou sem-sentido ao se apontar
a possibilidade de cobrança pelo uso das margens de rodovias. Com base tais inconsistê ncias. Tal descrição, porém, não pode ser tomada como a base
no art. 11, as concessionárias de rodovias afirmavam seu direito de cobrar objetiva sobre a qual repousa o positi vismo, dada a existência de casos fáceis
pela instalação dos postes para transporte de energia. Já as concessionárias (determinados) que são construções a partir desse material.
de energia elétrica afirmavam seu direito de utili zar servidão gratuita, como O discurso descritivo do material de base, e de possíveis reformulações
direito concedido pelo art. 151 do Código de Águas. deste, pode preencher apenas papel intermediário para a dogmática jurídica, na
As duas alternati vas de interpretação, a partir de cada a1tigo, dependem construção do sistema normativo (ou dos sistemas normativos concorrentes,
para os casos subdeterminados). Essas premissas no processo de reconstrução,
de complexa reconstrução, que envolverá escolhas sobre atribuição de sentido
aliadas ao objetivo de cumprir o ordenamento, indicam, ao final, a regra técnica
(o direito de servidão implica gratuidade?; a permissão de cobrança somente
para aquela ação nas circunstâncias determinadas em que se colocou a questão
vale quando não há proibição ou é direito?) sobre a pertinência da norma ao
sobre como agir ou decidir.
sistema resu ltante (o art. 151 do Código de Águas teria sido recepcionado
pela Constituição de 1988?; a sua recepção teria sido como lei complementar O conjunto de regras téc nicas relativas à ação, no caso questionado, bem
e, portanto, o Código seria lex superior com relação à Lei de Colllratos como nos casos correlatos (em que não estão presentes alguns dos fatores
Administrativos?) para que se conclua sobre a sua inconsistência. 97 Veja que descritos como c ircunstâncias da ação), consiste no (ou num) sistema jurí-
o processo de reconstrução interpretativa é o mesmo do caso de aborto acima dico para o tipo de conflito, pressuposto como racional. E um dos parâmetros
discutido. Apenas as alternativas interpretativas aqui são ambas aparentemen te centrais desse pressuposto ele racionalidade, como vimos, é o fato de que as
de fensáveis. normas são promulgadas como meios para se atingir determinados objetivos
e sati sfazer determinadas pautas morais. Requisito mínimo, portanto, dentro
97
·Ver MARQU ES NETO (2007) e F ERRAZ J UNIOR e M AR ANH ÃO (2007) para o exame das interpre-
tações antagônicas sobre o tema. 98· 1-flLP INEN, 198 1.
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 133
132

desse padrão é a consistência, pois não faria sentido ditar normas que não fechados de regras técnicas, i.e. conjuntos que incluem suas consequências
pudessem ser cumpridas. lógicas, com as quais o intérprete está comprometido. Cada alternativa de inter-
Apontar regras técnicas inconsistentes seria quebrar o pressuposto de pretação pode envolver uma dinâmica de revisões do ordenamento original. E
racionalidade do legislador. Mais do que isso, no discurso de regras técnicas, isso seria tudo o que poderíamos dizer sobre a interpretação/identificação do
se o jurista determinar que, para uma mesma circynstância, seria preciso e direito se essas escolhas fossem arbitrárias. Ou seja, desse ponto em diante,
não seria preciso fazer uma ação para cumprir o ordenamento, então frustrará poderíamos apenas falar da discricionariedade dos intérpretes autênticos em
sua função de guiar a conduta por meio de razões jurídicas. Tais proposições realizar validamente essas escolhas ao criarem novas normas.
sobre o que é preciso fazer não podem ser ambas verdadeiras, pois seriam A grande conquista metodológica de Normative Systems99 está em abrir
contraditórias com o postulado de que as normas interpretadas são decorrentes a possibilidade de se falar da interpretação jurídica, com o rigor que a lógica
de escolhas racionais e unívocas. Diferentemente da lógica de proposições contemporânea oferece, sem saber de que ordenamento ou do conteúdo de qual
normativas, que não é isomorfa à lógica deôntica de prescrições, a lógica de norma estamos falando. Analisam-se tão somente quais os conceitos principais
regras técnicas incorpora as propriedades da lógica deôntica, e pode ser bem na construção de um sistema normativo - tais como casos relevantes, norma,
descrita como redução dessa a modalidades aléticas, i.e. modalidades sobre o soluções deônticas, consistência, completude - a partir das consequências
que é necessário ou não fazer. lógicas dedutivas de um conjunto de normas. Assume-se apenas que a norma
Portanto, seja qual for a base sobre a qual o discurso de regras técnicas jurídica possui estrutura condicional e define o status deôntico de ações (obri-
faz seus apontamentos, esse discurso necessariamente incorpora o padrão de gatório, permitido e proibido) em condições determinadas. Basta isso para
consistência. Os casos de subdeterminação, em particular, de inconsistência, desenvolver todo o universo conceituai de Normative Systems.
gerariam não um sistema normativo inconsistente, mas sistemas concorrentes, Note-se que os exemplos de aplicação dos conceitos a casos práticos,
consistentes, cada um com soluções opostas para a mesma ação no mesmo utilizados por ALcHOURRóN e BULYGIN naquela obra, não falam do ordena-
caso. mento em geral, mas de seleções de normas e da atividade de sistematização
Talvez uma forma de emprego do discurso descritivo poderia voltar-se à dessas normas selecionadas. Ambos estão bastante conscientes de que a
descrição das soluções dadas por aqueles sistemas normativos indisputáveis, atividade interpretativa é dinâmica e realiza intervenções no material interpre-
ou seja, aqueles que não encontram sistema normativo alternativo baseado em tàdo, revisando o sistema, eliminando inconsistências ou integrando lacunas.
argumento minimamente plausível e que formam o conjunto de casos fáceis. Mas uma condição para tanto está justamente na possibilidade de identificar
Tal discurso, porém, seria possível na medida em que descrevesse as regras quando ocorrem as inconsistências e quando há lacunas no sistema normativo
técnicas e não diretamente o ordenamento, a não ser que se suponha ordena- dado, que pode estar no início, no desenvolvimento ou no fim de um processo
mento ideal capaz de corresponder exatamente a esse núcleo de sentido. de interpretação. Se há integração ou revisão, o sistema original foi alterado,
Assim, a resposta final à objeção de MARMOR é a seguinte: as normas tema que passou a ser objeto de investigação lógica por ALcHOURRóN apenas
derivadas do sistema normativo resultante de determinada interpretação do mais tarde. 100
ordenamento pressupõem a consistência desse sistema reconstruído e esse Por exemplo, com relação ao que diz o direito no caso de aborto, posso
sistema normativo, se pretende ser interpretação justificada do ordenamento apresentar dois sistemas normativos como parte do processo de evolução
(dentre outras possíveis concorrentes) necessariamente será consistente. Daí da interpretação. O primeiro, dado por K 1={124,128} e o segundo por
porque as inferências dedutivas podem estar baseadas em reduções ao absurdo K• = { 124•, 128}. Considere os fatores «realizado por médico» (m ), «gravidez
que levem a inconsistências, o que, aliás, é uma forma frequente de argumen- resultante de estupro» (e) e «risco de vida da mãe» (r), que são aqueles desta-
tação jurídica. cados nas normas como relevantes, a ação de abortar (a) e O, P os opera-
dores deônticos, respectivamente, de obrigação e permissão. Temos então as
3.9 NORMAS DEDUTIVAMENTE DERIVADAS SÃO RAZÕES seguintes formalizações para as normas 124, 124• e 128:
JURÍDICAS
Nesse contexto local de identificação do direito com o propósito prag-
mático de orientar a conduta do interlocutor para que se conforme ao direito, 99· ALCHOURRÓN; BULYGIN, 1993.
é possível conceber os sistemas normativos como conjuntos logicamente IOO. ALcHOURRÓN; MAKINSON, 1981.
134 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 135 ,r. ..

124= O-a Se assumirmos, como parece razoável, que na descrição do que é direito,
não estamos descrevendo formulações normativas, mas o conteúdo de deter- (:.
124*= -(m/\(evr))/0-a
minadas normas, então há um mínimo de inteligibilidade desse conteúdo. A ~;
128= m/\(evr)/Pa lógica formal permite abordar esse mínimo de inteligibilidade, de qualquer
A forma lógica das normas 124, 124* e 128, tal como estipulada em suas conteúdo, ao explicitar o significado de sua forma lógica, ou dos conectivos f
letras proposicionais e conectivos (o que já envolveu alguma interpretação), lógicos empregados. Tais conectivos lógicos fazem parte do conteúdo concei- t'·
permite desdobrar, por inferência dedutiva (em particular, pela forma normal tuai das normas e seu significado não é diverso das inferências que os falantes <(_;
disjuntiva do antecedente das normas 101 ), a partir daqueles significados fixados, competentes daquela comunidade linguística estão dispostos a fazer a partir
todos as soluções para os casos possíveis relevantes para essa regulação. deles. 102 Dessa forma, normas dedutivamente derivadas explicitam o conteúdo f;
conceituai das normas (interpretadas) dotadas de autoridade. Conforme argu- (;
M E r 124 128 124* mentam NAVARRO e RODRIGUEZ, seria praticamente impossível para o direito {-
cumprir o seu papel de guiar a conduta por normas gerais prévias se as normas
1. + + + O-a Pa
derivadas fossem descartadas. Tais normas são decorrências necessárias da (
2. + + - O-a Pa própria compreensão do direito como dotado de estrutura sistemática. 103
3. O-a Pa ( •'
+ - +
Assim, por exemplo, como poderia ser guiado o comportamento de João (,
4. + - - O-a O-a no sentido de pagar impostos, por meio da norma geral «é obrigatório a todos
5. - + + O-a O-a pagarem impostos» se não fosse pela norma individual logicamente derivada, ('
6. - + - O-a O-a que explicita o significado de «todos»? Se João tentasse justificar juridica- (_
7. - - + O-a O-a mente sua ação de não pagar impostos, diríamos que ele entendeu a norma
{
8. - - - O-a 0-a geral? É claro que não. Da mesma forma, se alguém for comandado a abrir
a porta e a janela e, depois de abrir a porta, deixando a janela fechada, disser ('
Como se observa, o sistema K 1={ 124,128} é inconsistente nos casos 1- que cumpriu o comando, diremos que não entendeu o comando original (em
('
3. Identifica-se a inconsistência derivando-se de O-a, por fortalecimento do particular não entendeu o significado do conectivo «e»).
antecedente, a norma (mi\( evr))/0-a (intuitivamente, se é proibido o aborto, Embora a quantidade de possíveis combinações de proposições e
e(
é proibido em qualquer circunstância, inclusive quando realizado por médico, conectivos seja potencialmente infinita, o que resultaria numa infinidade de (
quando há risco de vida ou quando a gestação é decorrente de estupro). Já o conteúdos normativos, o número de conectivos lógicos a partir dos quais essas {
sistema K*={ 124*,128} é consistente e completo, o que também se verifica a combinações são geradas é limitado, o que permite o estudo específico sobre
partir das normas derivadas para cada um dos 8 casos possíveis identificados, a lógica dos sistemas normativos (consequências lógicas de sistemas norma- (
que não estão explicitadas no conteúdo formal de seus enunciados. tivos), que tratará dos aspectos mais gerais do conteúdo conceituai das normas t
e, assim, de pequena, mas crucial, parcela da atividade de interpretação.
Portanto, qualquer que seja o resultado (sistema normativo) da interpre- ((
tação e seja qual for o estágio do processo de interpretação, a própria noção
de completude e inconsistência somente é possível com a consideração das
3.10 PRINCÍPIOS DERIVADOS POR ABDUÇÃO SÃO RAZÕES l
JURÍDICAS (.
.j
normas derivadas. E no momento em que, como resultado de uma possível
interpretação, dado sistema normativo é apresentado com base no ordena- Do que foi dito até aqui, podemos assumir que as regras técnicas para fl ;
mento jurídico, então não só as normas originais, como também as normas cumprimento do ordenamento, sejam elas regras da base ou derivadas deduti- (. '
derivadas oferecerão razões para a ação nas diversas condições relevantes em vamente da base, oferecem razões jurídicas para a ação ou decisão, ainda que
que a ação em questão pode ser realizada. não satisfaçam qualquer critério estabelecido pela regra de reconhecimento do l
ordenamento jurídico. Essas razões jurídicas são determinadas para aqueles
l
101. A forma normal disjuntiva do antecedente da norma 128 mA(evr) é dada por (mAeAr)v(m
1\-e/\r)v(ml\el\-r) que representa as alternativas (disjunção) dos casos 1-3, aqueles nos quais a 102
· GAMUT, 1991 (v. l, cap.1).
ll
conjunção dos elementos torna o enunciado no antecedente da norma 128 verdadeiro. º · NAVARRO; RODRIGUEZ, 20IO.
1 3 í .-
l ·
(
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 137
136

casos fáceis e formam a base objetiva pressuposta na tese das fontes sociais. tivas, capazes de captar a ratio legis, i.e. as razões pelas quais foi promulgada/
Simplesmente decorrem ou estão implícitas no conteúdo das normas jurídicas revogada uma norma com determinado conteúdo ou a ratio decidendi de um
que satisfazem a regra de reconhecimento, seja qual for esse conteúdo. Até conjunto de precedentes, no caso da common law.
aqui, o único «mérito» das razões dedutivamente derivadas é ter um conteúdo RAz parece bem consciente disso e faz questão de separar o significado
que é consequência dedutiva do conteúdo da interpretação indisputável do da norma das suas razões de fundo, atribuindo-lhes status distinto. Tanto é
ordenamento, o que obviamente não implica qualquer valoração moral. Com assim que fala apenas em existência das normas implícitas e não em validade.
essa construção, a base objetiva, ou o dado «externo» sobre o qual se edifica Preocupa-se, ainda, em demarcar que, com isso, permanece em um modelo
o positivismo, é o fechamento lógico daqueles sistemas normativos indisputá-
comunicativo e não adere a um modelo de coerência, no qual a identificação da
veis que descrevem o que se deve fazer para cumprir o conjunto de decisões
razão da norma deveria ser compatível com uma moralidade política completa
políticas dotadas de autoridade (ou a interseção dos sistemas defensáveis
e consistente.
logicamente fechados).
A preocupação de RAz em não sair do modelo comunicativo está na
Aliás, essa «existência» das normas derivadas no ordenamento é reco-
nhecida por RAz, que a vê, inclusive, como decorrência natural das teses do sua crença na proximidade do modelo de coerência com.o moralismo. Sobre
próprio HART. O mais interessante é que RAz estende a noção de regras implí- essa relação entre coerência e moralismo falarei na Seção 3.12. ·Antes, cabe
citas das deduções do conteúdo para implicaturas, no sentido de GRicE: apontar que implicaturas, no âmbito da interpretação em geral e, em parti-
cular, na interpretação jurídica, estão ligadas não só ao emprego de máximas
«Ao se referir ao direito implícito tem-se em mente não somente aqueles
de racionalidade, como também a inferências abdutivas e escolhas entre as
pré-requisitos de inteligibilidade mas o fato familiar de que o direito diz mais
do que está explicitamente enunciado, de que há mais em seu conteúdo do que melhores hipóteses concorrentes de princípios capazes de explicar o conteúdo
aquilo explicitamente formulado em suas fontes, como estatutos ou decisões do material normativo.
judiciais. O limite entre uso de regras implícitas e criação de novo direito quando
Essa ideia deve ser auto-evidente para qualquer um que conceba o Direito se trata da ratio legis ou ratio deeidendi não é fácil de traçar e, ao analisar
como a criação de ações humanas e particularmente como emergente de atos
comunicativos com a promulgação de leis ou a prolação de julgamentos nas
as valorações na atividade de interpretação e adjudicação, RAz reconhece a
cortes. É uma característica universal da comunicação humana que o que foi dificuldade e a existência de certo «contínuo» entre identificação de regras
dito ou comunicado é mais do que aquilo explicitamente enunciado e inclui implícitas (aplicação) e exercício de discricionariedade (criação) na prática de
aquilo que está implícito. Note que essa afirmação mesma assume válida a adjudicação, ainda que acredite ser possível separá-las conceitualmente. tos
distinção entre o que é enunciado e o que é implicado. Ela emprega a distinção
para dizer que ao usar a lingual, nos dizemos por implicação mais do que está RAz busca oferecer exemplo de implicatura sobre a vontade do legis-
explicitamente afirmado.» 104 lador dada pela dinâmica de legislação, que independa de qualquer valoração
sobre contexto ou intenção particular do legislador. Suponha que uma norma
Enquanto lidávamos com derivações dedutivas, limitava-nos ao campo
válida proíbe determinada ação. Em seguida, há um ato legislativo que revoga
de desdobramento do que está implícito no que foi dito. Entender os conectivos
essa proibição. Isso significa que a ação em questão passa a ser permitida?
lógicos significa entender as inferências que estamos dispostos a fazer a partir
Estaria isso implícito em qualquer sucessão de atos legislativos? RAz afirma
deles e, consequentemente, a partir das sentenças que compõem. Quando RAz
que sim. 106 Mais, afirma que essa seria uma hipótese de promulgação de
entra no campo pragmático das implicaturas de GRICE, entra naquilo que se
quis dizer e abre, assim, novo espaço para a atividade de interpretação na «permissão explícita».
identificação do que é direito ou do que «existe» como razão jurídica. O campo A tese pode indicar caminho para construir um princípio interpretativo
para a derivação das implicaturas inclui não só uma habilidade linguística geral, em termos de implicatura (não se trata aqui de dedução, obviamente,
(compreender a língua), mas também informações de fundo para compreender pois não há conteúdo na norma de revogação ). 107 Afinal, qual seria a razão
o ato de promulgação da norma, além de regras técnicas ou convenções sobre a para revogar a norma proibitiva que não tornar a conduta permitida?
interpretação no sistema jurídico em questão. E esse espaço para interpretação
refere-se não só a inferências dedutivas como também a inferências amplia- ios. Ver RAZ. 2002: 180-209.
106
· RAZ, 2002: 67.
104
· RAZ, 1986: 1106. º
1 7· Sobre esse aspecto ver ALCHOURRÓN e BuLYGIN (1991).
138 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSI V ISMO LÓGICO-JUR ÍDICO 139

Mas o bserve um caso no q ual a questão era a obrigação dos bancos prati - evidências rerutadoras dessa hi pótese explicati va podem surgir (as implica-
carem a correção monetária, segundo determinado índice. Prime iramente turas, ass im como qualquer rac iocínio ampliati vo, são derrotáveis). Consi-
havia uma norma N 1 ~brigando os bancos a procede r à correção mo netária da~ dere o utro exemplo de ordenamento relati vo à veiculação de propaganda de
poupanças pelo IPC (índice Geral de Preços ao Consumidor). Em seguida, foi . cigarros, contendo norma N 1 segundo a qual «é proibido veicular pro paganda
promulgada a regra N2 estabelecendo a obrigação dos bancos procederem à de c igarros no rádio e na T V entre as 8h e 20h». Conclui-se, a contrario, que a
correção monetária das poupanças pe lo BTN (Bô nus do Tesouro Nacio nal). propaganda de c igarros no rádio e na T V é permitida entre 20h e 8h. Suponha
Posteri ormente, a no rma N2 foi revo gada (na verdade, foi pro mulgada uma e ntão que N l é revogada por N2. A propaganda de cigarros no rádio e na
norma regulando as cadernetas de poupança sem estabe lecer índice de T V passou a ser permitida em qualquer horário? A resposta seria positiva se
correção). Isso significa que passou a ser explic itamente perm itido aos ba ncos usarmos a implicatura de R Az de revogação de proibição. Mas e se N l fosse
não procederem à correção monetári a? formulada como «é permitido veicular propaganda de cigarros no rádio e na
TV entre 20h e 8h»? T rata-se da mesma norma em termos de suas conse-
A rigor, sim. Po rém, ao se discutir uma implicatura há uma seleção de quências, apenas com formulação in versa. Po rém, o efeito de N2 agora seri a
hipóteses sobre a melhor ou ma is racio nal atribuição de sentido ao locuto r. Pelo a proibição da propaganda em qualquer horári o. Afinal, o que o legislador
princípio interpretati vo endossado po r R Az como implicatu ra geral evidente, pretendeu com N2? A resposta dependerá da reunião de mais evi.qências sobre
a sucessão de atos legis lati vos apontaria para a e liminação da obrigatoriedade o ordenamento ou sobre o contexto de promulgação. Por exemplo, se houver
dos bancos e m proceder à correção. Mas na discussão que se travou de fato, norma constitucio nal prevendo a permissão geral da propaganda a ser restrita
a ideia de que se pudesse concluir por uma po upança sem correção foi usada por lei e m alguns casos, entendemos que N2 implica permissão. Mas se a
por um dos lados para se reduzir ao absurdo a tese concorrente. E não se norma constitucio nal proibir a propaganda de cigarros, prevendo que a le i
trata aqui de di zer q ue houve uma alteração no ordenamento ao se de fender regul ará sua veicul ação no rád io e na T V, então o efeito de N2 implica, ao
a aplicação de um determinado índice de correção monetári a quando teria a contrário, proibição.
lei revogado a aplicação de correções. Ning uém sequer cogitou essa hipó-
O ponto aqui é que, ao entrar no campo das inferências ampliativas e na
tese como aceitável: com certeza (settled meaning) não poderi a ter s ido isso
prag mática da interpretação jurídica, há sempre indagação sobre a deliberação
o que o orde namento quis dizer. As teses concorrentes cons ideradas como
e valorações do legis lador, independentemente da possibilidade de «casos
razões juridicamente possíveis discutiam apenas qual seria o índice aplicável,
fáceis» em que é indisputável a conclusão sobre o que se quis dizer com a
BTN o u IPC. A implicatura imediata foi descartada de plano, pois seri a extre-
formul ação da regra. Ecoando FuLLER, o fato de que, nesses casos fáceis, a
mamente di fícil justificar, mesmo absurdo, que estaria dentro dos objetivos
conclusão da implicatura parece óbvia não significa que a investigação sobre
daquele plano econômico sacri fica r a correção monetária (o plano envolvia o
o pro pósito não existiu.
bloqueio e empréstimo compulsório da poupança dos correntistas).
O raciocínio por implicatura o u a investi gação abdutiva das razões de
Ass im, as implicaturas juríd icas não ficam limitadas a esquemas de inter-
fundo da regra vão desembocar no conteúdo de princípios morais ou objeti vos
pretação, tais como «a revogação de uma proibição implica uma permissão» .
de políticas públicas. Tais pautas alcançadas por esse procedimento de infe-
Já vimos que não só a identificação do significado claro da norma pode ser j á
rê ncia também são razões para ação e, delas, podemos faze r o utras inferências
o resultado de um processo de revisões do ordenamento bruto, como ta mbém
deduti vas ou descartar inferê ncias dedutivas do sistema normativo que possam
a seleção das alternati vas de interpretação (sistemas normativos resultantes)
ser com e las inconsistentes.
pode envolver considerações sobre as justificações de fundo da regra (as
valorações morais ou po líticas que teriam motivado ó ato normativo). Dessa Essas formas de inferência têm força no di reito, pois não só a inconsis-
forma, para se chegar às irnplicaturas legais, alé m das normas deri vadas, há tê ncia (na qual se pauta a dedução clássica), como também outras fo rmas de
esforço em se identificar a ratio do conteúdo atribuído à no rma, o que é uma incoerência funcionam corno limite de rac ionalidade, que pennitem o racio-
inferência abduti va. cínio com redução ao absurdo.
Novamente, embora possa haver casos em que a ratio sej a evidente, essa Tome-se, por exemplo, o Habeas Corpus 95.351-4/RS (07. 11.2008), no
não é decorrência da desnecessidade de esforço interpretati vo, mas resulta qual o STF discutiu a aplicação do furto qualificado por concurso de agentes,
da indisputabilidade da interpretação prevalecente. No exemplo de RAz a previsto no art. 155, § 4.º, inc. IV, que duplica a pena de furto prevista no caput
revogação de proibição pode ser forte evidência explicada pela intenção de ( 1 a 4 anos de reclusão). O réu argumentou pela redução da pena, haja vista
permitir, o que não sig nifica que essa sej a uma conc lusão necessári a, po is que , no crime de roubo, ou furto praticado com violência ou grave ameaça (art.
140 JULIANO SOUZA DE A LB UQUERQ UE M A RAN HÃO INCLUS IV ISMO LÓG ICO-JURÍDICO 141

157, § 2.0 , fI), o concurso de pessoas leva ao aumento de apenas um terço até e coerente, com base em princípios de fundo, como agir em determinada
a metade da pena prevista (de 4 a LO anos). Isso traz a possibilidade do furto circunstânc ia, pode enfrentar problemas de coerência em circunstâncias
com concurso de pessoas ter pena mais g rave do que um rouho na mesma melhor especificadas. Isso pode levar a uma revisão da explicação, i.e. do
condição. Aqui , o argumento reduz ao absurdo a possibilidade de se atribuir tal princípio de fundo, ou da regra técnica que faz parte do sistema normativo
incoerência ao legislador racional. Se a condição é a mesma, por qual razão o (abordaremos com mais cautela essa possibilidade na Seção 3. 13)
crime menos grave deve ser punido, proporcionalmente, com mais gravidade?
Pode mos assim falar não só e m f echamento dedutivo de um siste ma
O argumento do réu propôs ao STF uma reconstrução interpretativa d o normativo, como proposto em Normative Systems, mas também de fecha-
art. 155, em conjunto com o art. 157, na qual a qualificação do furto é lida como mento abdutivo ou coerentista desse, que englobará o princípio o u hierarqui a
causa de aumento e se aplica o critério do roubo para o furto. Tal reco nstrução de princípios ex plicativos, d eri vados por abdução, além das suas implicações
seria juridicamente justificada, pois a aplicação do furto qualificado ofende o dedutivas e das implicações das regras técnicas que compõem o s istema.
princípio de proporcionalidade das penas obtido por abdução (na verdade uma
generali zação presumida) das normas d o Códi go Penal. Ou sej a, não seria Nesse sentido, princípios morais e de políticas públicas que justificam
possível dar sentido rac ional à escolha do legislador em tratar o co ncurso de a criação de uma norma, com determinado conteúdo, em dada interpretação,
agentes como qualificadora, em um caso, e mera causa de aumento, em outro. são condições de inteligibilidade, não propriamente do conteúdo da norma,
O STF descartou a solução dada por essa reconstrução sistemática das normas mas da norma como conteúdo de um ato racional e, portanto, do que se quis
do ordenamento, condenando o réu por furto qualificado pelo dobro da pena, dizer com a norma (naquela interpretação). Por força dessa relação d e impli-
mas não dei xou de oferecer urna explicação raciona l para a diferenciação cação abdutiva com a norma, herdam sua/orça como razões, na medida em
presente no conte údo da norma legal. Segundo o Min. Ricardo Lewandowski, que explicam aquele conteúdo. Se essa interpretação tem por fonte no rmas
«a vontade do legis lador, no caso de furto em concurso, foi imprimir urna do ordenamento jurídico cuja autoridade é recon hecida, essas razões serão
reprovação maior d o que aquela cominada ao roubo, uma vez que, neste, a razões jurídicas.
possibilidade de reação da vítima já se encontra inibida pela violênc ia ou pela
grave ameaça». 3.11 INTEGRIDADE
Na medida em que as normas são conce bidas, pelo postu lado de legis- A admissão de implicaturas como normas implícitas, dentro da compre-
lação racional, como me ios, resultantes de escolhas racionais para um fim , ensão da atividade de legis lação como modelo comunicativo, leva à aceitação,
a incapacidade de reconstruir essa razão de fundo como explicação para o e m algum grau, de um modelo de coerência. Isso porque, se as implicaturas de
siste ma normativo proposto também mina a interpretação como juridica- GRICE ou a interpretação pragmática em geral é estruturada por processos de
mente aceitável. Dessa forma, o s princípios jurídicos, ao explicarem as regras inferênci as abdutivas, 109 a garantia epistêrnica da inferência abdutiva de uma
técnicas presentes no sistema normativo resultante da interpretação racional, no rma implíc ita, a partir de um conteúdo explícito, é dada por sua estruturação
integram-se a ele. [sso porque tais princípios também constituem razões para como inferência à melhor explicação possível (ou explicação mais coerente).
a ação. São parâmetros normativos. Mas, diferentemente das norm as deduti-
vamente derivadas, sua força como razões não está no fato de fazere m parte Nesse modelo, cada sistema normati vo apresentado por d ada interpre-
do conteúdo conceituai das regras dotadas de autoridade. Antes, sua força tação do ordenamento permite inferir princípios morais e de políticas públicas
como razões está em sua capacidade em explicar determinado conte údo como que nos levam a compreende r aquele sistema normativo, com aquele conteúdo,
resultado de um ato racional. 1º8 como resultado de legis lação racional. Defendemos, e ntão, que tais princípios,
como normas implícitas, são razões jurídicas e, nesse sentido, fazem parte cio
Corno tais princípios são razões para a ação, deles também é possível dire ito.
fazer deduções. Nesse quadro, as irnplicaturas legais se firmam em conjunto
com razões d e fundo que explicam o conteúdo implicado (equilíbrio refle- Aqui cabe uma primeira questão. Não seri a essa exatamente a teoria do
xivo). Determinado sistema normativo, que responda de forma consistente próprio DwoRKIN? Com efeito, tomar princípios como razões jurídicas capazes
de fornecer a melhor explicação possível da história de atos legislativos ou
108
· No mes mo senLido, ver M cCoRMICK (2005: 193): «T/111s. the coherence ofno rms (co11side red
decisões judiciais de uma comunidade parece justamente a concepção de
as some ki11d of a ser) is a 111a11er of their "making sense" by being rationally related as a ser.
i11stru111e111a lly or imri11s ically, to the rea/ization ofsome com111011 va/11e o r values». 109 Ü ASCAL, 1984: 655.
tT
1,
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1:1 : INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 143
j,j'; 142 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
~
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do mérito de seu conteúdo é uma objeção importante, que DwoRKIN sempre se t"
til!•!: l
'1 direito como integridade. Veja as passagens abaixo em que DwoRKJN explicita
!l
;,
i o significado do valor de integridade para uma teoria do direito: esforça em contornar. f'>
«Ela [integridade) insiste que o Direito ~ os direitos e deveres que decorrem Isso nos leva à resposta à primeira questão. A forma pela qual DwoRKIN ~
ii de decisões coletivas passadas e, por essa razão, autorizam ou exigem coerção contorna as limitações do fechamento coerentista, em particular a sua subde-
!li
HI,:
i
f1)
i! - contém não só o conteúdo estrito ou explícito dessas decisões, mas também, terminação, marca diferenças importantes da teoria do direito como integri-
:i:. de modo mais abrangente, o esquema de princípios necessário para justificá- dade e o modelo positivista lógico-inclusivista aqui defendido. f'>
las. 110
:li;:!
, ·, 1 Membros de uma sociedade de princípios aceitam que seus direitos políticos Inicialmente, DwoRKIN reconhece a existência de um material pré-inter- ()
1!:
;i:;1
!,'
!
e deveres não são exauridos pelas decisões particulares que suas instituições
estipularam, mas dependem, de modo mais geral, do esquema de princípios
pretativo consistente no histórico de decisões políticas prévias. Esse material
deve receber da teoria do direito e dos tribunais a melhor explicação possível e
r
!'1
que essas decisões pressupõem ou endossam.» 111 em termos de valores subjacentes. Até aqui, estamos dentro do modelo coeren-
tista e alinhados com o inclusivismo lógico. O problema está no que DwoRKIN
f"·
Em outras palavras, afirma-se, tanto com o inclusivismo lógico, quanto ()
entende pelo adjetivo «melhor» com relação à perspectiva que a teoria deve
com o valor de integridade, que o conteúdo tomado como direito deve consistir (':
ter do direito.
de seu fechamento coerentista. Aliás, MARMoRjá havia indicado a semelhança
entre a hipótese de inclusivismo lógico e a teoria do direito de DwoRKIN, o que Não há dúvidas de que o adjetivo «melhor» indica alguma valoração do l
traz uma segunda questão. DwoRKIN não poderia simplesmente aceitar que material. Mesmo o simples fechamento coerentista que oferece a «melhor» {·
os princípios são razões jurídicas vinculantes por serem derivados a partir do explicação ao conteúdo das normas implica valorações e seleções, tanto nos
conteúdo das normas dotadas de fontes, como propus na seção anterior? casos subdeterminados quanto nos casos determinados, como já vimos. Mas (
t~
i,. '
'.

Começo pela segunda questão. Se DwoRKIN aceitar que princípios


é nesse ponto que DwoRKIN cruza a linha divisória entre análise valorativa e {)
empregados na justificação de decisões têm sua validade jurídica vinculada
justificação moral da prática. «Melhor», para ele, não é só a perspectiva com
mais sucesso em conferir coerência ou coesão aos princípios. DwoRKIN defende
e_
ao conteúdo das normas derivadas das fontes, então o grau de discrepância na (,
a integridade, ou coerência de princípios, como valor ou virtude. Porém seu
atividade de adjudicação sobre o que é direito não será tão profundo quanto
valor é instrumental e está na forma pela qual corrige as limitações dos valores (.
pretende. Se a racionalidade na justificação das decisões principiológicas for
representados pela justiça substantiva e do devido processo nas instituições
essa, então estão todos de acordo com as fontes sociais e que essas deter-
minam, pelo menos em parte, o que é direito. Haveria acordo quanto à base e
Gustiça procedimental). 112 É um determinado arranjo coerente de princípios e·
de moralidade política que coloca o direito em sua melhor perspectiva e não (
quanto ao método de interpretação, apenas discrepâncias na aplicação desse
qualquer arranjo coerente apto a explicar o material pré-interpretativo. Dessa
método para parte dos casos, o que não seria de surpreender, dada a sua subde- {,
forma, DwoRKIN muda a base do seu modelo coerentista ou o input do modelo
termindção.
das fontes sociais (material pré-interpretativo) para aquele conjunto de princí- (,
Pode-se argumentar que os juízes também recorrem e podem recorrer a pios que representam os valores fundamentais de uma prática jurídica justa. 113
outros princípios que não sejam derivados das normas por abdução. Mas para No enunciado do próprio DwoRKIN sobre o direito como integridade:
(,,
DwoRKIN, esse não é um caminho, pois isso significaria que os juízes tomam «De acordo com o Direito como integridade, proposições de Direito são ()
princípios como razões extrajurídicas em suas decisões, o que é uma premissa
exclusivista. DwoRKIN defende também a tese de que é possível identificar uma
verdadeiras se figuram ou seguem dos princípios de justiça, equidade e devido
processo que proporcionem a melhor construção interpretativa da prática jurí-
u
resposta correta para cada questão jurídica. Essa resposta correta é a válida e dica da comunidade.» 114 ~
resulta do correto balanço entre princípios. Portanto, trata-se de uma resposta
Portanto, não se trata somente de identificar o direito a partir dos prin- ~
necessariamente fundamentada em razões jurídicas e não extrajurldicas,
cípios que melhor expliquem o conteúdo explicitado no ordenamento, mas a
como os exclusivistas caracterizam tais decisões baseadas em princípios. ~
Portanto, mostrar que os princípios empregados na atividade de adjudicação e 112• DwoRKIN, \.)
1986: 177 (trad. livre).
interpretação, ou pelo menos parte deles, são razões jurídicas que independem 113• RAz, com base nessa característica do modelo de integridade questiona até mesmo o 4.;
compromisso de DwoRKIN com um modelo de coerência em sua teoria do direito (RAz, 200 l:
110. OWORKIN, 1986: 227. 319-325).
114
~
111. DwoRKJN, 1986: 21 l. • DWORKIN, 1986: 225 (trad. livre).

~
~
4
144 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
145

partir dos próprios princípios que, organizados de forma coerente, forneçam a a noção de ordenamento jurídico aqui proposta. Obviamente tal tarefa seria
melhor justificação moral para esse material. 115 A reconstrução interpretativa, sobre-humana, razão pela qual DwoRKIN recorre à figura de Hércules para
dessa forma, liga-se à justificação moral, pois seu objetivo é não só reconstruir construir seu modelo de interpretação. Embora esse ideal hercúleo não possa
os ideais ou propósitos práticos presentes nas escolhas políticas prévias, mas ser alcançado, DwoRKIN sugere que os tribunais trabalham e devem trabalhar
justificá-los por meio «de uma história que valha a pena contar», na medida em sob a mesma «estrutura oculta» (hidden structure ). 118 Nessa metáfora está
que seja capaz de mostrar que «a prática atual pode ser organizada e justificada
embutida uma divisão importante entre capacidades. Empiricamente os juízes
por princípios suficientemente atraentes para prover um futuro honorável». 116
não podem acessar ou processar a quantidade ideal de informações fáticas ou
Esse passo, que liga a identificação do direito com a melhor justificação sobre o material jurídico disponível. O material base empregado pelos juízes
moral da prática, permite a DwoRKIN resolver o problema de subdeterminação, é sempre parcial. Porém, DwoRKIN insiste que, conceitualmente, os juízes
pois as soluções para cada caso passam a estar determinadas «de cima» por podem analisar e justificar esse material parcial à luz da mesma moralidade
esse arranjo coerente de princípios moral e politicamente valorosos na comu- política de Hércules, com a mesma pretensão global sobre o ordenamento:
nidade. A teoria do direito como integridade assume, assim, uma concepção
do direito como um conjunto coerente de pautas em que não há qualquer «Mas ele [Hércules] não tem uma visão sobre mistérios transcendentais
prioridade entre as razões que compõem o direito, sejam elas derivadas de que seja opaco a eles [juízes]. Seus juízos de ajuste e moralidadé política são
autoridade ou de moralidade. feitos sobre o mesmo material e tem o mesmo caráter dos deles. Ele faz o que
eles fariam se tivessem a possibilidade de dedicar toda sua carreira a uma única
Para marcar essa diferença podemos distinguir entre tipos de fechamento decisão. Eles não precisam de uma concepção de direito diversa da dele, mas
coerentista como modelos de identificação do que é direito. 117 A distinção está habilidades próprias do ofício e eficiência que ele nunca precisou cultivar.» 119
na base sobre a qual o fechámento deve ser aplicado:
Não é fácil enxergar como essa coincidência entre semi-deuses e mortais
1) O direito é o conjunto de normas que uma comunidade está justificada ocorreria, embora seja conceitualmente possível em sentido trivial. Se Hércules
em aplicar; faz a construção correta, é possível que os juízes acertem, mas também é
2) O direito é o conjunto de normas que de fato são aplicadas pela comu- possível (e até mais provável) que não acertem. Podemos interpretar então que
nidade; a discrepância entre «eles» e «ele» residiria aí, nas equívocas percepções do
3) O direito é o fechamento mais coerente de l; que seria o «esquema transcendental de princípios». Portanto, para DwoRKIN,
ainda que os juízes tomem decisões locais e manejem questões que envolvam
4) O direito é o fechamento mais coerente de 2.
algumas normas ou precedentes do ordenamento, devem seguir uma intuição
A teoria do direito como integridade de DwoRKIN sustenta a tese 3, de justificação da prática jurídica como um todo, pautada pelo arranjo global e
enquanto defendo aqui a tese 4. Os positivistas exclusivistas aparentemente coerente de princípios orientadores. Essa tese merece discussão própria, pois
defendem 2 e os inclusivistas pretendem que a noção «de fato» possa englobar alcança outras propostas coerentistas para o direito.
os princípios morais que tornam a aplicação de fato moralmente justificada.
Por fim, outra distinção importante diz respeito ao caráter global da expli- 3.12 INFERÊNCIA LOCAL
cação do material pré-interpretativo com base em princípios. DwoRKIN propõe
que a. coerência de princípios com base na integridade seja capaz de explicar RAZ fez esforço para reunir as condições mínimas nas quais a noção de
toda a história jurídica de uma comunidade, algo mais amplo inclusive do que coerência mereceria atenção como parte de uma teoria do direito. 12º São três
os seus pontos:
m. Esse ponto é destacado por HART (1997: 269-272) como gancho para separar, de um lado, a
identificação descritiva do material pré-interpretativo (descriptive jurisprudence) e, de outro, a 118
· DwoRKIN, 1986: 264-265: «Real judges decide hard cases much more instinctively. They do
justificação moral deste (interpretive justi.ficatory jurisprudence). Com esse passo, argumenta not construct and test various rival interpretations against a complex matrix of intersecting
pela complementaridade e não oposição das teorias. Como já vimos, a crítica de DwoRKIN, no political and moral principies. ( ... ) No doubt real judges decide most cases in a much less
plano metodológico está justamente na impossibilidade de separar esses projetos. methodical way. But Hercules shows us the hidden structure of their judgments and so lays
ll6. DwoRKJN, 1986: 227-228. these open to study and criticism».
117
· A distinção foi sugerida a mim por Giovanni SARTOR sobre um texto resumido da tese aqui 119
· 0WORKIN, 1986: 265.

defendida. 120· RAZ, 2001: 286-290.


JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCL USIV ISMO LÓGICO-JURÍDICO
146 147

i) inpw externo: coerê ncia não pode ser o úni co critéri o de identifi- base, que deveri a ser independente (exte rna), aos princípios deri vados de uma
cação, devendo haver uma «base» independente com a qual se deve guardar análise abstrata coerentista.
coerência; Uma das teorias alvo dessa crítica é a noção ele coerência na argumen-
ii) objetividade: a base não deve estar ligada a c renças o u valorações tação jurídica de MAcCoRMICK, que circunscreve seu modelo para a ati vidade
subjetivas sobre o que o direito é, de forma que se assegure contato com a de adjudicação e, aparentemente, corrobora as três condições inic iais de RAz.
«realidade obj eti va» do direito; Embora RAZ dirija sua crítica a Legal Reasoning and Legal Theory, 124 o lharei
iii) transitoriedade moderada: e mbora a base sej a um ponto de partida também para o impacto dessas críticas sobre a fo rmulação mais recente em
para a construção de um entendimento coerente e possa ser revista, essa Rethoric anel the Rufe of Law, 125 na qual MAcCoRMICK relati viza sua concepção
deduti vista da argumentação jurídica, ampliando o espaço para o tipo de argu-
revisão deve ser modesta. 121
mentação e interpretação coerentista na construção de proposições sobre o
Obviamente, a base que se propõe como input externo para a compre- dire ito. Mesmo nessa formulação, MAcCoRMtCK deixa claro que o ponto de
ensão coerente do dire ito é a convenção social sobre as fontes. Cabe até partida da investigação é um determinado conjunto de leis e precedentes judi-
mesmo questionar se esse modelo seri a efeti vamente coerentista, j á que a base c iais relevantes para o caso em questão, ass im entendi dos, aqueles referentes
de normas, aparentemen te, para RAz, é um dado externo (de contato com a ao mesmo tema no mesmo campo do direito. 126 Na medida em qu·e o juiz tem
realidade) que não exige justificação. seu pape l defi nido pelo direito positi vo, seu dever legal é decidir somente de
RAz separa duas abordagens coerentistas possíveis, uma vo ltada para fo rma consis tente com as normas. Dessa forma, a coerência, sobre as normas
a natureza do direito em geral, o utra voltada para a natureza da atividade pos itivas, estabelece uma impo rtante constrição negati va aos juízes, embora
de adjudicação. A prime ira ide ntifica o direito de uma comunidade como o possa não de finir uma resposta correta.
conjunto mais coerente de princípios capaz de explicar o material nor?"1ati~o MACCORMtCKjustifica a coerência como um valor na ati vidade de adjudi-
(leis e dec isões judiciais) de fato promulgado como res_ultado de le~1sla~ao cação com base em do is fatores centrais: (i) a universalidade como exigência
racional. 122 A versão adjudicatória reduz esse compromJsso (com a 1dent1fi- de racionalidade (regramentos específicos que não guardem coerência com
cação do conjunto mais coerente de princípios explicativos do m aterial norma- princípios mais gerais revelariam arbitrariedade, de fo rma que, quanto mais
123
tivo) a um esforço para derivar a solução para o caso concreto a ser julgado. baseadas em princípios gerais e coerentes, menos arbitrárias as decisões) (ii)
Ou seja, a solução para o caso particular deriva-se daquela ordenação coerente a inteligibilidade na perspectiva dos sujeitos no rmativos (pressupõe-se que o
de princípios reflexo da teoria. No caso de DwoRKJN, como a identificação do ordenamento guia os sujeitos para um estado de coisas ideal e a organização
direito reduz-se à compreensão da atividade de adjudicação, ambas as teses desse na forma de poucos e coerentes princípios cumpre melhor esse efeito).
colapsam. A unive rsalidade arguida por M AcCoRMICK remete a uma escalada de
O defeito central do modelo de integridade, para RAz, está na quebra princípios. Precedentes judiciais o u normas são vistos como veículos para
do requisito de input externo. Aliás, a teoria de DwORKJN dá margem à inter- satisfazer determinados princípios e valores, pressupondo-se que é intenção
pretação de que a base efetiva é dada por valor~ções_ mora_is do observador do legislado r regular as questões de forma coerente. Esses princípios, por
(nessa linha, RAZ inc lusive questio na se essa teona sen a efet1vament; c~eren- sua vez, ta mbém instanciam princípios mais gerais de forma que se chegue
tista). Mas sua crítica é generalizada para qualquer modelo de coerenc1a que a um conjunto coerente ele princípios de nível máximo (lzighest arder princi-
pretenda obter poder explicati vo glo bal da ordem com base em um ou alguns ples).121
princípios também coerentes entre s i. Tal ambição de glob_alida~e, para RAZ,
Tal dime nsão da uni versalidade, na adjudicação, pode se tornar um risco
inevitavelmente, mina as condições de adequação da teona, pois submete a
ele arbitrariedade o u de trivialidade. Mesmo no modelo puro de coerência,
uma base muito ampla de normas a ser ex plicada pode exig ir uma genera-
121. A aceitaçflo da tese de i11p11t externo objetivo, com restrições a sua modificação,_implica
lidade demasiada para que o princípio ou enunciado de valor, como ratio,
rejeitar a assunção doxástica, i.e. a tese de que não haveria prioridades entre o conJunt~ de
~º-
crenças sobre as normas pe':encentes o~dename~t?, sendo que todas as crenças dependenam
em igual medida das demais. Essa reJeaçao é exphcatada por RAz, 2001: 283 (nota de rodapé 124
M AcCORM IC K, 1994.
125· M ACCORM IC K, 2005.
11 ).
122. RAz, 2001 : 295.
126 M ACCORM IC K, 2005: 199.
127
123. R AZ, 2001 : 302. · M ACCORM ICK, 2005: 193.
148 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARAN HÃO INCLUS!VJSMO LÓGICO-JURÍDICO 149

preserve seu poder ex plicativo. Tal coerência g lobal pode ser pensada e m das partes o todo faz pouco senti do. Igualmen te, poré m, não se pode da r
termos de relação explicativa e ntre princípios, mas a ligação de um princípio sentido a qualquer parte sem a tenção a seu lugar no todo». 130 A lém da compre-
global (máx imo) diretamente à ratio de um1 norma particular pode significar e nsão das normas como explicadas por princípios, ex ige-se, no a rgumento de
arbitrariedades na inte rpre tação ou ide ntificação do direito. Esse problema foi «inteligibilidade», que os princípios e valores sejam entre si coerentes o que,
be m descrito por SAVJGNY, que conside rava o e mprego de «motivos gerais» e por sua vez, requer «que e m sua totalidade eles possa m ser concebidos como
não específicos de uma lei uma fo rma oblíqua de alte ração de seu conteúdo e expressando uma forma satis fatória de vi da» . 13 1
não propriamente de interpretação. Ao se alinhar à concepção de AARNJO do d ireito como expressão de uma
«Ao contrário, o motivo gera l de uma le i (com o, por exemplo, a aequitas, «forma de vida», MACCORMJCK acaba por submeter o va lor de coerência a
sobre a qua l essa se baseia) não pode autorizar uma inte rpretação, a qual, admi- valores morais percebidos na comunidade . Basta ver que AARNJO busca uma
tindo como inexata a expressão de uma lei, a corrija. Na verdade, ta l proce- síntese da filosofia do direito de Brusiin 132 com Wn,GENSTEIN. Para B rusiin,
dimento não há m a is o caráter de interpretação, m as aque le bem diverso de cada norma não só dependeria d a compreensão do ordenamento como um
uma m odificação do dire ito e m s i; pois, assim faze ndo, não se in vestiga o que
todo, como o direi to deveria ser com preendido de ntro de um todo representado
estaria contido no pensam e nto da le i, mas o que essa razoavelmente deveria
pelos va lores sociais de uma comuni dade, tomados e m sua historicidade. Os
conler, se o legis lador tivesse tido dele uma ide ia clara. » 128
propósitos explicativos de cada no rma e, portanto, seu sentido, dependeriam
Sa vig ny concebia essa relação e ntre norma e motivo como «concate- da v ivência e percepção indi vidua l de cada juiz ou intérprete dessa ordem de
nação lógica». Mas a concatenação também poderia se estabelecer entre valores como membro da comunidade q ue a compartilha e, ao mesmo tempo,
moti vos, de forma que haveria uma gradação da relação entre motivo e norma, a constrói. 133 O direito positi vo seria uma expressão reflexa, mas também
com moti vos mais ou menos dista ntes. Nisso res ide a distinção e ntre «motivo constitutiva dessa cultura. AARNIO interpreta essa vivência de valores na
específico» da norma (ratio legis) e «moti vo geral» (ratio juris). O moti vo ou comunidade com o fo rma de organizar uma «visão de mundo» pelo comparti-
os motivos gerais envolvem concatenações de o rde m supe rio r entre moti vos . lhamento de regras e m um jogo de linguagem, no sentido da hermenêutica de
A coerência e ntre essas razões dá o caráter orgânico do ordenamento e sua Wn,GENSTEIN. 134
unidade como expressão d o «espírito do povo». A preocupação de SAVJGNY
Nesse quadro, no qual MAcC ORMICK explicitamente se insere, fica
estava no e mprego direto de um motivo decorre nte de um a concatenação que
difícil di stinguir sua teoria d e adjudicação daquela oferecida pela teoria do
fosse muito «distante», dado que diferentes moti vos específicos o u de conca-
di reito como integridade. 135 Em ambas, essa atividade fu ndamenta-se em uma
te nações inferiores, com orientações contrárias, podem se re unir, à distânc ia,
percepção daquela «estrutu ra oculta» de valores morais de uma comunidade,
sob o mesmo motivo superior. 129 Com a aplicação direta, pode-se, assim, trair
da qual falava D woRKJN, quebrando-se o requisito de um input externo e obj e-
a orientação específica contida no «pe nsamento» do legis lador para a no rma
em questão. 130
• MACCORMICK, 2005: 48.
O argu mento de inteligibilidade volta a tocar na perspectiva dos partici- 13 1. MACCORM ICK, 2005: 193.
132
pantes e se aproxima da tese da justi ficação moral. Se a atividade de adj udi- · A teoria de Brusiin é apresentada pelo próprio AARNIO ( 1977: 122-127).
133
• Embora em outro conlexto, pode-se notar aqui proximidade grande com o culturalismo
cação pressupõe e deve pressupor a compreensão do direito como uma prática
de Miguel REALE e a compreensão da norma como síntese de valores hi stórica e socialmente
moralme nte justificada, e ntão a atitude de adesão d os sujeitos de direito com determinados em dada cultura. Ver em particular sua concepção de co11stelações de valores e
relação ao orde namen to inclui uma apreciação desse conteúd o. Essa a pre- de valores f1111da11tes que, em face da ordem jurídica de cada comunidade, apesar de histori-
ciação, conforme o argumento de M AcCoRMJCK, dependeria da compreensão camente se transformarem, condensam-se em um conjunto coerente de princípios - ver REALE
do orde namento como um todo, o que somente seria possível conhecer com (2002: 253 ss); ver também REALE (1963: 31 ss).
134
· Tenho dúvidas se essa aplicação da noção de jogo de linguagem seria capaz de justificar
sua reuni ão e m uma o rde m de princípios. Ass im, os juízes e nxergariam o uma articu lação coerente de princípios. No máximo, essa ideia poderia ter um papel negativo
direito como uma concatenação coere nte de princípios gerais, po is o recon he- em excluir algumas atribuições de valores claramente não compartilhados, que a comunidade
cimento de uma ordem co mo vá lida dependeria dessa forma de inteligibi li- linguística examinada não consegue dar senJido ou conceber. Isso poderia explicar, por
dade. E MAcCoRMJCK ecoa a «organicidade» do romantismo ale mão quando exemplo, porque em uma inferência abdutiva sobre razões de uma norma algumas razões são
imediatamente descartadas como absurdas, mas não ter um papel construti vo em identi ficar
destaca que «o todo do Dire ito conte mpla várias partes e sem a compreensão uma composição geral coerente de valores.
m. A grande diferença está em que MAcCoRMICK não chega a misturar a inteligibilidade daquele
128
· SA VIGNY, 1886: 245 (tradução nossa). esquema de princípios com a identificação do que é direito, mantendo-o adstrito à alividade de
129
· SAVIGNY, 1886: 246-247. adjudicação.
150 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANI IÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDI CO 15 L

ti vo. Be m mais do que condições mínimas de inte ligibilidade do conteúdo do como garan tia de «imparcialidade» ao se j ustificar a coerção coleti va. Tal
dire ito, a sua reunião em um conjunto identificável e coerente de valo res tem justificação deveria estar acima de fo rças políticas ocasionais que pri vilegiem,
mais a ver com a afinidade do direito e m relação às convicções morais e polí- em diferentes momentos, o interesse dessa ou daquela instituição. O direito, na
ticas de uma comunidade e, assim, com a justificação moral da orde m jurídica. visão dos tri bunais, da dogmática, da teoria do direito e de qualquer discurso
Note a proximjdade da fórmula do direito identificado com uma «forma de engajado na j ustificação da coação pe lo Estado deve ver o direito como algo
vida» com a teori a do «dire ito como integridade»: que fala não por instituições particulares, mas pela comunidade «em uma só
«A Integridade, ass im, funde a vida moral com a vida políti ca dos c idadãos: voz». '4º
ela demanda ao bo m cidadão, ao decidir sobre como tratar seu semelhante Diametralmente contra, RAz vê essa garantia justamente na atenção e
quando seus interesses conflitam, que interprete o esq uema comum de justiça
fidelidade a tais incongruências pol íticas e re fu ta a ideia de que esses valores
com o q ual ambos estão comprometidos, em virtude apenas da cidadania. ( ... )
estariam mai s assegurados quanto maior o nível global de coerência do orde-
A obrigação política é, então, não só uma questão de obediência a decisões
políticas isoladas da comunidade, uma a uma, como os filósofos políticos namento, ou q uanto maio r o nível de compreensão do ordenamento corno um
usualmente a representam. Ela se torna uma ideia mais protestante: fidelidade todo coerente na atividade de adjudicação. A ideia de unidade como requi-
a um esquema de princípios que cada cidadão tem a responsabi lidade de iden- sito de inteligibi lidade pelos participantes e, portanto, de reconhecimento da
tificar para si como o esquema de sua comunidade.» 136 ordem, para RAz, é acidental e empírica. Pode ser observada, por e'x.emplo, em
sociedades cuj as instituições políticas são unificadas em torno de determi nada
A liás, essas propostas e mesmo os jargões empregados po r MAcCORMICK,
re ligião. Mas os esforços de unificação, e m nome da coerência, não passam de
DwoRKJN e AARNIO, tais como «forma de vida», «visão de mundo», «espí-
tentativas de idealizar toda a prática jurídica, descolando-a das imperfeições e
rito de uma comunidade», «evolução orgânica», «historic idade dos valores»
da atividade política concreta (plura lismo social). 141
revelam claras aproximações com a escola histórica ale mã do séc. XIX, que
identificava o direito privado por reconstrução da tradição jurídica romano- Corno a o rdenação coerente e reduzida de princípios é incapaz de refletir
germânica, por meio de método hermenêutico que seria capaz de reve lar «o essa realidade na adjudicação, perde-se a objetividade da base, o que significa
espírito unívoco da comunidade». Esse «espírito» encontrava unicidade em a quebra da transitoriedade moderada. RAZ acredita que, levado o valor da
valores liberais prevalecentes à época e que se conciliavam bem ao direito de coerência à dimensão global, o resul tado será uma constrição da atividade de
uma economia de troca já altamente desenvolvida como a ro mana. 137 O utra legislação ou de precedentes ao conj unto de valores abstratamente organizado,
força unificadora era dada pelo cristianismo, destacado por SAVIGNY como a e não o contrário, i.e. o compromisso desses valores em explicar o produto
base do ethos do «povo» e principal fator de transformação do direito romano dessa atividade. Além disso, tais esfo rços refletem uma crença na possibi-
histó rico para o direito romano-germânico do séc. XIX, por intervenção do lidade de reduzir a moral a um conjunto de poucos e coerentes princípios,
direito c ientífico (Juristenrecht). 138 da qual se afasta em defesa de um pluralism o de valo res irredutíveis entre si
(pluralismo moral 142 ) . Assim, para RAz, a única forma de ad mitir o juízo de
Embora pareça difícil apostar e m ta l unidade de valo res nas sociedades
conternporâneas, 139 DwoRKJN insiste na noção de integridade de pri ncípios
"°· 0WORKIN,
1
1986: 206-208.
14
«Different legal instillllÍ011s at differe111 times pur.rne differem goals; tl,e i111plicatio11s of
1.
136, 0WORKIN, 1986: 189- 190. their activities are as 1111mero11s, diverse, a11d lacking i11 cohere11ce as tl,eir explicit directives.
131. Ver LARENZ ( 1989: 56). LARENZ destaca que essa re união de valores pode sustentar uma Tl,ere is 110 spirit to the law, only differe111 spirits to differe111 laws o r bodies of law. Working
teoria do direito uniforme durante o século X I X, mas que no fina l do século e início do século oll/ the i111plicatio11s of the law on the ass11111ptio11 that all of it was promulgated i11 p11rsuit of
XX, foi desafiada pelo questiona me nto acerca da verdadeira «função social do dire ito» dadas 011e set ofprincipies is to be false to the spirit of ali tl,e bodies which e11joy legal awl,ority, a11d
as pressões sociais e o surgime nto de novas teorias j urídicas como a responsabilidade pelo ca1111ot be justified as a11 obligatio11 of obedie11ce to their awhority» (RAz, 200 J: 307).
142
risco, abuso de direito, restrições sociais d a propriedade. Nesse pa lco a teoria c lássica sofreu as · A noção de plural ismo ganho u relevo no debate recente sobre filosofia moral. Pluralismo
duras críticas do segundo lHERING com o próprio questionamento da possibilidade de unicidade mo ral sig nifica que a moralidade envolve uma pluralidade de valores, que esses valores podem
(LARENZ, 1989: 57 e ss.). e ntrar em conflito e ntre si e que ta is valores pode m ser incomparáveis, de modo q ue conflitos
13s. Ver SA VIGNY ( 1886: 111) e sobre o ideal de unidade da escola histórica cm torno do e1hos são potencialme nte insolúveis . RAZ expressa mente é panidário do pluralismo . MAcCoRMICK é
cristão ver também BERKOWITZ (2005, cap. 6). um tanto ambíguo quanto a esse ponto e pode haver mudança na evolução de sua obra. Apesar
139. Não quero entrar aqui em explicações sociológicas sobre as razões pelas quais uma de fa lar e m coerênc ia de valores «em uma forma satisfatória de vida» em Retl,oric and the R11le
integração das sociedades contemporâneas em torno de um conjunto ham1ünico de princípios of Law, reconhece, nessa mesma obra que, na atividade de adjudicação, o nde a coerência é
éticos ou políticos. Para uma crític a sociológic a nesse sentido e exposição das contradições e insufic ie nte para dar uma resposta unívoca. há e ngajamento e m argumentos consequencialistas.
dificuldades para o direito buscar identificação, ver FARIA (2004). Mas em Legal Reaso11i11g a11d Legal Th eory, MAc CORMICK ( 1993 apud Lucv, 2002) reconhecia
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 153
152

coerência como forma de identificação de razões jurídicas válidas estaria em Não é minha intenção entrar em debate sobre a correção das ideias de
uma coerência local, a partir de cada escolha de autoridades ou instituições pluralismo moral ou social. Tal discussão está voltada mais para a justificação
concretas sobre temas envolvendo diferentes compromissos valorativos: da interpretação coerentista _no direito e menos para a sua descrição. DwoRKIN
e RAZ parecem disputar as garantias de verdade ou correção de uma compre-
«A consideração do pluralismo moral mostra, porém, que a coerência local ensão do direito como conjunto coerente de regras e princípios. Para DwoRKIN,
é, por conta do pluralismo moral, de grande importância. Chamo-a de coerência essa deveria ser global. Para RAZ, local. Não é minha preocupação justificar a
local porque existem várias decisões isoladas que resultam de escolhas livres coerência como apta a proporcionar correção, mas somente descrever o tipo
entre diferentes compromissos políticos com valores conflitantes. Não há razão
de inferência envolvida em justificações a partir de normas, na medida em que
para reunir todos esses compromissos em uma só decisão cobrindo todos os
essas são tomadas como resultado de uma ação racional.
casos e suspeito que a própria tentativa em fazê-lo seja incoerente. Associe-
dades enfrentam diversos temas isolados de conflito e decidem sobre sqluções O fato é que a dogmática jurídica, por conta de tradição já arraigada
para eles na medida em que surgem. Cada solução carrega considerações pelo menos desde a escola histórica, é pautada por reconstruções das fontes
próprias de coerência em seu escopo, baseada na necessidade de assegurar reconhecidas por meio de inferências que identificam as normas, princípios e
coordenação sobre os valores do Estado de Direito.» 143 conceitos que melhor se compatibilizam a essas fontes. Para se .~tribuir juri-
A contraposição de RAZ a teorias coerentistas globais e, em particular, à dicidade aos princípios em função de sua relação específica com normas do
teoria do «direito como integridade» faz lembrar o ataque do segundo JHERING 144 ordenamento, basta que se identifique essa relação como inferência abdutiva
à jurisprudência dos conceitos, calcada justamente na crítica ao pressuposto bem fundada. Se tais inferências podem alcançar, em soluções de conflitos
atuais ou hipotéticos, níveis superiores ou «distantes» mantendo a garantia de
de unidade do direito em torno de conceitos e valores fundamentais cons-
assertibilidade de sua conclusão, é outra questão.
truídos pela ciência. Contra, JHERING defendia a compreensão do direito como
instrumento para satisfação de objetivos sociais e produto da disputa entre De todo modo, a versão local defendida por RAz está bem mais próxima
forças e interesses em oposição (jurisprudência dos interesses). Segue-se daí da descrição aqui delineada de fechamento lógico de um sistema normativo. A
que cada proposição jurídica singular deveria ser compreendida pelo seu fim especificação do sistema normativo é resultado de determinada reconstrução
determinado, benéfico para a sociedade, que justifica sua existência. E sendo o interpretativa de um ordenamento jurídico dado, a partir da pergunta sobre o
direito o produto de forças sociais em constante interação, não haveria hierar- status deôntico de determinada ação em um tipo de conflito. A resposta ou
quização objetiva entre fins ou valores últimos. Na forma enunciada por HEcK, o conjunto de respostas para diferentes casos possíveis na qual a ação em
questão pode ser realizada está localizada. Ou seja, não se trata de descrição
o cerne da jurisprudência dos interesses estaria na compreensão de que as leis
do ordenamento ou do sistema decorrente do ordenamento globalmente consi-
são «as resultantes dos interesses de ordem material, nacional, religiosa, ética,
derado, apenas de resposta a questões locais como: «o que preciso fazer para
que, em cada comunidade jurídica, se contrapõem uns aos outros e lutam por
cumprir o ordenamento nesse caso?» ou «o que diz o ordenamento sobre essa
seu reconhecimento». 145 ação nessas possíveis circunstâncias?».

a possibilidade de argumentos consequencialistas chegarem a situações de impasse: «At tlris Assim sendo, ainda que a reconstrução interpretativa (e o sistema
point we reach the bedrock ofvalue preferences which infonn our reasoning but which are not normativo resultante) não envolva uma adjudicação propriamente dita, pois
demonstrable by it. At this levei there can simply be irresolvable differences of opinion between não especifica a solução para uma ação particular de um indivíduo em um
people ofgood will and reason>>. Para uma leitura de MAcCORMICK como pluralista, ver William momento e em circunstâncias determinadas, ela trata da generalização de uma
Lucv (2002). DwoRKIN não subscreve o pluralismo ao defender a tese de que todo caso permite
a identificação de uma resposta certa, a partir do balanço de princípios, o que significa rejeição possível adjudicação. A resposta é dada de forma universalizada, mas para
à incomensurabilidade (embora aceite que há vários princípios e que esses podem ser confli- uma ação-tipo especificada, em condições hipotéticas também determinadas.
tantes). Para exame crítico da discussão do pluralismo moral e da tese da incomensurabilidade Além de ser local o problema, é também local a construção interpretativa,
no direito ver ZoRRILLA (2007, cap. IV).
143
· RAz, 2001: 318.
no sentido de que basta determinado subconjunto de normas ou precedentes
144
· Notadamente em VoN JHERINo (1877). relevantes que se refiram à ação, direta ou indiretamente (a referência indireta
145· Philipp HECK ( 1932 apud LARENZ, 1989: 65). Mas veja que HEcK em Gesetzesausleg,mg
pode se dar por meio de definições que especifiquem ou classifiquem a ação ou
ainda preservava a metáfora de organicidade da escola histórica, defendendo que a percepção a circunstância em questão em ações-tipo mais genéricas de outra norma, e.g.
dos interesses dependem de uma correlação da norma com todas as outras vigentes e em contato
com a vida prática. (HECK, 1932: 39 ss., apud BETII, 2007: 205). a ação de alugar um imóvel com regras relativas à ação geral de contratar).
INCLUSIV ISMO LÓG ICO.JURÍDICO 155
154 JULI ANO SOUZA DE ALOUQUERQUE MARANHÃO

A razão para tanto, de uma perspecti va descritiva e não j usti ficadora da 3. 13 PRI NCÍP IOS PODEM SER INGRATOS?
infe rência coerentista, é mui to simples e indepe nde de qualquer discussão A questão colocada ao fi na l da seção precedente toca em tema difíc il ,
sobre a probabilidade de correção da construção interpretati va glo bal versus cons iste nte na compreensão e caracteri zação da derrurabilidade no direito,
local : os ato res do direito, teóri cos o u práti cos, são limitados e não têm capa- o qual não posso desenvolver satisfatori amente nos limites oeste trabalho.
cidade cognitiva de processar todo o conjunto de no rmas presentes no o rdena- Apenas quero destacar, aqui, que a possibilidade de conflito entre a razão para
mento bruto de sociedades minimamente complexas para buscar explicações ação indicada por um princípio deri vado de uma regra e a razão para ação
coerentes com base em poucos princípios globais. Como HARMAN sugere, uma indicada po r essa regra não afeta a j uridic idade dos princípios.
epistemologia sensata mescla aspectos descriti vos e normati vos, trazendo
O posicio namento sobre qual razão (da regra ou do princípio) faria parte
uma certa idealização, mas de algo próx imo ao que os agentes reais, com seus
do direito na hipótese de conflito é um di visor de águas entre diversas teori as,
recursos limitados, efeti va mente desenvolvem em suas práticas cogniti vas. 146 a partir do qual é possível fazer urna taxono mia. Primeiro, pode-se fazer uma
Na verdade, como já antecipo u SAvtGNY, há certa vagueza no conceito divisão entre teorias coerenlistas e fundacionalistas. As teorias fu ndaciona-
de «razão específica de uma no rma», que tem a ver com o número admissível listas consideram que a prevalência de um princípio justificador da regra sobre
de concatenações entre motivos usados como explicação do «pensamento do a regra significa uma alteração do dire ito. As coerentistas consíderam que a
legislador», o que trará difi culdades práticas para se di ferenciar a verdadeira razão decorrente do princípi o pode ser parte do direito, sem que isso implique
interpretação da efetiva modificação do direito. 147 Tal vagueza convida a posi- sua alteração.
ções mais flexíveis, como de AMAYA, em propor que o caráter global ou local As teorias coerentistas, por sua vez, podem ser divididas em globais e
de uma teoria jurídica baseada na coerência deva depender do contexto no locais. As teorias globais to mam o dire ito como o fec hamento mais coerente
qual se propõe a interpretação. 148 do conjunto total de razões j urídicas disponíveis. As teori as locais consi-
Toda essa discussão teórica sobre a validade o u não dos princ ípios, ou deram apenas uma parcela destas q ue seja relevante para o tema jurídico
e m discussão. 149 Por outro lado, podem ser divididas em determinadas e
validade apenas dos princípios locais e não globais, vai desembocar, assim,
subdeterm inadas. As subdeterminadas consideram a coerência e ntre normas
nos chamados «casos difíceis». A questão prática, que acaba por pautar as
e princípios como urna condição necessári a para a identificação o u justifi-
posições, é a seguinte: em caso de conflito entre o princípio moral ou político
cação do direito, mas não sufic iente para sua determinação. As determinadas
que justifica a norma e o conteúdo da própri a no rma, qua l prevalece?
consideram que a coerência entre normas e pri ncípios é capaz de determinar o
Tal questão é, aqui , ainda m ais grave e ganha dimensão conceituai, conju nto de razões vinculantes q ue compõem o dire ito.
pois defendemos que os p1incípios morais o u políticos ganham juridicidade Assim, em um extremo estão as «teorias coerentistas globais determi-
na extensão de sua capacidade em se firmar como a melhor ex plicação para nadas» . A afirmação mais fo rte destas está na teoria da integridade em que as
aque le conteúdo presente na regra. Ou seja, por serem inferidos por abd ução razões de auto ridade não têm prioridade com relação às razões morais. Para
do conteúdo das próprias regras. Mas como posso e ntender a juridic idade de essa, mesmo q uando a razão expressamente indicada pela regra for prevale-
princípios como decorrente das regras se aqueles podem prevalecer sobre cente, foi o princípio de legalidade ou o valor de «expectati vas resguardadas»
essas? Isso não seria quebrar a transitoriedade moderada? que determino u, em úl tima instância, a razão para agir. Toda identificação
particular do direito é determinada e resultari a de um balanço de razões dada
por princípios morais e de políticas públicas que justi fiquem globalmente o
146
HARMAN, 1986.
·
material norm ativo disponível, mas que também não têm qualquer prioridade
147
· SAVJGNY, 1886: 247: «Se, portanto , na retifi cação da expressão deve-se levar e m coma o como razões jurídicas.
moti vo específico da le i e não aque le geral, é necessário ter se mpre presente que e ntre essas
espécies de motivo não há um limi te claramente defin ido. Das variadas e múlti plas gradações
149 Mantere mos essa diferenciação, conce itualme nte possível, entre teorias holis1as e g lobais,
intermediárias que podem haver nasce a possibilidade de dúvida acerca da verdadeira
apesar da crítica de RAz, que. basicamente argumenta que, na prática , teorias coerentistas
inte rpretação e a dificuldade de disting uir esta daquela que constituiria urna mod ificação do
d ire ito.» g lobais são incapa zes de manter o modelo híbrido, pois são idea lizações incompatíveis <.:um as
148
· AMA Y A, 2006. razões e fetivas de autoridade.
156 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO
157

:f
~ 111
Versão mais branda defende ser a razão indicada pelo princípio aquela
pertencente ao direito, desde que a razão indicada pela regra seja efetivamente
ríamos considerar aqui SAVIGNY, se fizermos uma leitura particular e parcial
das suas teses sobre a interpretação de leis singulares. 153 Apesar de SA VIGNY
'} incompatível com qualquer alternativa plausível de explicação. A coerência apontar, como parte do direito decorrente do «espírito do povo», a ratio legis
1
global de razões para todo o ordenamento seria capaz de determinar o resul-
,) tado. Pode-se colocar nessa versão abrandada a teoria coerentista defendida
e a ratio juris reconstruídas pela ciência jurídica, na hipótese de conflito entre
:;) o pensamento manifesto na lei e sua ratio, prevalece apenas a ratio específica
por PEczENIK, 150 embora o caráter global seja defendido somente para a dogmá-
;,,
,i; tica jurídica, enquanto a atividade de adjudicação é admitida como local (na
verdade PECZENIK introduz variações no caráter da coerência que dependem do
da norma em questão, que passa a ser retificada pela interpretação (o que, para
a escola histórica é o mesmo que identificar o que o direito é). A retificação
com base na ratio genérica já seria alteração daquilo que é direito.
contexto em que a questão jurídica se insere).
) A posição defendida por RAz no texto The Relevance of Coherence 154
Uma classe imediatamente posterior poderia ser dada por «teorias parece se aproximar do que seriam as «teorias coerentistas locais subdetermi-
} coerentistas globais subdeterminadas», que discorda das anteriores apenas nadas», na medida em que RAz aceita a coerência local, mas não abandona a
quanto à possibilidade de identificar, para cada ação em cada circunstância, discricionariedade da autoridade para exercer escolhas dentre alternativas de
J solução única globalmente coerente. Aqui estaria a proposta de MAcCORMICK,

:,i.t, se essa fosse lida como uma teoria constitutiva do direito. Porém, MAcCoR-
MICK fica em posição paralela a esse grupo, dada a sua circunscrição da derro-
tabilidade de normas por princípios à atividade de adjudicação. O universo
organização coerente do material normativo. Porém, em outros artigos mais
representativos de sua teoria positivista exclusivista, RAz assinala 'claramente
como «alteração do ordenamento» a preferência por razões de fundo sobre
o conteúdo das diretivas (razão pela qual o incluo entre os fundacionalistas
das normas gerais como um «fato institucional» é separado desta. A ideia de moderados).
) MAcCoRMICK, presente nos casos por ele analisados, parece ser que as solu-
ções para essas questões partem de uma apreciação correta (mais coerente) Depois viria a classe de teorias fundacionalistas que consideram parte
) dos princípios subjacentes à ordem como um todo, o que nos leva a crer que os do direito o conteúdo das regras e não sua ratio, de modo que a aplicação das
1
razões que justificam a regra em vez da própria regra, em caso de conflito,
') princípios são razões jurídicas. Só que razões não universalizáveis como parte
do direito ou do conjunto de «fatos institucionais». 151 Portanto, princípios não significa alteração do ordenamento. Trata-se da posição em geral dos positi-
!) vistas exclusivistas.
são propriamente razões que fazem parte do direito, ainda que MAcCoRMICK
) pareça pressupor certa estabilidade desses, pelo menos daqueles que chama Em esfera mais branda estariam as «teorias fundacionalistas mode-
de higher-order principies. Por outro lado, para MAcCORMICK as razões de radas» que consideram a aplicação da razão oferecida pelo princípio subja-
)
coerência são elementos necessários de justificação, mas não suficientes. cente como alteração da razão pertencente ao direito, porém concedem que
) Pode-se chegar a uma situação de impasse entre reconstruções interpretativas condições mais específicas de aplicação não previstas explicitamente na regra
'.) igualmente coerentes, solucionadas por uma argumentação consequencialista,
que tem uma nota de subjetividade. 152
seriam «situações não reguladas». Isso faz com que a ratio, nesses casos, seja
uma espécie de colmatação de lacuna, portanto, alteração do ordenamento,
) mas não revisão de uma solução já presente. Aqui sê encontra RAz, que vê
Mais abaixo estaria a classe de «teorias coerentistas locais determi-
) nadas» que consideram como direito a ratio das normas ou grupos delimi- a construção de exceções implícitas ao conteúdo das normas jurídicas como
tados de normas, portanto o fecho coerentista destas, mas restrito à dimensão alterações do ordenamento original, ainda que considere-as não reguladas e a
) sua solução como decorrente da ratio decidendi na análise dos precedentes. 155
local (sem pressupor coerência ou hierarquização última de princípios). Pode-
} Embora, nesses casos, explique a adjudicação como exercício de discriciona-
riedade, concede que o poder dos juízes tem suas circunscrições, sendo cons-
) ,so. PECZENIK, 1989 (cap. 4); 1999.
trangido pelo próprio desenho dos tribunais como instituição, que não permite
ISI. MAcCORMICK, 2005: 243.
} m. Isso fica bem claro no seu prefácio à reedição de (MAcCoRMICK, 1994) no qual explicita a
reformulação de seu pensamento: «As I indicatedat the beginning ofthisforeword l am convinced ts3. Como vimos um pouco mais acima, a escola histórica assumia ainda a existência de nexos
} by Robert Alexy (and derivatively by Jürgen Habennas) that an account ofpractical discourse orgânicos entre institutos e conceitos jurídicos que permitiam falar em unidade da fonte no
can be constructed that derives ajustificationfor legal institutions and legal reasoningform the «espírito do povo».
) exigencies of general practical reason, and subjects of legal reasoning through anti through to tS4. RAz, 2001.
) the general principies of practical rationality. This neither means nor entails that law always ,ss. R.Az, 2002 (cap. III, item 10), especialmente o intervalo das páginas 183 à 189, onde analisa
is or always could be perfectly detemzinate, or that practical reason can supply determinate a distinguishing doctrine e o poder das cortes em introduzir distinções, alterando a regra de
} answers whenever the law fails to detenninate an answer» (p. xvi) precedentes.
)
158 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 159

uma «reforma total» similar aos poder legislativo, e também por normas que segundo sistema normativo reconstruído pela interpretação jurídica em tomo
restringem sua atividade de criação, de forma que os tribunais oscilam entre da vontade do «legislador racional». ALCHOURRÓN, por sua vez, identifica três
«conservadorismo e reformas parciais». 156 Mas é verdade que RAz, em outras disposições possíveis do legislador com relação ao conteúdo da regra e uma
oportunidades parece mais radical, quando considera que a .autoridade da condição de aplicação não considerada explicitamente: a condição é uma
regra e o dever de segui-las prevalece ainda quando essas são defeituosas e exceção implícita (o legislador teria rejeitado a solução prevista diante dessa
contrárias às próprias razões de fundo. condição); a condição é uma não exceção implícita (o legislador teria aceitado
Em seguida, estão aquelas «teorias fundacionalistas absolutas» que a mesma solução diante da condição); ou a condição é indeterminada (o legis-
consideram condições mais específicas e não previstas explicitamente na regra lador não teria nenhum posicionamento sobre a condição). Como apontaram
como já solucionadas implicitamente pela regra (circunstâncias específicas MoREso e RODRIGUEZ, 162 para evitar uma indeterminação inerente ao sistema
não mencionadas são irrelevantes e incapazes de alterar a solução normativa normativo com as condições indeterminadas (essa foi a crítica de CARAC-
apontada pela regra). Portanto, as razões de fundo dadas pelos princípios cmw163 à teoria disposicional de ALCHOURRóN) a condição implícita somente
';I
• t justificadores não só estão fora, como qualquer aplicação destes implica uma - pode ser relevante para o sistema normativo no caso de exceção implícita. O
1 tentativa de revisão do direito (e não apenas integração de lacunas). Nessa conjunto de consequências do sistema normativo permanece inalterado no caso
classe estão ALcHOURRóN e BuLYGIN, 157 que chamam tais situações de conflito
íl
de indeterminação e não exceção implícita. Já no caso de exceção. implícita,
entre razões de fundo e conteúdo das regras de «lacunas axiológicas» (aquele a solução normativa presente na regra cede lugar à solução oposta dada pela
que afirma esse tipo de lacuna propõe haver algum fator não considerado como disposição racional da autoridade (cuja identificação ALcHo~óN reconhece
relevante pelo legislador na condição de aplicação da norma, mas que deveria estar ligada à atividade de reconstrução interpretativa dos juristas).
1. ter sido considerado). A lacuna axiológica é uma forma espúria de lacuna Esse posicionamento posterior de ALCHOURRóN e de BuLYGIN, privile-
pela qual se pretende alterar o sistema normativo original para um sistema giando as razões da regra sobre seu conteúdo, tem coloração lógico-inclusi-
com «casos mais finos», nos quais as condições de aplicação da regra são vista e os desloca para a classe dos coerentistas, em particular, dos coeren-
melhor especificadas. Nenhuma concessão é feita sobre a possibilidade dessa tistas locais determinados. Porém, ambos parecem admitir essa prevalência
exceção decorrer de uma cognição do ordenamento ou das próprias normas das razões apenas em casos excepcionais em que é absolutamente claro o
analisadas. · equívoco da regra à luz de seu propósito objetivamente identificado.
158
Mais tarde, porém, ambos os autores, de modo independente, aliviaram No extremo das teorias fundacionalistas absolutas poderia ser colocado
seu fundacionalismo absoluto. Os diferentes sistemas normativos em jogo KELSEN, para quem, qualquer tipo de lacuna seria espúria, e sua afirmação
diante de uma «lacuna axiológica» (o original e aquele com casos mais finos) uma tentativa de revisar a solução já prevista pelo ordenamento, decorrente
passaram a ser vistos como «diferentes níveis de análise» de um mesmo sistema do princípio de que tudo o que não está proibido está permitido. Os princípios

t normativo. Admitem que a solução normativa fornecida pela regra pode ser
derrotada por uma investigação sobre as <<razões objetivas subjacentes» 159 à
regra ou sobre a «disposição subjetiva da autoridade». 160
justificadores não teriam qualquer papel como razões jurídicas e qualquer
aplicação destes seria exercício de discricionariedade com base em fatores
extralegais.
BULYGIN, na verdade, subscreve o modelo de RoDRIGUEZ,' 61 no qual as
l,,i
1:t
lacunas axiológicas são, em vez de prescrições subjetivas, descrições de um
Aliás, a orientação geral adotada pelos positivistas exclusivistas coincide
com as teorias fundacionalistas absolutas, ou seja, o tratamento da «exceção
implícita» (à regra pela aplicação do princípio subjacente) como produto do
1S6. RAz, 2002: 201. RAZ faz aqui uma referência particular à organização conservadora dos
exercício da discricionariedade. Essa solução é coerente com a tese de que
tribunais na Inglaterra, como uma comunidade fechada e centralizada: «lt [o Poder Judiciário
existe um input externo à cognição das normas válidas (fontes) com definição
1 1

I~1,
inglês] is recruited exclusively Jrom the Bar (itself small), comes from a more or less
homogeneous social background, and is unijied by strong professional and social ties into a
relatively cohesive social group where personal autlzority carries more weight than any formal
rules of precedent» (RAZ, 2002: 181 ).
clara do status deôntico de uma série de ações em circunstâncias dadas. Qual-
quer intervenção que defina (em caso de lacuna) ou revise esse status deôntico
de uma ação é discricionária, i.e. baseada em razões extralegais (vinculantes
l~li 1s7. ALCHOURRÓN e BULYGIN, 1993.
1! 1ss. ALCHOURRÓN, 1996, e BULYGIN, 2005.
para o juiz, mas que não fazem parte do ordenamento).
159. BULYGIN, 2005.
1"°· ALCHOURRÓN, 1996. 162
· MoRESO e RODRIGUEZ, 2010: 27-29.
l6I. RODRIGUEZ, 2000. 163
· CARACCIOLO, 2006.
160 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 161

A variação entre os positivistas dá-se em termos do grau de reconhe- cionalidade não estava nas regras do CP (arts. 124 e 128), mas nas regras para
cimento de que a exceção implícita poderia ser apontada pela cognição do aquela hipótese de anencefalia.
conteúdo do próprio input externo ~fonte). Essa oscilação provoca enorme
Retomemos o exemplo e o quadro da seção 3.9 sobre aborto. A solução
dificuldade e insegurança, resultando em conclusões oraculares que beiram a
dada pelo sistema K·={ 124-,128}, considerado claro, incluindo-se agora o
inconsistência. Por exemplo, sobre a identificação de exceções à regra por força
fator de anencefalia do feto (f), seria:
de princípios a elas subjacentes, MAcCoRMICK afirma que «em um sentido,
novo Direito está sendo produzido, mas está sendo produzido com base no
M e r f 128 124*
próprio corpo do direito, porque totalmente coerente com ele e, portanto, já
presente no seu quadro de referência original». 164 E o mesmo ocorre com RAz 1. + + + + Pa
quando diz que «disputas não reguladas são, como veremos, parcialmente 2. + + - + Pa
reguladas, de modo que a corte tem que aplicar o direito existente assim como -
3. + + + Pa
criar novo direito». 165 No fundo, essas passagens refletem a «eterna» discussão
entre juristas sobre a diferenciação entre analogia, interpretação extensiva e 4. + - - + O-a
restritiva, como fatores que alteram o direito ou meramente o revelam com 5. + + + - O-a
base em sua ratio. 166 6. + + - - 0-a
Nessa encruzilhada entre princípio e regra entrevê-se todo o dilema que 7. + - + - 0-a
impregnou este trabalho: ou as razões indicadas por princípios são extraju- 8. + - - - 0-a
rídicas, fazendo-se quimera de seu tratamento doutrinário e jurisprudencial • Concentro-me apenas nos casos de aborto realizado por médicos (na ausência desse fator, o aborto
como ratio juris ou ratio legis; ou as regras jurídicas não detêm efetivamente é sempre proibido).
autoridade, colocando-se em risco a independência entre direito e moral. Se
regra jurídica e princípio jurídico podem colapsar, ou esta ou aquele detém O caso chave é o 4, no qual a norma 124• é uma razão para não realização
autoridade: tertium non datur. do aborto. A presença ou ausência da propriedade f, aliás, é irrelevante para
qualquer das soluções dadas pelas normas 124• e 128. Entretanto, em seu voto,
A solução que proponho aqui para o dilema é recusar a assunção, implí- o Ministro relator levantou a inconstitucionalidade, não da norma 124, ou
cita em sua base, de que regra e princípio sejam standards de conduta inde- 124., mas da solução dada pela norma 124• no caso 4. A inconstitucionalidade
pendentes (uma derivada da fonte o outro derivado de valorações morais). Na seria dada por sua contradição com o art. 1º, III, da Constituição Federal que
verdade, um pode ser inferido a partir do outro, hipótese que quebra a base do coloca a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, além
dilema. O meu problema passa a ser explicar como elementos conexos podem da premissa de que suportar uma gravidez com a certeza da morte do nascituro
se mostrar incompatíveis, i.e. como podem oferecer razões opostas para uma seria indigno para a mulher.
mesma ação em circunstância determinada. O recurso a um caso prático pode
ajudar a desvendar o puzzle. M E R F 128 124* Dign
Aproveito-me do mesmo exemplo sobre as condições legais para 4. + + O-a Pa
permissão do aborto, agora com a hipótese de feto anencefálico. O caso é inte-
ressante, pois a discussão travada no STF não versou sobre habeas corpus (no Apesar da acusação por alguns de seus colegas de que essa tese de
qual caberia a diferenciação de MAcCoRMICK entre concreção e a identificação inconstitucionalidade estaria contrariando «a lógica do sistema jurídico» ou
da norma válida como fato institucional), mas sobre a própria constituciona- fazendo o STF arrogar o papel legislativo, o fato é que o voto prevaleceu (pelo
lidade das regras do Código Penal brasileiro (Arguição de Descumprimento menos no que dizia respeito à questão preliminar levantada, pois o processo
de Preceito Fundamental 54-8/DF). O curioso é que o problema da constitu- principal ainda aguardajulgamento).

164
• MA.cCORMICK, 2005: 204 (trad. livre).
165
· RAz, 2002: 182.
166
· 808810, 1938.
".';l:.···\'lr? t .I

162 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO f)


163
1 (,
Uma leitura inclusivista veria aqui tipicamente um princ1p10 ou, na derados aceitáveis em uma deliberação jurídica sobre o aborto, o conteúdo do
versão de W ALUCHOW, 167 um direito fundamental à dignidade incorporado art. 124 deveria ser alterado, pois reflete clara preferência pelo direito à vida
()
na regra de reconhecimento do sistema. A razão decisiva para o caso estaria do feto, sem qualquer concessão a alguma política pública sobre emprego. (,
no princípio de dignidade, com autoridade anterior e independente da norma Argumentos com base no pleno emprego, ou capacidade econômica da mãe, {,
124*. Três problemas aparecem nessa interpretação: (i) a noção de dignidade poderiam ser reconsiderados caso fossem inseridas nos artigos do Código
humana como elemento da regra de reconhecimento, por ser conceito moral Penal exceções referentes a número de filhos ou renda da famfüa. f;
fino (é o próprio conteúdo do imperativo categórico kantiano), praticamente
explodiria o universo de razões jurídicas para o universo de razões morais; (ii) Isso mostra que a «existência» dos princípios na ordem jurídica, como ( ..
a consideração da razão dada por Dign como jurídica anula a razão oferecida razões para a ação, tem menos a ver com o seu enunciado.em texto normativo {.'·
por 124* para o caso 4; (iii) o princípio de dignidade aparece, na constituição, de qualquer hierarquia (positivação), e mais com a sua efetiva chancela pelo
legislador como relevante na regulação de um tipo de ação em determinadas (i
de forma independente das normas 124 e 128, de forma que outros princípios
também poderiam ter aparecido para mudar soluções normativas. condições hipotéticas. E essa chancela é dada ou pode ser inferida a partir (i
do conteúdo ·das normas jurídica que se aplicam àquele tipo de caso. Assim,
Seria estranho em caso como esse, versando sobre uma exceção implí- (
os princípios não valem em geral na ordem, valem a partir de um\ problema
cita, dizer que o art. 124* não constitui razão jurídica para a ação, até porque jurídico e de um regramento particular para esse problema. {
continua a ser razão jurídica relevante dentro do sistema normativo resul-
tante de K0 i 0 ={ 124*,128, Digo}. Ademais, se a previsão constitucional é a No embate argumentativo no caso do aborto de feto anencéfalo, o prin- (
responsável gpor colocar o princípio como conteúdo da regra de reconheci- cípio de dignidade foi tomado como relevante a partir do reconhecimento de {
mento, então isso não exclui outros valores também reconhecidos nesse plano que o próprio legislador, ao permitir o aborto em caso de estupro, deu primazia
constitucional geral. Por exemplo, poderia argumentar que a busca do pleno à dignidade da mãe com relação à vida do feto. A preferência apareceu aqui, (1
emprego é um valor constitucionalmente protegido (art. 170, inc. VIII) e, sendo então, como ratio capaz de explicar os arts. 124* e 128, que foi generalizada {
a relevância desse para o tema «aborto» algo independente das normas penais para uma condição de indignidade equiparável ao estupro. Nessa interpre-
válidas que se aplicam à ação de abortar, poderia questionar a proibição do tação, o princípio de dignidade ou a·relação de preferência não aparece como (1
aborto como forma de evitar o desemprego. Ou ainda, construir um argumento norma independente, ao lado da norma proveniente da fonte, mas derivado e (
de invalidade da proibição do aborto em nome da liberdade da mulher. Mas conjugado com ela. Mas se isso for verdade, então, não pode haver o conflito
entre a norma e sua razão de fundo. Passo a enfrentar o problema:
(
esses argumentos com base no pleno emprego e liberdade absoluta da mulher
seriam claramente inaceitáveis como razões jurídicas no direito brasileiro, (
Primeiro, o que está em jogo não é só o princípio de dignidade, mas a
dado o conteúdo das normas do Código Penal. relação de preferência: (
Isso não significa que não há critério para separar o que é do que não
Dign> Vfeto: «a dignidade da mãe prevalece sobre a vida do feto.» (
é juridicamente admissível dentro de um debate principiológico, nem que,
para evitar o colapso de razões jurídicas em razões morais (a proposta inter- Essa última cláusula generaliza a condição de gravidez resultante de {
pretivista ou antipositivista), a única saída seja retirar justificações baseadas estupro, de forma que pode instanciar tanto a situação de estupro quanto a {_)
em princípios do universo de razões jurídicas (tese da discricionariedade). A situação de feto anencefálico (em ambos os casos, dado o sofrimento moral,
linguagem corrente entre juristas com respeito a argumentos ou interpretações obrigar a mulher a sustentar a gravidez significaria tomá-la como meio e não {·
juridicamente inaceitáveis já indica a existência de um filtro sobre potenciais como fim). (_
explicações e correspondentes atribuições de sentido para as normas. Segundo, derivamos dedutivamente do art. 124* duas proposições: (_;
Os argumentos assentados na liberdade da mulher e na busca do pleno 124.. :«é proibido o aborto se (... ) há diagnóstico de anencefalia do
emprego são juridicamente inaceitáveis justamente pela incapacidade desses 4. '
feto»
valores constitucionais em explicar de forma coerente as escolhas refletidas no (_ 1

conteúdo das normas jurídicas válidas para o aborto (arts. 124 e 128). Isso não 124***:«é proibido o aborto se(... ) não há diagnóstico de anencefalia do
que dizer que sejam, em si, absurdos ou imorais. Para que possam ser consi- feto» l
Ambas as regras estão implícitas no conteúdo de 124*. Porém, embora 4. .
167· WALUCHOW, 2003 (cap. 5). Dign>Vfeto explique 124* e 124•••, não explica 124.. , se aceitamos a premissa {\
t
4.
;

j .
.

t JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO


~ lNCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 165
164 1

l
de que a gravidez de feto anencéfalo significa grave sofrimento moral (indigno a ação de abortar conforme o ordenamento jurídico brasileiro, não por sua
)
.
)
para o ser humano) .
Vamos descartar a discussão semântica sobre se a gravidez nessa
circunstância teria ou não essa gravidade moral, pois, colocada nesses termos,
moralidade, mas por ter sido claramente endossado nos dispositivos legais.
Em outra oportunidade chamei de «refinamento» essa operação pela
qual o sistema normativo original é melhor especificado a partir de novas

,
)

)
já implicaria a aceitação de Dign> Vfeto como razão jurídica.
O ponto é que, quando a questão foca sobre a anencefalia, Dign> Vfeto
perde poder explicativo para uma possível especificação de sentido para o art.
124 do CP brasileiro, a saber 124... Aparecem então duas interpretações para
condições de aplicação, gerando um sistema no qual pelo menos uma das
soluções é incompatível com o original em algum caso e procurei descrevê-la,
do ponto de vista lógico, com o que chamei de «operadores de refinamento».
Embora essa não tenha sido a tônica quando desenvolvi os sistemas lógicos de
os arts. 124 e 128 do CP: refinamento, esses estão ligados a inferências abdutivas e raciocínio com base
) em coerência do sistema normativo. 168
Kª: seu conteúdo é fixado como 124•••, ao lado de 128• ( «é permitido
t o aborto nas hipóteses de risco de vida, estupro e feto anencéfalo»), que é Tome o exemplo de uma padaria que proíbe a entrada de pessoas acom-
) explicado por Dign> Vfeto; panhadas de cachorros. É razoável supor que o princípio ou razão de fundo
K : seu conteúdo é fixado como 124.. e 128, que pode ser explicado seja evitar o incômodo aos demais clientes. Esse princípio explica·a proibição
) 13
por outro princípio, ou inversão da relação (Vfeto>Dign) para essa hipótese, de entrada de uma série de cachorros ou animais de estimação. Mesmo que
) ou ainda uma qualificação da relação de preferência Dign>Vfeto (e.g. relação se aponte um cachorro treinado, esse não tem força para tornar aceitável uma
prevalece somente quando o sofrimento moral independa de enfermidade do exceção. A situação muda de figura na hipótese de entrada de cego com seu cão-
) guia, quando a padaria contiver normas que confiram prioridade a deficientes
feto).
) Isso significa que não há propriamente um conflito entre norma e prin- físicos. Surge aqui um conflito entre duas interpretações possíveis em que o
princípio subjacente, além de não explicar uma das consequências lógicas da
) cípio, mas conflito entre interpretações dos arts. 124 e 128 como resultado de
norma, viz, «proibida a entrada, se cego com o cão guia», opõe-se ao outro
ato de legislação racional. O pressuposto é que cada uma das interpretações
) princípio que justifica prioridade aos cegos nas filas. Isso não significa dizer,
tem seu conteúdo fixado em harmonia e explicado por razões de fundo na
a exemplo de FULLER, que para os propósitos da lei, o sentido de «cachorro»
) forma de valores ou princípios. E dentro do debate jurídico, tanto o conteúdo
não inclui cão-guia. Regra e propósito continuam conceitualmente separados.
das normas quanto o dos princípios aparecem como razões relevantes.
) Apenas se diz aqui que, nesse quadro normativo, fica difícil defender juridi-
A questão, portanto, resume-se à possibilidade de se identificar qual dos camente a interpretação que resulta no sistema normativo contendo proibição
)
sistemas normativos em conjunto com os princípios de fundo seria a inter- de entrada do cego com seu cão-guia, pois é incoerente com os princípios
) pretação mais coerente do ordenamento jurídico (das normas em jogo) como endossados por essas regras. Também nesse caso, os princípios são razões
) resultado de um ato racional do legislador. Conta a favor de Kª o fato de o jurídicas relevantes, mas não significam qualquer posicionamento moral sobre

• princípio subjacente explicá-lo de forma simples e direta e, ao mesmo tempo, a hipótese ou sobre a qualidade ética das regras envolvidas.
explicar 124• e 128, que compõem a base "indisputável" do ordenamento. Em casos como esses, nos quais o tribunal estabelece distinção ou espe-
) Conta contra, o fato de que a descrição da norma torna-se mais complexa e cificação em conformidade com a ratio da norma original, o próprio RAZ se
qualificada, ao passo que K13 tem conteúdo mais simples e mais próximo de 124• vê tentado pela explicação de que a justificação é jurídica e não extrajurídica.
t e 128. Na definição de qual seria a melhor expressão da vontade racional do Considera essa especificação «uma forma muito restrita de criar direito» e
) legislador, obviamente a interpretação ~ que não traz qualificações implícitas admite ser «tentador dizer que a regra modificada era na verdade a regra original

,
)

)
tem uma razão forte no sentido de que um legislador suficientemente preciso,
teria especificado a exceção se essa fosse sua vontade. Há uma presunção de
que a condição expressa seria suficiente. Por outro lado, K13 tem que superar a
aparente incoerência (imprópria para o pressuposto de racionalidade) de que
que a corte tinha em mente mas que falhou em articulá-la com clareza».
A saída então para o puzzle destacado nesta seção está em compreender
que um princípio pode explicar uma regra, mas não explicar uma particular
169

consequência lógica dessa regra (a regra em uma particular condição). Nesse


a dignidade prevaleceria no caso de estupro, mas não no caso de sofrimento caso, aparecem duas especificações possíveis de conteúdo para a regra, expli-
} moral pela morte certa do nascituro.
) Seja qual for o desenlace dessas duas interpretações juridicamente defen- 168. MARANHÃO, 2004; 2007; 2009c.
) sáveis, o princípio de dignidade da mulher é uma razão jurídica relevante para 169. RAZ, 2002: 187-188.
)
t
i,~'tm'( t )
'·ic·j~
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
INCLUSIVISMO LÓGICO-JURÍDICO 167 f;
166
(,
Minha primeira resposta é que, se ocorreu alteração, essa foi pautada por
cadas por princípios distintos, concorrentes, ou por uma especificação, i.e. (.1
razão jurídica, não extrajurídica, que prevaleceu sobre o conteúdo daquela
introdução de uma cláusula no próprio princípio (há um equilíbrio reflexivo
entre o conteúdo da regra e do princípio). Pode ser o caso que uma das espe-
razão presente no conteúdo da regra com aquela interpretação. Isso não é f,
muito diferente de qualquer decisão entre razões jurídicas dadas por normas
cificações seja claramente mais coerente com a ordem, ou que ambas sejam {_
conflitantes, já que o conflito é sempre entre uma atribuição de sentido deter-
igualmente defensáveis. minada às normas. Aqui, apenas destàco que essa atribuição de sentido é f.
A reformulação e especificação da explicação sobre o que é preciso fazer independente, mas está ligada com a atribuição de um valor (propósito), já
(.:
para cumprir o ordenamento é natural quando se busca uma apresentação que se pressupõe racionalidade à atividade de legislação.
coerente das normas como atos racionais. As inferências à melhor explicação A segunda resposta aponta para diferença entre ser a regra clara e ser o
{:
possível guardam a propriedade que LIPTON denomina «contrastividade», 110 caso determinado ou fácil, já discutida no item 4.3. Lembro que, assim como (_1
i.e. as explicações são contrastivas e opõem sempre duas possibilidades. A a passagem de K* ={124·, 128} para Kª={124... , 128*} envolve uma operação {;
pergunta que demanda uma explicação tem a forma: «Por que isso, em vez de refinamento, K*, considerado o conteúdo «claro» ( «settled law») do Código
daquilo?» ou «Por que A, mas niio B?». Perguntas aparentemente unívocas, Penal, nada mais é do que o refinamento de K={ 124,128}. (
ou da forma «Por que A?» não pedem apenas uma razão coerente para A, mas {
A razão de minha diferença em relação aos exclusivistas está aqui. Esses
também que sejam distintivas e excluam a possibilidade de -A, podendo ser consideram como ordenamento a base objetiva do direito (settled law). Mas,
reduzidas à questão contrastiva «Por que A, mas não -A». Assim, uma pergunta (
como visto, essa já pode ser o resultado de processos de revisão do material
«Por que João foi à praia?» em determinado contexto comunicativo pode ter
uma explicação satisfatória com a resposta «Porque ele está de férias e precisa
pré-interpretativo. A crença na «alteração do ordemanento original» está e·
presente na identificação da base objetiva como normas que dispensam inter- ('
descansar da tensão da cidade», se o contraste, no contexto, for entre viajar e pretação. No momento em que a abandonamos, a possibilidade de confronto
não viajar. Mas se o contraste for mais específico «Porque viajar para a praia entre o conteúdo de settled law e princípios justificadores simplesmente desa- {
e niio para o campo?», então a explicação deixa de ser satisfatória, exigindo-se parece. Nos casos de confronto d~ difícil resolução entre razões de fundo e {)
razões específicas como «Porque sua casa de campo está em reforma». razão da regra simplesmente não há settled law.
(:'
O mesmo se dá em termos de razões de fundo para as normas jurídicas. Mesmo fora do enquadramento de caso fácil como «caso cuja regra é
Um princípio pode explicar uma regra em determinado grau de especificação
( ,,
clara», isto é, ainda que se considere o ordenamento como o conjunto das
e não em outro, o que pode gerar ou reformulação da explicação, ou melhor instanciações acordadas, a ideia de «alteração do conteúdo original» se perde (
especificação da regra. A questão contrastiva muda quando perguntamos se é quando tomamos a perspectiva do caso ou da questão específica colocada ao
correto abortar e se é correto abortar em caso de anencefalia, ou, no nível de (
ordenamento. As situações de exceções implícitas podem aparecer quando,
justificação da regra, quando contrastamos porque é permitido e não proibido nas condições explicitadas pela regra, há convergência entre as razões dos {
abortar em caso de sofrimento, ou ainda, porque seria permitido o aborto em princípios justificadores e a razão da regra, porém em condições mais quali-
caso de estupro e não de anencefalia. O problema da identificação do contraste ficadas, há divergência entre as razões. Isso pode criar a impressão de que o l
estava presente também na oposição entre os índices de correção da poupança. direito já estava determinado e foi alterado. Mas o que ocorre aqui é simples- {)
Embora tenha ocorrido uma revogação da própria correção, a pergunta colo- mente que perguntas distintas foram colocadas e, portanto, recebem respostas {::
cada na mesa como relevante não foi se deve haver ou não haver correção, mas distintas. O caso cuja descrição das condições coincide com aquelas previstas
por que deve ser a correção pelo BTN e não pelo IPC, o que deixou a questão explicitamente na norma e em que essa se harmoniza com o princípio é um {
anterior e mais geral em segundo plano, como obviamente já respondida. caso fácil. O caso com condições mais finas do que aquelas previstas na norma ('
Normalmente, há uma presunção de que a especificação modificadora da pode já não o ser. E pode ocorrer também que o caso mais fino receba a instan-
ciação da razão oferecida pelo princípio como a instanciação indisputável.
('
solução dada pela norma geral seria incoerente com as escolhas efetivas do
Tome-se o conhecido exemplo da proibição de derramamento de sangue nas (_)
legislador, mas essa não é absoluta. Poderia voltar à tona, com base naquela
ruas, cujo motivo é a prática de duelos. Nesse caso, é evidente que a ratio não
presunção, a tese de que teria mesmo ocorrido uma revisão da norma «clara»
significa uma proibição a um médico atender a uma urgência na rua. Esse caso l
presente no ordenamento, por meio de discricionariedade. {;
está «claramente» fora do âmbito de aplicação da proibição, ainda que haja
derramamento de sangue. t.'
º·
17 LIPTON, 2004 (cap. 5), l.ª ed., 1991.
\. 1

~
~
1 .
168 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO

Assim, conflitos princípio-regra são, na verdade, conflitos entre sistemas


normativos resultantes de interpretações juridicamente plausíveis de normas
do ordenament~ (material pré-interpretativo) para questões sobre o status
deôntico de uma ação no caso especificado. Nos casos fáceis, uma determinada
interpretação (atribuição de sentido à norma,justificada por um princípio) não
encontra oponente juridicamente aceitável. Nos casos subdeterminados isso
não ocorre. Desaparece, assim, o dilema da escolha entre princípio ou regra
como a razão em «última instância» pertencente ao direito. Ambas são razões
juódicas que, em casos subdeterminados, em particular os difíceis, passam
as ser razões concorrentes vinculadas a interpretações concorrentes. A sub- 4
determinação é consequência natural da subdeterminação caracteóstica da
inferência e da explicação coerentista. CONCLUSÃO
O grau de garantia de assertibilidade desses princípios juódicos depende
da extensão na qual a hipótese vencedora subjuga suas concorrentes. No ponto
máximo, estão aquelas hipóteses cuja negação minaria nossa capacidade de
dar sentido ao ato de fala. Nesse sentido há uma aproximação da ideia de Normas derivadas de normas válidas são válidas?
necessidade dentro do jogo de linguagem da interpretação juódica. Se for
Sim, as razões derivadas de normas pertencentes ao ordenamento são
a única razão plausível, negá-la é o mesmo que deixar de fazer sentido ao
razões jurídicas.
ato como dotado de racionalidade, o que, dentro da comunidade jurídica é o
mesmo que deixar de interpretar. Em casos subdeterminados, o teste se dá com Essas derivações podem ser dedutivas, o que permite construir o universo
pelo menos mais uma hipótese concorrente que, se igualmente defensável, é de razões jurídicas válidas como o fechamento dedutivo de razões jurídicas
também uma razão juódica derivada do ordenamento. O universo de hipóteses de determinada base de normas. Mas podem ser também abdutivas com a
é, porém, limitado, seja pelo próprio método controlado de inferência seja pela identificação das razões de fundo que justificam a criação de uma norma (ou
convergência de entendimentos pela comunidade jurídica (doutrina e jurispru- conjunto de normas) com determinado conteúdo. Como essas razões são
dência) que restringem possíveis atribuições de sentido ou de propósito para também razões para a ação, a partir das quais podemos fazer deduções, pode-
um conjunto de regras. se construir o universo de razões como o fechamento dedutivo do conjunto
De qualquer forma, não é o grau de garantia epistêmica daquele princípio de razões que melhor explica a base de razões juódicas já condensadas, que
como conclusão de uma inferência abdutiva que o faz jurídico, mas simples- chamamos de fechamento coerentista.
mente o fato de que, dentro de uma interpretação defensável do ordenamento A resposta foi então empregada para explicar o direito e, em particular,
juódico, segue um processo controlado e racional que identifica relação entre
o recurso pelos tribunais a decisões com base em princípios morais e de polí-
seu conteúdo e o conteúdo de regras válidas daquele ordenamento. Sendo
ticas públicas considerados vinculantes, sem recurso a uma justificação moral
assim, seu caráter juódico não decorre de seu mérito moral, mas da relação
do conteúdo desses parâmetros normativos. Trata-se de considerar apenas que
específica que guarda com normas derivadas da fonte social.
a sua força vinculante decorre do fato de serem derivados de razões dadas por
Essa resposta coloca o inclusivismo lógico aqui proposto na classe normas pertencentes ao ordenamento jurídico.
das «teorias coerentistas locais subdeterminadas», que é a classe de teorias
coerentistas mais modesta, na escala acima proposta. O fechamento coeren- Para tanto, deveria haver alguma base objetiva de normas a qual esses
tista do ordenamento, além de local, é subdeterminado. Isso significa que princípios ofereçam a melhor explicação possível. Partiu-se da tese positivista
o material pré-interpretativo, o ordenamento, pode gerar pacotes locais de de que os tribunais, e a comunidade jurídica em geral, compartilham uma
soluções coerentes e concorrentes entre si. Seja qual for o sistema normativo prática de identificação objetiva das fontes dotadas de autoridade. Essa versão
gerado, deve ser sempre compatível com a solução dada pelos casos fáceis. A fraca da tese de objetividade foi considerada insuficiente para formar a base de
incapacidade em explicar os casos fáceis mostra a incoerência e, portanto, o inferências. Assumiu-se, assim, o compartilhamento, pela comunidade jurí-
insucesso da interpretação, ou o que é o mesmo, a falha em identificar corre- dica, além das convenções sobre o significado dos termos da linguagem, de
tamente o direito. um método de interpretação dessas fontes, cujo postulado central é a assunção
170 JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
CONCLUSÃO 171
contrafática de que os atos criadores de regra são racionais (as normas são
A vantagem do inclusivismo lógico é que permite explicar razoavelmente
meios para alcançar objetivos ou concretizar valores).
a adjudicação de base principiológica e as controvérsias nela presentes (nos
Esse método compartilhado pode determinar a solução de questões casos subdeterminado~ que incluem os hard cases) sem a necessidade de se
jurídicas em uma série de casos, o que permite identificar de forma objetiva assumir a ligação entre a força vinculante dos princípios e o mérito moral
determinado mínimo de conteúdo consensado ou uma base proveniente de de seu conteúdo. Com isso, a primeira versão da crítica de DwoRKIN sobre
fontes sociais. Não foram oferecidos critérios epistêmicos para se obter essa a incapacidade do positivismo em lidar com princípios e a inadequação da
determinação. Ela foi admitida como decorrência conceituai de uma prática tese de discricionariedade pode ser acomodada. A segunda versão da crítica
minimamente convergente em seguir regras jurídicas. de DwoRKIN, com foco na discrepância entre os tribunais, pode ser também
Os limites à interpretação (identificação do direito) são dados por essa absorvida. Em primeiro lugar, porque os chamados «casos difíceis», que, para
base: os limites da linguagem ordinária presente nas normas do ordenamento DwoRKIN, minariam a base objetiva sobre a qual se constrói o positivismo, não
(material pré-interpretativo) e aquele conteúdo de interpretações indisputáveis dizem respeito àquilo que compõe a base do fechamento de coerência. Em
em casos fáceis. Qualquer debate jurídico sobre qualquer outra questão fica segundo lugar, porque para os casos subdeterminados pode haver controvér-
constrangido por esses dois fatores, além dos postulados de racionalidade na sias profundas, com a oposição de teses interpretativas, sem que ~om isso seja
atividade de interpretação. necessário recorrer à tese de discricionariedade, ou seja, à afirmàção de que
as soluções, nesses casos, seriam pautadas em fundamentos extrajurídicos. As
Princípios morais e de políticas públicas passam a ser razões jurídicas soluções nesses casos são sempre jurídicas, embora possa haver escolhas entre
como resultado do fechamento coerentista dessa base. Porém, não se trata interpretações, quando essas forem igualmente defensáveis.
de introduzir essa operação sobre toda a base, mas em pacotes voltados para
questões j~rídicas específicas (inferências locais). A base gera tantos sistemas Não se exclui, porém, a possibilidade de decisões com base em razões
normativos quantas forem as questões. Isso significa que princípios são razões extrajurídicas, assim entendidas aquelas baseadas em parâmetros normativos
juridicamente vinculantes, não com relação ao ordenamento, mas com relação que estejam fora do universo de explicações possíveis para o conjunto de
a um sistema normativo gerado por uma reconstrução interpretativa de deter- normas aplicável à ação em questã_o nas circunstâncias especificadas, i.e. fora
minada parcela do ordenamento que seja relevante para responder à questão dos sistemas normativos fechados por coerência aptos a interpretar aquelas
posta. Essa reconstrução interpretativa pode ser unívoca para a questão (casos regras do ordenamento de base. Esses casos podem ser equiparados a descum-
determinados) ou pode concorrer com outras, o que significa a possibilidade primentos de normas legais, i.e. ações guiadas por motivos extrajurídicos,
de princípios concorrentes para uma mesma questão, mas pertencentes a incompatíveis com as razões oferecidas pelo direito.
sistemas normativos distintos, igualmente aceitáveis como interpretações do Assim, a versão de inclusivismo lógico aqui sugerida não busca apoio
ordenamento jurídico. A subdeterminação decorre da subdeterminação dos na tese de discricionariedade, que acabava por deixar toda a atividade de
mecanismos de inferência empregados, mas não desqualifica o princípio que interpretação do lado de fora da teoria do direito. Diversamente, afirma-se
informa uma determinada reconstrução como pertencente àquela reconstrução explicitamente E=/.
do ordenamento jurídico.
O positivismo inclusivista, de certa forma, também afirma essa identi-
A concepção do direito aqui defendida como o conjunto dos fechamentos dade, por incorporar os princípios observados na prática interpretativa dos
coerentistas locais (sistemas normativos) do ordenamento jurídico foi chamada tribunais como critérios da regra de reconhecimento. Seu grande problema,
de «inclu_sivismo lógico». Ela satisfaz as condições mínimas de uma teoria como vimos, foi sustentar E=l:1:-D.
positivista do direito, na medida em que restringe o universo de razões morais
possivelmente aplicáveis para a solução de questões jurídicas (a restrição A primeira dificuldade dizia respeito ao conteúdo de dever da regra de
é dada pelo método de inferência e, ~m particular, por sua aplicação local, reconhecimento. A segunda referia-se à explosão das razões jurídicas nas
que limita o conjunto das melhores razões normativas capazes de explicar o razões morais, dado o caráter controverso dos princípios. A terceira à capaci-
material de base) e não assume qualquer predeterminação de conteúdos, pois dade em preservar as noções de autoridade e de diferença prática das regras.
a base sobre a qual se aplica o fechamento coerentista decorre de um fato A proposta de inclusivismo lógico ambiciona contorná-las.
social contingente (qualquer conteúdo pode ser conteúdo de regra jurídica e,
Quanto à primeira dificuldade, basta notar que não há qualquer alteração
portanto, qualquer razão moral pode ser razão jurídica, na medida que seja a
na regra de reconhecimento ou na tese das fontes, que inclusive pode ser
melhor explicação possível para algum recorte dessa base de normas).
tomada em sua versão fraca (da tese das fontes e não da tese de objetividade
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO CONCLUSÃO 173
172

das fontes). É a partir dos atos criadores de normas reconhecidos pela regra outra concepção que considere a razão dada pelo princípio como juridicamente
como jurídicos que se identificam os princípios compatíveis com as normas válida independentemente da regra jurídica. Não é o caso aqui.
relevantes para uma dada questão jurídic~ por meio de inferências abdu- Sobre o argumento de autoridade, não há conflito quanto ao aspecto da
tivas. independência das razões de fundo (de justificação da regra) com relação às
Pode-se ·propor que a regra tenha sido alterada para incorporar, se não razões ou conteúdo da própria regra, o que foi, aliás, explicitamente assumido.
os princípios propriamente, pelo menos os métodos de inferência dedutivos Quanto ao caráter «exclusionário» da regra em relação às razões de fundo
e abdutivos. Não me parece adequada essa incorporação. A interpretação não como condição de sua autoridade, pode parecer haver uma incompatibilidade.
faz parte da regra de reconhecimento, mas gera razões pelo fato da dedução Porém essa somente está presente se considerarmos os princípios como razões
e a inferência abdutiva serem, respectivamente, condições de inteligibilidade independentes, que precisam ser afastadas, para que a substituição pela razão
e de inteligibilidade das normas dotadas de fonte como resultantes de esco- da regra (service conception) possa vingar. Quando pensamos os princípios
lhas racionais. Ainda assim, seria possível partir de uma concepção de infe- sem status independente da regra (na verdade derivados da regra), essa divisão
desaparece e é por essa razão que, como vimos na seção anterior,. não há a
rência como compartilhamento de regras ou consensos de ação, no sentido
possibilidade de «ingratidão» de princípios. Vale lembrar que, _para RAz, o
de WllTGENSTEIN. Segundo essa concepção, todo debate sobre necessidades
cerne da tese das fontes está na capacidade de selecionar as razões' morais que
das inferências lógicas está sempre ligada a uma convenção da comunidade
são validamente endossadas pelas autoridades. O relevante para a autoridade
linguística e não a uma revelação de propriedades necessárias do discurso ou
das normas jurídicas é a capacidade de delimitar essas razões e não permitir
do mundo. Essas convenções seriam estabelecidas por práticas já arraigadas que as próprias razões que justificaram a criação da regra sejam objeto de
dentro de uma determinada comunidade linguística e que estariam, por essa deliberação.
razão, impressos em seus jogos de linguagem.
A capacidade em superar as principais objeções dirigidas ao inclusivismo
Partindo-se dessa concepção de inferência, pode-se pensar que tais pelos exclusivistas e a limitação do papel da tese de discricionariedade tomam
regras de derivação estariam presentes na regra de reconhecimento, por serem o inclusivismo lógico uma soluçãp atraente para o positivismo, permitindo-
práticas convergentes, assim como a convergência na identificação das fontes. lhe lidar com princípios como razões jurídicas vinculantes. Por outro lado,
Mesmo assim, tal compartilhamento seria constitutivo desse conteúdo e não as inferências envolvidas no fechamento coerentista do sistema normativo
há a necessidade de se supor nenhum conteúdo de dever, no sentido de uma partem apenas do pressuposto que as regras são criadas com base em razões
obrigação de respeitar aqueles mecanismos de inferência. Diversamente da (não necessariamente em boas razões) e seu procedimento, apesar de envolver
incorporação de princípios feita pelos inclusivistas, a incorporação de meca- valorações, não significa que deva haver engajamento em argumentação sobre
nismos dedutivos e abdutivos de inferência é necessária e não contingente. seu valor moral. A argumentação em questão tem a ver com a coerência dessas
Aliás, tais mecanismos não seriam muito diversos, em sua natureza, do critério razões e, em particular, seu poder explicativo em relação à base selecionada
de identificação de normas por pedigree. de regras e ao caso em questão. Nesses limites, uma epistemologia jurídica
A segunda dificuldade é contornada, pois os princípios não são incorpo- pode ser concebida como valorativa, mas moralmente neutra.
rados como critérios de validade e, na concepção coerentista local, preserva-
se uma transitoriedade moderada da base (em particular o consenso sobre os
casos fá~eis). Os princípios não determinam o que faz parte do direito, mas
são determinados por meio daquilo que é considerado parte do direito.
A terceira dificuldade compõe-se de duas objeções: perda de autoridade
das normas jurídicas e sua incapacidade de fazer diferença prática. A segunda
delas é facilmente superada, na medida em que a motivação para a ação ou
decisão, em última instância, é dada pela regra jurídica e não pefo princípio.
Esse último decorre e pertence ao direito na medida em que explica a regra.
A regra deixaria de fazer diferença prática se, mesmo na ausência dela, já
houvesse uma motivação suficiente juridicamente válida. Isso só ocorreria no
caso da incorporação de princípios na regra de reconhecimento ou qualquer
ft .'
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···,.., Alguns dos nossos próximos títulos
:!) Uma discussão sobre a teoria do direito
Joseph Rai, Robert Alexy
'.'l e Eugenio Bulygin
,·1 ·O conceito e a natureza do direito
Robert Alexy
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Ilícitos atfpicos
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Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero
Uma simples verdade
1 J> OJuiz ea construção dos fatos
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