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Antonio Lancetti
Em maio de 1998, fomos convidados para inventar um Programa de Saúde Mental para o
Projeto Qualis/PSF. Os agentes comunitários, enfermeiros, médicos, dentistas, todos os
profissionais, muitos usuários e seus coordenadores viviam um tempo plenamente instituinte.
Os coordenadores discutiam com as pessoas das comunidades sobre o que seria
construído. Todos, sem exceção, estavam aprendendo e capacitando-se em serviço, pois quase
ninguém era “formado” médico ou enfermeiro de família e, muito menos, agente comunitário de
saúde.
O Programa de Saúde da Família tinha manifestado eficácia em diversos municípios
brasileiros de pequeno porte, a maioria situados no Nordeste e Norte do país. Mas ele
nunca tinha sido testado em megalópolis de altíssima complexidade como São Paulo.
Na cidade, conviviam duas redes de saúde, desarticuladas entre si, baseada em
modelos assistenciais distintos. Muitas pessoas estavam sem assistência e outras percorriam
desordenadamente as unidades de saúde. Essa situação gerava desperdício dos já insuficientes
recursos, como duplicidade de exames complementares, além da má qualidade da assistência.
No que se refere à saúde mental, esses oito anos de populismo neofascista passaram
como trator em tudo o que havia sido construído na administração democrática e popular, no
período de 1989 a 1992: equipes de saúde mental em unidades básicas, centros de convivência,
enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais, emergências e hospitais-dia.
Embora a gestão estatal não pusesse ênfase no modelo hospitalocêntrico, pouco foi
investido na rede ambulatorial. Continuaram a existir os dois Centros de Atenção Psicossocial
CAPS — e treze ambulatórios de saúde mental. Os funcionários, apesar de seus parcos salários e
do pouco apoio, conseguiam, por iniciativa própria, desenvolver alguns trabalhos de qualidade.
Para completar o quadro, a política nacional de saúde mental continuava
alimentando o sistema asilar: mais de 90% dos investimentos eram destinados ao
financiamento dos hospitais psiquiátricos. Não havia política de financiamento das ações e
programas destinados a reabilitar os pacientes na sua comunidade por meio de serviços
substitutivos. Se uma frase pudesse resumir essa maneira de realizar seria a cunhada por
David Capistrano: “mais fazejamento e menos planejamento”.
Esse modo de exercer o poder local, essa pressa ante o pouco tempo (só quatro anos) que
uma administração possui para efetivar suas realizações foi ainda mais intenso no caso da
intervenção da Casa de Saúde Anchieta. Não havia na época antecedente nem jurisprudência.
As bases da Intervenção foram o princípio constitucional, que dá poder às prefeituras
sobre a saúde de seus munícipes, e a vontade política dos governadores locais.
E se a tentação higienista dos administradores que nos sucederam não conseguiu
levar a cabo seu projeto de demolição da metodologia criada naqueles anos foi graças à
garra pedagógica dos educadores municipais.
Os serviços e conselhos criados e fundamentados nas leis da saúde e no ECA
permanecem até hoje. O que demonstra que essa maneira de administrar deixa os serviços
mais ancorados na sociedade.
Além da rede de policlínicas que cobria a totalidade do município, uma diversidade
de ações e programas serviu de experiência prévia: o Programa de Internação Domiciliar,
primeiro do gênero público criado no Brasil; o programa do Recém-Nascido de Risco,
dirigido inicialmente por Socorro Matos; o trabalho com meninos e meninas moradores de
rua e vítimas da prostituição; e, especialmente, as ações educativas e terapêuticas
realizadas com usuários de crack.
Outra grande influência foi o Programa de Apoio à Família. Os grupos familiares em
maior dificuldade eram apoiados por todos os serviços municipais (creches, escolas, policlínicas,
programas habitacionais, frentes de trabalho e renda mínima). Era elaborado, com cada família,
um projeto de vida que buscava autonomia, sempre acompanhado e monitorado, passo a passo.
Esse estilo de gestão, que se opôs sistematicamente à ditadura do planejamento e da
burocracia, foi a alma e a cara da experiência. A porfia em cumprir as leis consagradas na
Constituição e essa maneira de nunca aceitar como natural a miséria e a injustiça foram a marca
do Projeto, nos seus primeiros dois anos de existência.
INTRODUÇÃO
Como agentes de saúde optamos pela vida e esta opção é fundamento de nossa ética.
Havia aprendido com os meninos crackeiros e com a experiência analítica que o que
cura é a surpresa, mas o efeito inicial de nossas intervenções nos lançava no imprevisível.
Como era possível que as pessoas aderissem tanto a nossas programações?
Era impressionante o poder da escuta. Dava a sensação de que nunca ninguém se havia
interessado pela vida dessas pessoas, por suas histórias e pelo seu sofrimento.
Percebi, também, que todos os que atendíamos possuíam alguma teoria sobre o
sofrimento e já tínhamos interferido nelas dizendo, por exemplo, que nosso interlocutor
interpretava erroneamente a missão que deveria cumprir ou que Omolu era o orixá da doença
mas também da saúde.
O etnopsiquiatra afirmava que mais de noventa por cento do sofrimento psíquico é
atendido pelo que ele chama de pensamento negro (pajés, pastores, padres) e só dez por cento, ou
menos, pelo pensamento branco. Afirmava, também, que uma consulta psiquiátrica ou
psicológica é um combate epistemológico — um dizendo que é um trabalho de macumba e o
outro que é uma psicose paranóica — e que todo sujeito dialoga com algum interlocutor
invisível. Percebemos que para que houvesse adesão ao programa elaborado para cada
família era preciso transitar por esses territórios existenciais.
Em primeiro lugar, configurávamos a situação de maneira tal que considerasse paciente
ou usuário do Programa de Saúde Mental todo o grupo familiar. Escutar não era somente
captar as tradicionais formações do inconsciente, os falhos, as piadas, mas conhecer a
estrutura ou sistema que organiza a vida desses grupos antropológicos e os seus
interlocutores invisíveis.
Para nós não existia família desestruturada. Nossa ação visava romper essa
“estrutura” e gerar outra mais solidária, mais tolerante e incitadora do desenvolvimento
pessoal e social de cada criança e adolescente implicado.
Foucault disse, antes de morrer, que a sociedade disciplinar estava com os dias contados e
Deleuze nos deixou dois textos primorosos sobre o que chamou de sociedade de controle. O
controle não se exerce no manicômio, mas sim no domicílio.
A surpresa, a escuta e a influência que exercíamos eram quase fascinantes, mas
sabíamos que iriam repetir: recair, voltar a agredir-se, a surtar-se. Era premente produzir
agenciamentos que conectassem as pessoas com as redes trançadas pela organização
sanitária, e com o que Benedetto Saraceno chama de recursos escondidos da comunidade.
A operacionalização desses agenciamentos era vital para liberação de uma clínica
cartográfica, um entremeado de percursos, um deslocamento entre um mapa e outro.
Não desprezamos o saber psicanalítico. Porém, para nós, o pai ou a mãe não era, segundo
a concepção arqueológica do inconsciente, coordenada de tudo, mas estava “em posição num
mundo que não deriva deles”.
Também não abdicamos da psiquiatria clínica mas não a adscrevemos à concepção
metafísica do cérebro.
O agenciamento de desejo é a unidade mínima para produção de subjetividades
cidadãs. Mas nossa cidade estava miserável em políticas públicas.
No referente ao Projeto, o centro de nossas preocupações era o médico de família.
Na época em que começamos, as coordenadoras regionais conduziam o trabalho de modo que
centrasse o processo de saúde na equipe e não no médico. Já nas primeiras capacitações
apareceram resistências de alguns médicos, que eram absoluta minoria.
No Programa de Saúde da Família não é possível passar os casos. Mesmo quando se
indica uma internação, uma cirurgia ou tratamento de maior complexidade, o paciente
continua a ser da equipe, enquanto morar no mesmo bairro. O vínculo e a continuidade
exigem lidar com o sofrimento humano, processo para o qual os técnicos não estão preparados.
Para pessoas criadas em regiões de classe média da cidade é um choque cultural a
convivência com favelados da periferia. Isso somado à relação com o familiar, território onde
radica o que Freud chamou de sinistro, experiências ao mesmo tempo estranhas e familiares ou
de produção de narcisismos ou o que chamamos de social-sinistro.Tudo isso exige dos
profissionais um trabalho psíquico e uma capacitação continuada e penosa. Muitos não
aguentaram.
Com o passar dos meses, muitas famílias começaram a ser atendidas sem a participação
direta das equipes volantes de saúde mental. Propositadamente, deixamos a seleção de
psiquiatras para um segundo momento. Temíamos que as equipes encaminhassem
indiscriminadamente. Fomos explicando que o psiquiatra não iria fazer atendimento direto, que
seria um membro da equipe e que teria a função adicional de consultor.
A experiência de Santos também nos demonstrou a importância de criar um polo artístico
(o Núcleo de Artes Tan Tan) que propicie, na praxis, o denominado paradigma ético-estético.
Que tensione e se combine com o paradigma técnico científico. Por essa razão de saída foi
contratada uma equipe de arte-educadores para desenvolver oficinas produtivas que inicialmente
aconteciam num local alugado pela Associação Pau Pau — Criança de Cidadania.
O objetivo era incitar atividades culturais, artísticas e produtivas com crianças
adolescentes e adultas, inserindo no seio da experiência uma ação poiética2.
Nossa equipe da zona sudeste tinha quatro psicólogos para atender à demanda de quinze
equipes de saúde da família. A equipe da zona norte era composta por quatro psicólogas, uma
assistente social e uma médica sem experiência psiquiátrica. Nesta região acabavam de formar-se
dezenove equipes de PSF. Cada equipe cuidava de mil famílias. As equipes (volantes)
financiavam o transporte para ir de uni bairro a outro, muitas vezes distantes, usando para isso
carros próprios e em muitas ocasiões adquirindo medicamentos.
CRESCENDO NA CONTRADIÇÃO
O COMEÇO DO FIM
Quando a coordenação foi deposta não havia ainda substitutos e seus administradores
avisaram que não haveria mais coordenação regional. Durante um bom período, o Projeto ficou
sem coordenação técnica e a perda do entusiasmo foi o primeiro efeito.
Desde maio de 2000 até o momento, intensificou-se o processo de desnaturação do
Projeto. Os profissionais são incitados a se reunir por categoria. A noção de equipe começou a
degenerar em corporativismo.
Apesar de nossa condição marginal, a maioria das equipes de saúde da família incorporou
a metodologia e acompanham com zelo o andamento de cada uma das famílias atendidas. Em
agosto de 2000, estávamos atendendo 677 famílias ou 3.604 pessoas em extrema dificuldade.
Podem ser contados nos dedos de uma mão os pacientes internados a cada mês.
A capacitação passou a se resumir às reuniões de discussão de casos, com exceção de
algumas unidades que tomaram as rédeas do processo defendendo o projeto atingido na sua
alma.
E é precisamente na ação coordenada do Programa de Saúdes da Família que se
fundamenta o Programa de Saúde Mental, já que a responsabilidade compartilhada é uma
das bases da metodologia criada.
Além do mais, as equipes volantes são extremamente pequenas. Insuficientes. Essa
situação põe em risco a qualidade do trabalho.
Segundo nossos cálculos, para compor a equipe de saúde mental deve ser considerada a
seguinte proporcionalidade: um técnico de saúde mental para cada duas equipes de saúde da
família, devendo vinte por cento serem psiquiatras e oitenta por cento psicólogos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou enfermeiros.
Esses profissionais devem ser escolhidos por seu perfil e não por sua habilitação
acadêmica. Não é qualquer pessoa que se dispõe a navegar na violência sem a proteção dos
muros do hospital, do ambulatório ou do hospital-dia. Essa espécie de psicanalistas de pés
descalços que praticam uma clínica muito mais complexa do que a do consultório.
De fato, o programa de saúde mental precisa ser avaliado para computara redução
de internações psiquiátricas, de suicídios, de violência familiar e comunitária e do uso
abusivo de drogas.
Por fim, acreditamos que nossa metodologia é altamente substitutiva, mas não totalmente.
Não existem camas não manicomiais em São Paulo e, de fato, vez ou outra, somos
obrigados a internar alguém em hospital psiquiátrico.
1 Há, aqui, um retorno ao conceito de amigo qualificado, que deu origem à profissão de
acompanhante terapêutico.
2 Os gregos tinham duas palavras para se referir à produção: práxis, que é a ação do agir e
poiésis, que é a ação de fabricar. A obra acabada é o poema.
Questão: Nas Unidades de Saúde, o atendimento conhecido por Acolhimento se define por:
a) Escutar a demanda e realizar encaminhamento para especialistas.
b) Escutar a demanda e intervir para resolver os problemas no próprio local.
c) Escutar a demanda e intervir através de medicamentos calmantes.
d) Escutar a demanda e propor soluções estabelecidas por protocolos.
e) Escutar a demanda e realizar psicoterapia.
Questão: A proposta de montar equipes de saúde mental volantes para trabalhar com equipes de
saúde da família tinha por objetivo:
a) Diminuir custos de contratação de equipe especializada.
b) Agilizar a resolução dos problemas durante os atendimentos médicos.
c) Evitar a construção de unidades físicas, que exigiriam maior tempo e dinheiro.
d) Diminuir a ansiedade dos pacientes por agilizar atendimentos especializados.
e) Evitar consultas psiquiátricas e psicológicas para evitar demanda de tratamento
especializado.
Questão: Na lógica da Saúde da Família, entende-se que o paciente é todo o grupo familiar
porque:
a) A família é produtora das doenças mentais.
b) O sofrimento mental está localizado nas relações entre os membros da família e o próprio
território.
c) O sofrimento mental é efeito dos processos de violência do território contra a família.
d) A doença mental é hereditária e sempre mais de um membro da família apresenta
sofrimento
e) O doente mental é causa do sofrimento dos outros membros da família.
GABARITO
1 - B; 2 - E; 3 - A; 4 - B