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SAÚDE MENTAL NAS ENTRANHAS DA METRÓPOLE

Antonio Lancetti

LANCETTI, Antonio. Saúde mental nas entranhas da metrópole. Saúde e. Loucura


7. São Paulo: Hucitec. p.11-52, 2001.

Em maio de 1998, fomos convidados para inventar um Programa de Saúde Mental para o
Projeto Qualis/PSF. Os agentes comunitários, enfermeiros, médicos, dentistas, todos os
profissionais, muitos usuários e seus coordenadores viviam um tempo plenamente instituinte.
Os coordenadores discutiam com as pessoas das comunidades sobre o que seria
construído. Todos, sem exceção, estavam aprendendo e capacitando-se em serviço, pois quase
ninguém era “formado” médico ou enfermeiro de família e, muito menos, agente comunitário de
saúde.
O Programa de Saúde da Família tinha manifestado eficácia em diversos municípios
brasileiros de pequeno porte, a maioria situados no Nordeste e Norte do país. Mas ele
nunca tinha sido testado em megalópolis de altíssima complexidade como São Paulo.
Na cidade, conviviam duas redes de saúde, desarticuladas entre si, baseada em
modelos assistenciais distintos. Muitas pessoas estavam sem assistência e outras percorriam
desordenadamente as unidades de saúde. Essa situação gerava desperdício dos já insuficientes
recursos, como duplicidade de exames complementares, além da má qualidade da assistência.
No que se refere à saúde mental, esses oito anos de populismo neofascista passaram
como trator em tudo o que havia sido construído na administração democrática e popular, no
período de 1989 a 1992: equipes de saúde mental em unidades básicas, centros de convivência,
enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais, emergências e hospitais-dia.
Embora a gestão estatal não pusesse ênfase no modelo hospitalocêntrico, pouco foi
investido na rede ambulatorial. Continuaram a existir os dois Centros de Atenção Psicossocial
CAPS — e treze ambulatórios de saúde mental. Os funcionários, apesar de seus parcos salários e
do pouco apoio, conseguiam, por iniciativa própria, desenvolver alguns trabalhos de qualidade.
Para completar o quadro, a política nacional de saúde mental continuava
alimentando o sistema asilar: mais de 90% dos investimentos eram destinados ao
financiamento dos hospitais psiquiátricos. Não havia política de financiamento das ações e
programas destinados a reabilitar os pacientes na sua comunidade por meio de serviços
substitutivos. Se uma frase pudesse resumir essa maneira de realizar seria a cunhada por
David Capistrano: “mais fazejamento e menos planejamento”.
Esse modo de exercer o poder local, essa pressa ante o pouco tempo (só quatro anos) que
uma administração possui para efetivar suas realizações foi ainda mais intenso no caso da
intervenção da Casa de Saúde Anchieta. Não havia na época antecedente nem jurisprudência.
As bases da Intervenção foram o princípio constitucional, que dá poder às prefeituras
sobre a saúde de seus munícipes, e a vontade política dos governadores locais.
E se a tentação higienista dos administradores que nos sucederam não conseguiu
levar a cabo seu projeto de demolição da metodologia criada naqueles anos foi graças à
garra pedagógica dos educadores municipais.
Os serviços e conselhos criados e fundamentados nas leis da saúde e no ECA
permanecem até hoje. O que demonstra que essa maneira de administrar deixa os serviços
mais ancorados na sociedade.
Além da rede de policlínicas que cobria a totalidade do município, uma diversidade
de ações e programas serviu de experiência prévia: o Programa de Internação Domiciliar,
primeiro do gênero público criado no Brasil; o programa do Recém-Nascido de Risco,
dirigido inicialmente por Socorro Matos; o trabalho com meninos e meninas moradores de
rua e vítimas da prostituição; e, especialmente, as ações educativas e terapêuticas
realizadas com usuários de crack.
Outra grande influência foi o Programa de Apoio à Família. Os grupos familiares em
maior dificuldade eram apoiados por todos os serviços municipais (creches, escolas, policlínicas,
programas habitacionais, frentes de trabalho e renda mínima). Era elaborado, com cada família,
um projeto de vida que buscava autonomia, sempre acompanhado e monitorado, passo a passo.
Esse estilo de gestão, que se opôs sistematicamente à ditadura do planejamento e da
burocracia, foi a alma e a cara da experiência. A porfia em cumprir as leis consagradas na
Constituição e essa maneira de nunca aceitar como natural a miséria e a injustiça foram a marca
do Projeto, nos seus primeiros dois anos de existência.

COM QUE CONTÁVAMOS

Buscando alcançar maior grau de integralidade e resolutividade, cada região


possuía, desde o início, um ambulatório com as seguintes especialidades médicas:
cardiologia, pneumologia, ginecologia, urologia, oftalmologia, neurologia,
gastroenterologia, reumatologia e médico de trabalho.
Em todas as unidades de saúde havia o que foi chamado de Acolhimento, isto é,
atendimento das emergências do dia-a-dia da comunidade. Nesses atendimentos escuta-se a
demanda e intervém prontamente com o objetivo de resolver o máximo de problemas no
local e de singularizar a relação, superando os tradicionais atendimentos eventuais
despersonalizados.
Como se pode observar, o Projeto era um complexo de ações combinadas e
articuladas entre si. Nesse contexto, fomos convidados a elaborar e pôr em prática um
programa de saúde mental que intensificasse essa integralidade.
Desde os diálogos iniciais com as comunidades e seus movimentos organizados se
buscou a participação e o controle social, e em todas as unidades se propiciou a criação de
conselhos gestores de saúde. Os coordenadores do Projeto Qualis/PSF operavam em equipe.
Todas as questões eram discutidas por todos.
Em segundo lugar, logo percebemos que o modus operandis do PSF trazia novidades
importantíssimas. Cada equipe de saúde da família (composta por cinco agentes comunitários de
saúde, dois auxiliares de enfermagem, um enfermeiro e um médico) era responsável por mil
famílias inicialmente; e no segundo ano, por mil e duzentas.
A existência de um membro da equipe, morador do mesmo território atendido; o
número limitado de famílias atendidas por cada equipe, e sua dinâmica de funcionamento,
davam ao programa novas potencialidades se comparadas com outras modalidades já
experimentadas, a saber:
1. O usuário é procurado onde está. O trabalho inicia-se com o adastramento a
totalidade das pessoas que moram numa área determinada. As pessoas são tendidas
pela necessidade, e não pela demanda. É bom frisar que nem sempre são atendidos
os que mais necessitam, e mesmo pessoas em estado grave não procuram
atendimento. No interstício da praxis se reforça o conceito cidadania. As pessoas são
atendidas por Direito e não por Demana.
2. Cada pessoa e cada grupo familiar são conhecidos pelo nome e pela sua
história, e não reduzidos a um prontuário. Os usuários também conhecem sua
equipe pelo nome próprio.
3. O imperativo de resolver o máximo de problemas na região evita o encaminhamento
irresponsável dos profissionais e dão continuidade ao cuidado e, fundamentalmente,
aumenta o grau de singularização da relação equipe/usuário.
4. Coletivização das ações de saúde. No período de instalação do Projeto cada
unidade já desenvolvia as mais diversas atividades coletivas.
5. Centralização na equipe. Pela própria dinâmica de trabalho o funcionamento
estava CENTRADO NA EQUIPE, E NÃO NO MÉDICO.

AS IDÉIAS QUE NORTEARAM O PROGRAMA

Nas primeiras discussões nos perguntávamos se deveríamos optar pela criação de


serviços substitutivos como: Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), Centros de Atenção
Psicossocial — CAPS — ou Hospitais-Dia. Optamos pela criação de duas equipes volantes de
saúde mental. Três ideias forçaram essa decisão. A primeira era a de que a trama traçada pelo
Projeto e suas conexões com os recursos da comunidade deveriam ser consideradas e ativadas
em primeiro lugar. A segunda era a de que qualquer processo terapêutico consiste na
ressignificação do sintoma, e que, para isso, era preciso criar um dispositivo articulado à
rede tecida pela organização de saúde. A terceira ideia é que a invenção deve fazer parte do
método.
Queríamos com essa estratégia radicalizar na desinstitucionalização. Dar um passo a mais
no abandono da morada da psiquiatria e intensificar o status ontológico da cidadania. O paciente
é primeiro um cidadão e depois um quadro. Não iríamos utilizar nenhum dos dispositivos
conhecidos, como consulta psiquiátrica, psicológica ou visita domiciliar para evitar o
processamento da demanda e a cronificação dos pacientes.
Começaríamos capacitando as equipes de saúde mental e de saúde da família
intervindo nas famílias em maior dificuldade. A responsabilidade pelo andamento do processo
terapêutico recairia em ambas as equipes. Iniciamos propositadamente sem psiquiatra. A
ideia era cortar na raiz o processo de geração de demanda, que começa na consulta e
termina no hospício.

OS PRIMEIROS PASSOS DADOS NO TERRITÓRIO

Organizamos a capacitação inicial com os agentes comunitários de saúde, com


sociodrama. Nas cenas, já passávamos as primeiras e principais noções de postura.
Fazíamos e refazíamos as visitas e implicávamos a todos nas possíveis soluções que os
agentes comunitários de saúde encontravam, para inaugurar um vínculo que iria ser o fio
condutor do processo terapêutico. No segundo encontro, processávamos as cenas acontecidas
na primeira reunião, e as relacionávamos com o texto dado previamente. No terceiro encontro, os
agentes apresentavam as famílias que consideravam mais problemáticas. Posteriormente,
escolhíamos quais seriam as primeiras nas quais iríamos intervir.

GUIA DE SAÚDE MENTAL DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, a Psiquiatria atuava nas famílias com maior sofrimento mental


retirando os membros mais frágeis e recolhendo-os em hospícios, sanatórios ou hospitais
psiquiátricos. Em alguns desses estabelecimentos, os familiares eram impedidos de ver o interno
durante os primeiros dias e até meses de internação.
Essa maneira de tratar os doentes mentais, além de tirar os direitos de cidadania
dessas pessoas, mostrou-se produtora de doença, e no de saúde. De fato, os velhos
manicômios encontram-se lotados de homens e mulheres que a cada dia estão menos habilitados
para vida.
O psiquiatra e psicanalista Pichón Rivière, estudando famílias de pacientes
psiquiátricos, descobriu que essas pessoas são os membros mais fortes — e não os mais
frágeis — pois são depositários da loucura de todos os outros familiares. É por isso que
todos os programas de reabilitação desses doentes mentais são obrigados a trabalhar com a
família, com a vida social e profissional.
O Programa de Saúde Mental do Projeto Qualis, em vez de retirar o membro mais
“problemático” do núcleo familiar, propõe-se a ajudar a família para que esta ajude seus
membros mais necessitados. Tratar o grupo familiar para que este possa lidar de maneira mais
salutar com seu membro mais doente. E não retirar do convívio o paciente para “resolver” o
problema da família. A responsabilidade pelo cuidado dessas famílias é da equipe de saúde
da família e da equipe de saúde mental. Seria dada prioridade às famílias que se encontram em
maior dificuldade. Quando a equipe de saúde mental intervém, elabora uma programação
para cada família.
A equipe de saúde mental é votante, não está locada em nenhuma das unidades do Projeto
Qualis e sempre atua em parceria com as equipes de saúde de família. Não está prevista consulta
psiquiátrica nem consulta psicológica. Por último, as famílias serão atendidas
preferencialmente na hora em que todos ou a maioria dos familiares estejam em casa. A
estratégia de aproximação será sempre decidida previamente pelas equipes de saúde da família e
de saúde mental, mesmo nos casos de emergência.

SEIS ATITUDES DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE

1. Consideramos família todo grupo de pessoas que coabitam e desenvolvem entre si as


mais variadas formas de parentesco.
2. Suspensão provisória da opinião. Toda pessoa possui uma teoria para compreender a
vida e, diante do desespero, tende a ajudar a outra sugerindo que faça o que ela faria.
Todas as pessoas têm crenças e praticam religiões: todas devem ser aceitas. Devemos
procurar nos relacionar sem dar conselhos inicialmente.
3. O agente comunitário de saúde é membro de uma equipe. A toda hora deve lembrar
que ele pode escutar, conhecer, relacionar-se, mas que não precisa dar respostas
imediatas, pois ele faz parte de um grupo de trabalho que verá como pode ajudar.
4. Prestar atenção ao grupo familiar todo. Quando há um louco, um drogado ou um
violentado numa família tende-se a observar somente esse membro do grupo. Nosso
paciente é a família toda.
5. A programação elaborada para cada família deve ser seguida passo a passo, com maior
zelo. Muitas das pessoas que atendemos estiveram por um período de sua vida
internados em hospitais psiquiátricos ou na Febem. Nesses lugares, elas acostumaram-se
a não serem levadas a sério. Algumas são muito desconfiadas ou estabelecem relações
extremamente frágeis com os outros. Quando traçamos um plano ou prometemos passar
em algum dia e hora combinados, para acompanhar alguém ao grupo de caminhada, à
escola, para levar uma medicação, marcar uma consulta, etc., devemos ser muito
cuidadosos no cumprimento da palavra. Uma mínima falha pode ser grave e pôr tudo a
perder.
6. O agente comunitário, assim como todos profissionais que trabalham no Projeto
Qualis/PSF, é um agente de saúde. Por essa razão, ele buscará ajudar a todos
independentemente do credo que a pessoa professe e do que ela faz para sobreviver.
Nunca fizemos denúncia à polícia, pois nosso objetivo é cuidar da saúde de todos,
sejam traficantes de drogas ou policiais. Somente dessa maneira, conquistaremos o
respeito e a confiança de toda a comunidade.

QUATRO APRENDIZADOS PARA CONVIVÊNCIA

1. Aprender a não se agredir.


2. Aprender a cuidar de si.
3. A prender a dar valor às realizações e saberes coletivos.
4. Aprender a conhecer e aceitar as pessoas da maneira como elas são.

Como agentes de saúde optamos pela vida e esta opção é fundamento de nossa ética.

QUESTÕES CONCEITUAIS E PROBLEMAS METODOLÓGICOS

Havia aprendido com os meninos crackeiros e com a experiência analítica que o que
cura é a surpresa, mas o efeito inicial de nossas intervenções nos lançava no imprevisível.
Como era possível que as pessoas aderissem tanto a nossas programações?
Era impressionante o poder da escuta. Dava a sensação de que nunca ninguém se havia
interessado pela vida dessas pessoas, por suas histórias e pelo seu sofrimento.
Percebi, também, que todos os que atendíamos possuíam alguma teoria sobre o
sofrimento e já tínhamos interferido nelas dizendo, por exemplo, que nosso interlocutor
interpretava erroneamente a missão que deveria cumprir ou que Omolu era o orixá da doença
mas também da saúde.
O etnopsiquiatra afirmava que mais de noventa por cento do sofrimento psíquico é
atendido pelo que ele chama de pensamento negro (pajés, pastores, padres) e só dez por cento, ou
menos, pelo pensamento branco. Afirmava, também, que uma consulta psiquiátrica ou
psicológica é um combate epistemológico — um dizendo que é um trabalho de macumba e o
outro que é uma psicose paranóica — e que todo sujeito dialoga com algum interlocutor
invisível. Percebemos que para que houvesse adesão ao programa elaborado para cada
família era preciso transitar por esses territórios existenciais.
Em primeiro lugar, configurávamos a situação de maneira tal que considerasse paciente
ou usuário do Programa de Saúde Mental todo o grupo familiar. Escutar não era somente
captar as tradicionais formações do inconsciente, os falhos, as piadas, mas conhecer a
estrutura ou sistema que organiza a vida desses grupos antropológicos e os seus
interlocutores invisíveis.
Para nós não existia família desestruturada. Nossa ação visava romper essa
“estrutura” e gerar outra mais solidária, mais tolerante e incitadora do desenvolvimento
pessoal e social de cada criança e adolescente implicado.
Foucault disse, antes de morrer, que a sociedade disciplinar estava com os dias contados e
Deleuze nos deixou dois textos primorosos sobre o que chamou de sociedade de controle. O
controle não se exerce no manicômio, mas sim no domicílio.
A surpresa, a escuta e a influência que exercíamos eram quase fascinantes, mas
sabíamos que iriam repetir: recair, voltar a agredir-se, a surtar-se. Era premente produzir
agenciamentos que conectassem as pessoas com as redes trançadas pela organização
sanitária, e com o que Benedetto Saraceno chama de recursos escondidos da comunidade.
A operacionalização desses agenciamentos era vital para liberação de uma clínica
cartográfica, um entremeado de percursos, um deslocamento entre um mapa e outro.
Não desprezamos o saber psicanalítico. Porém, para nós, o pai ou a mãe não era, segundo
a concepção arqueológica do inconsciente, coordenada de tudo, mas estava “em posição num
mundo que não deriva deles”.
Também não abdicamos da psiquiatria clínica mas não a adscrevemos à concepção
metafísica do cérebro.
O agenciamento de desejo é a unidade mínima para produção de subjetividades
cidadãs. Mas nossa cidade estava miserável em políticas públicas.
No referente ao Projeto, o centro de nossas preocupações era o médico de família.
Na época em que começamos, as coordenadoras regionais conduziam o trabalho de modo que
centrasse o processo de saúde na equipe e não no médico. Já nas primeiras capacitações
apareceram resistências de alguns médicos, que eram absoluta minoria.
No Programa de Saúde da Família não é possível passar os casos. Mesmo quando se
indica uma internação, uma cirurgia ou tratamento de maior complexidade, o paciente
continua a ser da equipe, enquanto morar no mesmo bairro. O vínculo e a continuidade
exigem lidar com o sofrimento humano, processo para o qual os técnicos não estão preparados.
Para pessoas criadas em regiões de classe média da cidade é um choque cultural a
convivência com favelados da periferia. Isso somado à relação com o familiar, território onde
radica o que Freud chamou de sinistro, experiências ao mesmo tempo estranhas e familiares ou
de produção de narcisismos ou o que chamamos de social-sinistro.Tudo isso exige dos
profissionais um trabalho psíquico e uma capacitação continuada e penosa. Muitos não
aguentaram.
Com o passar dos meses, muitas famílias começaram a ser atendidas sem a participação
direta das equipes volantes de saúde mental. Propositadamente, deixamos a seleção de
psiquiatras para um segundo momento. Temíamos que as equipes encaminhassem
indiscriminadamente. Fomos explicando que o psiquiatra não iria fazer atendimento direto, que
seria um membro da equipe e que teria a função adicional de consultor.
A experiência de Santos também nos demonstrou a importância de criar um polo artístico
(o Núcleo de Artes Tan Tan) que propicie, na praxis, o denominado paradigma ético-estético.
Que tensione e se combine com o paradigma técnico científico. Por essa razão de saída foi
contratada uma equipe de arte-educadores para desenvolver oficinas produtivas que inicialmente
aconteciam num local alugado pela Associação Pau Pau — Criança de Cidadania.
O objetivo era incitar atividades culturais, artísticas e produtivas com crianças
adolescentes e adultas, inserindo no seio da experiência uma ação poiética2.
Nossa equipe da zona sudeste tinha quatro psicólogos para atender à demanda de quinze
equipes de saúde da família. A equipe da zona norte era composta por quatro psicólogas, uma
assistente social e uma médica sem experiência psiquiátrica. Nesta região acabavam de formar-se
dezenove equipes de PSF. Cada equipe cuidava de mil famílias. As equipes (volantes)
financiavam o transporte para ir de uni bairro a outro, muitas vezes distantes, usando para isso
carros próprios e em muitas ocasiões adquirindo medicamentos.

CRESCENDO NA CONTRADIÇÃO

Em meados de 1999, substituímos a médica da equipe da zona norte por um psiquiatra


para trabalhar vinte horas semanais e, depois de uma intervenção enérgica do Professor Adib
Jatene, uma psiquiatra para trabalhar quarenta horas semanais na zona sudeste.
As equipes da zona norte já eram 22 e as equipes da zona sudeste 33. A pressão pela
diminuição do custo per capita nos levou a aumentar o número de famílias atendidas por equipe,
de 1.000 para 1.200 famílias. A demanda aumentava vertigino- samente e o conflito institucional
também.
Ao mesmo tempo, as equipes estavam afinadas transitando entre a violência, a
psicose, a drogadicção e associando cada passo à ação das equipes de saúde da família.
Os agentes comunitários aprendiam a ser continentes, a conversar com as pessoas mais
difíceis e a acompanhar com zelo cada passo dos processos terapêuticos. Os recursos
comunitários apareciam a cada hora.
Percorremos unidades da Febem, abrigos para crianças, juizados, igrejas, centros espíritas
e as mais diversas ONGs em busca de nossos pacientes e de agenciamentos para organização da
rede de sustentação da reabilitação psicossocial.
Até os médicos e enfermeiros mais resistentes ao ideário e a metodologia foram se
implicando, gozando dos êxitos conquistados e do bálsamo que produz o contato de normais com
loucos.

O COMEÇO DO FIM

Em 1999, uma equipe de saúde da família entrou em conflito: o médico e a enfermeira


brigavam nos corredores do ambulatório da Vila Espanhola. Sempre que havia alguém em
conflito sério, éramos chamados. Já tínhamos intervindo no caso de dois médicos que entraram
em crise psicótica e atendemos com sucesso duas agentes comunitárias de saúde. Uma delas,
com diagnóstico de distúrbio bipolar, parou de ser internada a cada quatro ou cinco meses e,
hoje, desenvolve seu trabalho normalmente.
A DESNATURAÇÃO DO PROJETO

Quando a coordenação foi deposta não havia ainda substitutos e seus administradores
avisaram que não haveria mais coordenação regional. Durante um bom período, o Projeto ficou
sem coordenação técnica e a perda do entusiasmo foi o primeiro efeito.
Desde maio de 2000 até o momento, intensificou-se o processo de desnaturação do
Projeto. Os profissionais são incitados a se reunir por categoria. A noção de equipe começou a
degenerar em corporativismo.

ENTRE MORTOS E FERIDOS SEGUIMOS EXISTINDO

Apesar de nossa condição marginal, a maioria das equipes de saúde da família incorporou
a metodologia e acompanham com zelo o andamento de cada uma das famílias atendidas. Em
agosto de 2000, estávamos atendendo 677 famílias ou 3.604 pessoas em extrema dificuldade.
Podem ser contados nos dedos de uma mão os pacientes internados a cada mês.
A capacitação passou a se resumir às reuniões de discussão de casos, com exceção de
algumas unidades que tomaram as rédeas do processo defendendo o projeto atingido na sua
alma.
E é precisamente na ação coordenada do Programa de Saúdes da Família que se
fundamenta o Programa de Saúde Mental, já que a responsabilidade compartilhada é uma
das bases da metodologia criada.
Além do mais, as equipes volantes são extremamente pequenas. Insuficientes. Essa
situação põe em risco a qualidade do trabalho.
Segundo nossos cálculos, para compor a equipe de saúde mental deve ser considerada a
seguinte proporcionalidade: um técnico de saúde mental para cada duas equipes de saúde da
família, devendo vinte por cento serem psiquiatras e oitenta por cento psicólogos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais ou enfermeiros.
Esses profissionais devem ser escolhidos por seu perfil e não por sua habilitação
acadêmica. Não é qualquer pessoa que se dispõe a navegar na violência sem a proteção dos
muros do hospital, do ambulatório ou do hospital-dia. Essa espécie de psicanalistas de pés
descalços que praticam uma clínica muito mais complexa do que a do consultório.
De fato, o programa de saúde mental precisa ser avaliado para computara redução
de internações psiquiátricas, de suicídios, de violência familiar e comunitária e do uso
abusivo de drogas.
Por fim, acreditamos que nossa metodologia é altamente substitutiva, mas não totalmente.
Não existem camas não manicomiais em São Paulo e, de fato, vez ou outra, somos
obrigados a internar alguém em hospital psiquiátrico.

1 Há, aqui, um retorno ao conceito de amigo qualificado, que deu origem à profissão de
acompanhante terapêutico.
2 Os gregos tinham duas palavras para se referir à produção: práxis, que é a ação do agir e
poiésis, que é a ação de fabricar. A obra acabada é o poema.

Questão: Nas Unidades de Saúde, o atendimento conhecido por Acolhimento se define por:
a) Escutar a demanda e realizar encaminhamento para especialistas.
b) Escutar a demanda e intervir para resolver os problemas no próprio local.
c) Escutar a demanda e intervir através de medicamentos calmantes.
d) Escutar a demanda e propor soluções estabelecidas por protocolos.
e) Escutar a demanda e realizar psicoterapia.

Questão: A proposta de montar equipes de saúde mental volantes para trabalhar com equipes de
saúde da família tinha por objetivo:
a) Diminuir custos de contratação de equipe especializada.
b) Agilizar a resolução dos problemas durante os atendimentos médicos.
c) Evitar a construção de unidades físicas, que exigiriam maior tempo e dinheiro.
d) Diminuir a ansiedade dos pacientes por agilizar atendimentos especializados.
e) Evitar consultas psiquiátricas e psicológicas para evitar demanda de tratamento
especializado.

Questão: A valorização do trabalho em equipe tem por objetivo:


a) Promover a responsabilização dos profissionais através de criação de vínculo com
usuários e familiares.
b) Organizar a equipe através da hierarquização com a figura do médico.
c) Facilitar o trabalho dos profissionais reduzindo o número de consultas.
d) Potencializar os atendimentos especializados.
e) Racionalizar a lógica de referência e contra referência.

Questão: Na lógica da Saúde da Família, entende-se que o paciente é todo o grupo familiar
porque:
a) A família é produtora das doenças mentais.
b) O sofrimento mental está localizado nas relações entre os membros da família e o próprio
território.
c) O sofrimento mental é efeito dos processos de violência do território contra a família.
d) A doença mental é hereditária e sempre mais de um membro da família apresenta
sofrimento
e) O doente mental é causa do sofrimento dos outros membros da família.
GABARITO

1 - B; 2 - E; 3 - A; 4 - B

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