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Entrevista sobre Reforma psiquiátrica

Entrevistador Anoã Campos, estudante de Direito da PUC


Entrevistado Rafael Simões, médico pela UFMG, psiquiatra pelo Hospital Odilon Behrens,
atua em CAPS, em equipe de Saúde Mental de saúde suplementar e é diretor técnico e
psiquiatra do Centro de Atenção à Saúde Mental

1-Esse é um tema de um debate em andamento no Brasil há anos. O que a Reforma


Psiquiátrica pretendia inicialmente?
As Reformas Psiquiátricas são várias, com diversas ações e atores. Existem desde ações
pontuais em que hospitais psiquiátricos humanizam suas práticas internas, até a reforma ampla
do modelo de assistência em saúde mental, expresso pela lei da Reforma Psiquiátrica, LEI
10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001.
Quanto aos atores envolvidos, essa lei é a expressão institucional dos anseios de um
movimento social que ganhou corpo nos anos 70 no Brasil. Esse movimento seguiu avançando
nas décadas seguintes até alcançar esse marco legal e segue buscando consolidar esse modelo.
Esse movimento brasileiro se inspira nas reformas psiquiátricas europeias, ocorridas no
contexto do pós-guerra, marcado por prosperidade e ampliação de direitos. Aqui, observamos
importante influência italiana, conjugado com movimento de trabalhadores da saúde e com
movimentos sociais.
Os movimentos de Reforma Psiquiátrica buscam permanentemente instituir e consolidar
um novo modelo de atenção à saúde mental, visando novas práticas clínicas e a inclusão cidadã
dos portadores de sofrimento mental.
Os debates dos movimentos de Reforma Psiquiátrica permanecem atuais. Mantemos o
desafio de implementar esse modelo e abordamos novos temas de destaque, como o uso
prejudicial de álcool e de outras drogas, com suas implicações individuais, sociais, jurídicas e
assistenciais. Discute-se, ainda, a interface forense, que aborda questões relativas à infração
penal e à capacidade civil.

2-Como conseguir, de forma sólida, um maior compromisso político, social e econômico


com as políticas sociais, voltadas para a atenção psicossocial?
Para alcançar os objetivos da Reforma Psiquiátrica, deve-se promover novos marcos e
práticas de Assistência em Saúde, de Reabilitação Psicossocial, de políticas de promoção do
Trabalho e da Assistência Social.
Ainda nesse sentido, deve-se formar profissionais em saúde com essa orientação, ampliar
os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e a RAPS (Rede de Atenção à Saúde Mental) em
geral e promover novas práticas clínicas, substitutivas ao modelo hospitalar/asilar.
Quanto à esfera jurídica, deve-se promover novas práticas, substitutivas à mera supressão
de direitos dos portadores de sofrimento mental. No campo penal, deve-se buscar superar a
noção de periculosidade, sem desconsiderar a importância da responsabilização do sujeito em
relação à sociedade.
Por fim, no âmbito social, deve-se debater e enfrentar preconceitos e práticas de exclusão
difusas na sociedade quanto ao cidadão com sofrimento mental.
3- Foram criados CAPS, mesmo assim em número considerado insuficiente e com pouca
eficiência. Como você vê a dificuldade que a população de pacientes carentes tem para ter
um cuidado e uma assistência adequada?
Os portadores de sofrimento mental devem ser compreendidos de modo ampliado, para
além dos momentos de crise, que por sua vez deve ser compreendida para além da agudização
dos sintomas psiquiátricos. A crise afeta todo o laço familiar e social do sujeito e deve ensejar
uma nova integração sujeito-meio.
A Atenção à Crise, por meio da ampliação da RAPS, é eixo estratégico para o êxito da
Reforma Psiquiátrica. Historicamente, as pessoas com sofrimento mental em crise do país eram
negligenciadas em seu próprio território ou degredadas para distantes, escassos e desumanos
manicômios.
Os CAPS são serviços substitutivos ao manicômio e ao modelo hospitalar. Visam oferecer
assistência à crise de modo territorial e promover Planos Terapêuticos Singulares para a orientar
o tratamento em saúde e a integração familiar e social.
Para universalizar o acesso à Atenção à Crise, é necessário a implantação de CAPS III
distribuídos amplamente pelo país, 24 horas por dia e com equipe adequada quantitativamente e
bem treinada. Os mesmos possuem leitos para internação, modalidade de permanência-dia
(tratamento semi-intensivo) e ambulatório-crise.
Os casos de saúde mental leve-moderado e pacientes estabilizados após o período de
crise podem ser tratados pelas Equipes de Saúde da Família nos Centros de Saúde, sede da
Atenção Primária em saúde, base do SUS. Essa instância se articula com os CAPS, com o Apoio
Matricial e com os equipamentos do SUAS (Sistema Único de Assistência Social).
Temos um modelo acertado, contudo com poucas unidades assistenciais distribuídas pelo
país. O principal fator dessa insuficiência é o grave subfinanciado público da RAPS, assim como
do próprio SUS e das políticas sociais do país.
Mesmo na Saúde Privada, observamos carência de serviços substitutivos ao hospital
psiquiátrico e práticas inadequadas.

4- O Programa de Inclusão Social pelo Trabalho para portadores de transtorno mental vem
sendo desenvolvido de que forma?
A Reabilitação Psicossocial é eixo importante da Reforma Psiquiátrica. A inclusão no
Trabalho é um de seus objetivos, bem como a questão da moradia e da circulação social em
geral.
O trabalho protegido para os portadores de sofrimento mental é um grande promotor da
socialização e do bem-estar. As políticas públicas são fundamentais para promover o direito ao
trabalho para essa minoria.
Para alcançar esse objetivo, pode-se promover a contratação privada por meio de
incentivos aos empregadores; cotas para serviço público; incentivo à economia solidária por meio
da criação de cooperativas e garantia de compras governamentais de produtos e da contratação
de serviços. Além disso, pode-se criar regras específicas para concessão de benefício pelo INSS
e pelo SUAS articulados à promoção ao trabalho.
O Programa de Inclusão Social pelo Trabalho, do Governo Federal, criado pela PORTARIA
Nº 1.169, de 07 DE JULHO DE 2005, consiste em apenas uma ação, dentro da promoção do
trabalho, dentro do eixo da Reabilitação. A reabilitação é incipiente no país; ainda estamos
concentrados na tarefa prioritária de promover acesso universal à saúde mental, em especial à
crise.

5- Comente algum ponto negativo dessa reforma e a maneira que deveria ser aplicada
No âmbito financeiro, ocorre o subfinanciamento da RAPS, bem como do SUS em geral. O
Brasil deveria destinar ao orçamento público em saúde 10% do PIB, conforme observado em
países com Sistema Universal de Saúde, como a Inglaterra.
No campo técnico, temos carência na formação quantitativa e qualitativa de profissionais
para atuar em todo o Brasil. Deve-se ampliar os programas de residência médica e
multiprofissional.
Ocorre ainda, falta de carreira de estado e desvalorização do servidores públicos em
saúde, o que resulta em dificuldade para alocar profissionais por todo o país. Poderíamos nos
inspirar nas valorizadas carreiras do Judiciário e do Ministério Público, por exemplo, que logram
boa qualidade dos serviços e boa distribuição pelo país.

6- Muitas vezes, por decisão judicial, algumas instituições, mesmo sem estrutura, são
obrigados a atender Dependentes Químicos, etc. onde não há leitos específicos para essas
situações. Qual seria a solução mais eficaz para esses casos?
A internação compulsória, prevista pela lei da Reforma Psiquiátrica, LEI 10.216, DE 6 DE
ABRIL DE 2001, deve ocorrer somente em instalações adequadas. O contrário deve ser apurado
pelo Judiciário.
Aliás, esse dispositivo legal é um contrassenso, pois depende de avaliação médica para
subsidio técnico ao juiz. Ora, quando há oferta adequada de serviços de saúde, o médico
assistente avalia o paciente e, se houver indicação, procede-se com a internação imediata –
voluntária ou involuntária, sendo esta consentida pela família e comunicada ao MP.
A ocorrência de internações compulsórias evidencia a escassez de serviços de saúde em
geral, devido à falta de investimentos públicos. Ressalta-se que as determinações judiciais para
prover acesso à Saúde ocorre em todas as áreas e suscita o debate conhecido como
judicialização da saúde.
A superação dessa ampla questão passa por aumento dos investimentos em saúde e pela
criação de câmaras técnicas com participação social, uma instância administrativa, que
dispensariam a intervenção excessiva do judiciário.

7- Um dos erros dessa reforma foi a dispersão de hospitais psiquiátricos muito mais rápido
que a criação de rede ambulatorial permanente, onde pacientes recebiam alta e não tinham
onde prosseguir o tratamento, tendo que retornar a ser internado novamente. Ainda existe
esse problema atualmente?
A questão da taxa de reinternação passa pela complexidade dos casos de transtorno
mental grave. Há o fator clínico da gravidade dos casos, em que 1% da população apresenta
transtorno mental grave, que apresenta exuberante manifestação de sintomas e disfunção
funcional. Além disso, existe a complexidade familiar e social, muitas vezes com dificuldade no
suporte ao tratamento ambulatorial. Isso contribui para novas crises e necessidade de novas
internações.
Os manicômios não ofereciam resposta adequada para essa questão, pois apresentavam
poucos leitos, péssimas práticas clínicas e promoviam a exclusão e a cronificação dos pacientes.
O orçamento referente a cada leito psiquiátrico desativado nos hospitais, passou a
financiar a criação e a manutenção da RAPS. Contudo, é necessário mais investimento público
para ampliar dessa rede. O subfinanciamento da saúde segue um desafio.
Após a Reforma, os pacientes crônicos passaram por processo de desospitalização e
foram inseridos em moradias assistidas públicas. Receberam também concessão de renda
individual, por meio do Programa De Volta Para Casa. Essas moradias contam com suporte dos
CAPS, SUS e SUAS.
Quanto aos pacientes estáveis, buscou-se reestabelecer seus vínculos familiares e sociais
e seguir o tratamento nos CAPS ou na Atenção Primária do SUS, conforme o caso.
Na realidade, a questão da exclusão extrapola o manicômio; este foi apenas um dispositivo
icônico onde se confinavam os loucos. A sociedade carrega uma lógica de controle e de
exclusão, que continua a incidir contra a loucura, contra os portadores de sofrimento mental em
geral e contra os usuários de drogas, com destaque atual para estes últimos.
Permanecem as práticas de violência e de supressão de direitos contra os portadores de
sofrimento mental, verificados por meio de abandono, de pauperização e da dificuldade de
acesso à Saúde e aos serviços públicos.
O grau de civilidade de uma sociedade pode ser inferido à partir do tratamento conferido
aos portadores de sofrimento mental. Temos uma grande tarefa civilizatória pela frente, a de
promover aos portadores de sofrimento mental a fruição da cidadania e de uma vida plena.

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