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Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFES, no Mestrado em Direito Processual. Doutor em Direito Civil
pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Lattes iD: http://lattes.cnpq.br/2462674053106950. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4676-763X.
2020
ISBN: 978-65-00-11430-0
Título: Introdução ao Direito Civil
Subtítulo: Volume 2 | bens
Formato: Livro Digital
Veiculação: Digital
Vitoria – ES – 2020
Os Organizadores.
Sumário
Bens e coisas
Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues..............................................................................................7
Patrimônio
Guilherme Santos Neves Abelha Rodrigues............................................................................................58
Bem de família
Daniel Zandonade Matta............................................................................................................................86
Bens imóveis
Rafael Breda Cremonini e Gilberto Fachetti Silvestre.............................................................................93
Bens móveis
Rafael Breda Cremonini e Gilberto Fachetti Silvestre.............................................................................98
Bens e coisas são termos usualmente empregados na linguagem cotidiana das pessoas. Se diz
corriqueiramente que “eu tenho muitos bens”, “essa coisa é minha”, “aquela coisa é sua” etc. Na
linguagem jurídica isso não é diferente, tanto bens como coisas são expressões utilizadas comumente
pelo advogado, pelo promotor, juiz etc. Assim, por exemplo, o Código de Processo Civil assevera
que “ordenada a penhora de frutos e rendimentos, [...] [perde] o executado o direito de gozo do
bem”1, ou ainda nos embargos à execução que “há excesso de execução por ela recair sobre coisa
diversa daquela declarada no título”2.
Mas há de se observar que, apesar desses termos serem empregados corriqueiramente, ora se toma
as expressões como sinônimas, ora se as diferencia por um critério, ora por outro... O que se
percebe é uma utilização mais ou menos intuitiva dos termos, sem a preocupação com um rigor e
coerência técnica.
Posto isso, surge a pergunta: o que significam os termos coisa e bem?
Para se responder a essa pergunta, a primeira fonte a se buscar é a própria lei. Todavia, não há no
Código Civil a definição desses termos3. E ainda que exista indícios de qual significado o legislador
pretendeu atribuir a esses conceitos, a falta de coerência e rigor técnico faz com que se torne
extremamente dificultoso – se não impossível -, determinar com precisão científica qual o sentido
exato de bem e coisa dentro do Código. Como se demonstrará mais adiante, o legislador não manteve
uma uniformidade no sentido em que utiliza os termos. Assim, não havendo a expressa definição
no Código, e nem sendo possível depreender dos dispositivos um significado uno, impende
recorrer à doutrina para saber qual o significado de bens e coisas.4 Mas como se verá adiante, a
1 Art. 868, CPC/2015. Ordenada a penhora de frutos e rendimentos, o juiz nomeará administrador-depositário, que
será investido de todos os poderes que concernem à administração do bem e à fruição de seus frutos e utilidades,
perdendo o executado o direito de gozo do bem, até que o exequente seja pago do principal, dos juros, das custas e
dos honorários advocatícios.
2 Art. 917, CPC/2015. § 2º Há excesso de execução quando: II - ela recai sobre coisa diversa daquela declarada no
título [...].
3 Cabe mencionar que alguns diplomas – na contramão do Código Civil - trazem as definições dos conceitos que serão
utilizados. Assim, por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018) traz no seu art. 5º a definição
de diversas expressões utilizadas na lei, ou ainda o Código Florestal (Lei 12.651/2012), que define no art. 3º uma série
de expressões usadas na lei.
4 É de se dizer que a investigação dos posicionamentos doutrinários é imprescindível, não só porque auxilia na
interpretação dos dispositivos legais, mas porque o direito positivo usualmente se apropria de conceitos, teorias e
expressões já existentes na doutrina – e no próprio costume social -, ora reproduzindo-os integralmente, ora
adaptando-os às demandas sociais.
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doutrina além de divergir quanto ao sentido desses termos, ainda se mostra falha fornecer uma
definição rigorosa.
Sendo assim, para depreender o significado de bem e de coisa, sabendo que o Código Civil não os
define - e nem os emprega em um sentido uno - e que a doutrina se revela insuficiente, importa
buscar o significado atribuído pelos romanos ao termo res, especialmente no período clássico e pós-
clássico. Com isso, pretendemos alcançar um significado de bem e de coisa e determinar como essas
expressões se distinguem.
5 “Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá
exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.” (grifo nosso).
6 Como premissa metodológica, cabe dizer que utilizaremos o termo “ente” para nos referir à tudo aquilo que carece
(grifo nosso).
9 Outro exemplo interessante, ressaltado por Nelson Rosenvald e Cristinano Chaves de Farias, é que o Código, ao
disciplinar os legados, trata-os por coisa, mas logo em seguida admite o legado de crédito (art. 1.918).9 Ou seja, admite
um ente imaterial no conceito de coisa.
10 Sobre a possibilidade de haver direitos sobre direitos, ver infra.
11 “Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;
herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e
subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.” (grifo nosso).
13 “§ 1 o O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem
vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.” (grifo nosso).
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3. Bem e coisa na doutrina
Ao investigar os conceitos desenvolvidos em prestigiosa doutrina a respeito de bem e coisa, se
percebe que divergem radicalmente. Mas não só isso, maxima respecta, se mostram muitas vezes
imprecisos e inconsistentes dentro de suas próprias definições, com afirmações que são desditas
em parágrafos seguintes. Justamente por isso, - embora não seja o recomendado pela estilística -
utilizaremos a citação direta dos autores, não só para sermos fiéis aos escritos dos grandes juristas,
como para que o leitor possa ter contato imediato com o que professou alguns dos doutrinadores,
podendo tirar desses textos suas próprias conclusões, e assim eventualmente concordar – ou não -
com os comentários que faremos. Cabe advertir também que tentaremos abordar um número não
tão extenso de autores, mas ao mesmo tempo uma quantidade relativamente suficiente para
evidenciar um panorama geral das teorias.
Principiamos com a análise da doutrina de Roberto de Ruggiero,14 este explica que: “Podem
constituir objecto das relações jurídicas, como a seu tempo já se viu, a própria pessoa, os seus actos
ou as cousas.”15
Prossegue o autor, mais adiante, dizendo que coisa pode ter vários significados, segundo o sentido
em que se toma. Diz que:
“Com a apropriação, as cousas tornam-se bens [...]. Mas, pelo contrário, não é
precisa uma apropriação actual para se ter um bem, havendo cousas que
actualmente não têm um proprietário, mas que podem tê-lo (res nullius); e vice-
versa pode haver cousas subtraídas por disposição da lei à disponibilidade, sem
que por isso deixem de ser consideradas bens.
Com o que se disse não fica ainda completa a noção jurídica de cousa. Não é ela,
na verdade, constituída só por partes reais e tangíveis do mundo externo [...].
Objecto de direito podem ser, na verdade, além das entidades corpóreas
perceptíveis pelos sentidos, também as incorpóreas, desde que constituam uma
utilidade econômica para o homem, isto é : os citados bens imateriais, como são,
por exemplo, o produto da inteligência própria nas obras literárias, artísticas e
musicais (que dá lugar ao direito do autor), o desenho ou marca de fábrica (que
14 Cabe ressalvar que não conseguimos ter acesso à obra original, então o comentário aqui realizado é referente ao que
consta em edição vertida ao português. Pedimos vênia ao grande jurista caso a tradução a que conseguimos ter acesso
não corresponda às ideias aduzidas na obra original, induzindo-nos à uma eventual crítica improcedente.
15 RUGGIERO, Roberto de. Instituïções de Direito Civil. Vol III. Tradução da 6.a edição italiana, com notas remissivas
aos Códigos Civis Brasileiro e Português pelo Dr. Ary Dos Santos. São Paulo: Livraria Académica Saraiva & C. –
Editores, 1934, p. 271.
16 RUGGIERO, Roberto de. ob. cit, pp. 271-272.
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dá lugar ao direito à marca e aos modelos de fábrica), a descoberta industrial ou
científica (direito à invenção), o próprio nome ou apelido (direito ao nome) etc.
[...].” 17
Ante o exposto por Ruggiero, sempre com máximo respeito, mas com a devida vênia, anotamos
algumas observações.
O autor diz que coisa em sentido técnico-jurídico é tudo o que possa ser objeto dos direitos, não
fazendo distinção se o objeto é um ente físico ou imaterial. Mas logo em seguida adverte que tudo
aquilo que se subtrai à possibilidade física de apropriação não é coisa. Ora, até aqui entendemos que o
autor disse que não seriam coisa os entes imateriais, haja vista que se subtraem à possibilidade física
de apropriação.
No entanto, mais adiante Ruggiero diz que coisas podem sim ser entidades incorpóreas “desde que
constituam uma utilidade econômica para o homem” – e inclusive condena os autores que
restringem o conceito de coisa aos objetos materiais.
Outro ponto a ser observado é a distinção que o autor faz entre coisa e bem. Primeiro diz que a coisa,
quando apropriada, se torna bem. Mas na sequência obtempera que essa apropriação não precisa
ser atual para que algo seja considerado um bem. Ou seja, com esta última afirmação nos parece que
na verdade bem é a coisa suscetível – mesmo que no futuro - de ser apropriada. No entanto, Ruggiero
adverte que continua sendo considerada bem a coisa que foi subtraída pela lei à disponibilidade. Ora,
então mesmo as coisas não suscetíveis de apropriação podem ser consideradas bens?
Nos perguntamos então qual é afinal a distinção entre coisa e bem, pois justamente o critério
distintivo apontado por Ruggiero – a apropriação faz da coisa um bem -, se ausente, não implica a
descaracterização do bem como tal. Explicando melhor, o autor afirma que mesmo quando não há
apropriação atual – mas tão somente a susceptibilidade de ser apropriada -, ou ainda
impossibilidade jurídica da apropriação, a coisa continua sendo considerada um bem. Diante disso,
com a devida vênia ao grande jurista italiano, não nos parece que foi dada uma definição precisa de
coisa e bem e nem apontada com exatidão a distinção entre os termos.
estes, cita a obra de arte, a descoberta industrial, a invenção científica, o próprio nome etc. Esclarece que “sob o ponto
de vista científico é mais exacto excluir das cousas os direitos, [...] e, mantendo firme a distinção entre cousas corpóreas
e incorpóreas, englobar nestas só os bens imateriais”. RUGGIERO, Roberto de. ob. cit. p. 275.
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Passamos então ao segundo jurista que iremos analisar, Miguel Maria de Serpa Lopes. O autor
inicia explicando que:
“Objeto do direito podem ser não só as pessoas como as coisas. [...]. Sob a
denominação de bens são designadas todas as coisas que, podendo proporcionar
ao homem uma certa utilidade, são suscetíveis de apropriação privada. Força é
não confundir coisa com bens. Distinguem-se como a espécie do gênero. Sob o
nome de coisa pode ser chamado tudo quanto existe na natureza, exceto a pessoa,
mas como bem só é considerada aquela coisa que existe proporcionando ao
homem uma utilidade, porém com o requisito essencial de lhe ficar suscetível de
apropriação. [...]. Enquanto a palavra “bem” deriva da palavra latina bonum, quer
dizer, felicidade, bem-estar, a palavra coisa possui um sentido mais amplo, pois
compreende aquelas coisas que podem ser objeto de um bem, e assim
consideradas pela ordem jurídica, como também muitas outras que, por
incapazes de apropriação pelo homem, se tornam estranhas à ordem jurídica.”20
Até aqui Serpa Lopes conceitua coisa como gênero, abrangendo tudo aquilo que existe na natureza,
exceto as pessoas. Ou seja, nos parece que apenas os entes corpóreos fariam parte do conceito de
coisa, pois são estes os que existem na natureza. E bem, por sua vez, é definido como espécie, sendo
toda coisa que pode proporcionar ao homem utilidade e ser suscetível de apropriação. Até aqui,
consideramos o conceito formulado pelo jurista preciso e rigoroso. No entanto, prossegue o autor
dizendo que:
“E quais sejam as coisas incluídas na ordem jurídica, tal depende das normas
positivas que venham a discipliná-las, em razão do que o conceito de coisa é
sempre relativo e mudável. Na atualidade, o conceito de coisas se alargou, para
deixar de ter um aspecto meramente corporal, físico, e espiritualizar-se no sentido
de compreender certas criações intelectuais, como a propriedade literária,
científica e artística.”21
20 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vol. 1. 8º ed., rev. e atualizada. Rio de janeiro: Freitas Bastos,
1996, p. 381.
21 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vol. 1. ob. cit., p. 381.
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essa relação de subordinação não consiste numa situação eminentemente física,
sendo suficiente a possibilidade de fruição das suas vantagens.”22
Ou seja, para que “a coisa se torne objeto de uma regulamentação jurídica” – ou melhor, para que
a coisa se torne um bem – é necessário que concorram três requisitos. Além disso, o autor admitiu a
possibilidade de haver coisas incorpóreas.23 Tendo sido exposto o pensamento do autor,
prosseguimos a alguns comentários.
O primeiro é relativo à afirmação do autor que “e quais sejam as coisas incluídas na ordem jurídica,
tal depende das normas positivas que venham a discipliná-las, em razão do que o conceito de coisa
é sempre relativo e mudável.”24 Não nos parece que o conceito de coisa é relativo ou mudável, na
verdade, partindo de suas premissas, se bem é aquilo que adentra na ordem jurídica, o que se
submete às variações do direito positivo não é a coisa mas sim o bem – ou em outros termos a coisa
que pode satisfazer utilidade econômica e ser apropriada. Na verdade, tendo o autor dito que as
coisas - que não são bens – são estranhas ao direito, nos parece que, justamente por isso, elas não
estão sujeitas intempéries e variações do direito positivo como estão os bens.
Outro ponto é que o autor, ao tratar do primeiro requisito “para que a coisa se torne objeto de
uma regulamentação jurídica”25 – isto é, seja considerada um bem -, diz ser “necessário que a coisa
represente um objeto capaz de satisfazer um interesse econômico. Por conseguinte, estão excluídas da noção
de coisa os elementos morais da personalidade [...].”26 Ou seja, o autor exclui do conceito de coisa
entes que não são capazes de satisfazer uma utilidade econômica. Todavia, nos parece que na
verdade coisa nessa frase foi empregada no lugar de bem, e que na verdade esses entes que não são
capazes de atender a uma utilidade econômica se subtraem ao conceito de bem e não de coisa.
Dois argumentos aduzimos para tanto: O primeiro é que, ao tratar do terceiro requisito, Serpa
Lopes é enfático ao dizer que “a luz, o Sol, as estrelas são coisas, porém coisas que não incidem na
órbita jurídica”27. Ora, se as estrelas, que não são capazes de atender a uma utilidade econômica
são denominadas pelo jurista como coisas – mas não bens – então quer dizer que a sua incapacidade
de satisfazer interesses econômicos não lhes excluiu da noção de coisa, mas sim de bem. O segundo
argumento é que o autor diz que o primeiro requisito para que a coisa se torne objeto de uma
regulamentação jurídica se resume em ser “necessário que a coisa represente uma utilidade”28. Ora,
se alguém diz que a coisa precisa ter uma utilidade para se tornar objeto de regulamentação do
direito, mas caso ela não tenha ela é excluída da noção de coisa, há aí uma contradictio in teminis. Seria
o mesmo que afirmar que a coisa que não pode ser útil não é uma coisa – ou ainda: isso é uma coisa, mas
isso não é uma coisa - quando na verdade, nos parece que o correto seria: a coisa que não pode ser útil
não é um bem.
22 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vol. 1. ob. cit., p. 382.
23 Afirma que “o conceito de coisas se alargou, para deixar de ter um aspecto meramente corporal, físico, e
espiritualizar-se no sentido de compreender certas criações intelectuais” LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito
Civil. ob. cit., p. 381. E, quando trata do terceiro requisito, fala que “essa noção tanto é aplicável às coisas corpóreas
como às incorpóreas” (grifo nosso). LOPES, Miguel Maria de Serpa. ob. cit., p. 382.
24 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vo. 1, ob. cit., p. 381.
25 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vo. 1, ob. cit., p. 382.
26 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vo. 1, ob. cit., p. 382.
27 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vo. 1, ob. cit., p. 382.
28 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Vo. 1, ob. cit., p. 382.
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Devemos dizer também que não nos ficou claro como e por qual motivo para o autor as coisas –
reputadas inicialmente apenas como corpóreas – se alargaram para abranger certas “criações
intelectuais”. Feitas essas observações, consideramos que a definição e distinção feita por Serpa
Lopes traça contornos gerais das definições, mas, com o devido respeito, se mostra incongruente
em certos aspectos terminológicos.
Exposto o pensamento de Serpa Lopes, cabe passar aos ensinamentos de Caio Mário da Silva
Pereira. Este começa estabelecendo o que diz ser o conceito fundamental e explicando a distinção
de bem e bem jurídico:
“são objeto dos direitos subjetivos os bens jurídicos. [...]. Bem é tudo que nos
agrada: o dinheiro é um bem, como o é a casa [...] o nome do indivíduo, sua
qualidade de filho [...]. Se todos são bens, nem todos são bens jurídicos. Nesta
categoria inscrevemos a satisfação de nossas exigências e de nossos desejos,
quando amparados pela ordem jurídica.”29
Depois o autor aclara que os bens jurídicos incluem tanto aqueles que tem natureza patrimonial,
como os que são insuscetíveis de avaliação econômica:
“São bens jurídicos, antes de tudo, os de natureza patrimonial. [...]. São os bens
econômicos. Mas não somente estes são objeto do direito. A ordem jurídica envolve
ainda outros bens inestimáveis economicamente, ou insuscetíveis de se
traduzirem por um valor pecuniário. [...]. Mas são bens jurídicos, embora não-
patrimoniais.”30
Logo em seguida, Caio Mário retoma sua definição e explicita a distinção entre bens em sentido
estrito e coisas:
“Dizendo que são objeto dos direitos os bens jurídicos, empregamos a expressão
em sentido amplo ou genérico, para compreender tudo o que pode ser objeto da
relação jurídica, sem distinção da materialidade ou da patrimonialidade. Cuidando
especificamente dos bens como ativo do patrimônio, podemos [...], defini-los
como elementos de riqueza suscetíveis de apropriação.
Em sentido estrito, porém, o objeto da relação jurídica, o bem jurídico, pode e
deve, por sua vez, suportar uma distinção, que separa os bens propriamente ditos
das coisas. Os bens, especificamente considerados, distinguem-se das coisas, em
razão da materialidade destas: as coisas são materiais ou concretas, enquanto que
se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em sentido estrito.
[...]. Mas nem tudo que é corpóreo e material é coisa: o corpo humano não é,
apesar de sua materialidade, porque o homem é sujeito de direitos, e não é
possível separar a pessoa humana, dotada do requisito da personalidade, de seu
próprio corpo. Depois da morte, porém, o cadáver é uma coisa, da mesma forma
29 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 13º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 271.
30 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. ob. cit., pp. 271-272.
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que são coisas as partes destacadas do corpo sem vida, como os ossos, as peças
anatômicas preparadas, as quais, por isto mesmo, podem ser objeto de alguma
relação jurídica, ou ser objeto de negócios jurídicos restritos.”31
Dessa forma, para o autor, tudo aquilo que pode ser objeto da relação jurídica é um bem jurídico em
sentido amplo, sendo passível, ou não, de apreciação pecuniária, sendo material ou imaterial. Já em
sentido estrito, o bem jurídico distingue-se – pelo critério da materialidade - em bem propriamente dito
e coisa. A primeira expressão se refere apenas aos entes imateriais, enquanto a segunda aos
materiais.32 Depois ressalva que nem tudo que é material é considerado coisa, dando como exemplo
o corpo humano (de alguém vivo), que não pode ser objeto de uma relação jurídica.
Dito isso, Caio Mário prossegue com sua explicação, observando que:
“Toda relação jurídica tem um objeto, seja este um bem ou uma coisa. [...]. Mas
há coisas que não são objeto de uma relação jurídica, ou porque são insuscetíveis
de apropriação, ou porque ainda não foram apropriadas.
As primeiras são as chamadas coisas comuns, porque podem ser utilizadas por
qualquer pessoa, embora não dominadas. Estão nesta categoria o ar atmosférico,
o mar, as águas correntes dos rios públicos. Ninguém pode fazê-las de objeto de
uma relação jurídica. [...].
No estado de coisas comuns, o ar, o mar, embora não pertençam a ninguém,
podem ser subordinados a regulamentação no seu uso [...].
Coisas há que, suscetíveis embora de dominação, acham-se em dado momento
não assenhoreadas, ou porque nunca foram objeto de apropriação, ou porque
foram abandonadas pelo dono.” 33
“Não são apenas as coisas que o direito considera suscetíveis de constituir objeto
de relação jurídica. Também podem sê-lo os fatos humanos, sob a denominação
específica de ‘prestação’. [...]. Discute, finalmente, a doutrina moderna se pode
um direito ser objeto de outra relação jurídica [...]. No direito brasileiro a idéia é
aceita [...].”34
31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. ob. cit., pp. 272 – 273.
32 Importa observar que não nos ficou claro se apenas os bens jurídicos econômicos, ou também os economicamente inestimáveis,
se distinguem em bens propriamente ditos e coisas. Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, explicando a teoria de
Caio Mário, dizem que “alguns dos bens dotados de expressão patrimonial podem ser materiais, caracterizando as
coisas, que são materiais, enquanto os bens são abstratos.” CHAVES DE FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson.
Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 16º ed., ver., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 557. Ou seja, na
leitura de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, Caio Mário distingue os bens jurídicos econômicos em bens propriamente ditos
e coisas. De qualquer forma, nos fica a dúvida: podem os bens economicamente inestimáveis serem uma coisa ou um bem
propriamente dito, ou eles não estão submetidos a essa classificação?
33 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Vol. 1. Instituições de Direito Civil. ob. cit., pp. 273-274.
34 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Vol. 1. Instituições de Direito Civil. ob. cit., pp. 274-275.
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Exposto o posicionamento de Cáio Mário da Silva Pereira, importa fazer alguns comentários.
Primeiro, cabe dizer que o autor conceitua bem como gênero e coisa como espécie – na contramão
do que, como exposto, faz Ruggiero e Serpa Lopes – e restringe o termo coisa aos entes corpóreos.
O único ponto a ser evidenciado é que não compreendemos exatamente por qual motivo o autor
exclui determinados entes corpóreos do conceito de coisa, especialmente o corpo humano (vivo).
No entanto, nos parece – diante do exposto - que o motivo dado é que (o corpo humano vivo)
não pode ser objeto da relação jurídica. Afinal, bem jurídico é tudo aquilo que é objeto das relações
jurídicas, e, subtraindo-se o corpo humano vivo da possibilidade de ser objeto dessas relações,
também estaria excluído do conceito de coisa – e de bem. Além disso, questionamos por qual motivo
o autor denomina de coisas comuns aqueles entes que, embora utilizáveis por todos, não podem ser
objeto das relações jurídicas - como o próprio autor afirma. Partindo da premissa que coisa é espécie de
bem jurídico, não nos parece correto denominar de coisa algo que não pode ser objeto de uma relação
jurídica, na verdade, nem mesmo poderia ser considerado um bem jurídico.
Dito isso, importa passar para a outro doutrinador, averiguando como conceitua bem e coisa.
Orlando Gomes principia sua exposição dizendo que:
“Objeto dos direitos são os bens e as prestações. Também outra pessoa pode ser
objeto de direito em algumas relações pessoais. [...]. Essa pessoa nem por isso é
coisa; é algo fora do sujeito.
A noção jurídica de bem é mais ampla do que a econômica. Compreende toda
utilidade, física ou ideal, que possa incidir na faculdade de agir do sujeito. Abrange
as coisas propriamente ditas, suscetíveis de apreciação pecuniária, e as que não
comportam essa avaliação, as que são materiais ou não”. 35
Primeiro o autor parece indicar que bem seria apenas um dos objetos dos direitos, ao lado das
prestações e das pessoas. Depois o autor aclara que bem no sentido jurídico é tudo aquilo que pode
trazer utilidade e incidir na faculdade de agir do sujeito, seja físico ou não, abrangendo tanto as
coisas propriamente ditas, aquelas que podem ser pecuniariamente apreciadas, como as que não podem,
tanto as materiais, como as que não o são. Ou seja, até então nos parece que bem seria gênero do
qual coisa propriamente dita seria espécie, conforme seja susceptível de ser apreciado em dinheiro, não
importando o critério da materialidade. Na verdade, do exposto, nos parece que não se exclui a
possibilidade de haver coisas propriamente ditas que são imateriais, desde que seja passível de avaliação
econômica e que seja um bem em sentido amplo – i.e., possa trazer utilidade e incidir na faculdade de
agir do sujeito.
Então Orlando Gomes continua sua exposição, dizendo que:
35GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 12ª ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 199.
15
“tomada no sentido mais claro, a palavra bem confunde-se com o objeto dos
direitos; designa coisas e ações humanas (comportamento que as pessoas podem
exigir umas das outras). Em acepção mais restrita, significa o objeto de direitos
reais, visto que os direitos pessoais consistem no poder de exigir uma
prestação”36
Dessa passagem, compreendemos que o autor denomina bens “em sentido mais claro” os objetos dos
direitos, nessa acepção, as duas expressões se confundem, abrangendo as coisas e as ações humanas.
Logo em seguida, delimita que em sentido mais restrito bem é apenas os objetos dos direitos reais.
Orlando Gomes prossegue assim a distinção entre bem e coisa, asseverando que:
Dessa passagem, concluímos que coisa é espécie de bem, e que o critério que faz o bem ser
considerado coisa (espécie) é justamente a qualidade de possuir avaliação econômica. Mas logo depois o
autor adverte que há coisas que não são bens, pois não interessam ao direito, e que há bens que
não são coisas – como os direitos e as prestações.
Segue então Orlando Gomes dizendo que:
Aqui nos parece que o sentido estreitíssimo de coisa como objetos corpóreos é citada apenas como
exemplo, e que o autor compreende na verdade coisa como o ente, material ou imaterial, que possui
valor econômico e é suscetível de apropriação por um sujeito. Diz que coisa não se confunde com
objeto de direito.
16
Então prossegue Orlando Gomes:
“Para que a coisa possa ser objeto de direito precisa reunir as seguintes
qualidades: a) economicidade; b) permutabilidade; c) limitabilidade.
Somente os bens suscetíveis de avaliação econômica são coisas em sentido
jurídico. Para que assim se qualifique, é preciso que tenha valor de uso ou de
troca, como, também, que possa ser apropriado, isto é, que possa ser submetido
ao poder de uma pessoa, com exclusividade. Os bens de uso ou qualidade
ilimitada não são coisas (res communes omnium). Se esses mesmos bens comuns a
todos são limitados, por conveniência legítima, adquirem o caráter de
permutabilidade, na quantidade determinada, que passa a ser uma coisa. É
indiferente que o objeto seja sólido, líquido ou gasoso, mas se requer tenha
existência individualizada, aferida por critério econômico-social. A noção de
coisa restringe-se juridicamente ao que pode ser objeto de domínio e posse. [...].
[...].
Para decidir se um objeto é coisa, não vale o critério naturalístico. O conceito
jurídico de coisa obedece a critério essencialmente econômico e social. [...].
É preciso que tenha existência própria que seja suscetível de utilização e
apropriação.”39
17
das coisas. Em “sentido mais claro” como objeto dos direitos? Ou em sentido estrito, como objeto
dos direitos reais? Em outros termos: as coisas são espécie dos bens enquanto objetos dos direitos,
ou tão somente enquanto objetos dos direitos reais? Nos parece que em sentido amplo, pois no
final do parágrafo Orlando Gomes diz que “há bens que não são coisas, como os direitos e as
prestações.”41
Outro ponto é que o autor, imediatamente após afirmar que a relação entre bem e coisa é de gênero
e espécie, adverte que há coisas que não são bens, por não interessarem ao direito, como a luz o
ar, a água do mar. Ora, se é requisito para ser bem - seja este em sentido amplo ou restrito – a
qualidade de ser objeto de direitos, não é logicamente coerente que a coisa, enquanto espécie de bem,
possa ser algo que não interesse ao direito - e portanto subtraído da possibilidade de figurar como
objeto de um direito. Em outros termos, não nos parece coerente que na espécie (coisa) possa estar
ausente uma das qualidades sine quae non do gênero (bem) a que pertence.
Além disso, o autor diz que “não se deve confundir coisa com objeto de direito. Pode este ser uma
coisa, como é nos direitos reais [...].”42 Nos parece necessário examinar essa afirmação. Partindo da
premissa por ele estabelecida que bem em sentido amplo se confunde com o objeto dos direitos, então
parece coerente dizer que coisa não se confunde também com objeto de direito, já que coisa e bem
em sentido amplo se disintinguem. Todavia, ao declarar que nos direitos reais o objeto do direito
é uma coisa, isso não nos parece congruente com as outras afirmações do autor, pois – conforme
ele mesmo assevera - “há bens que não são coisas, como os direitos [...]”43 e, por outro lado, “os
direitos podem ser objeto de outros direitos. Tanto os reais como os pessoais.”44. Diante disso, não
é harmônico dizer que o objeto dos direitos reais são as coisas, se os direitos estão subtraídos desse
conceito e mesmo assim – na visão do autor - podem ser objeto dos direitos reais.
Outrossim, é necessário observar que o autor estabelece que são necessárias três qualidades para
que “a coisa possa ser objeto de direito”45, quais sejam, economicidade, permutabilidade e limitabilidade.
Primeiramente, devemos dizer que, com a devida vênia, nos parece ilógico que se estabeleçam
qualidades para que a coisa possa ser objeto de direitos. Afinal, - como dito -, sendo a coisa espécie do gênero
bem, ela deve necessariamente ser um bem. Explicando melhor, a espécie contém as qualidades do
gênero. Logo, partindo da premissa que bem é tudo aquilo que é objeto dos direitos – seja de
qualquer direito ou apenas dos direitos reais -, a coisa deve logicamente ser também aquilo que é
objeto de direitos – mas com o “plus” de ser suscetível de avaliação econômica. Justamente por
isso, a “coisa” que não pode ser objeto de direitos não seria, pela definição do autor, nem mesmo
uma coisa.
A segunda observação é que, ainda que se admita o estabelecimento de qualidades indispensáveis para
que a coisa seja objeto de direitos – o que como dito não nos parece lógico -, pensamos ser incorreto,
conforme suas premissas, listar o requisito da economicidade como uma qualidade indispensável para que
a coisa seja objeto de direitos. Isso porque, para ser denominado coisa – segundo a definição do autor –
o ente deve necessariamente ser apreciável economicamente. Listar esse requisito como necessário
para que a “coisa possa ser objeto de direitos” poderia implicar uma possível contradictio in terminis:
estando presentes os dois últimos requisitos, mas ausente o primeiro (economicidade), pela forma
que o autor enunciou se diria que “a coisa não pode ser objeto de direitos”, mas na verdade, nesse
18
caso o ente nem mesmo poderia ser chamado de coisa. Seria o mesmo que dizer: “a coisa que não
pode ser objeto de direitos, por não conter a qualidade da economicidade, não é uma coisa”.
Ademais, ao conceituar essas três qualidades – economicidade, permutabilidade, limitabilidade -, nos
parece que o autor não seguia a lógica e o rigor terminológico. Primeiro diz que “somente os bens
suscetíveis de avaliação econômica são coisas em sentido jurídico.”46 Essa afirmação faz
completamente sentido do ponto de vista que os bens, quando apreciáveis economicamente, são
coisas. No entanto, ao falar que esses bens são coisas em sentido jurídico, nos questionamos se há, e
qual seria para o autor, o conceito não jurídico de coisa. Como, ele não expõe nenhuma definição
para tanto, e partindo da premissa que ele oferece de que coisa é espécie de bem – este
compreendendo o que pode ser objeto de direitos -, o que se conclui, a princípio, é que as coisas
pressupõem a juridicidade, pois somente é objeto de direitos aquilo que interessa ao direito. Além
disso, ao tratar da qualidade da permutabilidade, diz que à coisa “é preciso que tenha valor de uso ou
de troca, como, também, que possa ser apropriado”47 De início cabe dizer que, como o autor diz ser
necessário que a “coisa” tenha valor de uso OU troca, não nos parece que o termo permutabilidade
seja o mais adequado, pois permutar passa a noção de “troca”, e como exposto pelo autor, o “valor
de troca” não é uma qualidade indispensável.
Ademais, dentro da própria definição dessas qualidades para que a coisa possa ser objeto de direitos,
Orlando Gomes diz que “os bens de uso ou qualidade ilimitada não são coisas (res communes
omnium)” (apenas o primeiro é grifo nosso).48 No entanto, é de se observar que com essa frase o
autor contraria expressamente o que havia antes proposto, quando disse que “há coisas que não
são bens, por não interessarem ao Direito, como a luz, o ar, a água do mar.” (grifo nosso)49Ora,
tanto a luz, como o ar e a água do mar são res communes omnium. Na verdade, essa contradição serve
de forte evidência para o que há pouco enunciamos: não é lógico estabelecer requisitos para a coisa
ser objeto de direitos, pois ser coisa implica necessariamente em ser objeto de direitos. Caso o autor houvesse
seguido o que havia primeiramente enunciado – ao tratar do ar, da água do mar e da luz -, e
denominado as res communes omnium de coisas, teria caído na contradictio in terminis que mencionamos,
pois estaria afirmando que “as coisas comuns a todos não são coisas”. E na verdade não apenas
essa contradição serve de evidência para o que afirmamos. Cabe lembrar que nessa parte do livro
o autor está tratando das qualidades para que a “coisa” possa ser objeto de direitos, e ainda assim o autor
diz que as res communes omnium não são coisas por terem qualidade ilimitada. Ou seja, se comprova
exatamente o que havíamos dito: na verdade toda coisa é, pela definição, objeto de direitos; aquilo
que não pode ser objeto de direito, segundo as premissas do autor, não é coisa.
Assim, tendo-se passado pelos aspectos que consideramos mais relevantes, terminamos o
comentário da definição de Orlando Gomes dizendo que, com a devida vênia, concluindo que há
uma falta de coerência nas suas definições e, além disso, em muitas vezes nos fica a dúvida em
saber em qual sentido está utilizando determinado termo, isto é, em sentido mais amplo ou estreito.
Dito isso, passemos a doutrina de Washington de Barros Monteiro.
O autor inicia dizendo que:
19
“Depois de havermos estudado o primeiro elemento da relação jurídica, isto é, o
sujeito do direito, cabe-nos passar ao exame do seu objeto, vale dizer, dos bens.
A palavra bens pode ser tomada em vários sentidos, a começar pelo filosófico. A
esse propósito, saliente-se, para logo, a discordância entre o significado jurídico
e o filosófico do vocábulo em questão.
Filosoficamente, bem é tudo quanto pode proporcionar ao homem qualquer
satisfação. Nesse sentido se diz que a saúde é um bem, que a amizade é um bem,
que Deus é o sumo bem. Mas, se filosoficamente, saúde, amizade e Deus são
bens, na linguagem jurídica não podem receber tal qualificação.
Juridicamente falando, bens são valores materiais ou imateriais, que podem ser
objeto de uma relação de direito. O vocábulo, que é amplo no seu significado,
abrange coisas corpóreas e incorpóreas, coisas materiais ou imponderáveis, fatos
e abstenções humanas.”50
Até aqui o autor estabelece que termo bens pode assumir vários sentidos, dentre estes um filosófico
e um jurídico. Em sentido filosófico, bem é tudo aquilo que “pode proporcionar ao homem qualquer
satisfação”. Em sentido jurídico, por sua vez, corresponde aos valores que podem ser objeto da relação
jurídica, sejam eles materiais ou não - aí incluídos também os fatos humanos.
Prossegue então o autor afirmando que:
50 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 139.
51 MONTEIRO, Washington de Barros. Vol. 1. ob. cit, pp. 139-140.
20
Tendo-se mostrado o pensamento do autor, passemos a alguns comentários que julgamos
pertinentes. Primeiro o autor parece indicar que bens são o objeto da relação jurídica. Depois,
distingue dois significados de bem, um filosófico - tudo o que pode dar satisfação ao homem -, e
outro jurídico – os valores, materiais ou não, que podem ser objeto de uma relação jurídica. Diante
disso, nos indagamos: o que o autor quis exprimir exatamente ao dizer que bens são “valores” que
podem ser objeto das relações jurídicas? Há alguma diferença em dizer que os bens são o objeto das
relações jurídicas e que bens são os valores que podem ser objeto da relação jurídica?
Um ponto a ser examinado é que o autor diz que “somente interessam ao direito coisas suscetíveis
de apropriação exclusiva pelo homem”52. A primeira conclusão que se tira dessa afirmação é que
coisa parece ser um termo amplo53, e dessas várias coisas o direito se interessa apenas por aquelas
suscetíveis de apropriação exclusiva pelo homem. O que devemos dizer é que ao utilizar o termo
homem, o autor parece indicar o sujeito de direito humano, excluindo-se, portanto, as pessoas
jurídicas, que, apesar de serem pessoas para o direito, não são, segundo o autor, denominadas de
homens.54 Portanto, a conclusão lógica que se tira da definição de Washington de Barros Monteiro
é que coisa que interessa ao direito é apenas aquela suscetível de apropriação exclusiva por uma pessoa
natural, pois, segundo autor, as pessoas jurídicas, sejam de direito público ou privado, não são
homens. Todavia, mais adiante, o autor diz que no significado jurídico coisa é “tudo quanto seja
suscetível de posse exclusiva pelo homem, sendo economicamente apreciável.”55 Então nos
questionamos: o que importa para a definição é a susceptibilidade de ser apropriado ou possuído - e
que seja apreciável economicamente?
Diante disso, nos parece que o autor atribui significado mais amplo ao termo bem do que à coisa,
pois o primeiro abrange todo objeto da relação jurídica, enquanto o segundo se limita àqueles
objetos que são suscetíveis de apropriação – ou posse? - exclusiva pelo homem. Portanto, sendo fiel
à definição, a luz solar e a água dos oceanos não poderiam ser denominadas de coisa em sentido jurídico,
pois não podem ser apropriadas – ou possuídas – por uma pessoa natural com exclusividade. No
entanto, mais adiante em seu texto afirma que “acham-se fora do comércio as coisas insuscetíveis
de apropriação, como [...], a luz solar, [...], a água dos oceanos. Não são essas coisas passíveis de
posse exclusiva pelo homem [...].” (grifo nosso).56 Ora, se não são passíveis nem de apropriação e
nem de posse exclusiva pelo homem, por que então o autor as denomina de coisas – e não bens
- fora do comércio? Coisa foi utilizado em sentido não jurídico?
Além disso, outro ponto que precisa ser exaltado é que o autor diz que bem e coisa são termos
“correspondentes”, mas nem sempre com “perfeita sincronização”. E então enumera as diferentes
acepções que as expressões assumem. Concordamos plenamente com o autor ao dizer que os
termos assumem diversas acepções. Todavia, não nos fica claro qual foi a posição que o autor
assumiu – se é que assumiu -, diante dessa pluralidade de significados, pois não compreendemos
exatamente o que o autor quis dizer com afirmação de que os termos são “correspondentes”. São
equivalentes ou apenas possuem correlação? Por outro lado, como já comentado, ao definir os dois
do direito (tanto que este já privou seres humanos de personalidade – os escravos), da mesma forma pode ele
concedê-la a outros entes, que não os homens, desde que colimem a realização de interesses humanos.” (grifo
nosso). MONTEIRO, Washington de Barros. ob. cit, p. 102.
55 MONTEIRO, Washington de Barros. ob. cit, p. 140.
56 MONTEIRO, Washington de Barros. ob. cit, p. 159.
21
termos, em sentido jurídico, o autor parece ter atribuído significado mais amplo a bem – objeto (ou
valor que pode ser objeto) da relação jurídica -, e mais estreito a coisa – aquilo que é suscetível de
apropriação (ou posse?) exclusiva pelo homem.
O último ponto que iremos analisar é que o autor afirma que “se as coisas materiais escapam à
apropriação exclusiva pelo homem, por ser inexaurível sua quantidade, [...], deixam de ser bens em
sentido jurídico.”57 Nos parece, sempre com o máximo respeito pelo notável civilista, que essa frase
não é precisa partindo-se das suas próprias premissas. Isso porque define bem em sentido jurídico como
aquilo que é objeto – ou como os valores que podem ser objeto - das relações jurídicas. Não se faz
aí nenhuma ressalva de que essa relação jurídica tenha que ser aquela decorrente do direito de
propriedade, ou de um direito real. Portanto, seguindo a definição do autor, bem em sentido jurídico
poderia ser algo que não pode ser apropriado por uma pessoa natural (homem), mas pode ser
objeto de outras relações jurídicas. Todavia, na frase sob exame afirma que as coisas materiais que
não podem ser apropriadas exclusivamente pelo homem não são bens em sentido jurídico.
Sendo assim, feitos esses breves comentários à doutrina de Washington de Barros Monteiro,
devemos dizer que, com a devida vênia, não nos parece que foi dada uma conceituação adequada
de bem e coisa, e nem que o autor se manteve firme às premissas que estabeleceu. Por isso, passamos
ao exame da doutrina de outro eminente jurista brasileiro: Silvio Rodrigues.
O eminente doutrinador inicia sua exposição explicando a divisão do Código Civil – de 1916-
dizendo que:
“[...], a Parte Geral do Código Civil consta de três Livros, o primeiro dos quais
disciplina a matéria relativa às pessoas, isto é, o sujeito de direito; o segundo trata
dos bens, isto é, o objeto do direito; e o terceiro, dos fatos jurídicos, isto é, a
relação que se estabelece entre as pessoas, tendo, no mais da vezes, por objeto
os bens.”58
Então o autor explica que tratará nesse capítulo sobre os Livro II do Código, referente aos bens, e
prossegue sua exposição explicando o conceito de bem econômico:
“Para a economia política, bens são aquelas coisas que, sendo úteis aos homens,
provocam a sua cupidez e, por conseguinte, são objeto de apropriação privada.
Entretanto, ainda dentro do conceito econômico, nem todas as coisas úteis são
consideradas bens, pois, se existirem em grande abundância na natureza,
ninguém se dará ao trabalho de armazená-las. Assim, nada mais útil ao homem
do que o ar atmosférico, mas, como ele abunda na natureza, não é um bem
econômico. Desse modo, poder-se-ia definir bens econômicos como aquelas
coisas que, sendo úteis ao homem, existem em quantidade limitada no universo,
ou seja, são bens econômicos as coisas úteis e raras, porque só elas são suscetíveis
de apropriação.”59
22
Estabelecido o conceito de bem econômico, Silvio Rodrigues continua sua explicação:
“Da mesma maneira, o direito só vai disciplinar as relações entre homens no que
concerne às referidas coisas. Como os interesses humanos são ilimitados e os
bens econômicos, por definição, limitados, surge, naturalmente, entre os
homens, um conflito de interesses quando disputam um bem. Esse conflito de
interesses, se regulado pelo direito, dá lugar a uma relação jurídica.60
“Os vocábulos bem e coisa são usados indiferentemente por muitos escritores e,
por vezes, pela própria lei. Trata-se, todavia, de palavras de extensão diferente,
uma sendo espécie da outra. Com efeito, coisa é o gênero do qual bem é espécie.
A diferença específica está no fato de esta última incluir na sua compreensão a
idéia de utilidade e raridade, ou seja, a de ter valor econômico.
Coisa é tudo que existe objetivamente, com exclusão do homem. Assim, o sol, a
lua, os animais, os seres inanimados etc. O Código Civil Português de 1867, em
seu art. 369, a conceituava ao afirmar que “coisa diz-se em direito tudo aquilo
que carece de personalidade”. Como só o homem tem personalidade, coisa é
tudo que existe exteriormente a ele.
Bens são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e
contêm valor econômico.61
Tendo sido exposto o pensamento do autor, prosseguimos a alguns comentários que entendemos
cabíveis.
23
De maneira sintética, pode-se dizer que Silvio Rodrigues entende coisa como gênero do qual bem é
espécie. O gênero (coisa) compreende “tudo que existe objetivamente, com exclusão do homem.”63
Enquanto a espécie (bem) abarca as “coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de
apropriação e contêm valor econômico.”64 O critério que faz a coisa (gênero) ser considerada um
bem (espécie) é o fato de incluir “a idéia de utilidade e raridade, ou seja, a de ter valor econômico.”65
O primeiro ponto a se observar é que ao dizer que coisa é aquilo que existe objetivamente com exclusão do
homem, não nos ficou claro se as coisas podem ou não ser entes incorpóreos.66 Principalmente porque
o autor afirma que “valores existem que se não corporificam em coisas, mas que, por terem um
conteúdo econômico, são objeto de regulamentação por parte do Direito Civil. São os bens
incorpóreos, tais como o direito autoral” (grifo nosso).67 Ao dizer que há valores que não se
corporificam em coisas, Silvio Rodrigues parece indicar que a coisa pressupõe a corporeidade. Contudo,
com o maior respeito ao eminente autor, nos parece que há aí uma contradição. Se as coisas
pressupõem a corporeidade, e os bens são espécie de coisa, não é coerente que o bem possa ser
incorpóreo, pois, ausente a corporeidade, nem mesmo seria considerado uma coisa.
Além disso, o autor conceitua bem econômico como sendo “as coisas úteis e raras, porque só elas são
suscetíveis de apropriação.”68 69 Nos indagamos, todavia, se uma coisa útil e rara continuaria a ser
um bem econômico se fosse subtraída pela lei da possibilidade de apropriação. Isto é, mesmo que fosse
útil e rara, mas insuscetível de apropriação, a coisa continuaria a ser um bem econômico? De
qualquer forma, nos parece necessário confrontar esse conceito de bem econômico com aquele que
Silvio Rodrigues faz posteriormente de que “bens são coisas que, por serem úteis e raras, são
suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico”70. Nos parece que na verdade exprimem o
mesmo significado, ainda que neste segundo o autor tenha mencionado um elemento que não havia
mencionado na primeira definição – conter valor econômico. Concluímos por esta identidade de
sentido porque o autor em uma passagem afirma que na noção de bem está compreendida “a idéia
de utilidade e raridade, ou seja, a de ter valor econômico.”71 Ou seja, o autor parece tirar da utilidade
e raridade a conclusão de ter valor econômico.
Diante disso, a distinção entre o gênero coisa e a espécie bem – como afirma o próprio autor – é que
na última está incluída a noção de susceptibilidade de apropriação, ser útil, raro e ter valor
econômico. Inclusive menciona o exemplo de que o ar atmosférico, apesar de ser uma coisa útil,
não é considerado um bem.72
coisas úteis são consideradas bens, pois, se existirem em grande abundância na natureza, ninguém se dará ao trabalho
de armazená-las. Assim, nada mais útil ao homem do que o ar atmosférico, mas, como ele abunda na natureza, não é
um bem econômico.” (grifo nosso). RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. 1, ob. cit., p. 109. Nos parece que o critério
apresentado é extremamente subjetivo. Ora, se houver alguém que se dispusesse a armazenar essa coisa então ela seria
considerada um bem econômico?
24
Mais adiante em sua exposição, Silvio Rodrigues trata “das coisas que estão fora do comércio”.73 A
princípio, devemos elogiar esta terminologia utilizada pelo autor – que é a mesma presente no
Código Civil de 1916 -, haja vista que dentre as coisas fora do comércio, se incluem aquelas que
são insuscetíveis de apropriação,74 e, conforme a definição do autor, aquilo que é insuscetível de
apropriação não é um bem. Todavia, nesse mesmo capítulo de seu livro, o eminente jurista, ao
explicar quais são essas coisas insuscetíveis de apropriação, diz “Coisas insuscetíveis de apropriação: A)
bens não econômicos; B) coisas da sociedade.”75 E dentro desses bens não econômicos estão contidas “aquelas
coisas que, por não serem úteis, ou não serem raras, não despertam a cupidez do homem, que desse
modo não se sente inclinado a delas se apropriar. [...] como a ar atmosférico.”76 Com a devida vênia,
partindo das premissas do autor, não nos parece exato denominar essas coisas insusceptíveis de
apropriação de bens não econômicos. Primeiro porque nos parece haver aí uma contradictio in adjecto,
pois o adjetivo não econômico está excluindo uma característica sine quae non dos bens mencionada pelo
autor, qual seja, a de ter apreciação econômica. Segundo porque o bem – como exposto pelo autor
– pressupõe a susceptibilidade de apropriação, e, no entanto, essas coisas que o autor está a tratar
nesse parágrafo são insuscetíveis de apropriação.
Então alguém poderia suscitar a objeção: ora, não é porque a coisa não é bem econômico que não pode
ser considerada um bem não econômico - ou em outras palavras: a coisa que não é um bem econômico pode
ser um bem não econômico. No entanto, isso não nos parece possível a partir das definições do autor.
Deve-se perceber que Silvio Rodrigues – ainda que fale em bens econômicos, o que poderia levar
alguém a deduzir desse adjetivo a possibilidade de existir bens não econômicos – em nenhum momento
define o que viria a ser bens não econômicos. A definição de bem que é desenvolvida pelo autor está
toda ligada à susceptibilidade de apropriação. É certo também que o autor menciona aquilo que
chama de bens não patrimoniais para indicar valores que não tem conteúdo econômico – que
poderiam ter identidade com os bens não econômicos -, todavia, também essa denominação nos parece
contraditória, pois o autor a menciona logo após ter dito que “bens são coisas que, por serem úteis
e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico.”77
Feitas essas considerações, devemos dizer que a definição e distinção desenvolvida por Silvio
Rodrigues, com o devido respeito, nos parece que se desvia em alguns pontos das premissas que
estabelece.
Dito isso, passamos ao exame da doutrina de Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Martin
Wolff.78Para expor o pensamento dos eminentes autores será necessário percorrer um caminho um
pouco mais longo. Reiteramos que, apesar de a citação direta não ser estilisticamente a mais
adequada, é imprescindível para que se possa fazer um exame mais fiel das doutrinas expostas.
Primeiro, ao tratar do objeto dos direitos, os autores dizem que:
González e José Alguer. Sendo assim, desde logo ressalvamos que os comentários realizados terão por base a referida
tradução.
25
“Podemos distinguir los siguientes objetos del derecho:
1. La propria persona. [...].
2. Otras personas. [...].
3. Las cosas, los seres corporales de la naturaleza no libre – o sea con excepción
de los hombres – que se reconocen como objetos del derecho: derechos reales.
4. Los productos del espíritu [...].
5. Es muy discutido si un derecho puede ser a su vez objeto de un derecho [...]. La cuestión
ha de resolverse afirmativamente [...].”79
E mais adiante explicam o que são os objetos que denominam de productos del espíritu:
79 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil. Tomo I, Vol. 1º, 13. ed., rev.
por Hans Carl Nipperdey; traducción de la 39. ed. alemana, estudios de comparación y adaptación a la legislación y
jurisprudencia española por Blas Pérez González y José Alguer. 2º ed. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1953, pp. 298-
299.
80 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
26
Prosseguem então Enneccerus, Kipp e Wolff ao estudo específico das coisas, primeiro tratando do
conceito de objetos:82
“I. Objetos. El C.c. no determina el concepto del objeto. De la redacción del § 90:
“objetos corporales” se deduce que la ley distingue entre objeto y cosa, y que el
objeto es el concepto más amplio y superior.
Se denominan “objeto” a casi todos los objetos de los derechos, incluyendo los
objetos corporales (cosas) y los incorporales. Entonces coinciden el concepto del
objeto (Gegenstand) y el del objeto del derecho (Rechtsobjekt) (supra § 70 I). Algunos
separan las personas (como la edición anterior) de los “objetos”. Además, es de
advertir que la expresión no es estrictamente técnica, puesto que se la emplea
también con frecuencia a propósito de las obligaciones y de los negocios
obligatorios, aunque no constituyan ninguna relación directa con el “objeto”, e
incluso se habla del objeto de una deliberación o de otro acto.”83
“[...]. Así, pues, el § 90 sólo quiere decir que de los objetos (esto es, de los objetos
del derecho) en el C. c. sólo los corporales se califican de cosas, [...]. De un modo
parecido el derecho romano contrapone al concepto de cosa en sentido proprio
un concepto más amplio de la cosa, distinguiendo, en consecuencia, las res
corporales y las incorporales. L. 1 § 1 D. de. rer. div. 1, 8.”84
“II. Cosas. Sólo son cosas en sentido legal los “objetos corporales” (§90). Se trata de
partes de la naturaleza no libre y dominable que rodea al hombre, que tienen
substantividad propria, una denominación especial y un valor en la vida del
tráfico, siendo en consecuencia reconocidas como objetos de derechos
independientes.”85 86
“No como “objetos de economía” (como define REGELSBERGER I § 96),
pues si bien el derecho se inspira, para la delimitación del concepto de cosa,
82 Interessante observar que os autores delimitam especificamente que não tratarão nesse capítulo do livro sobre os
productos del espíritu, mas no volume do tratado que versa sobre o direito de autor.
83 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
= piezas impersonales, corporales, con substantividad propria y que pertenecen a la naturaleza dominable.”
ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
ob. cit., p. 533, rodapé n. 6.
27
principalmente en los puntos de vista económicos, no es en modo alguno con
carácter exclusivo, como lo demuestra la delimitación del concepto de cosa a
propósito de las cosas inmuebles [...].”87
“1. Así, pues, el cuerpo del hombre vivo no es una cosa, ni tampoco un objeto.
[...]. Pero con la muerte, el cuerpo (el cadáver) se convierte en cosa, aunque no
pertenezca en propriedad al heredero (como lo revela también el deber de
enterrar) ni sea susceptible de apropiación. [...]. Las momias, los esqueletos, las
preparaciones anatómicas son cosas, habiendo de reconocerse la propriedad
sobre ellas. Si un objeto es o no corporal y, por tanto, cosa, se decide de
conformidad con las concepciones del tráfico y no según las doctrinas físicas. Se
requiere, y es suficiente, la perceptibilidad por cualquiera de los sentidos (no es
menester que sea perceptible al tacto). [...].
No son cosas por faltarles la naturaleza de objeto corporal:
a) Las energías, las fuerzas motrices, como, por ejemplo, la electricidad [...], el
calor, la luz, en suma, las fuerzas de la naturaleza.
b) Los conjuntos de cosas o cosas universales [...].
c) Los derechos, los conjuntos de derechos, el patrimonio y la empresa [...].”88
Então prosseguem:
87 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
ob. cit., pp. 532-533, rodapé n. 5.
88 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
28
jurídico las susceptibles de dominación por el hombre, y no el sol, la luna y las estrellas.
Tampoco las cosas sobre las cuales no cabe concebir un derecho de carácter
privado, por ejemplo, todas las cosas comunes (el aire, el mar). Más detalles sobre
las cosas no susceptibles de derecho y de tráfico infra [...]. 6. La importancia del
concepto de cosa se hace patente en el derecho de cosas. Sólo pueden ser objeto de
derechos reales las cosas en el sentido del § 90 (aparte de los casos de derechos
sobre derechos); solo sobre cosas recae la propriedad. [...].89
Por fim, tratam dos conjuntos de coisas, que já haviam dito que estavam excluídos do sentido técnico
de coisa:
Tendo sido o exposto o conceito de coisas para Enneccerus, Kipp e Wolff, cabe ainda mostrar de
forma breve o que os autores dizem sobre as cosas no susceptibles de derecho e as no susceptibles de tráfico:
89 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
ob. cit., pp. 535-536.
90 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
29
tráfico de derecho de cosas. [...]. [...]. I. La calificación de bienes comunes, que
damos a las cosas llamadas comunes a todos (res communes omnium), no ha de entenderse
en sentido literal, sino sólo en el sentido de no ser concebible un derecho privado
sobre ellas. Por tanto, es mejor no incluirlas entre las cosas, pues les falta la
delimitación espacial y la posibilidad de ser señoreadas [...]. Están sujetas al uso
común, no en virtud de especial afectación, sino sólo porque no es posible un
derecho especial sobre ellas. II. Las cosas sagradas. I. Las cosas destinadas al servicio
divino, especialmente las iglesias, las capillas, los ornamentos de las iglesias, las
campanas, son casi siempre propiedad de la Iglesia, pero también pueden ser
propiedad de Estado, de los municipios o de los particulares [...]. Sin embargo, la
propiedad, como asimismo cualquier otro derecho que recaiga sobre las mismas,
están limitados por la exclusión de todo uso que contradiga a su destino. [...]. 2.
Los cementerios ocupan hoy una posición igual en esencia. Casi siempre son
propiedad de los municipios o de la Iglesia; pero la propiedad [...] y cualquier otro
derecho sobre ellos, están limitados al punto que exige su destino. [...]. III. Las
cosas destinadas al uso público (res publicae). I. Son propiedad del Estado, de un
municipio, de un particular o bien nullius [...]. La propiedad de Estado, del
municipio o de cualquiera otra corporación de derecho público sobre estas cosas
no es una propiedad pública especial sino la propiedad de derecho privado del C.
c. Las res publicae, en virtud de disposición legal o de consagración por derecho
público, o en virtud de ponerlas en disposición de servicio [...] están destinadas
al uso común. En consecuencia, el propietario está limitado en la utilización de
su derecho en los términos que exige el fin público de la cosa. [...].91
Tendo sido exposto o que pensam os autores sobre o tema, passamos aos comentários. Primeiro,
devemos dizer que Enneccerus, Kipp e Wolff – ainda que tenhamos utilizado uma tradução em
espanhol, e não o texto original – são extremamente precisos e rigorosos.
É preciso observar que da definição que fazem de coisa, duas de suas qualidades indispensáveis é
serem suscetíveis de dominação pelo homem e sobre elas haver a possibilidade de recair direitos de caráter privado,
mas utilizam a expressão cosas comunes, para se referir a entes que não admitem direitos de caráter privado
– o que segundo suas premissas não poderia ser denominado de coisa. Aí se poderia dizer que há
uma imprecisão. Todavia, essa possível imprecisão é clarificada expressamente pelos próprios
autores, ao ressalvarem que é melhor não incluir as res communes omnium no conceito de coisa92
O único ponto que não nos ficou claro é que os autores dizem que outras pessoas podem ser objeto
de direito, depois afirmam que se denominam objeto a quase todos os objetos de direito, e
ressalvam que alguns separam as pessoas dos objetos. E por fim dizem que o corpo humano vivo
não é um objeto. Assim, não compreendemos completamente por qual motivo os autores subtraem
as pessoas do conceito de objeto, sendo que admitem que podem ser objeto de direito. De qualquer
forma, os autores também ressalvam que o termo não é estritamente técnico.
91 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
entenderse en sentido literal, sino sólo en el sentido de no ser concebible un derecho privado sobre ellas. Por tanto, es
mejor no incluirlas entre las cosas, pues les falta la delimitación espacial y la posibilidad de ser señoreadas”
ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
ob. cit., pp. 583.
30
Outros dois aspectos que consideramos relevante ressaltar, especialmente pela precisão, é primeiro
que os autores advertem expressamente que a coisa requer uma existência separada e individualizada,
e assim dizem que os gases e os líquidos somente adquirem essa existência separada - necessária ao
conceito de coisa - quando são postos em um recipiente. O segundo é acerca das coisas destinadas ao
uso público (res publicae), dizem os autores que a propriedade sobre elas - seja do Estado, município
ou outra corporação de direito público – é uma propriedade de direito privado, e não uma propriedade
pública especial. Isso é especialmente relevante, já que os autores denominam as res publicae de coisas.
Afinal, as coisas requerem – segundo os mesmos autores – a susceptibilidade de recair direitos de
caráter privado.
Cabe ressaltar que, na contramão do que fazem os autores nacionais, Enneccerus, Kipp e Wolff
não se debruçam, ao tratar das coisas, sobre o conceito de bem. Não parecendo dar a relevância
que os brasileiros atribuem à definição de bem e sua distinção com coisa.
Feitas essas observações, passamos a doutrina de Luiz da Cunha Gonçalves. O autor inicia fazendo
observações acerca da definição de coisa, dada pelo Código Civil Português de 1867, que dizia, em
seu art. 369, que “cousa diz-se em direito tudo aquilo que carece de personalidade”:
“Tendo declarado no art. 1.º que só o homem é pessoa, por uma questão de
simetria, no seu art. 369 define o legislador a cousa como sendo, em direito, tudo
aquilo que carece de personalidade ou não é pessoa. Esta definição [...], não nos dá
senão o conceito antagônico da cousa e de nenhum modo o conceito dela em
direito, ou seja, o conceito jurídico. Dizer que a cousa não é pessoa não é dizer o
que é cousas! O sol e as estrelas, as moléculas e os átomos, a alma e o corpo, a
electricidade e o magnetismo, não são pessoas, e, todavia, não são cousas em direito.
Para uma rigorosa definição convém, antes de mais, estabelecer o conceito geral
e as características da cousa, como objecto de direitos e obrigações.
Depois prossegue o autor dizendo que coisa e bem suscitam controvérsias e imprecisões entre os
juristas:
31
escola alemã, não há cousas imateriais ou incorpóreas; e não são cousas as energias
ou fôrças da natureza, nem as universalidades, nem os direitos ou o conjunto
dêles, como o patrimônio, a emprêsa, negativa esta que reputamos exagerada e
contrária à lei portuguêsa e brasileira.”93
Passa então Cunha Gonçalves a delimitação das características da coisa e à sua definição:
Tendo tratado da cousa, Cunha Gonçalves continua sua exposição tratando do bem:
93 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil. Vol. III, tomo I. 2. ª ed., rev. e aum., 1.ª ed. Brasileira.
Adaptação ao direito brasileiro completada sob a supervisão dos Ministros Orozimbo Nonato, Laudo De Camargo e
Prof. Vicente Ráo. São Paulo: Max Limonad, 1958, p. 49.
94 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, ob. cit., pp. 49-51.
32
“Em várias disposições deste código, o legislador emprega a palavra “bens” como
sinônima de cousas, designadamente no art. 377, o que corresponde ao conceito
romanístico; pois, segundo ULPIANO, bens são as cousas que “beant, hoc est, beatos
faciunt; beare est prodesse”. De igual modo procedeu o legislador brasileiro, dando
ao Livro II da Parte Geral do Código civil a epígrafe Dos bens, mas, a seguir, as
Seções III, IV e V do Capítulo I têm a epígrafe da cousas de diversas espécies,
assim como o Capítulo IV tem por epígrafe “das cousas que estão fora do comércio”.
A noção de bens é, porém, tão imprecisa como a de cousa. Afirma-se que bens são
tôdas as cousas capazes de ter utilidade, que satisfazem necessidades humanas,
econômicas ou não. Todavia, a palavra bens tem um sentido um pouco diverso
do da palavra cousas, pois que não compreende todos os valores abstractos
susceptíveis de apropriação, mas sómente as cousas que estão apropriadas, que fazem
ou fizeram parte do patrimônio de alguém. Por isso, não se chamam bens as
cousas que não têm, nem tiveram dono, as res nullius: e, pelo contrário, chamam-
se bens vagos os que pertencem a uma herança jacente. É neste sentido rigoroso
que foi empregada apalavra “bens” no aet. 1.735; e no mesmo sentido se diz “bens
nacionais”, ou “bens municipais”, frases que significam “cousas que pertencem ao
domínio privado do Estado ou do município”, ao passo que não é correcto
designar por bens as cousas públicas ou comuns, embora o contrário fôra feito no
Capítulo III, arts. 65 a 68, do citado Código cívil brasileiro.”95
“Durante muito tempo, bens e cousas foram sómente os objectos corpóreos; de tal
sorte, que ainda hoje, em alguns códigos, e para alguns escritores, a corporalidade é
um carácter geral das cousas, não admitindo êles cousas incorpóreas. Mas, é
incontestável que, na actualidade, o conceito da cousa se espiritualizou,
abrangendo, não só os direitos relativos às cousas corpóreas, como no art. 375, as
numerosas cousas incorpóreas, como os direitos de autor, as patentes de
invenção, e outras que logo veremos [...]. Em resumo: não há exacta coincidência
entre os têrmos “bens” e “cousas”; pois, umas vezes, constituem estas o gênero e
aquêles a espécie, e outras vêzes o gênero são os bens e a espécie as cousas, visto
não abrangerem estas, por exemplo, as unidades de cousas (estabelecimentos
comerciais, etc. ), que são bens patrimoniais. Só excepcionalmente os dois têrmos
são usados como sinônimos, mas com menos rigor e propriedade.
Importa ainda enunciar brevemente alguns pontos que o autor aborda ao versar sobre as
classificações das cousas, especialmente sobre as apropriadas e sem dono, e as que estão no
comércio e fora do comércio:
95 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, ob. cit., pp. 51-52.
33
“[...]. Mas, existem ainda, cousas fora do patrimônio, isto é, cousas que não têm dono,
ou porque não foram apropriadas, embora susceptíveis disso, ou porque não
podem ser apropriadas, por natureza, podendo contudo ser usadas por tôda e
qualquer pessoa, uso que tem de ser, às vezes, regulado por normas especiais.
[...].
Consideram-se cousas fora do patrimônio ou sem dono as seguintes:
[...].
As res communes consideradas na sua totalidade: o ar, a água do mar, ou dos rios
navegáveis, a luz solar.”96
“Segundo os arts. 370 e 372, são cousas no comércio tôdas as que podem ser objecto
de apropriação e cousas fora do comércio as que são irreduzíveis a propriedade
particular, quer por natureza, quer por disposição da lei (Sic : Código civil
brasileiro, art. 69). Esta disposição provém do direito romano, que considerava
res extra commercium sómente as cousas insusceptíveis de propriedade privada, a
saber: as res communes omnium, as res divini juris e as res publiae. Mas, a doutrina e as
legislações modernas modificaram bastante o conteúdo e o alcance desta
classificação. As res communes, não sendo susceptíveis de apropriação em globo,
não são cousas em comércio, nem fora do comércio; são cousas insusceptíveis
de direitos privados ou limitadamente susceptíveis; não são mesmo cousas no
sentido jurídico.
A incomerciabilidade não é, sempre, sinônima de inalienabilidade, visto que
muitas cousas inalienáveis podem ser objecto de propriedade privada.97
Tendo sido exposto o pensamento de Luiz da Cunha Gonçalves, importa destacar que o autor é
extremamente preciso e fiel as suas proposições. Interessante notar que alguém poderia dizer que
o autor incorre em uma contradição, ao enumerar as res communes omnium entre as cousas fora do
patrimônio, ou ao dizer que elas “são cousas insusceptíveis de direitos privados ou limitadamente
susceptíveis” (grifo nosso)98, todavia, o autor deixa explícito que as res communes não são cousas no
comércio ou fora dele, mas na verdade não são nem cousas em sentido jurídico – citando e seguindo aí a doutrina
de Enneccerus.
Passamos então a doutrina de Gabriel Baudry-Lacantinerie e Alberto Wahl. Os autores começam
dizendo que:
“Così il Codice civile non ha che due oggetti: le persone di cui si è trattato nel
primo libro, e le cose di cui si occupano il secondo ed il terzo libro.
Occorre anche notare che il Codice non tratta delle cose in generale; se menziona
quelle che non appartengono ad alcuno (art. 714 [Cod. civ. it. senza corrisp.]), è
solo per rinviare alle leggi speciali che regolano il modo con cui ciascuno può
usarne, e talvolta anche appropriarsele (art. 714, 715 [Cod. civ. it. art. 712] e 717
[Cod. civ. it. art. 719]). Queste materie appartengono alla sfera del diritto
96 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, ob. cit., pp. 71-72.
97 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, ob. cit., pp. 74-75.
98 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, ob. cit., p. 75.
34
amministrativo; il Codice non si occupa se non delle cose che, trovandosi in bonis
alicuius, prendono la denominazione speciale di BENI.”99
“[...] Si designano nel linguaggio tradizionale, sotto il nome di beni, tutte le cose
che, potendo procurare all’uomo una certa utilità, sono suscettibili di
appropriazione privata. La parola bene sembra essere derivata del latino bonum che
significa felicità, benessere. Bona dicuntur ex eo quod beant, hoc est beatos faciunt; beare est
prodesse, dice la L 49 D. De V. S. – È certo infatti che se il patrimonio non basta
ad assicurare la felicità, esso vi contribuisce almeno in larga misura. L’insieme dei
beni costituisce il patrimonio. Non bisogna confondere i beni con le cose; essi si
distinguono come la specie si distingue dal genere. Tutti i beni sono infatti cose;
99 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. Tradotto
sulla III Edizione originale in corso di stampa da una Società di Giuristi, con appendice del Prof. Pietro Bonfante.
Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, [s.d.], p. 1.
100 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., pp.
2-3.
101 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
10.
35
ma non tutte le cose sono beni. Si designa sotto il nome di cosa tuttociò che esiste
in natura. Tra le cose sono beni soltanto quelle suscettibile di appropriazione.
Così il sole, l’aria, il mare sono cose, e indispensabili all’uomo: ma non sono beni
perché nessuno può diventarne proprietario esclusivo. La parola cose ha dunque
un significato molto più esteso della parola beni. Le cose non hanno interessi agli
occhi dei giuristi, che a cagione dei diritti di cui possono formare l’oggetto. Questi
diritti rappresentano per il titolare un’utilità economica, un valore, ed è
precisamente questa utilità, questo valore che costituiscono il bene. Questo
termine, in ultima analisi, non esprime che un’astrazione e designa meno la cosa
od il diritto che non il risultato utilitario del diritto, l’idea di valore che esso
rappresenta. Si sa già che tuti i diritti non potrebbero essere guardati come beni,
e che si deve escludere dal patrimonio e dalla sfera dei beni i diritti di potestà, i
diritti inerenti alla persona, tutti quelli i cui vantaggi non sono valutabili in
denaro.”102
Tendo sido exposta a doutrina de Baudry-Lacantinerie e Alberto Wahl, passamos aos comentários.
A princípio, parecem denominar de bem a coisa que se encontra in bonis alicuius. Ou seja, a coisa que
alguém tem in bonis.103
Todavia, depois os autores dizem que “propriamente parlando non vi sono altri beni, che i diritti
che possiamo avere sulla cosa, sia immediatamente, [...] sia mediatamente [...]. Le cose ci appaiono
dunque come gli oggetti diretti od indiretti dei diritti o dei beni, non come i beni stessi.”104 Ou seja,
102 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
11.
103 Cabe explicar o que significa a expressão in bonis. Conforme explica Pietro Bonfante, “Bona è nelle fonti classiche il
termine più usuale per denotare il patrimonio, cioè un complesso di diritti pertinenti a un subbietto o destinati a uno
scopo: le obbligazioni passive non ne fanno parte, ma si deducono [...].” BONFANTE, Pietro. Sul Cosiddetto Dominio
Bonitario E In Particolare Sulla Denominazione “In Bonis Habere”. In: Scritti Giuridici Varii. Vol. 2 – Proprietà e
Servitù. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1918, p. 380. Cabe dizer que esse parece ser o significado que
o autor utiliza no texto, que inclusive era o mais usual nas fontes romanas.
No entanto, cabe mencionar, que há interessantíssima discussão sobre a expressão (in bonis) na literatura romanística.
Isso porque a doutrina tradicional sustenta que no direito clássico, a propriedade reconhecida pelo ius civile, o dominium
ex iure Quiritium, podia se dividir em duas (dominium duplex) em certos casos, nudum ius Quiritium e in bonis esse ou habere,
esta denominada pela doutrina tradicional de “propriedade bonitária”, ou “pretória”, por ser uma “propriedade”, uma
posição protegida pelo pretor (ius honorarium). Explico uma das hipóteses de quando ocorria esse dominium duplex: o
caso em que a pessoa transferia uma res mancipi por simples traditio – embora para uma res mancipi fosse necessária a
utilização da mancipatio ou in iure cessio. Ao fazer a transferência de uma res mancipi por simples traditio, o adquirente, por
não ter observado a forma adequada, não adquiria o dominium ex iure Quiritium, mas tinha a res apenas in bonis, enquanto
o transferente continuava a ter formalmente a propriedade (nudum ius Quiritium). Apesar de não adquirir propriedade
reconhecida pelo ius civile, o adquirente era protegido pelo pretor, e, caso o transferente viesse a reivindicar dele a res,
o pretor concedia ao adquirente a exceptio rei venditae et traditae – ou ainda a exceptio doli –, pela qual paralisava a ação do
transferente. Mas o ponto de maior importância – que faz com que a doutrina tradicional sustente que o in bonis esse
(ou in bonis habere) era uma “propriedade bonitária” reconhecida pelo pretor (ius honorarium) – é que, se, por algum
motivo, o adquirente perdesse a coisa, poderia recuperá-la de quem quer que a tivesse, por meio da actio Publiciana, até
mesmo do transferente (proprietário pelo ius civile) – que perderia a ação, mesmo que alegasse a exceptio iusti dominii.
Ou seja, na prática quem tinha a res era aquele que a tinha in bonis. Por outro lado, Bonfante veio a abalar essa concepção
– mas não chegou a negar a “propriedade bonitária” – ao fazer ampla e meticulosa análise das fontes romanas, para
concluir que “in bonis non era termine tecnico per designare l'istituto pretório” BONFANTE, Pietro. Sul Cosiddetto
Dominio Bonitario E In Particolare Sulla Denominazione “In Bonis Habere”. In: Scritti Giuridici Varii. ob. cit, p. 386.
E, indo mais adiante – com uma argumentação que nos parece irretocável –, György Diósi, após amplo exame das
fontes romanas, conclui que não havia uma “propriedade bonitária” e que “in bonis esse meant simply the belonging of
a thing or a claim to a given property.” DIÓSDI, György. Ownership in Ancient and Preclassical Roman Law. Budapest:
Akadémiai Kiadó, 1970, p. 178.
104 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit.,
p.10.
36
essa passagem parece contradizer o que haviam antes afirmado, propondo agora que coisa não é
bem, pois aqueles são objetos de direitos e não propriamente elementos do patrimônio, a soma dos
bens, por outro lado, eles dizem que constitui o patrimônio.105 Ora, se a soma dos bens constitui o
patrimônio, e o patrimônio é composto, segundo os autores, de direitos – e obrigações? (Ver nota
105) – parece haver identidade, equivalência, entre bens e direitos susceptíveis de serem convertidos em um
valor pecuniário. Inclusive os autores dizem que o Código Civil Francês confundiu – como faziam os
romanos – o direito de propriedade com a própria coisa (objeto do direito). E aí dizem os autores
que dessa confusão resulta que o Código Civil Francês considera bens todas as coisas móveis e
imóveis sobre as quais se tem o direito de propriedade.
Sendo assim, com a devida vênia aos autores, nos parece que há uma contradição – ou ao menos
não está claro – ao dizerem primeiro que o bem é a coisa que alguém tem in bonis, e depois afirmarem
expressamente que coisa não é bem. A incongruência – com o devido respeito – aumenta
principalmente quando continuam na sua exposição, e dizem que “tutti i beni sono infatti cose;
ma non tutte le cose sono beni. [...]. Tra le cose sono beni soltanto quelle suscettibile di
appropriazione. [...]. ” (grifo nosso).106 E logo em seguida terminam afirmando sobre bem que
“questo termine, in ultima analisi, non esprime che un’astrazione e designa meno la cosa od il diritto
che non il risultato utilitario del diritto, l’idea di valore che esso rappresenta.”107
Essas concepções nos parecem – com a devida vênia – inconciliáveis: ou se diz que os bens são
espécie de coisas – aquelas coisas que podem proporcionar utilidade ao homem e são susceptíveis
de apropriação privada – ; ou que bem é a coisa que alguém tem in bonis; ou que coisa não é bem, mas
objeto de direito, e bem é esse direito; ou ainda que bem não é exatamente nem o direito nem a coisa,
mas o “resultado utilitário do direito” a “ideia de valor” que ele representa. Não nos parece possível
sustentar todas essas definições sem que haja prejuízo lógico da terminologia empregada.
Outro ponto a se observar é que os autores dizem que “tutti i beni sono infatti cose; ma non tutte
le cose sono beni. Si designa sotto il nome di cosa tuttociò che esiste in natura.”108 O corolário
lógico dessa afirmação é que, se coisas (gênero) são somente aquelas que existem na natureza, não
seria possível que os bens (espécie) compreendessem entes que não existem na natureza, que, por
isto mesmo, não seriam coisas. Todavia, essa consequência lógica – além de contrastar com os
conceitos de bem como direito ou bem como resultado utilitário do direito – é contraditória com o que
dizem os autores mais adiante, – ao tratar dos “bens corpóreos e incorpóreos” – afirmando que
os bens incorpóreos são os que solo iuris intellectu consistunt, e que todos os direitos são bens incorpóreos.109
110
É bem verdade que os autores criticam essa classificação, afirmando que, tal como no direito
romano, por detrás dessa classificação está a distinção do direito de propriedade dos outros direitos.
Contudo, ainda que se leve em consideração a crítica dos autores, mesmo assim não se poderia
105 Cabe ressalvar que sobre esse ponto não nos ficou claro se somente incluem os “bens” no patrimônio, ou também
os passivos - que segundo a definição dos autores não seriam bens -, pois anteriormente haviam dito que o patrimônio
era compreendido por um ativo e um passivo.
106 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
11.
107 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
11.
108 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
11.
109 BAUDRY-LACANTINERIE, Gabriel; WAHL, Alberto. Trattato Teorico-Pratico di Diritto Civile – Dei Beni. ob. cit., p.
16.
110 Ressalvam os autores que essa noção se aplicaria também ao direito de propriedade, mas o legislador identificou o
direito de propriedade com a coisa que é seu objeto e assim considerou o direito de propriedade como corpóreo.
37
conceber os direitos como bens – partindo da premissa de que bem é espécie de coisa e esta
compreende o que existe na natureza –, afinal, o direito, a partir do momento que solo iuris intellectu
consistunt, não tem existência na natureza, e portanto se excluem do conceito de coisa (gênero) e,
assim, do de bem (espécie). Feitas essas observações, com a devida vênia, não nos ficou claro qual
o conceito exato de bem e coisa e como se diferenciam.
Dessa breve análise de algumas das teorias de eminentes doutrinadores nacionais e estrangeiros,
fica claro que, em maior ou menor medida, uma grande incerteza e imprecisão permeia a definição
de bem e coisa. É de se notar que os dois autores que consideramos mais densos e precisos foram
Enneccerus, Kipp e Wolff e Cunha Gonçalves.
111 É certo que atualmente este é preponderantemente um direito histórico, não vigente, todavia, foi sobre suas
fundações que grande parte do direito privado moderno foi construído. Interessante é a observação de Abelardo
Saraiva da Cunha Lobo que dos 1.807 artigos do Código Civil de 1916, mais de quatro quintos “são produtos de cultura
romana, ou diretamente aprendidos nas fontes da organização justinianéia, ou indiretamente das legislações que ali
foram nutrir-se largamente”. DA CUNHA LOBO, Abelardo Saraiva. Curso de Direito Romano: história, sujeito e
objeto do direito, instituições jurídicas. Brasília: Senado federal, Conselho Editorial, 2008, p. 17.
112 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. I, 7ª ed., rev. e acresc. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 167.
113 Nem todas as classificações que adotamos atualmente vieram diretamente dos romanos. Por exemplo, como explica
Moreira Alves, “a denominação coisa fungível é moderna: deve-se a Ulrico Zásio, jurisconsulto do século XVI. Os
romanos designavam as coisas fungíveis com os termos genera, quantitates ou res quae pondere numero mensura consistunt.”
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. I, ob. cit., p. 171.
114 Gaius, por exemplo já distinguia as res humani iuris em públicas e privadas (Gai. II, 10.), ou ainda no Digesto de
Justiniano já se encontrava a distinção das res quae usu consumuntur vel minuuntur (D. 7, 5.), i.e. que se consomem ou
diminuem pelo uso.
38
romano é decisivo subsídio interpretativo para que possamos encontrar uma diretriz segura para
definir coisa e bem. 115
Primeiro é necessário estabelecer uma premissa de ordem linguística e etimológica em relação
aquilo que será objeto de comentário. Antes de adentrar no estudo do que era a res romana, é
preciso dizer que geralmente é feita sua correspondência com a palavra portuguesa coisa.116 Assim,
res é, quase de forma automática e sem qualquer preocupação distintiva, usualmente identificado
pela doutrina com as palavras coisa 117ou bem.118 Assim, traduz-se, por exemplo, res nullius como
“coisa de ninguém”, ou seja, “res” passa a ser “coisa” de forma “absolutamente natural” e sem
qualquer preocupação conceitual. Ou ainda, por exemplo, se traduz res immobilis por bem imóvel.
Sendo assim, - pelo menos neste tópico – não utilizaremos bem e coisa como sinônimos de res, pelo
menos até que possamos concluir qual é o sentido do termo res e então determinar sua
correspondência com a palavra bem ou com coisa.
115 Nesse estudo, nos valeremos principalmente das lições de alguns dos mais eminentes romanistas, mas, por razões
de ordem metodológica, não nos aprofundaremos no exame direto das fontes. Para dar algumas linhas gerais ao leitor,
para que possa adentrar no estudo do direito romano, de forma genérica, os romanistas (estudiosos do direito romano)
buscam reconstruir como era esse direito, e quais eram as características e como foi a evolução dos institutos jurídicos.
A chamada história interna do direito romano – em contraposição à história externa, que é a história da própria
civilização romana, e não especificamente do direito – é divida basicamente em três fases, períodos, quais sejam, o
direito pré-clássico, o direito clássico e o pós-clássico. O primeiro período é caracterizado como o mais formal e com forte
influência religiosa, já o direito clássico é marcado por um pouco menos de formalismo do que o anterior, é considerado
o auge do direito romano, com diversos jurisconsultos e com grande evolução do conhecimento. Já o período pós-
clássico é marcado por um menor formalismo ainda, é considerado por alguns a fase de total declínio da jurisprudência,
se diz que não havia jurisconsultos, mas práticos, há também mistura do direito romano com o direito bizantino. É
preciso lembrar também que a opinião dos jurisconsultos clássicos era nessa época considerada fonte direta do direito.
Todavia, devido à ausência de grandes jurisconsultos, se tinha grande incerteza sobre o quais eram as opiniões dos
jurisconsultos, levando inclusive Teodósio II e Valentino III a fazer o que se denomina pela literatura romanística
atualmente de lei das citações, que determinava que apenas a opinião de cinco jurisconsultos clássicos tinham vigência
(Papiniano, Gaio, Paulo, Modestino e Ulpiano). No entanto, Justiniano fez uma compilação da opinião de diversos
jurisconsultos clássicos, compilando fragmentos de quase dois mil livros no que denominou de Digesto ou Pandectas.
No Digesto há a citação desses jurisconsultos com a referência de onde essa citação foi tirada. Todavia, os compiladores
de Justiniano em diversas vezes não se limitaram a reproduzir os fragmentos desses jurisconsultos, mas também
alteraram deliberadamente os textos originais – sem indicar que estavam alterando – para adaptar algumas disposições
do direito clássico às novas realidades e exigências pós-clássicas. Essas alterações deliberadas são chamadas de
interpolações. Sendo assim, o estudo do direito romano - da história interna - se faz por meio da investigação de textos
que chegaram até os dias atuais – denominados fontes –, destes, principalmente o Digesto de Justiniano. As fontes se
denominam diretas ou indiretas, as primeiras porque contém o próprio texto original do jurisconsulto, ou da
constituição etc., se diz indireta quando não se tem o texto original, mas referência, paráfrase, desse texto por meio de
obras de juristas ou até de autores literários. Por exemplo, Cícero se refere a uma regra de usucapião presente nas XII
Tábuas, essa paráfrase feita por ele de uma regra das XII Tábuas se denomina uma fonte indireta, pois não se tem o
próprio texto original da antiga lei, mas uma referência indireta de seu conteúdo. A principal obra – descoberta apenas
em 1816 – que se utiliza para estudar o direito clássico é a Institutas de Gaio, que era uma obra de caráter didático a
ser utilizada por alunos – uma Instituta, instituere significa educar. É extremamente importante para o estudo do direito
romano, pois não sofreu as interpolações dos compiladores justianeios. E não só isso, as Institutas de Gaio serviram
de base para a própria confecção das Institutas de Justiniano – que foi um livro feito por Justiniano para servir de
“manual introdutório” do Digesto. E assim em diversas passagens se percebe que Justiniano reproduziu as ideias de
Gaio.
116 Tanto que Vittorio Scialoja explica que coisa deriva da palavra latina causa, e não de res, e que, no entanto, resultado
de transformações linguísticas, coisa assumiu quase inteiramente o significado do termo res. SCIALOJA, Vittorio. Teoria
Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. I. Lezioni ordinate curate edite da Pietro Bonfante. Spoleto: Anonima Romana
Editoriale, 1933, pp. 11-12.
117 Assim, por exemplo, Francisco Amaral chama as res communes de “coisas comuns”. Direito civil: introdução. 7º ed., rev.,
menos enquanto não são limitados para poderem ser apropriados por uma pessoa, quando se tornam coisas. GOMES,
Orlando. Introdução ao Direito Civil. ob. cit., p. 201.
39
Primeiramente, é de se dizer que, a partir das fontes do direito romano que chegaram até os dias
atuais, não se tem uma definição originalmente romana de res. Isto é, não se tem uma definição
dada pelos próprios jurisconsultos romanos do que era res. Diante disso, é razão de investigação e
disputa entre a doutrina romanística saber se os romanos desconheciam um sentido técnico de res,
ou se na verdade era tão óbvio e evidente aos jurisconsultos que nem chegaram a enunciá-lo.119 O
que encontramos nas fontes são apenas citações dos sentidos que res podia assumir.120 Sendo assim,
o que os romanistas buscam fazer é depreender das fontes se havia um sentido técnico de res e, em
caso positivo, qual esse seria121.
Em perfunctória análise das fontes romanas, se percebe que res era empregada em diversos
significados – alguns, inclusive, contraditórios -, ora indicando entes corpóreos, outras vezes
direitos, fatos, causa, o objeto da propriedade e até mesmo a própria propriedade.122 Por outro lado,
por vezes parece que res é utilizada em acepção mais estrita, não assumindo um sentido tão amplo
que compreende desde entes corpóreos, até direitos, mas sendo empregada em sentido mais
delimitado, por exemplo em contraposição a obligationes (do lado ativo) ou a actiones etc.123 Explicando
melhor: se res é contraposto, por exemplo, a obligationes, significa que é empregada em um sentido
mais estrito, que não compreende obligationes. E a partir da análise das fontes em que há essas
utilizações mais restritas do termo, parece que res teria um caráter corpóreo, indicando aquilo sobre
o que se exerce o direito de propriedade e outros direitos reais.
Todavia, essa conclusão que se tira da análise dos fragmentos em que res assume significado mais
estrito, parecendo se limitar em sentido técnico (estrito) aos entes dotados de corporeidade, sobre
os quais se exerce um direito real, encontra grande empecilho quando se observa as Instituas de
Gaio – uma das fontes mais seguras do direito clássico, por não ter sido interpolada pela comissão
de Justiniano (ver nota 115) –, porque faz uma classificação das res em corporales e incorporales. Ora,
se Gaio fala do conceito de uma res incorporalis, então a conclusão de que res se limita apenas aos
entes corpóreos estaria equivocada, e res poderia também indicar entes incorpóreos. Passamos ao
exame desse problema.
Gaio, em suas Institutas, afirma que todo o direito se refere ou às pessoas, ou às res ou às ações.124
E então, divide sua obra em quatro comentários, o primeiro tratando do direito relativo às pessoas,
os segundo e terceiro comentários do relativo às res e o quarto do referente às actiones. E uma das
classificações das res que descreve Gaio (II, 12.) – e repetida com mínimas alterações de linguagem
no Digesto e Institutas de Justiniano – é a que distingue as res em corporales e incorporales. As primeiras
sendo aquelas tangíveis – quae tangi possunt (Gai. II, 13.) – e as segundas as intangíveis – quae tangi
119 Nesse sentido, Gaetano Scherillo, dizendo que o conceito era tão intuitivo que não chegaram a defini-lo, e
apresentando argumentos da existência de um sentido técnico das fontes. SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto
Romano – Le Cose. Parte I. Milano: Giuffrè Editore, 1945, pp. 2-3.
120 Por exemplo: Dig. 50, 16, 23: “rei” appellatione et causae et iura continentur.
Outro exemplo: Dig. 50, 16, 5 pr.: “rei” appellatio latior est quam "pecuniae", quia etiam ea, quae extra computationem
patrimonii nostri sunt, continet, cum pecuniae significatio ad ea referatur, quae in patrimonio sunt.
121 Interessante mencionar aqui uma observação Gaetano Scherillo faz ao tratar do conceito de patrimônio, mas que
consideramos aplicável também ao contexto da res: Em síntese, afirma que o fato dos juristas romanos utilizarem um
termo em vários sentidos, segundo as exigências e particularidades de cada contexto, não permite concluir que eles
desconheciam seu significado – na verdade aos juristas romanos clássicos não era característico a enunciação e
discussão de conceitos gerais –, e nem impede que os romanistas atuais tentem depreender o significado desse termo
das fontes e enunciá-lo expressamente. SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., p.
7.
122 FERRINI, Contardo. Manuale di Pandette. 3ª ed., riv. Milano: Società Editrice Libraria, 1908, § 207, p. 253.
123 Ver SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., pp. 11-12.
124 Gai. I, 8: Omne autem ius quo utimur uel ad personas pertinet uel ad res uel ad actiones.
40
non possunt, qualia sunt ea quae iure consistunt (Gai. II, 14.).125 E assim, ao explicar essa classificação,
Gaio dá como exemplo de res corporalis o terreno (fundus), o ouro, a prata etc., e como exemplo de
res incorporalis o usufruto, as obrigações etc.
Todavia, o que se percebe, principalmente observando os exemplos dado pelo jurisconsulto, é que
agrupa sob uma mesma classificação – sob o nome de res – direitos e os objetos desses
direitos, e mais, Gaio não cita o direito de propriedade – o mais importante dos direitos
sobre a res – entre as res incorporales. Em outras palavras, junta elementos que não estão
no mesmo plano de análise: direitos e o objeto desses direitos, todos sob a denominação
de res. Sendo assim, o que se pergunta é saber se a res em sentido técnico compreendia apenas o
objeto do direito patrimonial – e mais especialmente do direito real –, ou seja, entes corpóreos, ou
se por outro lado podia incluir também o próprio direito (incorpóreo), como por exemplo as
obligationes, as servidões etc. E por qual motivo Gaio não listou o mais importante dos direitos sobre
a res – o direito de propriedade - entre as res incorporales.
Diante desse impasse que a classificação – res corporalis e incorporalis – suscitou, Windscheid dá a
seguinte explicação: os jurisconsultos romanos levaram para dentro do direito uma prática da
linguagem comum – que continua até os dias atuais –, de, em vez de dizer que se tem o direito de
propriedade sobre uma “coisa”, se afirmar que se tem a própria “coisa” – res mea est, a res é minha.
Sendo assim, ao conceber a res corporalis como elemento do patrimônio, enquanto fossem objeto
do direito de propriedade, Windscheid diz que se concebem como “coisa”126 também os outros
elementos do patrimônio (direitos patrimoniais) – os direitos sobre as coisas alheias (iura in re aliena)
e os direitos de crédito – pois também esses são partes constitutivas do patrimônio.127 E assim
Windscheid explica que as “res incorporales si riferiscono non ad oggetti di rapporti giuridici, ma a
parti costitutive del patrimonio [...].” 128 Explicando melhor: o autor justifica a distinção feita por
Gaio como sendo apenas uma denominação dos elementos do patrimônio sob um mesmo termo
(res), mas nada além disso. E então o autor afirma que “coisa”129 em sentido jurídico requer
necessariamente a existência corpórea.130
Mas não só Windscheid pensou dessa forma, outros juristas aderiram à sua explicação. Girard, por
exemplo, afirma que a classificação das res corporales e incorporales “equivale a contrapporre i diritti al
loro oggetto, salvo che in apparenza fra i diritti è omesso il più importante di tutti, il diritto di
proprietà; ma in realtà non è omesso; è sottordinato invece alla prima categoria, confondendolo
125 Observe-se que a distinção adotada por Gaio, e o critério para determinar a corporeidade advém da filosofia
aristotélica, e esta repetida por filósofos romanos. E perceba-se que esse critério adotado por Gaio não era unívoco
entre os filósofos. Por exemplo, para os estoicos, o critério de corporeidade era o de produzir efeito, e assim, a voz era
corpórea pois produzia efeito. Além disso, para Cícero, as res em aquelas que “são” e aquelas “inteligíveis”, Sêneca, por
outro lado, diz que as res incorporales também “são”. GROSSO, Giuseppe. Corso di Diritto Romano. Le Cose. Con una
“nota di lettura” di Filippo Gallo. Rivista di Diritto Romano, 2001. In: http://www.ledonline.it/rivistadirittoromano/,
pp. 11-12. Conferir ainda SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., pp. 21-24. Além
disso, parece que Gaio foi o primeiro a levar essa distinção filosófica para o direito, de sorte que elas não aparecem
nos jurisconsultos anteriores (e os fragmentos do Digesto em que outros jurisconsultos anteriores a Gaio aludem a ela
são possivelmente interpolados ARANGIO-RUIZ, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Romano. 11.ª ed., riveduta. Napoli:
Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1952, p. 163.).
126 O autor utiliza a expressão “coisa”.
127 WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. Traduzione dei professori Carlo Fadda e Paolo Emilio Bensa, Vol.
41
con la cosa su cui esiste.”131 E afirma expressamente que nos tempos mais antigos os romanos não
conheciam essa distinção, as “coisas”132 eram somente as corpóreas, e inclusive tinham um sentido
mais amplo, incluindo, por exemplo, as servidões rústicas, que em Gaio são consideradas
incorporales. E Girard critica a distinção de Gaio, argumentando que, se for levado em consideração
os direitos, todos seriam incorpóreos, inclusive o direito de propriedade. Por outro lado, se se tiver
em conta os objetos do direito, tanto o direito de propriedade, como todos os direitos reais e grande
parte das obrigações tem um objeto corpóreo, e finaliza o autor explicando que, apesar de toda
essa imprecisão, a distinção de Gaio oferece a vantagem de identificar mais facilmente os elementos
do patrimônio que não o direito de propriedade.133
Ocorre que nem todos concordaram com essa teoria que apresentou Windscheid. Vittorio Scialoja
discordou expressamente, e afirmou que a classificação de res corporales e incorporales não se limita
aos elementos do patrimônio, e que “i Romani abbiano considerato le res incorporales come res, anche
indipendentemente dal concetto del patrimonio.” (grifo nosso)134 Entre seus vários
argumentos, diz que já nas XII Tábuas havia – embora não expressamente – a ideia da distinção.
Ao tratar da usucapião, a Lei distinguia que para os fundi – e os aedes eram consideradas como fundi
– era necessários dois anos, enquanto para as ceterae res (as outras res) bastava um ano.135 E diz que
entre essas ceterae res estavam incluídas as res incorporales. Outro argumento aduzido pelo autor é que
no caso da usucapio de uma res hereditaria (chamada de usucapio pro herede ou usucapio lucrativa), bastava
um ano para se adquirir a propriedade, ainda que a res fosse, por exemplo, um fundus, ou seja,
contrariando o que dizia as XII Tábuas. O autor explica essa aparente contradição dizendo que na
verdade se entendia estar usucapindo não “i singoli elementi dell' eredità, ma l' eredità stessa
astrattamente considerata: ora, non essendo l’hereditas nè fundus né aedes, cadeva sotto la categoria
delle ceterae res.” (grifo nosso).136 E assim conclui que nesse exemplo a hereditas “è considerata come
res incorporalis, anche indipendentemente dal patrimonio; essa infatti diventa parte del
patrimonio solo quando si è acquistata.” (grifo nosso).137 Outro argumento trazido pelo autor
é que em uma passagem atribuída a Ulpiano138 a tutela é considerada expressamente uma
res incorporalis ao ser objeto da in iure cessio, e, no entanto, a tutela não era elemento do
patrimônio.139 Em suma, Scialoja afirma que a distinção não se limitava a uma classificação dos
elementos do patrimônio, ou seja, res na passagem de Gaio não significa elemento do patrimônio
que se distingue em corpóreo e incorpóreo, mas sua distinção ultrapassa o campo do patrimônio,
tanto que a tutela, uma relação jurídica extrapatrimonial, é denominada por Ulpiano de res incorporalis.
E conclui enfim que as res incorporales são as relações jurídicas.140 E Scialoja não para por aí, continua
131 GIRARD, Paolo Federico. Manuale Elementare di Diritto Romano. Versione italiana sulla quarta edizione francese con
aggiunte dell’Autore, e con postille bibliografiche di Carlo Longo. Milano: Società Editrice Libraria, 1908, p. 264.
132 O autor utiliza o termo “coisa”.
133 GIRARD, Paolo Federico. Manuale Elementare di Diritto Romano. ob. cit., p. 265.
134 SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., n. 5, p. 15.
135 Scialoja toma por base o texto das XII Tábuas citado por Cícero, Topica, Cap. IV, 23:
136 SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., p. 17.
137 SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., p. 17.
138 ULPIANI Fragm. XIX, 11: In iure cedi res etiam incorporales pos sunt, velut ususfructus et hereditas et tutela
legitima libertae.
139 SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., p. 20.
140 Afirma Scialoja sobre as res incorporales que “Si tratta quindi sempre di rapporti giuridici, non di tutti i concetti cioè
che noi intendiamo col l'intelletto e che non possiamo invece percepire coi sensi, ma dei soli rapporti giuridici.”
SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., p. 24.
42
rejeitando inclusive a crítica feita por outros romanistas de que os jurisconsultos romanos haviam
“confundido” a propriedade com seu objeto.141
Por outro lado, Giuseppe Grosso, aderindo à opinião dominante de Windscheid,142enfrenta o
posicionamento de Vittorio Scialoja. Quanto ao argumento de que as XII Tábuas, ao tratar a
hereditas como um ente distinto dos elementos que a compõem e incluí-la nas ceterae res para fins da
usucapio, a considerava uma res incorporalis, Grosso refuta dizendo que a existência da vindicatio da
hereditas, já no tempo das legis actiones, demonstra que era considerada na verdade um complexo
corpóreo (distinto dos elementos singulares que a compunham), pois a vindicação pressupunha a
corporeidade. E que a inclusão da hereditas nas ceterae res derivava apenas da sua consideração como
um complexo, e, portanto, algo diverso dos fundi e dos aedes, mas disso não se pode dizer que a
consideravam uma res incorporalis. Explica ainda Grosso que a afirmação de Gaio (II, 54) que “lex
enim XII tabularum soli quidem res biennio usucapi iussit, ceteras uero anno, ergo hereditas in ceteris rebus uidebatur
esse, quia soli non est quia neque corporalis est” (grifo nosso) 143 é provavelmente um glosema.144
Além disso, diz Grosso que ainda que esse texto seja autêntico, e não contenha um glosema, ele
nada provaria sobre o direito antigo.145 Diz ainda que a opinião dominante – que sustenta que a
classificação de Gaio é apenas quanto aos elementos do patrimônio – se comprova no fato de que
Gaio ao tratar da in iure cessio das res incorporales (II, 28-39) não menciona a in iure cessio
tutelae, e explica Grosso que, embora tenha tratado dela em outro local (Gai. I, 168-171), não foi
isto que o fez nem ao menos mencioná-la nessa passagem que trata explicitamente sobre a in iure
141 Cf. SCIALOJA, Vittorio. Teoria Della Proprietà Nel Diritto Romano. Vol. 1. ob. cit., n. 10, p. 25-27.
142 Cabe mencionar que Grosso adere a ideia geral de Windscheid, mas quanto a um ponto específico, pois atribui mais
importância prática a distinção de Gaio do que lhe dava a opinião dominante dos romanistas.
143 Tradução de Edward Poste: “[...] for while the law of the Twelve Tables fixed two years for the usucapion of land
and one year for the usucapion of other things, an inheritance was held to fall under the category of 'other things,' as
it is neither land nor corporeal [...]” GAIUS. Gai Institvtiones. Or Institutes of Roman Law by Gaius, with a translation
and commentary by the late Edward Poste, 4º ed., rev. and enlarged by E. A. Whittuck. Oxford: Clarendon Press,
1904, p. 150.
144 Glosemas, nas palavras de Sebastião Cruz, são “modificações introduzidas no próprio texto, com a finalidade intencional de lhe
esclarecer o sentido.” E as distingue das interpolações dizendo que “a interpolação destina-se a alterar o sentido do texto,
o glosema, a esclarecer-lhe o sentido, embora, por vezes (contra a intenção do seu autor) altere o sentido.” CRUZ,
Sebastião. Direito Romano. Vol. I. 4.ª ed., rev. e actu. Coimbra, 1984, p. 520.
145 Outro interessantíssimo argumento sobre a questão da usucapião da hereditas, na mesma linha desse aduzido por
Grosso é o que apresenta Pietro Bonfante: “Si è voluto bensì ritrovare vanamente una base storico-giuridica alla
distinzione tra res corporales e incorporales per il fatto che i Romani sino dai tempi vetusti riconoscevano l’usucapione
dell’eredità, che è cosa incorporale; ma quando essi riconobbero questa usucapione, concepivano certamente l’eredità
come una cosa corporale complessiva, col possesso della quale si acquistava la qualità di erede e le responsabilità
conseguenti, non altrimenti che col possesso della donna si acquistava la manus su di essa e ogni diritto ad essa spettante
e col possesso del fondo la proprietà. Se non avessero riconosciuto il carattere corporale dell’eredità, non avrebbero
ammessa l’usucapione, in quanto non potevano applicarvi il concetto di possesso: ed è per questo motivo che in epoca
storica essi hanno abolito tanto l’usucapione dell’eredità come tale [...], quanto quella delle servitù. Probabilmente
nell’epoca vetusta era ancora in parte vivo il concetto ereditato dall’evo preistorico che la qualità di erede rappresenta
un potere, e come il possesso della donna fa acquistare la manus su di lei, come il possesso del fondo o dello schiavo fa
acquistare il dominio o la potestas, così il possesso delle cose ereditarie faceva acquistare questo potere con le
responsabilità ad esso inerenti in ordine al culto familiare ed ai debiti. In epoca storica ogni vestigio (salvo il culto, i
sepolcri e il patronato) dell’antico carattere di potere del diritto di eredità è svanito: il diritto di eredità à un diritto
dell’acquisto dei singoli beni. [...].” BONFANTE, Pietro. Corso di Diritto Romano. Vol. II – La proprietà, Sezione Iª.
Roma: Attilio Sampaolesi, 1926, pp. 8-9.
43
cessio das res incorporalis.146 Além disso, diz ainda Grosso que a passagem de Ulpiano (Frag., XIX,
11) que qualifica a tutela como incorporalis é uma epítome pós-clássica de fontes duvidosas
e a afirmação é derivada possivelmente de uma contaminação, e diz ainda que, fora essa questão
histórica de autenticidade do texto, a afirmação do § 11 pode ser na verdade de caráter
genérico,147não correspondendo assim ao significado técnico de res. Conclui, por fim Grosso que
“i due termini della distinzione sono dunque eterogenei; il concetto tecnico di cosa resta limitato
nell’ambito delle cose corporali.” (grifo nosso).148
Tendo sido exposto um breve panorama acerca da controvérsia das res incorporales serem ou não
consideradas res em sentido técnico, importa ainda enunciar algumas definições dadas por alguns
romanistas do que é afinal, após aterem examinado e tomado partido frente à essas controvérsias,
res em sentido técnico, próprio.
Um conceito de res é o exposto por Gaetano Scherillo, que, primeiro demonstra que havia um
significado técnico de res, embora não enunciado expressamente pelos jurisconsultos. Depois se
posiciona frente ao conceito de bona (patrimônio), argumentando que tanto no direito clássico,
como justinianeu o patrimônio era composto somente por ativos, contendo dois grupos de entes,
o primeiro compreendendo os corpóreos – elementos concretos – e o segundo grupo contendo as
actiones, obligationes (lado ativo, crédito) e iura in re aliena. Dito isso, se posiciona frente a controvérsia
da res incorporalis, afirmando que se limita a uma classificação dos elementos do patrimônio
(seguindo a opinião dominante de Windscheid) e por fim chega a uma definição de res em sentido
técnico. Afirma Scherillo que:
“[...] cosa (res) è qualsiasi entità che la coscienza sociale concepisce come separata dalla persona
e dal mondo esteriore, in modo da avere una esistenza obbiettiva a sè stante, cui la coscienza
sociale attribuisca un valore economico socialmente apprezzabile siccome idonea a soddisfare
bisogni umani, e che sia possibile oggetto di diritti reali.” [...]. Nell’attribuire agli enti del
mondo esteriore la qualifica di cose, il diritto [...] non ha riguardo nè alla
rappresentazione filosofica di tali enti, nè alla loro natura fisica o alla loro
composizione chimica, bensì soltanto alla valutazione fattane dalla coscienza
sociale di una età: i dati della scienza interessano il diritto solo in quanto
contribuiscano a determinare un nuovo orientamento, una nuova valutazione
della coscienza sociale. Pertanto sono cose in senso tecnico quei soli enti cui la
coscienza sociale attribuisce una esistenza obbiettiva a sè stante, quand’anche tale
esistenza non abbiano nella realtà naturale, o per lo meno non siano separati gli
uni dagli altri. [...]. Spiega ancora, ed è il punto di maggior peso, come il catalogo
146 Interessante ainda citar aqui um comentário ao § 38 de Edward Poste: “The mode of transferring obligations may
be more properly considered hereafter, when we examine the titles by which Jus in personam originates or terminates,
3 §§ 155-162, comm. Gaius glanced at the titles to Hereditas and Obligatio because he was treating of Res incorporales
under which they are included; but he should have abstained from discussing Obligatio because he is now dealing with
Jus in rem, and he should have abstained from discussing Hereditas because he is now dealing with Res singulae”
GAIUS. Gai Institvtiones. ob. cit., p. 146. Ou seja, Poste considera que Gaio tratou da hereditas e da obligatio nesse local -
e não em outros que de acordo com Poste seriam mais adequados – justamente porque estava tratando das res
incorporales. Ou seja, juntando isso com o argumento de Grosso, parece totalmente razoável que, se Gaio considerasse
a tutela uma res incorporalis, teria tratado de sua transferência por in iure cessio juntamente com essas outras hipóteses no
II, §§ 28-39, ou se não, que ao menos a tivesse mencionado.
147 GROSSO, Giuseppe. Corso di Diritto Romano. Le Cose. Con una “nota di lettura” di Filippo Gallo. Rivista di Diritto
44
delle cose non sia fisso ed immutabile, ma anzi essenzialmente variabile, col
variare della coscienza sociale.”149
Ou seja, Scherillo requer para o conceito de res que o ente: 1. Seja concebido pala consciência social
como: (a) Tendo existência objetiva e “autônoma” (a sè stante); e (b) Tendo valor econômico
apreciável, pois é idôneo a satisfazer necessidades humanas. 3. Seja possível objeto de direitos reais.
Outra definição é aquela proposta por Vincenzo Arangio-Ruiz. O autor diz que:
Ou seja, o autor também liga o conceito de coisa aos entes corpóreos, requerendo uma existência
separada (realmente ou fictícia) em relação aos outros objetos e que seja capaz de satisfazer as
necessidades humanas, sendo útil e acessível pelo homem (exclui do conceito por exemplo os
animais ainda não descobertos pela humanidade).
Antes de fazer os comentários acerca do que fora exposto sobre a res no direito romano, é preciso
abordar ainda outro conceito romano para depois então fazer os comentários acerca do tema e
relacioná-lo à nossa questão primitiva, de saber afinal o que é coisa e bem.
Como brevemente foi exposto, há uma discussão na doutrina romanística acerca da classificação
de Gaio – res corporales e incorporales –, para saber se ela se limita a servir de distinção dos elementos
do patrimônio ou não – e isso com graves implicações no conceito técnico de res. Cabe, por outro
lado, explicar o que é esse elemento do patrimônio.
Para tanto, é preciso primeiro traçar algumas linhas gerais sobre o patrimônio no direito romano.
Os principais termos utilizados pelos jurisconsultos paras se referir ao que hoje denominamos de
patrimônio eram bona151 e patrimonium – mas também familia pecuniaque, res etc.152 A bona
149 SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., pp. 19-20.
150 ARANGIO-RUIZ, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Romano. ob. cit., pp. 162-163.
151 Bonfante considera que bona deve ser tido como sendo o termo técnico. BONFANTE, Pietro. Diritto Romano.
tarde bona e, no império se vulgarizou patrimonium. BEVILAQUA, Clovis. Theoria Geral do Direito Civil. 2.ª ed. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p. 14. E acrescentando à lição do eminente jurista, primitivamente se falava
em familia para indicar os elementos essenciais à subsistência, e se falava em pecunia para indicar os elemento não
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(patrimônio) era composta por vários elementos. Entre estes, se tinha as res corporales, enquanto
objeto do direito de propriedade – isso resultante da já aludida identificação do direito de
propriedade com a própria res (objeto do direito) –, os outros direitos reais, e as obrigações – sobre
estas há divergência na doutrina romanística se a bona incluía apenas o lado ativo da obrigação
(crédito), ou também o lado passivo (débito).153
De qualquer forma, o que se deve perceber é que parasse referir a esses elementos do patrimônio,
usualmente se utiliza o termo bens. Isso porque em um fragmento do Digesto154 - atribuído a
Ulpiano – se diz que bonorum tem dois significados, um “natural”, que se refere a tudo aquilo que
beneficia, deixa as pessoas felizes, e outro “civil” (jurídico), e assim o jurisconsulto lista quais
elementos uma pessoa pode ter in bonis.
E assim, por exemplo, Pietro Bonfante diz que, no sentido jurídico
“I singoli beni sono elementi del patrimonio, sono diritti in senso subbiettivo, di
carattere patrimoniale. Bene adunque equivale a diritto patrimoniale.” [...]
Coerentemente in bonis habere, in bonis esse esprimono presso i giureconsulti romani
che si ha un diritto o un complesso di diritti patrimoniali. Nello stretto senso
giuridico tuttociò che si ha in bonis costituisce il proprio patrimonio.”155
O mesmo emprego de bem como elemento – ou potencial elemento – do patrimônio parece ser
feito por Giovanni Pugliese, ao explicar a classificação de Gaio – res corporales e incorporales -, o autor
diz que:
“le res, che costituivano l’oggetto della seconda fra le ter parti a cui ‘omne ius quo
utimur’ (tutto il diritto privato vigente) si riferiva (Gai. 1, 8), erano le cose dotate
di valore economico, ossia i beni, i quali, in quanto tali, costituivano
potenzialmente la ricchezza dei singoli soggetti e, sotto il profilo
giuridico, erano idonee a formare il loro patrimonio.
[...] Il patrimonio infatti nella società del suo tempo, come in genere nelle società
non primitive, comprendeva, oltre le cose di cui si aveva la proprietà, anche vari
diritti. E i giuristi per lo più non esitavano a dire che il patrimonio, in particolare
quello lasciato in eredità da un defunto, comprendeva res (o corpora) e iura (o
actiones) [...]. Ma Gaio non volle ammettere una simile eterogeneità e pensò che il
concetto di res, nel senso di bene, potesse rendere omogenei tra loro gli
elementi del patrimonio.” (grifos nossos).156
essenciais, mais tarde se fundiram os dois termos, de forma que passaram a ser utilizados indistintamente ou ainda
conjuntamente, em familia pecuniaque.
153 Sobre essa controvérsia, ver infra.
154 D. 50, 16, 49, Ulp.: “bonorum” appellatio aut naturalis aut civilis est. naturaliter bona ex eo dicuntur, quod beant,
hoc est beatos faciunt: beare est prodesse. in bonis autem nostris computari sciendum est non solum, quae dominii
nostri sunt, sed et si bona fide a nobis possideantur vel superficiaria sint. aeque bonis adnumerabitur etiam, si quid est
in actionibus petitionibus persecutionibus: nam haec omnia in bonis esse videntur.
155 BONFANTE, Pietro. Diritto Romano. ob. cit., pp. 228-229.
156 PUGLIESE, Giovanni. Dalle “res incorporales” del diritto romano ai beni immateriali di alcuni sistemi giuridici
odierni. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè Editore, 1982, pp. 1140-1141.
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Ou ainda Gaetano Scherillo, que, embora não conceitue bem como elemento do patrimônio157 (ver
nota 157), mas associe a ele um aspecto corpóreo, parece traduzir o termo bonorum – utilizado em
D. 50, 16, 49158 – como bem, ao dizer que:
“Importa rilevare come il testo ponga nettamente la distinzione fra beni in senso
economico e beni in senso giuridico. Beni in senso economico sono i
naturaliter bona [...], intendendosi con tale qualifica ciò da cui possiamo trarre una
utilità, segue l’enumerazione dei beni in senso giuridico, che comprendono ciò
che è soggetto al nostro patrimonio [...], e ciò che non è attualmente soggetto al
nostro potere, ma rispetto a quale abbiamo un’azione diretta a farcelo conseguire
[...], cioè le aspettative dirette a conseguire altri beni.”159
Feitas essas observações, devemos passar aos comentários acerca daquilo que foi exposto acerca
do direito romano e propriamente relacioná-lo com os sentidos de coisa e bem.
Primeiro, quanto à res, nos parece que diante dos argumentos apresentados, tem razão a opinião
dominante de Windscheid e daqueles que o seguiram. Não parece que os romanos conceberam
os direitos como res em sentido técnico, tendo ela necessariamente um elemento corpóreo
em seu conceito. E principalmente levando em conta que Gaio foi o primeiro jurista a trazer a
classificação de origem filosófica das res corporales e incorporales para o direito, e lhe dar um
importância sistemática, nos parece ser muitíssimo verossímil que Gaio quis dar uma classificação
homogênea aos elementos do patrimônio – que não faziam os outros jurisconsultos anteriores, que
afirmavam que o patrimônio compreendia res (ou corpora) e iura (ou actiones) – e assim se valeu da
distinção filosófica, tomando res com o sentido de bem (Pugliese). Não nos parece que os
argumentos aduzidos no sentido contrário foram suficientes para refutar essa teoria, e mais, os
próprios contra-argumentos feitos aos argumentos contrários à concepção dominante nos parecem
irretocáveis. Os que parecem ser alguns dos argumentos mais sólidos no sentido contrário a
concepção de Windscheid, quais sejam, a usucapião da hereditas como res incorporalis e a afirmação
atribuída a Ulpiano de que a tutela é res incorporalis, nos parecem ruir diante das refutações
apresentadas pelos outros romanistas. Sendo assim, necessariamente a res em sentido técnico
tem um elemento corpóreo.
Sobre o elemento do patrimônio, este não tem necessariamente um elemento corpóreo, justamente
porque a bona compreende também elementos que não só corpóreos – direitos. O problema em
torno das res corporales e incorporales é saber se essa classificação se limitava ou não aos elementos do
patrimônio, mas não se nega que no patrimônio se tivessem também direitos.
157 Gaetano Scherillo primeiro define bem econômico, como “entità, concepite come a sè stanti, porzioni di materia, le
quali hanno interesse per noi, in quanto idonee a soddisfare bisogni umani, in quanto perciò suscettibili di
utilizzazione.” SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., p. 3. E então diz que esses
bens econômicos se tornam também bens jurídicos quando tidos em consideração e avaliados pelo direito.
158 D. 50, 16, 49, Ulp.: “bonorum” appellatio aut naturalis aut civilis est. naturaliter bona ex eo dicuntur, quod beant,
hoc est beatos faciunt: beare est prodesse. in bonis autem nostris computari sciendum est non solum, quae dominii
nostri sunt, sed et si bona fide a nobis possideantur vel superficiaria sint. aeque bonis adnumerabitur etiam, si quid est
in actionibus petitionibus persecutionibus: nam haec omnia in bonis esse videntur.
159 SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., pp. 4-5
47
Além disso, em breve análise etimológica é fácil perceber que bem e bonorum – e também as outras
declinações latinas, como bona, bonum, boni, bonis etc. – tem uma origem em comum. Bem (substantivo
masculino), tem origem no termo latim bĕne.160 A palavra latina benĕ – e benē – é derivada de bonus,
que, por sua vez, vem do antigo latim duenos.161 Já o termo bonorum, na verdade é forma genitiva
plural, masculina, feminina e neutra, do nominativo singular masculino bonus ou do nominativo
singular neutro bonum. Ou seja, tanto bem como bonorum tem origem em bonus. Sendo assim, não
nos parece correto identificar o termo bem com res, mas sim coisa com res, e a expressão
bem, por sua vez, com os termos em latim que justamente guardam com ela uma mesma
origem.
Dessa forma, nos parece que bem em sentido jurídico significa elemento do patrimônio, justamente
porque a soma de todos os bens de um indivíduo corresponderia à sua bona.
160 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4.ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Lexikon,
2010, p. 86.
161 VAAN, Michiel. Etymological Dictionary of Latin and Other Italic Languages. Leiden: Brill, p. 73.
162 Por exemplo, não discordamos que coisa possa ser tudo o que existe que carece de personalidade, mas discordamos
que esse seja o significado técnico do termo. Pois – concordamos com Cunha Gonçalves – nem tudo o que carece de
personalidade é coisa em sentido jurídico.
163 Observe-se que toda essa discussão realizada na doutrina romanística sobre a res está no âmbito do direto privado.
164 Nesse ponto, concordamos com a doutrina de Enneccerus, Kipp e Wolff (ver supra).
48
e com essa distinção vir a ser concebido como uma coisa. Por exemplo, (nos valendo do exemplo
de Cunha Gonçalves) se dissermos que um tecido é uma coisa, as fibras que o compõem não podem
ser denominadas de coisa, ao serem parte integrante do tecido, não se distinguem dele a ponto de
que possamos afirmar que constituem algo diverso, distinto do tecido (coisa). Sabendo que as coisas
são sempre corpóreas, se poderia pensar que a separação consiste apenas em elemento natural,
físico. No entanto, o direito, por ficção, considera uma coisa só entes fisicamente separados. E
mais, também por ficção considera como coisas distintas entes que são fisicamente unidos. Um
terreno, por exemplo, apesar de estar unido ao solo, com o registro do imóvel, passa a ser
considerado uma coisa distinta do solo que ele compõe. Isso porque a “unidade natural e a unidade
jurídica não precisam coincidir” (Ennecerus, Kipp, Wolff, ver supra). Da mesma forma os líquidos
e os gases, somente passam a ter essa separação, individualização, necessária quando delimitados
por um recipiente (Enneccerus Kipp, Wolff). O ar atmosférico, por exemplo, não é coisa até que
se encerre uma parcela desse “ar” em um “recipiente”, e assim se possa identificar que se trata de
um ente separado que pode ser considerado uma coisa. Sendo assim, não há um critério preciso
para a determinação da separabilidade, individualidade do ente necessária para que seja considerado
coisa, mas essa depende essencialmente da “consciência social” vigente (Scherillo, ver supra). No
entanto, não nos parece que a consciência social determine isso de forma direta, imediata, porque,
na verdade, ela influencia na criação e aplicação do direito, e, esse sim, de forma imediata, determina
o que é ou não considerado separado, individualizado para fins do conceito de coisa.
Diante disso, nos indagamos: e os frutos pendentes? São considerados coisa? Nos parece que a
resposta é negativa, pois não tem separação em relação à coisa principal. Tanto que o art. 237, §
único do Código Civil/2002 diz que os frutos percebidos até a tradição são do devedor, enquanto
os pendentes do credor. Mas com isso não excluímos a possibilidade de o fruto pendente ser objeto
de negócio jurídico (art. 95 CC/2002). O que afirmamos aqui por outro lado, é que o fruto
pendente não é coisa, por lhe faltar a separação necessária ao conceito técnico de coisa. Aduzimos
aqui um argumento de direito romano: os fructus pendentes, antes da separatio fructuum, são
considerados parte da coisa principal (pars rei) e pertencem ao proprietário.165
Outro ponto que suscita dúvidas, e servirá de introdução da próxima qualidade indispensável da
coisa é o caso das pertenças, ou melhor, dos entes que não são partes integrantes, mas se destinam,
de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro.166 Nos perguntamos: as
pertenças são coisas? Damos um exemplo para tentar responder a esse questionamento: imagine a
situação em que alguém adquire um carro, partindo da premissa que este carro tem todas as
qualidades necessárias para que seja considerado uma coisa, suponha que, esse adquirente, sendo
uma pessoa muito interessada por carros, resolve, após algum tempo, colocar seu veículo na sala
de casa, destinando-o de modo duradouro ao aformoseamento de sua casa. Ora, com essa
165 Windscheid afirma ainda que apesar de os frutos, enquanto unidos a coisa principal, não poderem ser objeto de
uma relação jurídica como “coisa particular”, pois são parte da coisa principal – no conceito mais restrito de parte, já
que tem coesão corpórea com a coisa principal –, podem sim ser objeto de negócios jurídicos válidos e outros atos
jurídicos, não como “coisa particular”, mas como res futurae. E assim, diz que não se pode constituir um direito atual
sobre o fruto ainda unido à coisa principal – e assim um direito atual sobre o que será no futuro um fruto separado –,
mas somente com a condição de que o fruto, com a separação, se torne propriedade daquele que concedeu o direito.
Mas Windscheid cita que Göppert tem opinião diversa. WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. ob. cit., § 144,
pp. 493-494, nota de rodapé n. 2. Pois Göppert considera que o penhor de frutos da direitos sobre os futuros frutos
separados desde a constituição do penhor, tendo o credor direito aos frutos separados mesmo se estes não se tornarem
propriedade do penhorante após a separação. WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. ob. cit., § 230, p. 828,
nota de rodapé n. 10.
166 Art. 93, CC/2002. “São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo
49
destinação, surge uma relação de pertinencialidade entre o carro e a casa, mas isso faz com que o
carro deixe de ser considerado coisa? Nos parece que a resposta é negativa. Isso porque a pertença,
não constituindo parte integrante, não constitue um todo com a coisa principal, e, se destinada a
outra finalidade, não importarão modificação da essência, deterioração ou destruição da coisa
principal. Ou seja, as pertenças servem a uma coisa principal, mas não deixam de ter uma existência
autônoma, não dependem da coisa principal para existirem, embora se destinem a seu uso, serviço
ou aformoseamento. E justamente por ter essa existência autônoma, são a nosso ver consideradas
coisas. Com isso, é preciso dizer que é necessário que o ente tenha existência autônoma para
que seja considerado coisa. Apenas aclarando o que foi dito: exigimos a existência autônoma,
não uma destinação ou função atualmente autônoma.
Além desses requisitos, outra qualidade indispensável ao conceito de coisa é que o ente seja
susceptível de avaliação econômica. Para se determinar se um ente é ou não dotado de tal
susceptibilidade, recorremos novamente – com a ressalva já feita – ao critério de Scherillo: depende
mediatamente da “consciência social” vigente e, conforme ressalvamos, imediatamente do próprio
direito, que determinará se algo é ou não susceptível de ter valor em dinheiro. Assim que, por
exemplo, em uma época se considera que o homem pode ser avaliado em dinheiro, e ser coisa
(escravidão), e em outra não.167 Ressaltamos que não é necessário que o ente já tenha atualmente
avaliação econômica para que seja coisa, mas tão somente que seja susceptível à tanto.
Por fim, a última qualidade indispensável do conceito de coisa é que – recorrendo à valiosa
expressão de Serpa Lopes – “seja capaz de subordinação jurídica ao seu titular.”168 Mas
ressalvamos que não é qualquer subordinação jurídica, mas especificamente a subordinação que
assume na qualidade de ser objeto de direito real.
Com isso, por exemplo, excluímos o objeto dos direitos pessoais, que, de forma imediata, é sempre
uma prestação, que, em última análise, é sempre uma conduta humana, e por isso mesmo
insuscetível de ter todas as qualidades necessárias ao conceito de coisa.
Tendo sido exposta nossa conceituação de coisa, a partir da análise da literatura jurídica e do direito
romano, podemos dar, à título de síntese, a seguinte definição: coisa em sentido técnico-jurídico
no âmbito do direito privado é todo o ente corpóreo que, segundo o direito, tem existência
separada, individualizada, autônoma, é susceptível de avaliação econômica e pode ser
objeto de direito real.
Dito isso, passamos à conceituação e delimitação do significado do termo bem. Primeiro, reiteramos
o nosso conceito fundamental: bem significa elemento do patrimônio. A partir disso, alguns
comentários precisam ser feitos. Primeiro que o patrimônio – como se verá infra – somente
compreende direitos. Sendo assim, se o bem indica aquilo que é elemento do patrimônio, bem
necessariamente é um direito patrimonial. Mas preferimos não proceder à conceituação
afirmando que bem é um direito patrimonial. Explicamos por quê: proceder de tal forma poderia
levar a confusões, pois o bem indica o elemento do patrimônio, e sempre será um direito
patrimonial, mas esse direito somente se diz ser um bem quando ingressa no patrimônio de um
sujeito, ou melhor, quando é adquirido pelo sujeito. Assim, por exemplo, uma expectativa de
direito não pode ser considerada um bem até o implemento da condição, quando por isso mesmo
se tornará um direito adquirido, passando a compor o patrimônio de seu titular e, por isso mesmo,
167 SCHERILLO, Gaetano. Lezioni di Diritto Romano – Le Cose. Parte I. ob. cit., p. 20.
168 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. ob. cit., p. 382.
50
podendo ser denominado de bem. Se poderia então afirmar que bem é o direito patrimonial
adquirido. De qualquer forma, preferimos a conceituação como elemento do patrimônio, por indicar
de forma mais expressa a relação do bem com o patrimônio.
Sobre sua distinção em relação a coisa, não nos parece que há uma relação de gênero-espécie. Na
verdade, uma coisa nunca será um bem, porque coisa não está compreendida no patrimônio, mas
sim o direito que se tem sobre essa coisa. Por outro lado, a análise contrária nos parece que carece
de sentido – saber se bem pode ser uma coisa –, pois sendo o bem o elemento do patrimônio, não
faz sentido tentar aplicar seu conceito fora da própria ideia de patrimônio.
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53
Entes corpóreos e incorpóreos
Tendo sido estabelecidos os conceitos jurídicos de coisa e bem, cabe tratar agora de uma
classificação comumente feita pela literatura jurídica, sob o nome de “coisas corpóreas e
incorpóreas” ou “bens corpóreos e incorpóreos”.
Como visto supra, a classificação, teve origem primeiramente filosófica, tendo sido inclusive objeto
de disputa entre os filósofos saber qual critério determinava a corporeidade. No âmbito jurídico,
por sua vez, a classificação surgiu quando Gaio distinguiu as res em corporales e incorporales, enquanto
aquelas eram as quae tangi possunt, estas, eram as quae tangi non possunt. Ou seja, a corporeidade se
determinava pela tangibilidade.
No entanto, do que expomos supra, a coisa tem necessariamente um aspecto corpóreo para que
assim possa ser denominada em sentido jurídico. Nos parece equivocado, então, falar em coisas
incorpóreas – tal qual fizeram os romanos –, pois consideramos que todas as coisas são corpóreas.
Por outro lado, os bens são os elementos do patrimônio e – como se viu supra –, somente direitos
podem compô-lo, e não os objetos desses próprios direitos. Sendo assim, nos parece também
incorreto falar em bens corpóreos, pois todos os bens são incorpóreos, do que resulta que seria
também, no mínimo inútil, falar em bens incorpóreo (pois todos os bens são incorpóreos).
É certo também que justamente pelas diversas críticas que vem sofrendo da literatura jurídica, a
classificação fundada na corporeidade vem sendo omitida nos Códigos. E inclusive tanto o Código
Civil Brasileiro de 1916, como o de 2002, não mencionam a dita classificação. Por outro lado, não
negamos que nem todos os bens tem por objeto coisas, isso significaria limitar os direitos patrimoniais
aos direitos reais.169 Na verdade, há bens que têm por objeto prestações (condutas humanas) ou
ainda entes incorpóreos – nomeadamente a produção literária, musical etc. Dessa forma, nos parece
necessário classificar, não os bens ou as coisas, mas os entes em corpóreos e incorpóreos, não para
fundir nessa mesma classificação direitos e objetos desses direitos, mas sim para distinguir, entre
os objetos dos direitos, quais podem ser denominados de coisa – por terem a corporeidade.
É preciso observar que o critério adotado por Gaio – tangibilidade – não se mostra suficientemente
preciso nos dias atuais, pois com a evolução da ciência e da própria “consciência social”,
conhecemos hoje entes que, embora intangíveis – ou seja, imperceptíveis pelo tato –, apresentam
existência material e são considerados corpóreos. Por isso, devemos concordar com Enneccerus,
Kipp e Wolff ao dizerem que corporeidade se determina “de conformidad con las concepciones
del tráfico y no según las doctrinas físicas. Se requiere, y es suficiente, la perceptibilidad por
169 Não abordarei no presente trabalho a questão de saber se direitos podem ser objetos de direitos reais.
54
cualquiera de los sentidos”170 Apenas ressalvamos que nos parece que as concepções do tráfico
somente assumem a relevância quando adentram no âmbito jurídico, sendo assim, em última
análise a corporeidade se determina pelo próprio direito ao ser aplicado.
Dito isso, se perceba que os entes corpóreos podem vir a ser denominados de coisas, mas então
alguém pode indagar: qual é a denominação dos entes que, sendo objetos dos direitos patrimoniais
e, não sendo prestações, não são dotados de corporeidade,? Ora, não negamos que há objetos de
direitos patrimoaniais que são incorpóreos, como por exemplo, a invenção, a produção literária ou
artística, a criação musical etc. Para atribuir uma denominação a esses entes, nos parece necessário
partir do conceito de bem que apresentamos: se bem é o elemento do patrimônio, esses entes
imateriais não podem ser tecnicamente denominados de bens, pois, enquanto objetos de direitos,
não são eles que compõem o patrimônio, mas sim os direitos (se patrimoniais) sobre eles. Quanto
à denominação coisa, nos parece que guardam uma similitude com esses referidos entes incorpóreos,
enquanto ambos figuram como objeto dos direitos. Todavia, ao afirmarmos que a coisa tem
indispensavelmente um aspecto corpóreo, seria, no mínimo puramente ficção, – para não dizer
incongruente – abrir uma exceção para denominar esses entes incorpóreos também de coisas. 171
Por isso, preferimos – nos valendo de uma expressão de Pugliese – afirmar que o nome técnico
para esses entes é “entidades incorpóreas ou imateriais.” 172
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170 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol.
1º, ob. cit, § 114, pp. 533-534.
171 Assim por exemplo, faz Windscheid. Após afirmar que faz parte do conceito de coisa a corporeidade, diz que
determinados entes são tratados pelo direito como corpóreos – absolutamente ou em determinadas relações –, e nessa
medida podem ser denominados de “coisas incorpóreas”. Ressalva ainda o autor que essas “coisas incorpóreas” não
são as res incorporales das fontes romanas, pois estas não se referiam ao objeto das relações jurídicas, mas as partes
constitutivas do patrimônio. WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. Traduzione dei professori Carlo Fadda
e Paolo Emilio Bensa, Vol. I. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1925, § 137, p. 477 e § 137, nota de
rodapé n. 3, p. 477.
172 PUGLIESE, Giovanni. Dalle “res incorporales” del diritto romano ai beni immateriali di alcuni sistemi giuridici
odierni. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè Editore, 1982, p. 1183.
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57
Patrimônio.
A noção de patrimônio é muito controvertida entre os juristas. Para explicá-lo se fizeram diversas
teorias, das quais expomoremos aqui algumas:
173 AUBRY, Charles; RAU, Charles-Frédéric. Cours de Droit Civil Français – D’Après la Méthode de Zachariæ. Tome VI, 4.ª
éd., rev. et compl. Paris: Imprimerie Et Librairie Générale De Jurisprudence Marchal Et Billard, 1873, § 573, p. 229
174 Explicam os autores ainda que o patrimônio tem natureza puramente intelectual, e assim também seus elementos
têm esse mesmo caráter. Afirmam que os objetos externos não são parte do patrimônio em relação a si mesmos, mas
sob o título de bens e em relação a utilidade que são suscetíveis de fornecer. E concluem que nessa qualidade todos
esses objetos se resumem na ideia de valor pecuniário. AUBRY, Charles; RAU, Charles-Frédéric. Cours de Droit Civil
Français – D’Après la Méthode de Zachariæ. Tome VI, ob. cit., § 573, p. 230. E disso mesmo resulta a fungibilidade dos
elementos que constituem o patrimônio.
175 AUBRY, Charles; RAU, Charles-Frédéric. Cours de Droit Civil Français – D’Après la Méthode de Zachariæ. Tome VI, ob.
58
universalidade.177 Além disso, os autores dizem expressamente que o patrimônio, embora emanado
da personalidade, dela se distingue, e assim admitem a existência de uma relação entre a pessoa e o
patrimônio, que, como especificam, sempre é um direito de propriedade. Depois disso, ainda
afirmam que o direito de propriedade que todas pessoas têm sobre o seu patrimônio também se
denomina patrimônio.178
É preciso esclarecer que, embora não esteja a todo momento claro, os autores afirmam que os
objetos exteriores não são eles próprios, em sua natureza constitutiva, elementos do patrimônio,
mas o são “à titre de biens, et sous le rapport de l'utilité qu'ils sont suscepti bles de procurer.” Com
isso parece indicar que na verdade são os direitos que estão no patrimônio.179 Além disso, computa
no patrimônio todos os bens da pessoa, tanto os inatos (correspondentes ao que denominamos
atualmente de direitos da personalidade), como os futuros.
Feitas essa rápida síntese da teoria clássica do patrimônio, é preciso dizer que diversas críticas foram
feitas, principalmente quanto a sua relação com a personalidade. Contestam dizendo que os autores
confundiram as noções de patrimônio e capacidade jurídica. Também se criticou a noção de que
somente pessoas tem patrimônio, aduzindo que no direito francês havia o caso de herança jacente
e das fundações (que eram patrimônios sem titular). Também aduzem que o princípio da unidade
do patrimônio sofre diversas exceções.180
177 É assim que se explica por exemplo a responsabilidade patrimonial, segundo a qual patrimônio do devedor responde
com todos os bens no momento da execução, ainda que no momento que contraiu o débito tivesse, por exemplo,
menos bens.
178 “Le droit de propriété dont toute personne jouit sur son patri moine, se désigne aussi sous le nom de patrimoine.”
AUBRY, Charles; RAU, Charles-Frédéric. Cours de Droit Civil Français – D’Après la Méthode de Zachariæ. Tome VI, ob. cit.,
§577
179 Tanto que Paul Esmein, ao atualizar a obra de Aubry e Rau, afirma que bem corresponde a direito subjetivo. Apud
XAVIER, Luciana Pedroso. As Teorias Do Patrimônio E O Patrimônio De Afetação Na Incorporação Imobiliária. Dissertação
de mestrado, orientador: Rodrigo Xavier Leonardo. Curitiba, 2011, p. 54.
180 Para essas críticas ver VILLANUEVA, José Joaquín Herrera. El Patrimonio. In: Revista Mexicana de Derecho. Colección
Colegio de Notarios del Distrito Federal. Núm. 16. Mexico, 2014, pp. 77-79.
59
dizem ser possível que o direito confira um regime próprio a determinados conjuntos de bens, sem
que isso implique uma cisão da própria personalidade. Argumentam também que vários dos casos
apresentados pelas teorias objetivas como sendo casos de patrimônios de afetação, na verdade não
o são, pois somente compreendem os ativos, e não os passivos. Ainda afirmam que as críticas à
teoria subjetiva clássica não a anulam.181
Feita essa rápida síntese de algumas das teorias182 acerca do patrimônio partiremos para uma análise
de alguns aspectos controvertidos acerca de seu conceito, para depois, então, apresentar nossa
opinião sobre o tema. São os seguintes pontos que iremos examinar: 1. Ser uma universalidade de
direito; 2. Elementos do patrimônio; 3. Inclusão dos passivos.
Passamos a exposição desses pontos:
Elementos do patrimônio:
É disputada a questão de saber o que figura como elemento do patrimônio. A principal dúvida é saber
se dele fazem partes apenas direitos, ou também os objetos desses direitos. Nos parece que essa
questão tem origem – desde o direito romano, ver supra – na prática comum da linguagem de se
dizer que tem a coisa (res mea est), ao invés de afirmar que se tem o direito de propriedade sobre a
181 Para essas críticas ver VILLANUEVA, José Joaquín Herrera. El Patrimonio. In: Revista Mexicana de Derecho. Colección
Colegio de Notarios del Distrito Federal. Núm. 16. ob. cit., p. 85.
182 Nos limitamos a um panorama geral do tema, mas há diversas teorias, inclusive aquelas que negam a existência do
patrimônio, reduzindo-o a mera construção doutrinária. Ver VILLANUEVA, José Joaquín Herrera. El Patrimonio.
In: Revista Mexicana de Derecho. Colección Colegio de Notarios del Distrito Federal. Núm. 16. ob. cit., pp. 88-90.
183 BEVILAQUA, Clovis. Theoria Geral do Direito Civil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p. 211.
184 FADDA e BENSA, apud BEVILAQUA, Clovis. Theoria Geral do Direito Civil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
60
coisa.185 No entanto – seguindo a opinião de Andreas Von Tuhr186 e no mesmo sentido de
Enneccerus, Kipp e Wolff187 – consideramos que somente direitos fazem parte do patrimônio. Aduzimos
para tanto o seguinte argumento (com origem nas discussões dos romanistas):
Se imagine que se inclua todos os direitos e todos os objetos desses direitos (independentemente
de qual) no patrimônio. Partindo dessa premissa, todos os direitos e os objetos desses direitos
(objeto do direito de propriedade, de usufruto etc.) figurariam como elementos do patrimônio. Com
isso, se criaria o problema – além de incoerente do plano lógico, por unir elementos distintos, mas
também perigoso do ponto de vista prático – de que um objeto de direito poderia estar em
múltiplos patrimônios ao mesmo tempo, na medida em que houvesse sobre ele diversos direitos
com diferentes titulares. Nos perguntamos: como se resolveria o problema de saber em qual desses
patrimônios o objeto poderia ser atingido para satisfazer os credores de algum desses titulares? E
mais: se esse objeto fosse liquidado para satisfazer uma dívida de um credor de um desses titulares
(que tem o objeto do direito de que é titular em seu patrimônio) os outros, que também teriam o
objeto no patrimônio, estaria sendo privados de parte de seu patrimônio?
Caso, se entenda por incluir no patrimônio os direitos e, em vez de todos os objetos desses direitos,
apenas os objetos do direito de propriedade, se teria duas possibilidades: 1. O patrimônio seria
formado pelos objetos do direito de propriedade e pelos direitos, tanto de crédito, como reais e,
inclusive o de propriedade, o que seria extremamente ilógico pois estaria, expressamente, unindo
elementos que estão em planos totalmente distintos. E mais, ao listar também o direito de
propriedade ao lado dos objetos desse direito, se criaria o problema: em que medida se diferenciaria
o objeto do direito de propriedade e o próprio direito de propriedade, para fins da responsabilidade
patrimonial? Seria possível apenas um destes elementos responder, sem que o outro respondesse
também? 2. A outra possibilidade, menos ilógica – como fizeram os romanos – é a de incluir no
patrimônio os objetos do direito de propriedade e os outros direitos que não a própria propriedade
(ou seja, não listar a propriedade). Mas isso criaria, por sua vez, outro ilogismo: por qual motivo se
omitiu a propriedade? E nem se diga que foi porque ela está “representada” por seu objeto, pois, a
isso, responderíamos que se está, repetimos, a unir elementos distintos, quais sejam, direitos e
objetos desses direitos.
Por isso, nos parece que o mais correto e lógico é reconhecer que apenas os direitos, e não seu
objeto, fazem parte do patrimônio.
185 WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. Traduzione dei professori Carlo Fadda e Paolo Emilio Bensa, Vol.
I. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1925, § 42, p. 119 e §42, nota de rodapé n. 4, pp. 119-120.
186 Diz o autor que: “Los objetos de los derechos no entran en el patrimonio, porque éste se halla constituído
únicamente por la propiedad que compete al titular respecto a las cosas suyas y no por las cosas mismas; por los
créditos y no por las prestaciones que pueden ser exigidas en virtud de ellos. Sin embargo, como ya sucedió a los
romanos, resulta natural enumerar las cosas en lugar de la propiedad, porque ésta otorga el señorío pleno sobre las
mismas, y considerar como integrantes del patrimonio las cosas, los créditos y los demás derechos que pertenecen a
una persona. [...]. Esta costumbre idiomática no es peligrosa, siempre que quede bien claro que la palabra ‘cosa’
constituye así una indicación concreta de la propiedad sobre la misma, en forma tal que cuando la ley con la expresión
‘objeto’ se refiere a cosas y derechos [...], entiende decir propiedad y demás derechos. [...]. La expresión ‘disposición de
una cosa’, en rigor debe entenderse ‘disposición de la propiedad sobre la cosa’” VON TUHR, Andreas. Derecho Civil –
Teoría General del Derecho Civil Aleman. Vol. I, 1. Prólogo por el Professor Tullio Ascarelli; traducción directa del alemán,
Der Allgemeine Teil Des Deutschen Bürgerlinchen Rechts por Tito Ravà. Buenos Aires: Editorial Depalma, 1946, § 18, p. 391.
187 Dizem que: “El patrimonio sólo se compone de derechos. Por tanto las cosas non son partes del patrimonio, sino
el derechos de propiedad sobre las cosas. No es así el uso del lenguaje, pero es prácticamente inofensivo.”
ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º,
ob. cit., § 124, nota de rodapé n. 2, p. 591.
61
Dito isso, importa ainda esclarecer que não são todos os direitos que fazem parte do patrimônio.
Para tanto, se faz necessário que seja susceptível de avaliação econômica: são os chamados direitos
patrimoniais. Sendo assim, estão fora do patrimônio, conforme enumera Clovis Bevilaqua, os direitos
sobre a própria pessoa – o que atualmente chamamos de direitos da personalidade (nome, honra,
vida etc.) –, os direitos de família, de autoridade, os direitos políticos e os civis públicos.188 O autor
ainda parece aderir a opinião de que o direito hereditário não é patrimonial.189 Por outro lado,
Enneccerus, Kipp e Wolff os inclui no patrimônio.190 Da mesma forma Von Tuhr, mas ressalvando
que, em vez de direito hereditário, o mais correto é falar de relação jurídica.191
E assim, são elementos do patrimônio, por exemplo, a posse 192, os direitos reais, os direitos sobre
entes incorpóreos ou imateriais (v.g. direito do autor, do inventor etc.), os direitos de crédito, o
direito à sucessão aberta193 etc.
188 BEVILAQUA, Clovis. Theoria Geral do Direito Civil. ob. cit., p. 213.
189 BEVILAQUA, Clovis. Theoria Geral do Direito Civil. ob. cit., nota de rodapé n. 20, p. 214.
190 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho Civil – Parte General. Tomo I, Vol.
390.
192 Se for considerada um direito. Ver VON TUHR, Andreas. Derecho Civil – Teoría General del Derecho Civil Aleman. Vol.
avaliação econômica. Aduzimos como argumento o fato de que o direito à sucessão aberta por ser até mesmo objeto
de cessão (art. 1.793, CC/2002) onerosa.
194 WINDSCHEID, Bernardo. Diritto Delle Pandette. Traduzione dei professori Carlo Fadda e Paolo Emilio Bensa, Vol.
I. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1925, § 42, p. 119 e § 42, nota de rodapé 3, p. 119.
195 D. 50, 16, 39, 1.
62
tem mais passivos do que ativos: Proprie “bona” dici non possunt quae plus incommodi quam commodi
habent.196 197
Enfim, há aqueles que consideram que apenas os ativos estão incluídos no patrimônio. Enneccerus,
Kipp e Wolff, aderindo a essa ideia, argumentam que “las obligaciones no se consideran como
parte del patrimonio, sino que el patrimonio está gravado con ellas, esto es, deben cumplirse con
este patrimonio.”198 Entre os argumentos dos autores, afirmam que se os passivos fossem parte do
patrimônio, sempre seriam transferidos a quem adquirisse o patrimônio, ou parte dele.199
Outra opinião interessante ainda, diversa dessas três, é a de Andreas Von Tuhr200, que diz que com
o termo patrimônio se pode tanto indicar o “patrimônio bruto” – soma dos ativos –, como o
“patrimônio líquido” – conjunto dos ativos com dedução dos passivos que o gravam. E afirma
que, adotando a lei ora em um sentido, ora em outro, essa “discusión terminológica carece de
interés para la interpretación del derecho positivo. En particular, no depende de la definición del
término sino de las disposiciones de la ley [...].”201202
Tomando partido frente ao problema, aderimos a opinião que o patrimônio somente inclui os
direitos (ativos). Os passivos não são parte do patrimônio, mas o gravam. Aduzimos os seguintes
argumentos:
1. Partindo do argumento de Enneccerus, Kipp e Wolff (ver supra), é preciso observar alguns
aspectos da sucessão mortis causa no direito brasileiro. Perceba-se que os herdeiros somente
respondem no limite das forças da herança, ou melhor, as obrigações do autor da herança não se
transmitem para a pessoa do devedor, mas justamente gravam o patrimônio transmitido. Na linha
do que argumenta Enneccerus, Kipp e Wolff, caso o patrimônio realmente compreendesse os
terminológica é “absolutamente inexata”. E dão o seguinte exemplo: “Si yo adquiero la cantidad positiva de 1.000 y la
negativa de1.500, soy 500 más pobre de lo que era. Si adquiero 1.000, con los cuales tengo que satisfacer una deuda de
1.500, no soy más pobre do que lo era.” ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de Derecho
Civil – Parte General. Tomo I, Vol. 1º, ob. cit., § 124, nota de rodapé n. 11, pp. 594.
63
passivos, o herdeiro responderia ainda que ultra vires hereditatis. Explicando melhor: se o patrimônio
compreendesse os passivos, estes ingressariam no patrimônio do herdeiro, que, por isso mesmo,
responderia pelas dívidas, ainda que além das forças da herança (hereditas damnosa). Na verdade, se
observar os artigos 836203, 1.792204, 1.821205 do Código Civil, e os artigo 796206 do Código de
Processo Civil, fica claro que os passivos gravam o patrimônio, não o compõem.
Mas não nos limitaremos a este argumento, que, devemos reconhecer, tem sua validade
subordinada às eventuais mudanças legislativas.
2. Como afirmamos supra, o termo bem indica o elemento do patrimônio. Partindo disso, cumpre
analisar os artigos 391207 do Código Civil de 2002 e o 789 do Código de Processo Civil de 2015208,
segundo esses, todos os bens do devedor respondem pelo inadimplemento das obrigações: é o que
se denomina responsabilidade patrimonial. Sendo assim, tal qual afirma Guillermo A. Borda, caso essas
próprias obrigações fossem parte do patrimônio, se teria a contradição de que as obrigações
respondem por elas mesmas.209
3. Aduzimos também o seguinte argumento histórico: no direito romano, especialmente no direito
clássico, o termo técnico utilizado para se referir ao patrimônio era bona. Há disputa entre os
romanistas para saber se nela se incluíam somente ativos, também os passivos, ou saber se era o
ativo restante da dedução dos passivos. Cabe dizer que, ao nosso ver, a controvérsia resta
solucionada por ampla argumentação de Scherillo (ver nota de rodapé 197), que conclui que os
passivos não faziam parte do patrimônio, nem no direito clássico como no justinianeu. Patrimônio
em sentido próprio incluía somente ativo. Além disso, - em texto atribuído a Ulpiano210 – este afirma
expressamente que bonorum tem dois sentidos, um natural, que significa tudo aquilo que traz
felicidade, e outro civil (jurídico), e cita os elementos do patrimônio (sem incluir passivos). Ou seja,
até mesmo por seu significado, bona, e, portanto, patrimônio e bens, estão necessariamente ligados
a uma ideia de trazer utilidade, felicidade a alguém. Por isso mesmo, consideramos incorreto incluir
passivos no patrimônio, pois esses, em vez de trazer utilidade, oneram seu titular.
Cabe ressalvar que não excluímos a possibilidade – até mesmo por necessidade de ordem prática –
de se falar, por exemplo, patrimônio líquido, como uma forma de indicar mais rapidamente o
203 Art. 836, CC/2002. A obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo
decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança.
204 Art. 1.792, CC/2002. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém,
a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.
205 Art. 1.821, CC/2002. É assegurado aos credores o direito de pedir o pagamento das dívidas reconhecidas, nos
elas dentro das forças da herança e na proporção da parte que lhe coube.
207 Art. 391, CC/2002. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.
208 Art. 789, CPC/2015. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas
es la garantía o prenda común de los acreedores. ¿Acaso se quiere significar con esto que también las deudas integran
la garantía del pago de ellas mismas?” BORDA, Guillermo A. Tratado De Derecho Civil - Parte General. Tomo II. Buenos
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210 D. 50, 16, 49, Ulp.: “‘bonorum’ appellatio aut naturalis aut civilis est. naturaliter bona ex eo dicuntur, quod beant,
hoc est beatos faciunt: beare est prodesse. in bonis autem nostris computari sciendum est non solum, quae dominii
nostri sunt, sed et si bona fide a nobis possideantur vel superficiaria sint. aeque bonis adnumerabitur etiam, si quid est
in actionibus petitionibus persecutionibus: nam haec omnia in bonis esse videntur.”
64
resultado da subtração dos ativos pelos passivos. Também reconhecemos que por vezes o
legislador pode optar por utilizar o termo patrimônio no sentido a compreender os passivos. No
entanto, o que pretendemos sustentar é que patrimônio em sentido técnico compreende somente
ativos.
Conclusão.
Feitas essas observações, e abordados alguns dos principais aspectos controversos do patrimônio,
à título de síntese, podemos dar a seguinte definição: patrimônio é o complexo de direitos
susceptíveis de avaliação econômica, denominados, nessa qualidade, de bens, que, em
determinadas circunstâncias, e apenas nelas, é tratado pelo direito como um todo distinto
dos elementos que o compõem.
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67
A teoria do patrimônio jurídico mínimo
211 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 279.
212 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral, ob. cit., p. 279.
213 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 233.
214 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. v. 1. 10ª ed.
68
Paradigma importante para lançar as bases desta categoria é o do fenômeno da repersonalização do
Direito que, conforme Fachin,216 “assenta-se na premissa de que patrimônio e pessoa não estão
absolutamente entrelaçados, nem ocupa um primeiro plano a relação entre eles.”
Ainda, o referido fenômeno indica uma importante compreensão de que o patrimônio não é
somente fruto de oportunidades pessoais, mas de um conjunto de fatores sociais.217
Importante premissa, ainda, é a do fenômeno da despatrimonialização do direito privado, que implica
na funcionalização do ter pelo ser218, isto é, a pessoa torna-se o eixo central do direito privado, bem
como suas necessidades de uma vida digna. Desse modo, impõe-se à atividade econômica a
observância de valores tais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade material e a
solidariedade social, ou seja, a subordinação do direito civil aos valores existenciais219.
Acrescenta-se que, segundo Schreiber220, a despatrimonialização é consequência necessária do texto
constitucional.
Vale salientar que a tese ora apresentada não equaliza propriedade com patrimônio, nem restringe
a compreensão de propriedade à propriedade privada.221 Neste âmbito, ressalta-se que a
Constituição da República não afastou a livre iniciativa ou a propriedade privada, mas apenas impôs
a observância de valores sociais ao exercício desses institutos.222
Neste ínterim, distinção importante é de que o patrimônio mínimo não abrange apenas bem imóvel,
mas também outras modalidades de bens.223
Marco importante para a conceituação da categoria de patrimônio mínimo é a obra de Luiz Edson
Fachin “Estatuto jurídico do patrimônio mínimo”, que defende que cada pessoa humana seja
dotada de garantias patrimoniais mínimas que não podem ser afastadas, nem mesmo para satisfazer
interesses de credores.224Tal síntese apresenta grande relevo, em especial tendo em vista a
compreensão ventilada pelo próprio ordenamento de que o patrimônio pode ser entendido
enquanto uma garantia para os credores, pois responde pelas dívidas do devedor.225
Para o balanceamento dos eventuais interesses dos credores com a garantia do patrimônio mínimo,
lecionam Chaves de Farias e Rosenvald que deve haver a ponderação, no caso concreto, entre
“valores patrimoniais destinados à garantia do crédito e valores patrimoniais vocacionados à
proteção das situações existenciais”.226
Um exemplo de tal ponderação trazido por Sarmento227 foi uma decisão de 1999 do Tribunal
Constitucional Português, que determinou a impenhorabilidade do valor de pensões,
216 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 1ªed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 42.
217 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 42.
218 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 496.
219SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson
(Org.). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas. 2016. Edição Kindle, capítulo 1.
220 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson
498.
227 SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. In: Revista de Direito da Cidade. Rio de Janeiro, v. 08, n. 4, p. 1667, 2016.
69
aposentadorias e benefícios sociais até o valor do salário mínimo, com a finalidade de que os
direitos dos credores não preponderassem sobre o direito à subsistência do devedor.
Retornando à doutrina de Fachin, tem-se que a teoria do patrimônio mínimo se distingue da teoria
clássica, também em razão da dissociação que pretende fazer entre os institutos da pessoa e do
patrimônio, pretendendo uma repersonalização do Direito.
Neste sentido, Fachin leciona que o patrimônio não seria um atributo da personalidade, afirmando
que o conceito teria sofrido evoluções com o passar do tempo, levando à sua dissociação da pessoa,
e ao distanciamento da compreensão de se destinaria mais à garantia de débitos do que às
necessidades da pessoa.228
Desta forma, reputa o autor que patrimônio e personalidade pertenceriam a realidades distintas,
devendo o patrimônio servir à pessoa.
Diante do exposto, conclui-se que a categoria do patrimônio mínimo vem conquistando especial
relevo na contemporaneidade, de modo que suas aplicações práticas serão precisadas em sequência.
228 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 45.
229 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 03.
230 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 119.
231 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 18.
232 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 49.
233 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 538.
234 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011, p. 145.
235 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 538.
70
edificação do Direito Civil nucleado em torno do patrimônio, e (2) “na busca de uma nova
concepção do patrimônio que coloque no centro das relações jurídicas a pessoa e seus respectivos
valores personalíssimos”.236
Neste trabalho hermenêutico através das legislações civis, verifica-se que a tese do patrimônio
mínimo vai, principalmente, ao encontro do “fenômeno jurídico da impenhorabilidade”237 e da
vedação às disposições irrestritas do patrimônio próprio, vez que ambos estão relacionados a
institutos que buscam impedir a auto redução à miserabilidade e que tutelam, em algum grau,
direitos fundamentais da pessoa em detrimento da mera garantia do crédito.238
Fachin advoga, portanto, pela possibilidade de reconstrução dialética dos institutos civis a partir de
seu “caráter humanitário”.239
A exemplo tem-se a proteção jurídica dada ao bem de família pela Lei nº 8.009/90, que figura como
uma das principais aplicações da teoria do patrimônio mínimo,240 uma vez que é possível aferir que
não se trata de simples proteção patrimonial, mas da proteção ao direito à moradia (art. 6º da
CRFB) e à dignidade da pessoa humana.241 Tendo em vista a relevância do instituto diante da
concepção de patrimônio mínimo, este será tratado com maior profundidade no tópico
subsequente.
Dentro do Código Civil brasileiro, o dispositivo que guarda maior compatibilidade com a tese do
patrimônio mínimo é aquele que dispõe acerca da nulidade da doação universal, prevista no artigo
548 do supracitado Diploma Legal. Tal instituto estabelece a nulidade absoluta do ato de dispor de
todos os bens, sem que haja reserva do mínimo necessário à sobrevivência do doador,242 como se
vê pela literalidade do artigo: “é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda
suficiente para a subsistência do doador”.
No mesmo sentido, o art. 549, CC, estabelece que: “nula é também a doação quanto à parte que
exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.
Estes dispositivos preveem regra que impõe limitação ao exercício da liberdade de forma absoluta.
Todavia, com o movimento de constitucionalização do Direito Civil, bem como com a fixação dos
pilares fundamentais da República brasileira, tem-se visto o reconhecimento da possibilidade de
restrição da liberdade individual em prol de garantias coletivas superiores em todo o Direito Civil.
O que se verifica, portanto, é a ponderação de valores essenciais que devem ser “funcionalizados
em cada caso, protegendo cada uma das pessoas humanas para que venham a desempenhar suas
atividades dignamente”.243
Nesse sentido, verifica-se busca de equidade valorativa também quando se analisa outro instituto
que pode ser tomado como representante do patrimônio mínimo nas codificações civilistas, mas
dessa vez presente no Código de Processo Civil de 2015: os bens impenhoráveis.
Em seus artigos 833 e 834, o CPC/15 estabelece um rol de bens que são inalcançáveis pelo
fenômeno da penhora, buscando garantir a proteção do mínimo necessário à manutenção da
236 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 05.
237 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 10.
238 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 540.
239 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 107.
240 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 141.
241 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 146.
242 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 145.
243 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 540.
71
dignidade do devedor. A ponderação nesse caso faz-se presente entre a necessidade de satisfação
do crédito e a reserva de quantia existencial ao devedor, prevalecendo a proteção ao mínimo sob
fundamento da dignidade da pessoa humana.
Dentre os bens que estão salvaguardados da penhora pelo art. 833, CPC, cita-se como exemplo: a
quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de quarenta salários-mínimos (inciso
X); a pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família (inciso VIII); o seguro de vida
(inciso VI); os livros, máquinas, ferramentas, utensílios e instrumentos necessários ao exercício da
profissão do executado (inciso V); salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões e
outras quantias destinadas ao sustento do devedor e de sua família (inciso IV); os vestuários, móveis
e utilidades domésticas, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns
correspondentes a um médio padrão de vida (incisos I e II).
Destarte, resta nítida a intenção do legislador de, através destas disposições, proteger o mínimo
necessário à sobrevivência e à vida digna daquele que é executado.
Ressalta-se que, além da impenhorabilidade, há de se destacar o fenômeno da inalienabilidade como
representante dos ideais da tese do patrimônio mínimo. “Já entendia Pontes de Miranda, que
advertiu ‘que em qualquer cláusula de inalienabilidade está inclusa a de impenhorabilidade’ (...), vez
que sua finalidade primeira é o suprimento das necessidades do proprietário e de sua família”244. A
relação entre estes institutos está prevista no art. 1.911, CC, que institui que: “a cláusula de
inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e
incomunicabilidade.”
Seguindo a análise da aplicação da tese do patrimônio mínimo no Código Civil, é possível extrair
outros exemplos de institutos que trazem a salvaguarda da proteção à pessoa em detrimento do
patrimônio. Como é o caso do art. 928, parágrafo único245.
Este dispositivo, ao prever a responsabilidade civil do indivíduo incapaz em seu caput, reserva o
parágrafo único para estabelecer que “a indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa,
não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. ”
A norma institui, portanto, a limitação da indenização a ser paga pelo incapaz, de forma que não
prejudique a manutenção de sua dignidade, ou daqueles que dele dependem.
O mesmo se verifica no caso do art. 1.782 do Código Civil, que prevê a possibilidade de interdição
por prodigalidade, visando resguardar os bens do incapaz.246 Compreende-se neste artigo, outra
hipótese de vedação da doação total do patrimônio sem que se preserve um mínimo, evitando que
o indivíduo chegue à miséria e garantindo patrimônio aos possíveis futuros herdeiros. Acrescenta-
se que a incapacidade por prodigalidade é relativa, conforme art. 4º, IV, CC e art. 1.767, V, CC.
Sobre esse tema, ao lecionarem acerca da legitimidade do Ministério Público para promover a ação
de interdição de pródigo, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald relacionam o papel do
Parquet com a necessidade de proteção do mínimo existencial e dos interesses da sociedade na
efetivação deste instituto. Como se verifica no trecho citado:
244 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 133-134.
245 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 146.
246 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 108.
72
Com essa ampla legitimidade, inclusive, é de se reconhecer a legitimidade
ministerial para promover a ação de interdição de pródigo, em face da compreensão
de que a proteção do patrimônio mínimo da pessoa humana é materialização do direito ao
mínimo existencial, verdade projeção da afirmação da dignidade do homem. Corroborando
dessa posição, Carlos Roberto Gonçalves manifesta-se a favor da legitimidade
ministerial, percebendo que tal legitimidade “decorre de sua posição de defensor
dos interesses dos incapazes, visto que a interdição do pródigo visa agora protege-lo, e de
defensor dos interesses da sociedade e do Estado” (destaque nosso).247
Os exemplos trazidos demonstram, portanto, a afinidade com a ideia que se defende pela tese do
patrimônio mínimo, por estarem estritamente ligados às noções de dignidade humana,
solidariedade social e igualdade substancial.248
Por esse ângulo, cabe trazer, por fim, dois institutos que dialogam com o tema, quais sejam: (1) a
possibilidade de revogação de doação por ingratidão em caso de recusa de prestação de alimentos
do donatário ao doador, previsto no art. 557, CC; e (2) a vedação de contrato que tenha por objeto
herança de pessoa viva, positivada no art. 426, CC.249
Nessas duas hipóteses, assim como nos demais exemplos trabalhados, o que se percebe é a tutela
de valores e bens jurídicos que não se resumem ao patrimônio. No caso do art. 557, CC, a
revogação é, como o próprio Código institui, por ingratidão, a preocupação se volta à doação àquele
que não pagou alimentos quando o doador necessitava. Enquanto que, no art. 426, CC verifica-se
a intenção de proteger a vida do futuro titular da herança.
Assim, em todos os exemplos trazidos verifica-se o giro através do núcleo de proteção principal
dos institutos. O rol apresentado é meramente exemplificativo, não sendo exauriente. Todavia, o
que se pretendeu demonstrar é justamente que se vê “caminho para a superação da visão liberal
individualista, centrada no patrimônio”250 e abertura para a proteção civil do mínimo existencial e
da centralização da pessoa nas relações civis.
247 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 334.
248 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 538.
249 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 108.
250 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 1ªed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 50.
251 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 526.
73
De início, quanto à garantia da impenhorabilidade, preceitua Venosa252 que é a característica central
do bem de família, excluindo-o de eventual execução por dívidas, salvo algumas exceções
construídas jurisprudencialmente, que não comportam especificação no presente capítulo.
Ainda no que tange a impenhorabilidade, prevê o artigo 1°, da Lei 8.009/90 que “o imóvel
residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer
tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges
ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas
nesta lei.”
Em complemento, o parágrafo único do mesmo dispositivo assenta que “a impenhorabilidade
compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de
qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que
guarnecem a casa, desde que quitados.”
A Constituição Federal, além disso, prevê em seu artigo 5°, XXVI, a impenhorabilidade da pequena
propriedade rural, cabendo a lei ordinária especificar os limites de tal imóvel.
Acrescente-se que, conforme pontuado por Tartuce,253 a Súmula 364 do Superior Tribunal de
Justiça estende o conceito de impenhorabilidade ao imóvel em que resida pessoa solteira, separada
ou viúva, ampliando os efeitos da Lei 8.009/90.
Ademais, o Decreto-lei n° 3.200/41 também estendeu a aplicação do bem de família que, já tendo
abarcado o imóvel rural em seu conceito, incluiu a mobília, utensílios de uso doméstico, gado e
instrumentos de trabalho na proteção lograda pelo instituto.254
Passando à análise da inalienabilidade, também atribuída ao bem jurídico em comento, encontra
especial previsão no artigo 1.717, CC e, conforme leciona Venosa255, tal disposição visa garantir
abrigo seguro e permanente para a família, podendo ser contrariada apenas em caso de
consentimento entre os interessados ou seus representantes legais.
Entende-se que a proteção do bem de família pelo ordenamento corresponde a uma exceção à
regra de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, sendo tal bem excluído de
eventual cumprimento de obrigações.256
Vale salientar que, conforme Venosa,257 a finalidade precípua do instituto sob análise é a garantia
da moradia da família, de modo que, caso o bem seja destinado para outra finalidade, perde a
finalidade pretendida pelo ordenamento.
Tartuce258 enuncia que as disposições legais já nomeadas, se traduzem enquanto proteção do direito
à moradia, conforme o artigo 6° da Constituição da República, e da dignidade da pessoa humana,
sendo também reflexo do princípio da solidariedade, conforme o artigo 3°, I, da Carta Magna.
252 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 420.
253 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 146.
254 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família, ob. cit., p. 415.
255 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família, ob. cit., p. 420.
256 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 525.
257 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família, ob. cit., p. 423.
258 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 146.
74
Justamente no que tange a garantia dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana é que a
proteção do bem de família encontra resguardo na teoria do patrimônio mínimo, uma vez que
pretende preservar à família uma unidade patrimonial relevante para sua perpetuação.
Desta forma, pode-se entender a proteção do bem de família como importante exemplo concreto
da garantia do patrimônio mínimo em nosso ordenamento.
4. Abordagem jurisprudencial
A tese do patrimônio mínimo, além de encontrar respaldo nas codificações civis e nos princípios
constitucionais, por vezes já foi invocada como fundamento em decisões de diversos Tribunais.
Em atenção ao que dispõe o art. 548, do Código Civil, que prevê a nulidade de doação de todos os
bens, sem reserva do mínimo para a sobrevivência do doador, cabe citar o Acórdão exarado pelo
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em sede de Apelação, que decretou a nulidade da doação
do único bem do doador para instituição religiosa.259
Além de reconhecer a nulidade do negócio jurídico, a decisão reconhece o movimento de
repersonalização do Direito Civil, ao trazer para primeiro plano a proteção à dignidade e aos valores
pessoais por meio da tutela da dimensão existencial.
259 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 145.
75
interesses dos membros da comunidade, enquanto entre si se harmonizam e
coexistem; isto é, protege-os enquanto são signos de proteção e necessitados
dela”. Ainda sobre a eticidade como fundamento das normas civis merece ser
destacada a lição de Judith Martins e Gerson Branco: “(...) se em primeiro plano está
a pessoa humana valorada por si só, pelo exclusivo fato de ser pessoa, - isto é, a pessoa em sua
irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular e por isso mesmo titular
de atributos e de interesses não mensuráveis economicamente -, passa o Direito a construir
princípios e regras que visam tutelar a dimensão existencial, na qual, mais do que tudo, ressalta
a dimensão ética das normas jurídicas. Então o direito civil reassume a sua direção etimológica
e do direito dos indivíduos passa a ser considerado o direito dos civis, dos que portam em si os
valores da civilidade.” 5. Recurso conhecido e improvido. Sentença mantida com
súmula de julgamento servindo de acórdão, conforme o art. 46 da Lei n.
9.099/95. Determinando o encaminhamento de cópia dos autos ao Ministério
Público para análise de eventual ilícito penal. Condenado o recorrente ao
pagamento das custas e honorários advocatícios em 20% do valor da causa.
(TJDF. ACJ 2007.09.1.022199-3. Acórdão 403.461. Data de Julgamento:
19.01.2010. 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Rel.
Juíza Sandra Reves Vasques Tonussi. Data de Publicação: 02.02.2010) (destaque
nosso).
No mesmo sentido, a decisão proferida em sede de Apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerias se fundamenta no Estatuto do Patrimônio Mínimo para decidir controvérsia
acerca de doação de imóvel. Na decisão ressalta-se que, pela reserva de usufruto vitalício, está
preservado o mínimo ao donatário.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar situação em que houve penhora
de saldo de conta poupança, invocou a ideia de patrimônio mínimo como princípio norteador para
determinar a impenhorabilidade da quantia.
76
demanda indenizatória. Penhora que recaiu sobre saldo de conta poupança do
agravante. Valor inferior a quarenta salários mínimos. Impenhorabilidade.
Princípio do patrimônio mínimo. Liberação da constrição. Recurso provido. (TJSP –
AI 2095357-12.2019.8.26.0000 SP 2095357-12.2019.8.26.0000. Data de
Julgamento: 18.02.2014. 10ª Câmara de Direito Privado. Data de Publicação:
26.06.2019. Rel. J.B. Paula Lima) (destaque nosso).
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por sua vez, exercita a ponderação entre
satisfação do crédito e patrimônio mínimo do devedor. Apesar de definir de forma questionável os
direitos como fundamentais, a decisão faz, acertadamente, referência à necessidade de ponderação
diante da situação fática.
Passando à proteção conferida ao bem de família, cabe citar trecho da decisão monocrática do
Ministro Marco Aurélio Bellizze, em sede de Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça:
260FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 541-
542.
77
RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. CIVIL.
IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DE ALTO
VALOR. PROTEÇÃO CONTRA PENHORA. POSSIBILIDADE DE O
DEVEDOR RESIDIR EM LOCAL DIVERSO. ENTENDIMENTO EM
DESARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. RECURSO
PROVIDO. (...) Cinge-se a controvérsia em definir se o imóvel, único bem de
família, sendo de alto padrão, pode ou não ser objeto de constrição parcial, sem
que isso configure mácula à proteção conferida pela lei de impenhorabilidade.
(...) De fato, esta proteção, por exemplo, previsto no Código Civil, por meio da
instituição voluntária de bem de família, as cláusulas de inalienabilidade impostas em
testamentos e doações ou mesmo a impenhorabilidade processual do art. 649 e 650 do CPC,
surgiram por motivos de ordem moral e social, com o escopo de garantir condições dignas de
sobrevivência para as famílias dos indivíduos em dificuldade econômica, evitando que se chegasse
“ao extremo ético de condenar o devedor com sua família à fome, ao desabrigo e à miséria”.
(CZAJKOWSKI, Rainer. 4. ed. rev., ampl. Curitiba: Juará, 2001, p. 16). (...) Para
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “a natureza jurídica do bem de família é
de forma de qual seja assegurar a dignidade humana dos componentes do núcleo
afetação de bens a um destino especial, familiar” (v. 1. 11. ed. Salvador: Jus, 2013,
p. 545). (...) Acerca desta lei da impenhorabilidade, malgrado todas as críticas que recebeu
quando de sua promulgação, impossível não reconhecer o louvável papel por ela desempenhado
consistente na reconsideração dos valores morais objeto de proteção pelo ordenamento jurídico:
antes o patrimônio, agora, a pessoa humana. É que a legislação protetiva do bem do família
(...) se mostrou em sintonia com os princípios caros da Carta Política de 1988, tais como a
dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, o direito à moradia e a igualdade
substancial, tratando, em verdade, de dar efetividade a esses princípios. (...) Nessa linha de
raciocínio, destaque-se a lição do eminente Ministro e professor Luiz Edson
Fachin (...) que os institutos patrimoniais do direito privado não são imutáveis:
por vezes são atropelados pela sua incompatibilidade com os princípios
constitucionais, outras vezes são exaustorados ou integrados pela legislação
especial e comunitária; são sempre, porém, inclinados a adequar-se aos novos valores, na
passagem de uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores
existenciais. (...) O entendimento então externado encontra-se em desarmonia com
a jurisprudência desta Corte Superior. Com efeito, acerca da impenhorabilidade
de bem imóvel de luxo, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no
sentido de que “a Lei nº 8.009/90 não estabelece qualquer restrição à garantia do
imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê regimes jurídicos
diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer
distinção onde a lei não o fez”. (...) Diante do exposto, dou provimento ao
recurso especial para afastar a penhorabilidade do bem de família. (STJ. REsp
1719415 RO 2018/0012418-3. Data de Julgamento: 04.04.2018. Rel. Min. Marco
Aurélio Bellizze. Data de Publicação: 16.04.2018) (destaque nosso).
Na decisão em questão, verifica-se que, mesmo se tratando de imóvel de alto valor, o Ministro
manteve o bem sob o abrigo da impenhorabilidade, por se tratar de bem de família.
Entretanto, o tema não é pacífico na doutrina e jurisprudência, visto que em outras circunstâncias
a impenhorabilidade foi flexibilizada na medida em que a exceção não apresentasse risco à
78
manutenção da dignidade do indivíduo. Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald explicam:
Endossando a tese, Sérgio Cruz Arenhart assevera que “não havendo outros bens
penhoráveis, o impedimento de penhora de tais bens (imóveis de alto valor)
inviabilizaria a tutela do credor, em manifesta ofensa à garantia do amplo acesso
à Justiça”. Acrescente-se a isso que não haverá, na hipótese de penhora de imóvel
de elevado valor, afronta à garantia de proteção de patrimônio mínimo (e,
consequentemente, da dignidade da pessoa do devedor) por conta de seu valor
elevado.261
Feita a apresentação da divergência, destaca-se que o presente trabalho não se aterá ao exame das
hipóteses de exceção (ou não) do instituto da impenhorabilidade.
Interessa à análise a atenção aos fundamentos utilizados pelas correntes doutrinárias e
jurisprudenciais, que ao defenderem um ponto ou outro, evocam a tese do patrimônio mínimo, no
sentido de garantir o mínimo existencial nos moldes das orientações constitucionais. Portanto, é
apresentada a concretização da teoria do patrimônio mínimo com a consagração da efetiva
proteção àquilo que é necessário para viver dignamente.262
Chegando à hipótese de extensão da proteção do bem de família às propriedade rurais, cita-se,
ainda, decisão do Superior Tribunal de Justiça que descreve a necessidade de proteção da pequena
propriedade rural, garantida pela Constituição Federal como direito fundamental, sendo patrimônio
mínimo necessário à manutenção e sobrevivência da família que nesta reside.
261 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 593.
262 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, ob. cit., p. 591.
79
da lei, será explorada pelo ente familiar, sendo decorrência natural do que
normalmente se espera que aconteça no mundo real, inclusive, das regras de
experiência (NCPC, art. 375). 6. O próprio microssistema de direito agrário
(Estatuto da Terra, Lei 8.629/1993, entre outros diplomas) entrelaça os conceitos
de pequena propriedade, módulo rural e propriedade familiar, havendo uma
espécie de presunção de que o pequeno imóvel rural se destinará à exploração
direta pelo agricultor e sua família, haja vista que será voltado para garantir sua
subsistência. 7. Em razão da presunção juris tantum em favor do pequeno
proprietário rural, transfere-se ao exequente o encargo de demonstrar que não há
exploração familiar da terra, para afastar e hiperproteção da pequena propriedade
rural. 8. Recurso especial não provido. (STJ. REsp 1408152/PR. Data de
Julgamento: 01.12.2016. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Data de
Publicação: 02.02.2017) (destaque nosso).
Por fim, é trazido exemplo da decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
621.399/RS, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, que trata do bem de família como patrimônio
mínimo, mesmo quando pertencente à sociedade familiar:263
263 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 146-147.
80
7. Aplicação principiológica do direito infraconstitucional à luz dos valores eleitos
como superiores pela Constituição Federal que autoriza excluir da execução da
sociedade bem a ela pertencente mas que e servil a residência como único da
família, sendo a empresa multifamiliar. 8. Nessas hipóteses, pela causa petendi
eleita, os familiares são terceiros aptos a manusear os embargos de terceiro pelo
título que pretendem desvincular, o bem da execução movida pela pessoa
jurídica. 9. Recurso Especial provido. (STF, REsp 621.399/RS, 1ª Turma, Rel.
Min. Luiz Fux, j. 19.04.2005, DJU 20.02.2006, p. 207) (destaque nosso).
Portanto, como se verifica, o patrimônio mínimo é tese aceita e utilizada pelos Tribunais do país.
Estando, assim, em conformidade com a tendência dos sistemas jurídicos contemporâneos, em
que a valorização do mínimo vital é conceito emergente.264 Como destaca Luiz Edson Fachin: “se
a função do Direito é compreender a sociedade, regulando-se valorativamente, o jurídico não pode
permanecer indiferente ao social”.265
5. Esquema conceitual
Aplicação na Legislação Civil: Lei 8.009/90, art. 549 do CC; art. 833 e art. 834 do
CPC; art. 928, parágrafo único, do CC; art. 1.782 e art. 1.911, CC; art. 557 e art. 426,
CC
6. Referências Bibliográficas
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 1ªed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB.
v. 1. 10ª ed. Salvador: JusPodvm, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
264 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único, ob. cit., p. 144.
265 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, ob. cit., p. 48.
81
SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. In: Revista de Direito da Cidade. Rio de Janeiro, v. 08,
n. 4, p. 1667, 2016. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26034>. Acesso em: 23 de setembro de 2020.
SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER,
Carlos Nelson (Org.). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas. 2016.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
82
Res extra commercium
1. Definição.
As res extra commercium (bens fora do comércio) são os bens jurídicos indisponíveis à transferência
patrimonial entre as pessoas por conta de sua própria natureza (água corrente, luz solar), por
disposição legal (terras indígenas, bens públicos de uso comum) ou por ato de vontade humana
(bem imóvel residencial doado com cláusula de inalienabilidade). Constituem exceção à regra geral
de alienabilidade dos bens jurídicos, assim formulando a categoria dos bens inalienáveis. Nessa
linha, Francisco Amaral266 adverte que os bens comerciáveis (res in commercium) são suscetíveis de
alienação, já os bens incomerciáveis (res extra commercium) são os que não podem ser apropriados
nem alienados.
Em uma abordagem histórica, interessa informar que a expressão res extra commercium é proveniente
do Direito Romano e influenciou o legislador brasileiro na elaboração do art. 69 do Código Civil
de 1916, in verbis, “São coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação, e as legalmente
inalienáveis”. Entretanto, essa disposição normativa não foi repetida no Código Civil de 2002.
Sobre essa opção legislativa, Carlos Roberto Gonçalves explica que “o código civil de 1916
contemplava, em outros dois capítulos, as coisas fora do comércio (extra commercium) e o bem de
família. Moreira Alves, na Exposição de Motivos à Parte Geral do Anteprojeto do novo Código
Civil, esclarece que retirou dele os capítulos concernentes às que estão fora do comércio (capítulo
IV) e ao bem de família (capítulo V) por entender despiciendo o primeiro, e mal colocado o
segundo”267.
Tratando da questão terminológica, Flávio Tartuce268 expressa sua preferência ao salientar que “é
melhor utilizar a expressão bem inalienável do que a clássica coisa fora do comércio, de outrora –
res extra commercium do Direito Romano”.
O uso da expressão “comércio” refere-se à possibilidade de circulação e transferência de bens de
um patrimônio para outro mediante atos negociais – contratos de compra e venda, doação, etc. –,
portanto quando um bem está “fora do comércio”, ele não está apto a ser negociado269.
266 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 399.
267 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 286.
268 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 561.
269 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 1: parte geral. 16ª ed. São
83
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald270 suscitam discussão sobre ser o cadáver humano
um exemplo de bem fora do comércio, ponderando que:
2. Classificação.
A literatura jurídica classifica as espécies de res extra commercium da seguinte forma:
Tipo Conceito
Fora do comércio Englobam os bens de uso inexaurível (res communes omnium – coisas
pela sua própria comuns a todos), como o mar, o ar atmosférico e a luz solar. Não são
natureza passíveis de posse exclusive pelo homem, dada a sua inesgotabilidade e
ausência de ocupabilidade.
Legalmente fora do Corresponde àqueles bens que, embora susceptíveis de apropriação pela
comércio sua natureza, possuem sua comercialização vedada por lei para atender
a interesses econômicos, sociais ou individuais. A sua inalienabilidade é
relativa, pois admite-se a alienação desses bens por força de lei ou
decisão judicial. São exemplos de bens legalmente inalienáveis: os bens
públicos de uso comum (art. 100 do Código Civil); os bens pertencentes
às fundações (arts. 62 ao 69 do Código Civil); a herança de pessoa viva
(art. 426 do Código Civil); as terras ocupadas pelos índios (art. 231 da
Constituição Republicana), etc.
Fora do comércio São os bens que se tornam inalienáveis quando o titular, ao transmiti-lo
pela vontade humana a outrem, por ato inter vivos (por exemplo: doação) ou causa mortis (por
exemplo: legado), impõe uma cláusula de inalienabilidade, temporária
ou vitalícia, deixando-os restritos a futuro ato de disposição negocial
270FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2018, p. 585.
84
pelo beneficiário. A aplicação da cláusula de inalienabilidade imposta
aos bens por liberalidade implica também a impenhorabilidade e a
incomunicabilidade nos termos do art. 1911 do Código Civil.
3. Referências bibliográficas.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª
ed. Salvador: JusPodivm, 2018.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 1: parte geral.
16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva,
2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
85
Bem de família
1. Introdução
Como primeiro passo deste estudo é necessário analisar os princípios e valores que sustentam o
instituto dos bens de família, os quais nos guiarão para melhor entender sua aplicação prática.
A previsão e a proteção envolta sobre os bens de família são justificadas pela proteção da pessoa
natural e dos direitos fundamentais consagrada na Constituição Federal, de modo que os direitos
da personalidade passaram a ser observados em dispositivos legais que tratam de direitos
eminentemente patrimoniais271.
Desse modo, a proteção do bem de família está amparada na proteção do direito à moradia, bem
como nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, seguindo a tendência da
valorização da pessoa; constituindo, assim, “exceção ao princípio do direito das obrigações de que o patrimônio
do devedor responde por suas dívidas perante os credores”272.
2. O bem de família
O bem de família trata-se, assim, de bem afeto a destino especial: a residência da família. Desse
modo, em observância aos princípios anteriormente mencionados, enquanto mantiver o dito fim
será impenhorável por dívidas posteriores a sua constituição273.
Desse modo, é requisito básico para a configuração de bem de família tratar-se de imóvel
residencial, constituindo ainda residência efetiva da família.
A partir dessa definição, verifica-se a necessidade de análise pormenorizada acerca de quais bens
podem ser considerados como bens de família e, posteriormente, quem deve residir no bem para
que incida a mencionada proteção.
Sobre o primeiro questionamento deve se tratar de bem imóvel que constitui a residência efetiva
da família, de modo que salas comerciais, galpões industriais, dentre outros imóveis que não
residenciais não podem ser instituídos como bem de família, salvo se alterada sua destinação para
residencial274.
271TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 477-478.
272GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020,
v. 06, p. 590.
273 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. Ed. Atualização de Tânia Pereira da Silva. Rio de Janeiro:
86
Ainda nesse ponto, ressalta-se que o instituto ora estudado também pode garantir a
impenhorabilidade de bens móveis vinculados à moradia, mesmo se tratando de móveis quitados
de imóveis locados. Desse modo, apenas não são contemplados na proteção do bem de família
veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos, conforme rol taxativo previsto no artigo
2º da Lei nº. 8.009/90275. Quanto aos adornos suntuosos, a jurisprudência pátria não limitou a
impenhorabilidade apenas dos bens indispensáveis à moradia, abrangendo também aqueles que
usualmente integram a residência276.
Nesse contexto, o aparelho televisor, a geladeira e os eletrodomésticos não compreendem adornos
suntuosos, podendo ser englobados na impenhorabilidade do bem de família277278, recaindo, no
entanto, a impenhorabilidade apenas sobre uma unidade de cada bem279.
Quanto ao segundo ponto, o termo “família” abrange também as famílias monoparentais e uniões
estáveis. Afirma ainda o professor Flávio Tartuce a ampliação do conceito de bem de família para
proteger, na verdade, o bem de residência da pessoa natural280.
Nesse sentido entendeu o Superior Tribunal de Justiça em sede do julgamento do Recurso Especial
nº 182.223/SP, sob o fundamento de que a interpretação teleológica da lei que dispõe sobre a
impenhorabilidade do bem de família (Lei 8.009/90) não limita a norma ao resguardo da família,
tendo como escopo definitivo a proteção do direito à moradia, sendo este direito fundamental da
pessoa humana. Isto posto, a conclusão da Corte Superior foi de que não faria sentido proteger
apenas quem vive em grupo e abandonar o indivíduo281.
De acordo com o mencionado entendimento, foi editada a Súmula nº. 364 do STJ, abrangendo a
impenhorabilidade de bem de família aos imóveis de pessoa solteira, separada ou viúva.
QUADRO CONCLUSIVO
O que pode ser considerado bem de família? A quem se refere o termo “família” quanto ao
alcance da proteção do instituto?
Bens residenciais que constituam efetiva
Tanto às famílias constituídas a partir do
moradia;
casamento quanto por união estável;
Bens móveis essenciais vinculados à
Famílias monoparentais;
residência da família, mesmo que se trate de
imóvel locado. A qualquer pessoa natural, incluindo
solteiros, casados e viúvos, conforme Súmula
364 do STJ.
275GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 602.
276FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 13ª ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 460.
277 STJ, RESP 20.123-2/SP, Rel. Min. Franciulli Neto, j. 28.3.2000, DJU 2.5.2000.
278 STJ, Ac. 2a T., REsp. 20.938-9, Rel. Min. Peçanha Martins, j. 18.4.2000, DJU 26.6.2000.
279 STJ, REsp 109.351-RS, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 22-10-1998.
280 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, ob. cit, p. 479-480.
281STJ, REsp 182.223-SP, Corte Especial, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 06-02-2002.
87
3. As espécies de bem de família
Uma vez identificado genericamente o conceito de bem de família, passa-se ao aprofundamento
de cada uma de suas duas espécies existentes no Ordenamento Jurídico brasileiro: o bem de família
voluntário e o bem de família obrigatório.
282GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 592.
283.GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 593.
88
momento em que foi estabelecido. Tratando-se de testamento, o estabelecimento de bem de família
só ocorre com a morte do instituidor, devendo, antes, serem pagas todas as dívidas do espólio, uma
vez que anteriores à instituição do bem de família284.
Com relação à alienação do imóvel uma vez já instituído como bem de família voluntário, a partir
de interpretação sistemática das normas verifica-se ser indispensável a autorização judicial, com a
oitiva do Ministério Público bem como com o consentimento das partes e de seus representantes
legais. Destaca-se ainda a dificuldade de se obter a referida autorização, a qual só é concedida
mediante prova de necessidade de alienação e de que os menores, se houverem, continuariam
garantidos até a maioridade. A alienação é facilitada mediante mudança de domicílio e transferência
da instituição para o outro bem285.
Desse modo, via de regra, a instituição do bem de família voluntário somente é extinta com a morte
de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos (artigo 1.722 do Código Civil de 2002), podendo
também ser pedida sua extinção pelo cônjuge sobrevivente mediante a morte de seu
companheiro286.
Quanto ao último questionamento, destaca-se entendimento do professor Caio Mário de que se
trata de impenhorabilidade relativa em sentido (i) seletivo, por apenas eximir o bem de execução
de dívidas posteriores à constituição do bem de família, não se estendendo também sobre dívidas
provenientes dos impostos e das taxas condominiais do próprio imóvel, mesmo que posteriores; e
em sentido (ii) temporário, por apenas subsistir enquanto viverem os cônjuges e os filhos
completem a maioridade.287
QUADRO CONCLUSIVO
284 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 593.
285 VENOSA, Silvio de Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Código Civil Interpretado. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 3.414.
286 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 597.
287 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. ob. cit, p. 561-562.
89
3.2 O bem de família obrigatório
O bem de família obrigatório é regulado pela Lei nº 8.009/1990. Trata-se da espécie mais conhecida
e utilizada de bem de família. Isso porque, por ser instituída por norma de ordem pública em defesa
do núcleo familiar288, não depende de ato constitutivo tampouco de registro no Registro de
Imóveis. Nessa espécie não há também qualquer limitação quanto ao valor do bem imóvel
protegido.
Desse modo, o bem é protegido em face de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de
qualquer outra natureza, contraída por qualquer indivíduo pertencente da entidade familiar que o
habita. Em razão disso, a partir do princípio da indivisibilidade, qualquer um dos consortes poderá
excluir do ato de constrição a residência familiar por inteiro289.
Já tendo sido discutidas as questões de quem pode invocar a proteção do bem de família e de quais
bens podem ser englobados nessa proteção no tópico geral acima, analisa-se aqui a partir de quando
o imóvel está submetido à proteção do bem de família e as hipóteses sobre as quais não incide a
impenhorabilidade.
Quanto ao primeiro tópico, desde a fase de aquisição do imóvel – com o compromisso de compra
e venda ou o financiamento para fins de moradia – o instituto do bem de família já pode ser
invocado, de modo a não impedir que o devedor adquira o bem necessário ao direito à moradia de
sua entidade familiar290.
Ao passo que a impenhorabilidade dos bens de família advém da proteção da dignidade do devedor,
as hipóteses em que a impenhorabilidade é afastada remetem a contextos em que a natureza especial
da dívida sobreleva o propósito de assegurar a dignidade dos titulares do crédito291.
As mencionadas exceções estão dispostas no artigo 3º da Lei nº. 8.009/90, são elas:
288 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 598.
289 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 601.
290 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 599.
291 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, ob. cit, p. 470.
90
(vi) valores decorrentes da aquisição do imóvel com o produto de
crime ou para execução de sentença criminal condenatória a
ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
(vii) dívida de fiança concedida em contrato de locação.
É digno de nota que a desproteção do bem de família em face dos créditos destinados à construção
ou aquisição do próprio imóvel somente pode ser oposta pelos cessionários do crédito, pelo
financiador ou incorporador, sendo vedado a terceiros que não tiveram nenhuma participação no
negócio292.
Acerca da penhorabilidade do bem de família em face de dívida de pensão alimentícia, esta decorre
da necessidade familiar ser mais premente que a moradia, como afirma Gonçalves293. No entanto,
deve-se observar o direito à meação do cônjuge ou companheiro do devedor. Isto posto, uma vez
executada a penhora, esta somente recairá sobre a meação do devedor, preservando-se a do seu
cônjuge/companheiro.
Nesse sentido, tratando-se de indenização e ressarcimento oriundo de sentença criminal
condenatória em face de apenas um membro da entidade familiar, a penhora também recairá apenas
sobre sua parte ideal do bem de família. De modo diverso ocorre nos casos em que os valores
decorrentes da aquisição do imóvel são produtos de crime, quando a penhora recairá sobre a
totalidade do bem294.
QUADRO CONCLUSIVO
4. Referências bibliográficas
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 13ª
ed. São Paulo: Atlas, 2015.
292 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 603.
293 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família, ob. cit, p. 604.
294 GONÇALVES, Carlos. Impenhorabilidade do bem de família. 3. Ed. Porto Alegre: Síntese, 1994, p. 173
91
GONÇALVES, Carlos. Impenhorabilidade do bem de família. 3. Ed. Porto Alegre: Síntese, 1994.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família. 17. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2020, v. 06.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. Ed. Atualização de Tânia Pereira da
Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 05.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral . 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
VENOSA, Silvio de Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Código Civil Interpretado. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2019.
92
Bens imóveis
A classificação de bens entre móveis e imóveis vai além da simples característica de os bens se
deslocarem ou não como o próprio nome sugere. O ordenamento jurídico confere um tratamento
diferenciado a tais bens devido ao valor agregado e, até mesmo, por proteção da soberania
nacional295.
Essa divisão remonta a história antiga, de forma que aos bens imóveis sempre foi atribuído maior
valor, estabilidade e importância política, do que os bens móveis, embora estes guardem sua
importância, são residuais em relação aqueles296.
Dessa forma, a classificação possui especial relevância, para que se faça a distinção do tratamento
de tais bens. Frequentemente, o ordenamento jurídico aduz tratamentos distintos aos bens móveis
e imóveis em relação a questões tributárias, sucessórias, processuais e penais.
Essa classificação possui diversas aplicações práticas, como por exemplo estas297:
1. bens imóveis são adquiridos por escritura pública, bens móveis por mera tradição da coisa;
295 O art. 23 do Código de Processo Civil prevê a competência da justiça brasileira em detrimento de qualquer outra
das ações relativas a imóveis situados no Brasil, com a clara intenção de excluir a incidência de normas estrangeiras sob
tais bens: “Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I - conhecer de ações
relativas a imóveis situados no Brasil; II - em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento
particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade
estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional; III - em divórcio, separação judicial ou dissolução de união
estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha
domicílio fora do território nacional”.
296 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008, p. 352-353
297
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 13. ed. rev.,
ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 430
93
2. prazos de aquisição por usucapião dos bens imóveis são maiores para imóveis do que para
móveis;
3. os bens imóveis de incapazes não podem ser alienados nem agravados com ônus reais sem
autorização judicial, com participação do Ministério Público; e
4. a hipoteca é garantia real, destinada aos imóveis, enquanto o penhor é a garantia real do
móveis.
Os arts. 79 a 81 do Código Civil classificam os bens imóveis da seguinte forma:
1. imóveis por natureza;
2. imóveis por acessão física; e
3. imóveis por determinação legal.
Pelo art. 79 do Código Civil, “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou
artificialmente”.
Bens imóveis são aqueles insuscetíveis de movimento e remoção, pois se isto for feito haverá
alteração de sua substância e utilidade, podendo-lhe causar a destruição. O art. 79 toma como
referência o solo (constituído pelo subsolo e pela camada superficial acima deste), de maneira que
o bem imóvel por excelência é o solo, e também tudo o que a ele se incorpora, ou seja, adere,
constituindo as chamadas acessões. Assim, e em resumo, imóvel é o solo e suas acessões (aquilo que
adere a ele). Além disso, aquilo que acede (adere) a uma acessão também será considerado imóvel,
como ocorre, por exemplo, com a janela de um prédio.
Outrossim, cabe aqui destacar o art. 81, que se refere à remoção provisória de imóveis:
Pode-se ilustrar o inciso I com os seriados norte-americanos de reformas de casas em que, por
vezes, a casa é deslocada de um terreno para outro. Nesse contexto, mesmo que uma casa esteja
em cima do caminhão, sendo deslocada para outro lugar, não perde a característica de imóvel.
Por sua vez, o inciso II se refere aos materiais agregados aos bens imóveis que podem ser
desmembrados. Entretanto, deve haver a intenção de agregar novamente estes materiais a qualquer
imóvel. Para melhor ilustrar, pode-se pensar em uma porta que é removida de uma casa. Se o dono
apenas a pintará e colocar de volta no lugar, essa porta, em momento algum, perde a característica
de imóvel (por acessão). Entretanto, se o dono retira a porta do seu lugar com a intenção de não
reutilizá-la, ela se torna, imediatamente, um bem móvel.
94
recursos naturais agregados ao solo. Considera-se pertencente ao bem imóvel por natureza, tanto
sua superfície quanto o subsolo.
O art. 80 se refere às ficções jurídicas, como direitos reais sobre imóveis e direitos à sucessão.
Interessante destacar o inciso II, no que se refere ao conjunto de bens que integram a sucessão
aberta (herança). No caso, podem estar inseridos nesse conjunto (espólio) bens móveis que, por
estarem afetados pela sucessão, passarão a ter tratamento como imóveis.
Observe que a lei classifica como imóvel bens que não apresentam as características da
corporeidade e a impossibilidade de transporte ou remoção. O art. 80 enumera três categorias
desses bens:
1. Direitos reais sobre imóveis: todos os direitos reais enumerados no art. 1.225 poderão ser
constituídos sobre bens imóveis, à exceção do penhor, que recai exclusivamente sobre
coisas móveis (art. 1.431, caput). Alguns direitos reais, inclusive, apenas se constituem sobre
bens imóveis: superfície (art. 1.369), servidão (art. 1.378), habitação (art. 1.415), direito de
aquisição do promitente comprador (art. 1.417) e hipoteca (art. 1.473), bem como a
enfiteuse do CC/1916 (art. 678). De acordo com o inciso I, todo direito real constituído
sobre bem imóvel será tido, também, por bem imóvel (nesse caso, será um bem
95
incorpóreo). A partir disso se verifica o seguinte: a transferência destes direitos reais deve
ser feita pela transcrição no Registro Geral de Imóveis (art. 1.227) e o ato de constituição
e transferência desses direitos reais deve assumir a forma de escritura pública (art. 108);
2. As ações que asseguram os direitos reais: são os meios processuais disponibilizados ao titular de
um direito real para fins de tutela desse direito. Exemplos dessas ações reais são os
seguintes: usucapião e publiciana; reivindicatória e petitória; passagem forçada; nunciação
de obra nova ou embargos de obra nova; negatória e confessória; embargo de terceiro;
divisória; discriminatória; demolitória; e demarcatória. Sobre as coisas podem ainda incidir
outras duas categorias de ações, mas que não se subsumem a esta hipótese do I e, portanto,
não têm natureza real, quais sejam, as ações possessórias ou interditos possessórios, cuja
finalidade é a tutela da posse (reintegração e manutenção da posse e interdito proibitório),
e as ações reipersecutórias, que se destinam à entrega de coisa quando a tradição em uma
obrigação não foi cumprida (imissão na posse e ex empto); e
3. O direito à sucessão aberta: refere-se à saisineé ou droit saisine, previsto no art. 1.784. No
momento da morte de uma pessoa, imediatamente seus herdeiros (legítimos ou
testamentários) tornam-se proprietários dos bens do de cujus. Esses bens constituem a
chamada herança. Assim, a sucessão aberta é o direito sobre a herança que os herdeiros
adquirem tão logo morra o titular de um patrimônio. Esse direito à herança o inciso II
considera um bem imóvel. Em razão disso, aquele que desejar alienar esse direito deverá
fazê-lo por escritura pública, e para fins fiscais incidem sobre esses direitos o ITBI e o
ITCMD.
96
Alguns direitos reais apenas se constituem sobre bens imóveis: superfície (art. 1.369),
servidão (art. 1.378), habitação (art. 1.415), direito de aquisição do promitente comprador
(art. 1.417) e hipoteca (art. 1.473), bem como a enfiteuse (art. 678 do Código Civil de 1916);
O bem de família recai sobre imóveis, tanto o convencional (art. 1.712 do CC) quanto o
legal (art. 1º da Lei nº. 8.009/90);
Apresenta prazos geralmente mais extensos para o caso de usucapião: 15 ou 10 anos para
a extraordinária (art. 1.238), 10 ou 05 anos para a ordinária (art. 1.242), 05 anos para a
especial rural (art. 1.239), 05 anos para a especial urbana coletiva ou individual (arts. 9º e 10
da Lei nº. 10.257/2001 c/c art. 1.240) e 02 anos para a familiar (art. 1.240-A).
7. Referências bibliográficas
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB.
13. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. v. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019.
97
Bens móveis
Os bens móveis são definidos pelos arts. 82 a 84 do Código Civil. De forma geral, são bens que
podem se movimentar sem prejuízo de sua essência e valor econômico. Tal categoria pode ser
classificada em três espécies:
1. móveis por natureza;
2. móveis por determinação legal; e
3. móveis por antecipação.
Cabe destacar a situação excepcional dos navios e aeronaves, visto que, embora sejam móveis por
natureza, a legislação lhes atribui características de imóveis, como registro especial e hipoteca298.
Dentro desta espécie, estão inseridos os semoventes, que são bens que se movimentam por força
própria, como é o caso dos animais. Sendo assim, animais domésticos, de criação econômica e
silvestres, têm o tratamento dado pelo ordenamento jurídico como bens móveis, em decorrência
de sua natureza.
298 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. v. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 458.
98
Esses bens podem ser deslocados sem alteração de sua substância e utilidade (destinação
econômico-social), ou seja, continuam sendo usados para os fins a que se destinam quando são
removidos de um lugar para outro.
Podem ser de dois tipos, classificados a partir da forma como podem ser movimentados:
1. Suscetíveis de movimentos próprios: refere-se àqueles bens que podem se locomover pelas
próprias forças, como os animais e veículos automotores; e
2. Suscetíveis de remoção por força alheia: aqueles que necessitarão da ação humana ou animal para
serem movimentados, como eletrodomésticos e bicicleta.
O inciso I fala em energias com valor econômico, sejam elas encontradas na natureza ou
beneficiadas pelo homem. Ex.: gás natural, gametas de animais de criação e energia elétrica. Para
esses fins, considera-se energia a capacidade de produzir trabalho e transformar uma coisa.
Por sua vez, o inciso II trata do direito de fruição sobre estes bens, isto é, os direitos reais sobre
móveis. Equivale ao inciso I do art. 80 do Código Civil que se refere aos bens imóveis. Ex.: penhor
de uma joia. Refere-se à propriedade móvel, ao uso, ao usufruto, ao penhor e à propriedade
fiduciária, e a ações como depósito.
Já o inciso III atribui natureza móvel a direitos patrimoniais, como títulos de crédito, quotas sociais
e patentes. São os direitos de crédito, isto é, o valor que alguém tem para receber de outrem, e
ações como as de cobrança.
Embora a formulação normativa trate de materiais voltados à construção civil, a regra pode ser
aplicada aos demais bens que, ao serem separados dos bens imóveis, adquirem a característica da
mobilidade. Nesse sentido, uma pedra preciosa que, antes de ser extraída da terra era tratada como
99
bem imóvel por natureza, após o garimpo se torna bem móvel por antecipação. O mesmo se aplica
a uma maçã, que é bem imóvel enquanto pendente na árvore, e se torna móvel após a colheita.
Porém, os bens retirados dos imóveis de maneira provisória, com a intenção de rebeneficiamento
no bem imóvel, mantém a característica de imóvel.
5. Referências bibliográficas
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB.
13. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral. v. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019.
100
Bens considerados em si mesmos: fungíveis e infungíveis
1. Definição de fungibilidade.
No direito romano, definiam-se como fungíveis as coisas que eram passíveis de serem medidas,
pesadas ou contadas299. No Código Civil brasileiro, a definição de fungibilidade pode ser encontrada
em seu art. 85. Segundo o dispositivo: “São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros
da mesma espécie, qualidade e quantidade”. A partir da definição legal, é possível conceituar os
bens fungíveis como sendo:
299 SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 285.
300 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 301.
301 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 360.
302 BONNECASE, Julien. Elementos de derecho civil. Vol. XIII, Tomo II. Puebla: José M. Cajica, 1945, p. 628.
101
Las cosas fungibles son las dotadas de equivalencia, consideradas desde el punto
de vista de su valor y no dei de su individualidad. En cambio, las no fungibles
son aquellas cosas que se considerao en su individualidad y no en su valor.
Apesar da fungibilidade ser classificação própria dos bens móveis e a infungibilidade dos bens
imóveis, essa regra comporta exceções303.
303 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 360.
304 FIÚZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito civil: atualidades. Belo
Horizonte: Del Rey, 2008, p. 184.
305 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 301.
306 SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 285
307 MELO, Albertino Daniel de. Teoria Geral dos Bens-Um Ensaio Jurídico. In: Revista da faculdade de Direito –
31/07/2019.
102
PODER DA AUTORA. DEFERIMENTO LIMINAR QUE PREVALECE,
ANTE A PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. AGRAVO
IMPROVIDO. 1. As partes estabeleceram a promessa de compra e venda
mercantil de derivados de petróleo, concomitantemente com cessão
em comodato de equipamentos, inclusive tanques de combustíveis, que foram
instalados no solo do estabelecimento. 2. Cessada a contratação, pretende a
autora a devolução do valor correspondente aos tanques, sob o
fundamento de que inexiste verdadeiro comodato, mas mútuo, dado que
não se tratam de bens infungíveis (...).
Isto não quer dizer ser impossível, em absoluto, se fazer comodato de bens fungíveis, na
medida em que a figura doutrinariamente denominada comodato ad pompam vel ostentationem
compreende o comodato de bens fungíveis para fins de enfeite ou ornamentação309.
A fungibilidade é também um dos requisitos necessários para a compensação de dívidas,
ou seja, para que se extingua determinada obrigação entre duas pessoas que são credoras e
devedoras reciprocamente. Segundo o art. 369, são requisitos da compensação a liquidez,
o vencimento e a fungibilidade das dívidas.
Referências Bibliográficas.
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 8ª ed. São Paulo: Renovar, 2008.
BONNECASE, Julien. Elementos de derecho civil. Vol. XIII, Tomo II. Puebla: José M. Cajica, 1945.
FIÚZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito civil:
atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MELO, Albertino Daniel de. Teoria Geral dos Bens-Um Ensaio Jurídico. In: Revista da faculdade de
Direito – Universidade Federal de Minas Gerais, v. 28, n. 23-25, p. 110-131, 1982.
SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
309 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único.10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
103
Bens considerados em si mesmos: consumíveis e inconsumíveis
1. Definição.
Malgrado a fungibilidade e a consumibilidade sejam categorias relacionadas na classificação dos
bens, elas não se confundem. Conforme Francisco Amaral, enquanto a fungibilidade se refere a
uma relação de identidade entre coisas, a consumibilidade trata da relação de utilidade entre o titular
e a coisa310. O art. 86 do Código Civil define os bens consumíveis como: “bens móveis cujo uso
importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os
destinados à alienação”.
A partir do dispositivo legal, é possível identificar duas categorias de bens consumíveis: os bens
de consumo material (ou natural) e os bens de consumo jurídico (ou civil).
São bens de consumo material àqueles que que perecem imediatamente a partir da sua utilização.
Exemplo clássico é o alimento, que se exaure com o seu consumo. Por sua vez, bens de consumo
jurídico são aqueles que se destinam a alienação. Nesse caso, mesmo bens que não sejam
naturalmente consumíveis passam a ser juridicamente considerados consumíveis, por força de lei.
São bens inconsumíveis os que resistem à utilização repetida311. Isso não significa que essa classe
de bens não passa por um processo de deterioração. Todavia, ao contrário do que ocorre com os
bens consumíveis, os bens inconsumíveis não se exaurem no primeiro uso, mas apenas pelo uso
prolongado, destruindo-se paulatinamente.
Ressalte-se, para fins históricos, que os romanos da época pós-clássica criaram uma categoria
intermediária entre as categorias de bens consumíveis e bens inconsumíveis. O objetivo era
diferenciar os bens que se mostravam verdadeiramente inconsumíveis daqueles que destruíam
lentamente a partir de sua utilização312. Na atualidade, essa posição intermediária, para fins jurídicos,
corresponde tão-somente uma variante da classificação de bens não consumíveis, não existindo
como categoria autônoma313.
A classificação apresentada até aqui pode ser representada pelo seguinte esquema conceitual:
310 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 362.
311 MELO, Albertino Daniel de. Teoria Geral dos Bens-Um Ensaio Jurídico. In: Revista da faculdade de Direito –
Universidade Federal de Minas Gerais, v. 28, n. 23-25, 1982, p. 116.
312 MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 43
313 DUARTE, Nestor. In: PELUZO, Cézar. (Org.) Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 4ª ed. Barueri:
104
Bens de consumo
material
Consumíveis
Consumibilidade Bens de consumo
dos bens jurídico
Inconsumíveis
Os bens consumíveis são, em geral, também classificados como fungíveis. Todavia, a regra
comporta exceções. Para exemplificar, observe o trecho do julgado abaixo colacionado314:
(...) São objeto de depósito, portanto, os recipientes nos quais envasado o gás
comercializado pela agravada. Os bens fungíveis cuja restituição se pede são os
vasilhames de aço, os quais são inconsumíveis e sobre os quais se opera o dever
de custódia imposto ao depositário. De acordo com o art. 85 do Código Civil,
são fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie,
qualidade e quantidade. Segundo o art. 86 do mesmo diploma legal, são
consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria
substância, também considerados como tais os destinados à alienação. No caso
concreto, trata-se de vasilhames, bens fungíveis e inconsumíveis e, como tal,
compatíveis com o dever de custódia. Nada impede o contrato de depósito com
relação a eles, portanto (...).
Vale ressaltar que a classificação do bem segundo a consumibilidade não se restringe apenas a sua
natureza. Esta classificação pode também levar em consideração a destinação econômica da
coisa315. Tome por exemplo uma garrafa de vinho. Analisando sua natureza, este bem seria
classificado como consumível. Todavia, caso esta garrafa seja gravada com uma cláusula de
inalienabilidade, ela será considerada juridicamente inconsumível316.
Este exemplo demonstra que um bem pode ser considerado consumível e inconsumível ao mesmo
tempo, na medida em que cada classificação leva em conta critérios totalmente distintos317.
A classificação dos bens segundo a sua consumibilidade possui importantes reflexos práticos. Para
exemplificar, podemos citar:
314 STJ, AgRg no REsp 1254780, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. em 30/05/2018.
315 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 303.
316 PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil – Sistematizado. 11ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 180.
317 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único.10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
105
Nos negócios jurídicos que envolvem alienação da coisa, como no contrato de compra e
venda, o objeto do negócio deve ser juridicamente consumível. Sendo juridicamente
inconsumível, o bem é considerado inalienável e, nos termos do art. 166, II e IV do Código
Civil o negócio será nulo por ilicitude do objeto ou fraude à lei318.
O usufruto é direito real que recai, em regra, sobre bens inconsumíveis. Todavia, no art.
1392, § 1° o Código Civil demostra a possibilidade de, excepcionalmente, ocorrer usufruto
de bens consumíveis. Na literatura jurídica, essa modalidade é denominada usufruto
impróprio.
Referências Bibliográficas.
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 8ª ed. São Paulo: Renovar, 2008.
DUARTE, Nestor. In: PELUZO, Cézar. (Org.) Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 4ª
ed. Barueri: Manole, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
MELO, Albertino Daniel de. Teoria Geral dos Bens-Um Ensaio Jurídico. In: Revista da faculdade de
Direito – Universidade Federal de Minas Gerais, v. 28, n. 23-25, p. 110-131, 1982.
PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil – Sistematizado. 11ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
318 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único.10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
106
Bens considerados em si mesmos: divisíveis e indivisíveis
Dentre as classificações dos bens jurídicos, eles também podem ser classificados entre bens
divisíveis e bens indivisíveis. Ao definir os bens divisíveis, o Código Civil dispõe da seguinte forma:
Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição
considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.
Parte-se do princípio que todo bem possui substância, valor e utilidade. Logo, percebe-se que o
mencionado dispositivo estabeleceu três critérios cumulativos para se determinar quando os bens
são divisíveis:
a) quando não há alteração da substância do bem fracionado, sendo a substância do bem
compreendida como as qualidades que possuía quando fazia parte da coisa como um todo,
sua essência;
b) não deve haver diminuição considerável do seu valor econômico, de forma que as frações, se
unicamente consideradas e somadas umas com as outras, mantém o mesmo valor da coisa
fracionada;
c) não deve haver prejuízo do uso a que se destinam, critério que consiste na preservação do fim a
que se destina a coisa fracionada, em comparação a coisa como um todo.
Nesse sentido, nos ensinamentos de Francisco de Amaral, para os bens serem considerados
divisíveis “as frações devem ter as mesmas qualidades e características do todo a que pertenciam,
não podendo o fracionamento significar dano nem desvalorização”319.
Logo, em conceito diametralmente inverso, o bem é indivisível na ausência de um desses critérios.
É óbvio que a determinação do que é divisível e indivisível, muitas das vezes, vai além da concepção
física da coisa, prevalecendo a ideia que o homem possui sobre a coisa. Sobre o assunto Pontes de
Miranda assim concluiu:
319 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 444.
107
atende, ou se atende mais ao que é divisível quanto à ideia, ora quanto à
consistência física. Para Platão e os platônicos, dividir é dividir a ideia.320
A título de exemplo, o carro é um veículo utilizado para transporte de pessoas ou carga. Se o carro
é desmontado, suas peças em separado perderão suas características essenciais que as qualificavam
como um carro, além de ocorrer uma diminuição drástica no valor. Ainda, apesar das peças em
separado terem utilidade para outros fins, a utilidade para que se destinava o carro – locomoção –
não foi preservada. Logo, o carro é indivisível.
Em contrapartida, uma pedra de mármore, se fatiada em oito pedaços iguais, preservará suas
características que a definem como mármore, não haverá diminuição considerável do seu valor
econômico e o fim a que se destina continuará preservado (v.g., revestimentos de edificações,
ornamentação, etc). Logo, a pedra de mármore é divisível.
Sobre a mesma peça de mármore do exemplo acima, suponha-se que trata-se de um mármore único
e excepcional. Sua excepcionalidade está no tamanho da uniformidade dos desenhos e padrões da
pedra, que são muito mais raros e bonitos quando em peças com mais de 2m² de dimensão.
Portanto, caso ocorra o fracionamento do mármore em peças menores de 2m², ocorrerá uma
diminuição considerável de valor, apesar de estarem preservadas sua substância e utilidade. Neste
exemplo, a pedra de mármore com 2m² é indivisível.
Nesse contexto, é salutar repisar que o critério da diminuição considerável de valor, trazido
expressamente no Código Civil de 2002 não é a simples diminuição de valor da fração da coisa
unicamente considerada. Se assim fosse, toda partilha da coisa, acarretaria na diminuição
considerável de valor das suas partes. A diminuição considerável de valor se dá quando, as frações
somadas da coisa, não possuem o mesmo valor dela inteira. Por exemplo, o valor da fração da coisa
que foi dividida em cinco partes, deve corresponder a 1/5 do valor da coisa inteira.
Inclusive, não havia previsão expressa desse critério no Código Civil de 1916. O art. 52 definia os
bens divisíveis como os “que se podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um
todo perfeito”, enquanto o art. 53 definia os bens indivisíveis como os que “não se podem partir
sem alteração na sua substância”. Todavia a literatura jurídica da época defendia que dentro do
conceito de substância, residia também o sentido econômico321.
A comissão revisora do anteprojeto do Código Civil de 2002 aderindo a construção da literatura
jurídica, incluiu o critério econômico com a intenção de evitar prejuízo injusto aos interessados. O
exemplo utilizado para justificar a inclusão foi a divisão de um diamante de 50 quilates em 10
diamantes de 5 quilates, os quais somados não alcançam o valor da pedra preciosa como um todo. 322
Outrossim, a partir da análise do art. 88 do Código Civil, podemos extrair que além da
indivisibilidade material ou física tratada pelo dispositivo anterior, os bens divisíveis ainda podem
se tornar indivisíveis pela lei e pela vontade das partes:
320 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954,p.
39.
321 OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. Comentários ao novo Código Civil: arts. 79 a 137. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.
61.
322 OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. Comentários ao novo Código Civil: arts. 79 a 137, ob cit., p. 62.
108
Art. 88. Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei ou
por vontade das partes.
O mencionado dispositivo faz referência aos bens fisicamente divisíveis, sendo aqueles que
atendem o conceito do art. 87 do Código Civil. À vista disso, Carlos Roberto Gonçalves ensina
que os bens indivisíveis classificam-se em bens indivisíveis por natureza, por determinação legal ou por
vontade das partes323.
Enquanto a indivisibilidade por natureza, está relacionada com a impossibilidade de fracionamento
dos bens sem alteração de substância, diminuição considerável de valor e prejuízo do uso a que se
destinam, na indivisibilidade por determinação legal, “a lei expressamente impede o seu fracionamento,
como no caso das servidões prediais (CC, art. 1.386), da hipoteca (art. 1.421) e do direito dos
coerdeiros quanto à propriedade e posse da herança, até a partilha (art. 1.791) etc”324.
Também a título de exemplo, um imóvel em zona urbana composto por um lote de 1000m² pode
ser fracionado em diversos lotes de dimensões menores. Porém, por meio do Plano Diretor
Urbano, os municípios estabelecem uma fração mínima para que ocorra o parcelamento do solo,
visando o melhor aproveitamento socioeconômico da propriedade. De igual forma, ocorre com o
parcelamento de imóveis rurais, os quais são indivisíveis em dimensões inferiores ao módulo rural
estabelecido pelo município (art. 65 do Estatuto da Terra).
Por seu turno, a indivisibilidade por vontade das partes, “ocorre quando as partes pactuam a
indivisibilidade, embora a coisa seja, por natureza, divisível. É o exemplo das obrigações em
dinheiro, quando as partes, no contrato, estabelecem o pagamento em uma só parcela”325. O §1º
do art. 1.320 do Código Civil traz outra hipótese de indivisibilidade por vontade das partes, ao
prever a possibilidade dos condôminos estabelecerem a indivisibilidade do bem pelo prazo de 5
anos.
Outro exemplo, é a coleção de livros doados com o fim de constituição de uma biblioteca, o qual
o doador estabelece a indivisibilidade do conjunto de livros.
Portanto, a partir da classificação de indivisibilidade, percebe-se que a indivisibilidade pode se dar
em bens corpóreos (v.g., uma estátua) e até mesmo incorpóreos (v.g., hipoteca, obrigações de pagar
em dinheiro em uma só parcela).326
REFERÊNCIAS
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil 1: parte geral e LINDB.
13º ed. São Paulo: Atlas, 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
323 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 309.
324 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral., ob. cit., p. 309.
325 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil 1: parte geral e LINDB. 13º ed. São Paulo:
109
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral, 19ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003.
OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. Comentários ao novo Código Civil: arts. 79 a 137. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 61.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: tomo II. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1954
110
Bens considerados em si mesmos: singulares e coletivos
1. Definições e classificações.
Bem singular é a nomenclatura dada a um bem que considerado de per si representa uma unidade
autônoma, ou seja, uma coisa que individualmente considerada se distingue de outras.
A classificação dos bens singulares se dá da seguinte forma:
Tipo Conceito
Bem singular simples Quando suas partes são da mesma espécie e estão naturalmente ligadas
(coesão natural), como um animal ou uma árvore, formam um todo
homogêneo;
Bem singular Quando as suas partes estão ligadas por atividade humana (coesão
composto artificial), como um edifício, máquinas, relógio, casa, automóvel.
Os bens simples que mantém a sua identidade (podem ser separados do todo) ao formarem um
bem composto, chamam-se de partes integrantes, como as peças de uma máquina. Caso esses bens
percam sua identidade e não possam ser separados, chamam-se partes componentes, como o
cimento da parede de uma casa.
Quanto às possibilidades classificatórias, Carlos Roberto Gonçalves explica que uma “árvore pode
ser bem singular ou coletivo, conforme seja encarada individualmente ou agregada a outras,
formando um todo, uma universalidade de fato (uma floresta). Já uma caneta, por exemplo, só
pode ser bem singular, porque a reunião de várias delas não daria origem a um bem coletivo. Ainda
que reunidas, seriam consideradas de per si, independentemente das demais” 327.
Bem coletivo, por sua vez, é a união de vários bens singulares que considerados em conjunto
formam um todo (uma unidade) que passa a ter individualidade própria, distinguindo-se de seus
objetos componentes, como um rebanho (diferencia-se do animal em si) ou uma floresta
(diferencia-se das árvores).
327 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 302.
111
A classificação dos bens coletivos se dá da seguinte forma:
Tipo Conceito
Universalidades de fato Corresponde à união de bens singulares que pertencem à uma pessoa
(universitas facti) e tenham uma destinação unitária (art. 90, do Código Civil). Flávio
Tartuce alega que “Para exemplificar, basta lembrar algumas palavras
utilizadas no gênero coletivo, a saber: alcateia (lobos), manada
(elefantes), biblioteca (livros), pinacoteca (quadros), boiada (bois) e
assim sucessivamente”328.
Ao tratar a diferença entre os bens coletivos do bem composto, Francisco Amaral adverte que
“distingue-se a universidade da coisa composta porque esta resulta de uma união material, enquanto
aquela é uma união ideal, formando uma entidade complexa que transcende as coisas componentes,
com uma única denominação e um só regime jurídico, embora mantendo a individualidade prática
e jurídica de seus elementos”329.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald330 tratando a opção legislativa do Código Civil de
2002 ressaltam que:
328 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 463.
329 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 391.
330 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª ed. Salvador:
112
2. Referências bibliográficas.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª
ed. Salvador: JusPodivm, 2018.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva,
2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
113
Bens reciprocamente considerados: bens principais e acessórios:
produtos
1. Noções Gerais.
Bens são os objetos de relações jurídicas e, quando colocados em comparação com outros objetos,
podem ser classificados de diversas maneiras. Dentre essas classificações existe a que os divide
entre bens principais e acessórios.
Os principais são aqueles que podem ser considerados em si mesmo, independem de outro bem
para existir, uma vez que possuem existência própria. O art. 92 do Código Civil preleciona que
“Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência
supõe a do principal”.
Do próprio escopo do artigo é possível extrair a definição de bem acessório como sendo aquele
dependente do bem principal. Nas palavras de Francisco Amaral, essa relação de “acessoriedade”
existe entre bens e direitos. Em outras palavras: sem a existência do principal, seria impossível se
falar no bem acessório, bem como sem a existência de um direito principal, não se poderia falar no
acessório331.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald trazem como exemplos a árvore (acessório) que
depende do solo (principal), bem como os juros (acessórios) que dependem diretamente da
existência do crédito (principal). Percebe-se que em caso de deterioração do solo ou mesmo
inexistência de crédito, a figura da árvore e dos juros deixariam de existir de forma imediata332.
Porém, percebe-se que tal classificação não é estanque. Se a mesma árvore for colocada como
objeto de comparação com um fruto que se desprendeu dela, aquela será considerada um bem
principal e a fruta será considerada um bem acessório.
A regra geral diz que os bens acessórios seguem os principais. É a chamada regra da gravitação
jurídica (acessorium sequeatur principale).
No entendimento de Flávio Tartuce333:
331 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 8ª ed. São Paulo: Renovar, 2014, p. 367.
332 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
521.
333 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 316.
114
Tal regra estava prevista no art. 59 do CC/1916 e apesar de não reproduzida no
Código Civil de 2002 continua tendo aplicação direta, como princípio geral do
Direito Civil brasileiro, retirado de forma presumida da análise de vários
dispositivos da atual codificação. Com um desses comandos, pode ser citado o
art. 92 do Código, que em sua parte final enuncia que o bem acessório é “aquele
cuja existência supõe a do principal”.
Portanto, caso ocorra a venda de determinada gleba de terra, as árvores ali contidas estarão incluídas
no negócio, assim como na hipótese de uma cessão de crédito, os juros também acompanharão o
bem principal, por força da regolæ juris da gravitação jurídica.
Os bens principais, de existência autônoma, possuem suas partes integrantes, as quais não devem
ser confundidas com bens acessórios. Logo, as partes integrantes constituirão os bens principais.
Verbi gratia, quando uma casa é vendida, suas partes integrantes, como as telhas e pisos,
acompanharão a aludida venda. Em síntese: considerar-se-ão partes integrantes do bem principal
aquelas que estarão imprescindivelmente ligadas a ele.
2. Produtos.
Abrangido pela classificação de bem acessório tem-se os chamados produtos. Segundo a definição
de Francisco Amaral334 “Produtos são as utilidades que se retiram de uma coisa, diminuindo-lhe
quantidade”. Ou seja, ao retirar um produto de seu bem principal, a quantidade disponível desse
será reduzida e, ao menos em curto/médio prazo, não será reposta. Não há periodicidade e,
portanto o bem principal estará sempre sendo diminuído com a retirada dos produtos.
A progressiva retirada dos produtos pode levar até mesmo ao esgotamento do bem que garante
sua existência. Como exemplo, pode-se citar blocos de mármore que são retirados de uma pedreira.
Note-se que a retirada progressiva desses produtos (mármore) determinará, inevitavelmente, o
esgotamento do bem principal (pedreira).
Maria Helena Diniz assevera que os produtos são utilidades que se podem retirar da coisa, alterando
sua substância, com diminuição da quantidade até o esgotamento335.
334
AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução, ob. cit., p. 359.
335DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.
396.
115
Naturalmente, os produtos podem constituir objetos de relações jurídicas. Não haveria razão para
se impedir que isso acontecesse. Por mais evidente que possa soar, aquele que retirou ou mesmo
aquele que ainda não retirou um bloco de mármore de sua pedreira poderá realizar sua venda, como
consta no art. 95 do Código Civil, in verbis: “Apesar de ainda não separados do bem principal, os
frutos e produtos podem ser objeto de negócio jurídico”.
3. Exemplo.
Um caso interessante que justifica a distinção a ser feita, principalmente entre produtos e frutos, é
o do art. 1394 do Código Civil. Esse dispositivo legal garante que “o usufrutuário tem direito à
posse, uso, administração e percepção dos frutos”. Denota-se, portanto que o legislador não
abarcou os produtos como espécie do direito do usufrutuário.
Logo, suponha-se que uma pessoa é dona de uma grande fazenda. Esse local possui uma mina de
ouro, além de uma grande plantação de soja. Cansado de administrar a fazenda, esse sujeito decide
conceder o usufruto desse bem a outrem. O chamado usufrutuário terá direito apenas aos frutos
dessa fazenda e não aos produtos e, por isso, não poderá se beneficiar da extração de ouro do local,
mas tão somente da plantação de soja.
4. Referências Bibliográficas
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 8ª ed. São Paulo: Renovar, 2014.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 33ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil parte geral e LINDB.
14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 4ª ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
116
Bens reciprocamente considerados: bens principais e acessórios:
frutos
1. Noções Gerais.
Assim como os produtos, os frutos são espécie do gênero bens acessórios. Porém, a maior
diferença entre eles reside no fato de que os frutos são renováveis e, portanto, produzidos com
periodicidade perceptível pelo bem principal.
Na visão de Orlando Gomes, as principais características atinentes aos frutos são: peridiodicidade,
inalterabilidade da substância e separabilidade da coisa principal336.
A periodicidade, no entendimento de Francisco Amaral indica que os frutos nascem e renascem,
renovando-se de tempos em tempos. A inalterabilidade da substância da coisa principal refere-se
possibilidade de reprodução sem que o bem principal perca suas características, não sendo
diminuído ou extinto. Já a separabilidade indica que o bem acessório seja destacado do principal
sem que este seja destruído337.
A retirada dos frutos não constitui diminuição do bem principal, não há redução do bem que o
gerou. Ademais, bem como os produtos, de acordo com o art. 95 do Código Civil, os frutos podem
ser objeto de relações jurídicas de maneira autônoma. Portanto, é evidente que um produtor rural
pode vender os frutos de sua colheita.
336 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 232.
337 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 368 e ss.
117
3. Civis: representam o rendimento produzido pela coisa338. Verbi gratia, os juros, aluguéis e
dividendos de ações que decorrem da própria coisa em si por utilização de outrem que não
o proprietário.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald339 entendem que os frutos naturais e industriais são
adquiridos com a simples separação da coisa (salvo na hipótese de colheita antecipatória, quando
o possuidor deverá indenizar o proprietário por ter colhido antecipadamente fruto que ainda não
estava no tempo de ser separado), enquanto os frutos civis são colhidos no dia a dia com seu
vencimento.
Por outro lado, em relação ao seu estado, os frutos são assim divididos340:
1. Pendentes: aqueles que ainda estão unidos ao bem principal. Como os frutos que ainda
não se desprenderam ou foram colhidos.
2. Percebidos ou colhidos: aqueles que já foram separados do principal. Dentre eles, tem-
se os frutos retirados do bem principal pelo produtor.
3. Estantes: já foram separados do principal e estão armazenados, estocados. Por exemplo,
a plantação já retirada do solo e armazenada para futura venda ou mesmo os frutos retirados
e colocados em estoque.
4. Percipiendos: já deveriam ter sido percebidos mas não o foram. Como os frutos já
maduros, mas que ainda não foram colhidos ou a colheita que já deveria ter sido feita.
5. Consumidos: não existem mais, uma vez já tendo sido utilizados. Quando, os bens foram
colhidos, armazenados e já vendidos para consumo, como acontece com a colheita de
maçãs já vendidas.
A fim de representar a diferença entre produtos e frutos, chega-se à seguinte representação:
Produtos Frutos
Altera a quantidade do bem principal quando São produzidos pelo bem principal com
retirados periodicidade
Podem ser objeto de negócio jurídico Podem ser objeto de negócio jurídico
autônomo (art. 95, CC) autônomo (art. 95, CC)
338 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 307.
339 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p.
521.
340 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020 p. 317.
118
O Código Civil, nos seus arts. 95 e 96 traz como espécie de bens acessórios os produtos, os frutos
e as benfeitorias. Além desses, considera-se a pertença uma espécie de bem acessório destinada ao
serviço e ao aformoseamento de outros bens (art. 94, CC). Porém, fugindo da regra geral da
gravitação jurídica, as pertenças, normalmente, não seguem o bem principal.
A representação esquemática seguinte, por fins didáticos, não tratou das pertenças (também
considerados bens acessórios), uma vez que essas possuem um regime jurídico específico que será
tratado no capítulo destinado especificamente a elas.
3. Representação esquemática.
4. Referências Bibliográficas
AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. 8ª ed. São Paulo: Renovar, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 14ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva,
2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
119
Bens reciprocamente considerados: principais e acessórios:
pertenças
1. Definição.
As pertenças são coisas acessórias que servem economicamente à uma coisa principal de modo
duradouro, aperfeiçoando seu uso, prestando-lhe serviço ou ornamentando-o, conforme tratado
no art. 93 do Código Civil de 2002. São bens que ao serem analisados perante outros – bens
reciprocamente considerados, principais e acessórios – indicam uma relação de subordinação
jurídica ao vincularem-se aos propósitos e finalidades de outros bens, destinando-se a servir outro
bem principal, por vontade ou trabalho intelectual do proprietário.341
Maria Helena Diniz atribui às pertenças a característica de coisa anexa, pois “a pertença, móvel ou
imóvel, apesar de manter sua independência individual como coisa, ajuda, ou serve, a coisa principal,
entrando de algum modo no lugar que esta ocupa no espaço geográfico-econômico. Como a
relação de pertinencialidade advém de um negócio jurídico, que sujeita uma coisa a serviço de outra,
ela só se estabelece se tal coisa, economicamente, se anexar à outra”342.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ressaltam que são caracteres da pertença “um
vínculo, material ou ideal, mas sempre intencional, estabelecido por quem faz o uso da coisa e o
fim em virtude do qual a põe a serviço da coisa principal; um destino não transitório da coisa
principal; uma destinação de fato e concreta da pertença colocada a serviço do bem principal”343.
Ocorre que, mesmo em estado de subordinação, as pertenças diferenciam-se dos demais bens
acessórios (frutos, produtos e benfeitorias) por manterem sua individualidade e autonomia quando
comparados com os bens principais. Essa situação faz com que os negócios jurídicos dos bens
principais não incluam automaticamente as pertenças pertinentes, conforme o art. 94 do Codex de
2002, in verbis, “Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as
pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do
caso”.
Por essa razão, eventual contrato de compra e venda de uma propriedade rural agrícola (bem
principal) não abrange automaticamente a transferência de propriedade do maquinário (pertença)
utilizado na produção de agricultura ali realizada. Da mesma forma, a alienação sem cláusulas
341 TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 467.
342 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp.
391.
343 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 1: parte geral. 16ª ed. São
120
especiais de um imóvel residencial (bem principal) não abrange o seu mobiliário (pertença) ou
aparelhos de ar condicionado (pertença). Ou ainda a simples aquisição de um computador de mesa
(bem principal) não gera a expectativa de acompanhar equipamentos de impressão (pertença). A
legislação civil torna obrigatória a previsão de disposições contratuais para que as pertenças
acompanhem os bens principais em suas negociações, justamente por manterem sua autonomia e
individualidade.
Ao classificar as diversas espécies de pertenças, Francisco Amaral344 ensina que:
O atual código civil incluiu, no rol dos bens acessórios, as pertenças, ou seja, os
bens móveis que, não constituindo partes integrantes (como o são os frutos,
produtos e benfeitorias), estão afetados por forma duradoura ao serviço ou
ornamentação de outro, como os tratores destinados a uma melhor exploração
de propriedade agrícola e os objetos de decoração de uma residência, por
exemplo. [...] a regra "o acessório segue o principal" aplica-se somente às partes
integrantes, já que não é aplicável às pertenças. Na prática, já se tem verificado
que, mesmo sem disposição em contrário, as pertenças, como o mobiliário, por
exemplo, não acompanham o imóvel alienado ou desapropriado.
Por outro lado, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald346 entendem que o Código Civil de
2002 separa as pertenças da categoria dos bens acessórios:
Uma inovação trazida pelo Codex é a adoção, em seu art. 93, do conceito de
pertenças. A partir da intelecção legal, as pertenças, que não se confundem com os
acessórios, são os bens que, não constituindo partes integrantes, destinam-se, de
modo duradouro, ao uso, ao serviço, ou ao aformoseamento de outro. [...]
344 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 397.
345 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 332.
346 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª ed. Salvador:
121
Outrossim, é de se explicitar que as pertenças não constituem bens acessórios,
não seguindo a regra da gravitação jurídica. Por isso, ao ser adquirido um
apartamento, não se presume incluído no preço o aparelho de ar condicionado.
Tampouco a aquisição de um automóvel faz presumir que o adquirente tem
direito ao aparelho de som.
1. Ainda que se aplique aos bens acessórios a máxima de direito, segundo a qual
“o acessório segue o principal”, o Código Civil conferiu tratamento distinto e
específico às pertenças, as quais, embora tidas como bens acessórios, pois,
destinadas, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de
um bem principal, sem dele fazer parte integrante, não seguem a sorte deste, salvo
se houver expressa manifestação de vontade nesse sentido, se a lei assim dispuser
ou se, a partir das circunstâncias do caso, tal solução for a indicada.
2. O equipamento de monitoramento acoplado ao caminhão consubstancia uma
pertença, a qual atende, de modo duradouro, à finalidade econômico-social do
referido veículo, destinando-se a promover a sua localização e, assim, reduzir os
riscos de perecimento produzidos por eventuais furtos e roubos, a que,
comumente, estão sujeitos os veículos utilizados para o transporte de
mercadorias, caso dos autos. Trata-se, indiscutivelmente, de "coisa ajudante" que
atende ao uso do bem principal. Enquanto concebido como pertença, a
destinação fática do equipamento de monitoramento em servir o caminhão não
lhe suprime a individualidade e autonomia – o que permite, facilmente, a sua
retirada –, tampouco exaure os direitos sobre ela incidentes, como o direito de
propriedade, outros direitos reais ou o de posse.
2.1 O inadimplemento do contrato de empréstimo para aquisição de caminhão
dado em garantia, a despeito de importar na consolidação da propriedade do
mencionado veículo nas mãos do credor fiduciante, não conduz ao perdimento
da pertença em favor deste. O equipamento de monitoramento,
independentemente do destino do caminhão, permanece com a propriedade de
seu titular, o devedor fiduciário, ou em sua posse, a depender do título que
ostente, salvo se houver expressa manifestação de vontade nesse sentido, se a lei
assim dispuser ou se, a partir das circunstâncias do caso, tal solução for a indicada,
exceções de que, no caso dos autos, não se cogita.
2.2 O contrato de financiamento de veículo, garantido por alienação fiduciária,
ao descrever o veículo, objeto da avença, não faz nenhuma referência à existência
do aludido equipamento e, por consectário, não poderia tecer consideração
122
alguma quanto ao seu destino. Por sua vez, o auto de busca e apreensão, ao
descrever o veículo, aponta a existência do equipamento de monitoramento, o
que, considerada a circunstância anterior, é suficiente para se chegar a
compreensão de que foi o devedor fiduciário o responsável por sua colocação no
caminhão por ele financiado.
3. Recurso especial provido.
(STJ, REsp nº. 1667.227/RS, 3ª Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze,
julgado em 26 de junho de 2018, publicado em 29 de junho de 2018)
3. Referências bibliográficas.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil. 29ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 16ª
ed. Salvador: JusPodivm, 2018.
123
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 1: parte geral.
16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva,
2017.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral, v. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
124
O acessório que não segue o principal
O art. 94 do Código Civil cria a presunção de que as pertenças estão excluídas dos negócios
jurídicos que alienam a coisa principal caso haja silêncio das partes quanto a elas. Vide in verbis:
Art. 94. Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não
abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação
de vontade, ou das circunstâncias do caso.
Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi347, fazendo um apanhado histórico das pertenças desde suas
origens no Direito Romano, chega a duas conclusões:
1. bens acessórios; e
2. exceções ao princípio da acessoriedade, pelo qual acessorium sequitur principale.
O art. 94 confirma essa situação excepcional, quando estabelece que, no silêncio do negócio ou da
lei, as pertenças não acompanharão a coisa principal.
Por exemplo: no contrato de compra e venda de uma propriedade rural é necessário que conste
que os animais também integram o negócio, pois do contrário o comprador receberá a fazenda
sem essas coisas.
A exceção é salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias
do caso, podendo-se citar, neste sentido, os seguintes exemplos:
Pertenças que acompanham o bem principal por força de lei: no caso do usufruto legal dos
arts. 1.689 a 1.693, no qual os pais têm a administração e usufruto dos bens dos filhos
menores;
347
MARCHI. Eduardo Cesar Silveira. Das pertenças no âmbito do regime dos bens principais e acessórios no
CC/2002. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 52. Rio de Janeiro: Padma, out./dez. 2012, pp. 45-59
125
Pertenças que acompanham o bem principal em decorrência da manifestação de vontade:
quando ambas as partes do negócio convencionam expressamente que as pertenças
acompanharão a coisa principal, como na venda de fazenda com porteiras fechadas ou de
uma casa mobiliada; e
Pertenças que acompanham o bem principal em razão das circunstâncias do caso: quando
a lei e o contrato nada mencionam sobre o destino das pertenças, mas que sua manutenção
junto ao bem principal é inerente ao negócio praticado, como ocorre com a piscina na
venda de uma casa, das máquinas na incorporação de uma fábrica a outra.
126
Bens reciprocamente considerados: bens principais e acessórios:
benfeitorias
Por conceito, as benfeitorias são bens acessórios, que consistem em obras com a finalidade de
conservação, melhoramento ou embelezamento do bem principal, cujo valor se avalia pelos
melhoramentos que dá à coisa. Destaca-se, contudo, que para ser caracterizado como benfeitoria
o acréscimo deve ser feito por intervenção do proprietário, possuidor ou detentor. Caso contrário,
não se classifica como tal, conforme o disposto na legislação elencada acima. Ademais, não é
possível considerar como benfeitoria as pinturas em uma tela, esculturas em relação a uma matéria
prima, escrituras ou trabalhos gráficos (e.g.), conforme o art. 1.270, §2º do CC/02, visto que pelo
valor do bem acessório este passa a constituir o bem principal.348
Passa-se então a compreensão da classificação das benfeitorias349:
348AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, pp. 394-396.
349Quadro montado com base em: TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Lei de Introdução e Parte Geral. v. 1. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2011, p. 289.
127
Benfeitoria voluptuária Benfeitoria útil Benfeitoria necessária
Compreendida então a classificação das benfeitorias é necessário entender como fica sua situação
do possuidor quando ele realizar as benfeitorias, observando as eventuais indenizações. É o que se
passa a estudar.
350GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. v. 5. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p.
211.
128
Art. 1.221. As benfeitorias compensam-se com os danos, e só obrigam ao
ressarcimento se ao tempo da evicção ainda existirem.
Art. 1.222. O reivindicante, obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de
má-fé, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo; ao possuidor
de boa-fé indenizará pelo valor atual.
Dos artigos elencados diversos são os conceitos de aprofundamento relevante para então
compreender claramente como operam as indenizações por benfeitorias: o conceito de possuidor
e proprietário e as distinções dos efeitos em relação ao possuidor de boa-fé e de má-fé.
Primeiro é necessário distinguir proprietário do possuidor e, neste último o que qualifica como de
boa-fé e de má-fé.
O proprietário é o efetivo dono da coisa. Detém o direito real de propriedade, que consiste em
uma relação jurídica que o permite a dispor amplamente da coisa, retirando dela todas as suas
utilidades, com as prerrogativas de da coisa usar, gozar, dispor e reaver (art. 1.228, CC/02).351
Justamente nas possibilidades de dispor da coisa ou na eventualidade de perdê-la surge o possuidor
não proprietário. Destaca-se que a teoria da posse adotada no direito civil brasileiro foi a objetiva
de Ihering (conforme arts. 1.196, 1.223 e 1.224 do CC/02), salvo para a posse ad usucapionem352 que
não é objeto de estudo deste capítulo, portanto não há de se aprofundar nisso. Esta posse na teoria
objetiva reconhece a autonomia da posse em relação à propriedade, permitindo a existência deste
possuidor não proprietário desde que ele tenha o corpus (bem), avaliado como visibilidade e
aparência de dono, agindo com os direitos previstos no art. 1.196 do CC/02, e a affectio tenendi que
seria a intenção de agir como proprietário.353 Com estes critérios estaria qualificado então o
possuidor. Passa a ser necessário entender a distinção entre o possuidor de boa-fé e o de má-fé.
O possuidor de boa-fé encontra-se descrito no Código Civil no art. 1.201 com complementação
no art. 1.202:
351 HERKENHOFF, Henrique Geaquinto. SILVESTRE, Gilberto Fachetti. LIMA NETO, Francisco Vieira. Primeiras
Linhas de Direitos das Coisas. Vitória: Edição dos Autores, 2020, p. 21.
352 DE MELO, Marco Aurélio Bezerra. PORTO, José Roberto Mello. Posse e Usucapião. Direito Material e Direito
temas do novo CPC. Tutela jurisdicional dos direitos reais e da posse. PIAU, Layanna. MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Salvador:
JusPodivm, 2020, pp. 270-272.
129
Portanto, é de boa-fé o possuidor que ignora (desconhece) os vícios da coisa ou tem justo título
para tê-la.
O possuidor de má-fé, por lógica, seria o que conhece dos vícios da coisa. Para além disso, caso
haja culpa, negligência ou falta de diligência do possuidor este pode ser desqualificado como de
boa-fé pois, ainda que desconheça, em razão destes elementos, teria condições de saber dos vícios
e, por isso, estaria enquadrado como possuidor de má-fé.354
Estabelecidos então estes conceitos, antes de um aprofundamento em demais questões acerca das
indenizações, é necessária uma esquematização dos artigos para visualização dos direitos dos
possuidores de boa-fé e de má-fé em relação às benfeitorias realizadas (arts. 1.219 e 1.220, CC/02):
Dos destaques necessários à tabela primeiro vale falar do possuidor de má-fé, que apenas tem o
direito de indenização pelas benfeitorias necessárias. Esta indenização se dará por um
ressarcimento, medido pelo valor de custo das benfeitorias ou pelo valor atual que agregou ao bem,
à escolha do indenizante (proprietário reivindicante do bem), conforme o art. 1.222 do CC/02.
Distingue-se da forma que se faz a indenização ao possuidor de boa-fé, que se fará necessariamente
pelo atual valor, conforme o citado dispositivo.
Os demais óbices nas indenizações ao possuidor de má-fé, que não vê possibilidades nas úteis e
voluptuárias, se dá em razão da natureza de sua posse. O possuidor de má-fé, sabendo que sua
posse era ilícita, ao realizar obras com esta consciência, não poderá se beneficiar de atos que à coisa
agregou apenas utilidade ou luxo/comodidade (atos desnecessários considerando a natureza da
posse), mas tão somente pode se ver ressarcido dos custos que teve em relação à manutenção da
354 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. ob cit, pp. 94-95.
130
coisa (benfeitorias necessárias), ou seja, ao que foi obrigado a fazer para que a coisa não perecesse.
Justifica-se esta lógica no sistema jurídico pela vedação ao enriquecimento sem causa (regrado nos
arts. 884-886 do CC/02).355
Além do direito de indenização, cabe ao possuidor de boa-fé, às benfeitorias úteis e necessárias, o
direito de retenção. A retenção é uma modalidade de defesa processual, que pode ser exercida pelo
possuidor das seguintes formas356-357:
i) na via de embargos de retenção por benfeitorias na fase executória (art. 917, IV do Código de
Processo Civil de 2015 - CPC/15);
ii) ou na fase de conhecimento do processo em contestação ou na primeira oportunidade de
manifestação caso posterior à contestação por via de petição simples (arts. 498 e 538 do CPC/15)
Esta modalidade de defesa concede ao possuidor o direito de “continuar a deter a coisa alheia,
mantendo-a em seu poder até ser indenizado pelo crédito, que se origina, via de regra, das
benfeitorias”358.
É o chamado ius retentionis do possuidor, sendo instituto correlacionado à equidade. Para este ser
exercido, alguns requisitos precisam ser consubstanciados: “a) detenção legítima da coisa que se
tenha obrigação de restituir; b) crédito do retentor, exigível; c) relação de conexidade; e d)
inexistência de exclusão convencional ou legal do seu exercício.”359.
Finalizando então nas benfeitorias voluptuárias, percebe-se um elemento distinto: o levantamento
(jus tollendi). Este consiste no direito de ficar com as benfeitorias voluptuárias, levando-as consigo
depois da perda da posse, desde que este levantamento não cause danos ao bem principal, caso o
reivindicante não pague a justa indenização. Fica então a cargo do reivindicante ficar com as
benfeitorias voluptuárias que puderem ser levantadas, pagando a indenização, e resta um direito de
levantá-las ao possuidor caso este pagamento não ocorra.360
Passa-se então para a etapa de fixação do tema e observação sobre casos específicos.
355 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. ob cit, p. 211.
356 ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 498-499.
357 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 4. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, pp. 773-
775.
358 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. ob cit, p. 212.
359 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. ob cit, pp. 213-214.
360 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. ob cit, p. 211.
131
A) o reparo do vazamento na cozinha.
B) a formação de novo cômodo, destinado a servir de despensa, pelo levantamento de
divisória na área de serviço.
C) a ampliação do número de tomadas.
D) a troca do portão manual da garagem por um eletrônico.
A questão, de plano, já indica que somente às benfeitorias necessárias caberia o ressarcimento.
Porém, é válido, antes de adentrar na análise da classificação das benfeitorias, compreender a razão
de só as benfeitorias necessárias serem indenizáveis neste caso, dado que Ricardo era um possuidor
de boa-fé, tendo recebido por empréstimo o imóvel de Cláudia.
Para cuidar da questão precisa-se analisar como os julgados tratam o tema. Sobre isso, avaliou o
STJ:
Portanto, pela regra jurídica da natureza do contrato há esta vedação, que foi observada e
solucionada pelo STJ. Portanto, é necessário, para verificar os direitos do possuidor de boa-fé, além
a regra geral do art. 1.219 do CC/02, observação de vedações legais e contratuais a respeito. In casu,
a vedação foi confirmada pelo STJ por interpretação da função do contrato de comodato que não
se alinha com a regra de indenização do art. 1.219 do CC/02, operando verdadeiramente como
obstáculo indenizatório às benfeitorias úteis e necessárias ao possuidor de boa-fé comodatário.
Aproveitando a oportunidade, destaca-se outro caso comum em que o possuidor de boa-fé não
tem os direitos de indenização por benfeitorias nos moldes do art. 1.219 do CC/02, que é o caso
de locação, conforme os arts. 35 e 36 da Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91):
132
bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o
exercício do direito de retenção.
Art. 36. As benfeitorias voluptuárias não serão indenizáveis, podendo ser
levantadas pelo locatário, finda a locação, desde que sua retirada não afete a
estrutura e a substância do imóvel.
Vê-se então outra exceção à regra do art. 1.219 do CC/02 que cai na lógica das disposições
contratuais ou legais que modificam a situação de indenização do possuidor de boa-fé.
Passados exemplos comuns de casos específicos, retorna-se à questão. Relembrando, é necessário
apenas identificar o que é uma benfeitoria necessária dentre as quatro assertivas elencadas. Ressalta-
se, ainda, a regra de que as benfeitorias devem ser analisadas ante o bem principal, visto que, a
variar desta referência, podem ter outra classificação.
A letra “A” trata de reparos que, por regra geral, já se encaixa no conceito de manutenção para não
deterioração da coisa e, portanto, já seria a resposta adequada de benfeitoria necessária.
A letra “B” por outro lado, aponta a criação de um novo cômodo. Na descrição da assertiva vê-se
cômodos que trazem utilidades à casa, não podendo qualificar como algo luxuoso, portanto, seria
uma benfeitoria útil. De todo modo, não sendo necessária, não é a resposta da questão.
A letra “C” indica outra benfeitoria útil, que é aumentar o número de tomadas de uma casa. Mais
tomadas de fato tem por consequência melhorar o uso da casa, bem principal. Não há luxo neste
elemento tão essencial ao bem principal e, portanto, é uma benfeitoria útil. Ainda assim, não é a
resposta da questão por não ser uma benfeitoria necessária.
A letra “D” seria a de classificação mais questionável. Em se tratando de um portão manual trocado
por um eletrônico, por um lado traz mais utilidade à casa e por outro observa-se uma comodidade.
A questão é compreender para qual classificação tende mais. Dado que o portão eletrônico, além
das comodidades (o que serve de argumento para o luxo - benfeitoria voluptuária), traz também
segurança aos moradores, visto que é mais ágil em sua abertura e fechamento, não criando uma
exposição da casa no momento de entrada e saída, vê-se um argumento extremamente válido pela
utilidade, caso em que seria uma benfeitoria útil.
Como o objetivo da questão era tão somente verificar se era ou não necessária não há elementos
adicionais para a análise da classificação (se tende à voluptuária ou útil). Seria necessário verificar
toda a situação da vizinhança: outros elementos relativos à segurança que apresentam justificativa
para implementar este portão pela utilidade; outras questões fáticas que apontem uma necessidade,
utilidade ou simples comodidade da benfeitoria; um morador portador de deficiência motora, que
precisaria de um portão com maiores facilidades de abertura, caso em que seria possível argumentar
até por um benfeitoria necessária (e.g.). Deste modo, esta assertiva fica como útil pela dúvida que
gera para observar que não há tanta simplicidade na classificação, exigindo uma grande quantidade
de elementos para dar certeza, em certas ocasiões, de qual é a benfeitoria, apesar de, in casu,
aparentar ser uma situação de benfeitoria útil, analisando o abstrato e os breves elementos
fornecidos. Cediço apenas que não é necessária, e, portanto, não é a resposta da questão.
5. Referências
ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
133
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
DE MELO, Marco Aurélio Bezerra. PORTO, José Roberto Mello. Posse e Usucapião. Direito Material
e Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2020.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 4. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2019.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. v. 5. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.
HERKENHOFF, Henrique Geaquinto. SILVESTRE, Gilberto Fachetti. LIMA NETO, Francisco
Vieira. Primeiras Linhas de Direitos das Coisas. Vitória: Edição dos Autores, 2020.
MARQUES, Bruno Pereira. Breve roteiro das ações possessórias no Novo Código de Processo
Civil. In: Grandes temas do novo CPC. Tutela jurisdicional dos direitos reais e da posse. PIAU, Layanna.
MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Salvador: JusPodivm, 2020
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Lei de Introdução e Parte Geral. v. 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2011.
134
Bens públicos
363 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 199.
364 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB. 16ª ed., Salvador:
135
especial e administração particular das instituições a que foram transferidos para consecução dos
fins estatutários: “a origem e a natureza total ou predominante desses bens continuam públicas;
sua destinação é de interesse público; apenas sua administração é confiada a uma entidade de
personalidade privada, que os utilizará na forma da lei instituidora e do estatuto regedor da
instituição”.367
Se tais bens pertenciam ao Estado e foram transferidos com destinação especial a uma empresa do
Estado – vale lembrar que as estatais são constituídas com recursos públicos –, o desvio em relação
a esses fins especiais faz com que os bens retornem à condição originária do patrimônio de que se
destacaram. Desde o momento em que a entidade os abandona ao ponto de serem apossados por
terceiros, tais bens, que “já permaneciam na órbita estatal, apenas utilizados pela Administração
descentralizada, reincorporam-se ao patrimônio da entidade centralizada que os cedera tão somente
para o fim estabelecido na lei autorizadora da instituição estatal”.368
Relevante, ainda, é a conceituação da dominialidade pública, isto é, do regime de titularidade da
Administração sobre seus bens. Odete Medauar frisa que não é um regime equivalente ao da
propriedade privada, porquanto os direitos e deveres resultantes da titularidade exercida pela
Administração não decorrem do direito de propriedade no sentido tradicional:
Celso Antônio Bandeira de Mello370 chega a afirmar que a noção de domínio público é mais extensa
que a de propriedade, pois nele se incluem bens que sequer pertencem ao poder público. A marca
específica dos que compõem tal domínio é a de estarem imersos na atividade administrativa
exercida pelo Estado, encontrando-se, pois, sob o signo da relação de administração, a qual domina
e paralisa a propriedade, mas não a exclui. A respeito desse ponto, Rui Cirne Lima esclarece que a
relação de administração e propriedade não se excluem ainda que coexistentes sore os bens do
domínio público e do patrimônio administrativo, sendo indiferente quem seja o proprietário da
coisa vinculada ao uso público; a relação de administração paralisará, em qualquer caso, a relação
de direito subjetivo.371 É o que ocorre, por exemplo, em hipóteses de interferência do Estado no
direito de propriedade, tais como a requisição e a servidão administrativas.
367MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 44ª ed., Salvador:
JusPodivm, 2020, p. 544.
368 MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro, ob. cit., p. 544.
369 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 244-245.
370 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, ob. cit., pp. 913-914.
371 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 78-79.
136
A administração dos bens compreende, pois, o poder-dever de utilização e conservação das coisas
administradas, diversamente da ideia de propriedade, que contém, além desse, o poder de oneração
e disponibilidade. Isso faz com que os atos triviais de administração do patrimônio público
independam de autorização especial, enquanto os de alienação, oneração e – na maioria das vezes
– aquisição exigem lei autorizadora e licitação para o contrato respectivo.372 No que toca ao regime
pertinente ao uso e à conservação dos bens, embora utilizados coletivamente pelo povo ou
individualmente por alguns usuários, cabe sempre ao poder público ou aos seus concessionários a
proteção de seus bens, podendo-se valer dos meios judiciais comuns e especiais para a garantia da
propriedade e defesa da posse. Inclusive, dado a autoexecutoriedade dos atos administrativos, a
utilização indevida por particulares – v.g., ocupação ou invasão de um imóvel – pode e deve ser
repelida por meios administrativos, independentemente de ordem judicial. Cabe, aqui, apenas a
ressalva feita por Odete Medauar no sentido de que a “polícia dos bens públicos” ou “polícia do
domínio público” deve ser entendida como fiscalização, vigilância e adoção de medidas fortes para
preservar os bens públicos, não se tratando propriamente de “poder de polícia”, pois este fixa
limitações ao exercício de direitos reconhecidos pelo ordenamento aos seus detentores, incidindo,
então, sobre atividades lícitas.373-374
Feita a introdução pertinente à conceituação e à caracterização dos bens públicos em geral, já
poderíamos passar à sua classificação. Mas, antes, vamos delimitar as noções de afetação e desafetação,
a fim de facilitar a compreensão e de dar razão de ser à ordem classificatória vigente na literatura
jurídica.
2. Afetação e desafetação
Afetação é a atribuição, a um bem público, de sua destinação específica, podendo ocorrer de modo
explícito – por meio de lei, ato administrativo ou registro de projeto de loteamento (arts. 17 e 22
da Lei nº 6.766/79) – ou implícito – utilização contínua pelo poder público de um bem para certa
finalidade sem manifestação formal. Em outras palavras, “é a preposição de um bem a um dado
destino categorial de uso comum ou especial”.375
A afetação ao uso comum tanto pode provir do destino natural do bem, como ocorre com mares, rios,
ruas, praças e afins, quanto por lei ou por ato administrativo que determine a aplicação de um bem
dominial ou de uso especial ao uso público. Percebe-se, aqui, que é racionalmente impossível uma
afetação ao uso comum por mera utilização contínua, vez que, se tal utilização se der por parte da
Administração, o cenário acusará inevitavelmente uma afetação ao uso especial; e, caso o for por
372 MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro, ob. cit., p. 546.
373 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, ob. cit., p. 251.
374É o que confirma Gustavo Binenbojm: “o poder de polícia apresenta-se na atualidade como uma ordenação social
e econômica que tem por objetivo conformar a liberdade e a propriedade, por meio de prescrições ou induções,
impostas pelo Estado ou por entes não estatais, destinadas a promover o desfrute dos direitos fundamentais e o alcance
de outros objetivos de interesse da coletividade (...). Cuida-se, assim, de um conjunto de regulações sobre a atividade
privada, desvinculadas ou complementares a relações especiais de sujeição (estatutárias ou contratuais), dotadas ou não
de força coercitiva, conforme o caso, que erigem um sistema de incentivos voltados à promoção de comportamento
socialmente desejáveis e ao desestímulo de comportamentos indesejáveis, de acordo com objetivos político-jurídicos
predeterminados”. In: Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito
administrativo ordenador. 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 69.
375 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, ob. cit., p. 915.
137
parte dos administrados – em um edifício oficialmente afetado ao uso especial, por exemplo –,
caracterizará utilização indevida e sujeita a repressão.
Já a desafetação é a mudança da destinação do bem. De regra, a desafetação visa a incluir bens de
uso comum do povo ou bens de uso especial na categoria de bens dominiais para possibilitar a
alienação.376 Merece transcrição a lição de Bandeira de Mello a respeito do tema:
A desafetação dos bens de uso comum, isto é, seu trepasse para o uso especial ou
sua conversão em bens meramente dominicais, depende de lei ou de ato do
Executivo praticado na conformidade dela. É que, possuindo originariamente
destinação natural para o uso comum ou tendo-a adquirido em consequência de ato
administrativo que os tenha preposto neste destino, haverão, de toda sorte, neste
caso, terminado por assumir uma destinação natural para tal fim. Só um ato de
hierarquia jurídica superior, como o é a lei, poderia ulteriormente contrariar o
destino natural que adquiriram ou habilitar o Executivo a fazê-lo.
A desafetação de bens de uso especial, trespassando-o para a classe dos dominicais,
depende de lei ou de ato do próprio Executivo, como, por exemplo, ao transferir
determinado serviço que se realizava em dado prédio para outro prédio, ficando
o primeiro imóvel desligado de qualquer destinação. O que este não pode fazer
sem autorização legislativa é desativar o próprio serviço instituído por lei e que
nele se prestava. Também um fato da natureza pode determinar a passagem de
um bem do uso especial para a categoria dominical. Seria o caso, por exemplo,
de um terremoto destruir o prédio onde funcionava uma repartição pública.
Esses elementos que definem a destinação do bem interferem na categoria em que se enquadram,
ou seja, na classificação dos bens públicos em uso comum, uso especial e dominiais.
3. Referências bibliográficas.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2010.
BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e
institucionais do direito administrativo ordenador. 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB.
16ª ed., Salvador: JusPodivm, vol. I, 2019.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 44ª ed.,
Salvador: JusPodivm, 2020.
138
Bens públicos: bens de uso comum
1. Definição.
Também denominados bens do domínio público, o inciso I do art. 99 do Código Civil os exemplifica
citando os mares, praias, rios, estradas, ruas e praças.
São destinados ao uso indistinto de todos, adquirindo caráter plenamente comunitário e coletivo e
caracterizando-se “como a forma mais completa da participação de um bem na atividade da
Administração Pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço mesmo
prestado pela Administração ao público, assim como as estradas, as ruas e praças”377.
São, portanto, de domínio público, destinados ao uso coletivo, isto é, por todas as pessoas.
A sua fruição independe de consentimento da Administração (permissões, autorizações etc.), mas
isso não significa que não haverá regulamentação.
Odete Medauar exemplifica que o estacionamento de veículos pode ser objeto de normas que
limitem o tempo de permanência, pois a via pública não se destina a ser garagem de uns em
detrimento do uso de todos378.
377 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo, ob. cit., p. 189.
378 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, ob. cit., p. 247.
139
Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído,
conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração
pertencerem.
A remuneração pelo uso dos bens públicos ocorre para fins de financiamento da manutenção do
bem. A restrição de uso poderá ocorrer em razão da segurança nacional, do interesse público ou
da integridade das pessoas.
3. As “ruas particulares”.
Em algumas cidades, moradores de certas ruas assumem a iniciativa própria de “fechar” suas ruas
para que somente os moradores e seus visitantes tenham acesso. É uma situação que corresponde
a “privatizar” a rua — uma propriedade da Administração, portanto, pública — e transformá-la
em um condomínio.
Essa situação é totalmente irregular, pois:
O titular da propriedade sobre a rua é a pessoa jurídica de público, e não os moradores;
O uso coletivo pode sofrer restrições de uso (art. 103), porém quem deve proceder a essa
restrição é a Administração Pública, e não pessoas particulares, por conta própria;
Sendo a rua um bem de uso comum do povo, todos devem ter assegurado o direito de
acessá-la, exceto nas hipóteses do art. 103; e
A Lei nº 6766/1979 (Lei de Parcelamento do Solo Urbano) prescreve que as áreas de uso
comum não podem ter sua destinação alterada senão por uma lei.
Apesar desses argumentos, alguns Municípios já têm leis que autorizam o fechamento de ruas, a
exemplo de Campinas-SP, Caxias do Sul-RS, Rio de Janeiro-RJ e São Paulo-SP. Essas leis foram
objeto de ações de inconstitucionalidade, as quais foram julgadas improcedentes.
4. Referências bibliográficas.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2010.
BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e
institucionais do direito administrativo ordenador. 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB.
16ª ed., Salvador: JusPodivm, vol. I, 2019.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 44ª ed.,
Salvador: JusPodivm, 2020.
140
Bens públicos: bens de uso especial
1. Definição.
Também denominados bens patrimoniais indisponíveis, são os que se destinam especialmente à
execução dos serviços públicos e, por isso mesmo, são considerados instrumentos desses serviços379.
Ou seja, são bens afetados para constituir o aparelhamento administrativo, tais como os edifícios
das repartições públicas, os terrenos aplicados aos serviços públicos, os veículos e outras serventias
que o Estado disponibiliza ao público. Mas a destinação ou a finalidade especial é, de preferência,
previamente delimitada em lei ou ato administrativo.
2. Destinatários.
Em regra, os beneficiários diretos de tais bens são os usuários do serviço e os servidores que
desempenham o ofício, o que acaba por restringir o acesso do público, em geral, somente para
tratar de determinados assuntos.
Deduz-se que esses bens não comportam uso geral, comum, aberto a todos irrestritamente, ficando
a critério da Administração possibilitar, conforme o caso, o uso comum, caso este não conflite com
a destinação preponderante do bem380.
379 MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro, ob. cit., p. 546.
380 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, ob. cit., p. 248.
141
3. Remuneração pelo uso e restrição de acesso.
Conforme art. 103 do Código Civil, o usufruto dos bens públicos especiais pode ser gratuito,
onerado ou restringido. Isso ocorre para fina de garantir a manutenção do serviço, seu
financiamento e qualidade.
Pode, ainda, beneficiar somente a algumas pessoas. Por exemplo: alunos, professores e demais
funcionários de uma determinada escola estadual são os únicos que podem fazer uso das instalações
da escola; embora toda a comunidade possa ter acesso à biblioteca de uma universidade federal e
possam consultar seu catálogo, somente os alunos devidamente matriculados podem tomar os
livros emprestados.
4. Referências bibliográficas.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2010.
BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e
institucionais do direito administrativo ordenador. 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB.
16ª ed., Salvador: JusPodivm, vol. I, 2019.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 44ª ed.,
Salvador: JusPodivm, 2020.
142
Bens públicos: bens dominiais
Bens públicos dominicais (Código Civil, art. 99, III) – são os bens públicos não
destinados à utilização imediata do povo, nem aos usuários de serviços ou
aos beneficiários diretos de atividades (grifo nosso). São bens sem tal destino,
porque não o receberam ainda ou porque perderam um destino anterior.
Exemplos: títulos de crédito pertencentes ao Poder Público, terras devolutas,
381 BRASIL. Art. 99, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 09 set.
2020.
382 AMARAL, Francisco. Direito civil: Introdução. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 452.
383 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 913
384 BRASIL. Art. 99, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
autores afirmam a fungibilidade das expressões, 8 outros autores sustentam, com razão, que os bens dominiais é gênero
que compreende todos os bens do domínio do Estado (bens de uso comum, de uso especial e os dominicais)”
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed., Rio de Janeiro: Método, 2020, p. 631.
386 BRASIL. Art. 99, inc. III, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União,
143
terrenos de marinha. O beneficiário direto de tais bens é a própria Administração;
inexiste consumo imediato dos particulares; poderiam ser denominados de bens-
meios, porque são aqueles que mais diretamente instrumentalizam as atividades
administrativas. Muitos desses bens propiciam recursos ao ente estatal388.
O Código Civil conduziu uma inovação em matéria de bens públicos dominiais, estabelecendo que,
não havendo disposição legal em contrário, “consideram-se dominicais os bens pertencentes às
pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado” 389. Não
obstante a complexa redação da norma supracitada, compreende-se que o legislador pretendeu
“dizer que serão considerados dominicais os bens das pessoas da Administração indireta que
tenham estrutura de direito privado, salvo se a lei dispuser em contrário”390.
388 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 248.
389 BRASIL. Art. 99, parágrafo único, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> .
Acesso em: 09 set. 2020.
390 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, ob. cit, p. 914.
391 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, ob. cit, pp. 248-249.
392 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo, Atlas, 2015.
393 “Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua
qualificação, na forma que a lei determinar”. BRASIL. Art. 100, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o
Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> . Acesso em: 09 set. 2020..
394 BRASIL. Art. 101, da Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília,
144
parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil397; o art. 102 do Código Civil
Brasileiro398; o art. 200 do Decreto-lei 9.760/46399; e a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal400,
para sustentar impossibilidade de usucapião dos bens públicos, independente da sua destinação
(uso comum, uso especial, dominiais). Todavia, destaca-se que vem tomando força uma corrente
minoritária que sustenta a possibilidade de usucapião dos bens públicos dominiais, usando como
fundamento os princípios da função social da propriedade e da proporcionalidade401.
Ademais, observa-se que os bens públicos não podem ser onerados como garantia real403, isto é,
esses bens não podem servir como uma garantia ao credor na hipótese de inadimplemento da
obrigação404. As justificativas dessa impossibilidade se baseiam na regra constitucional do
precatório para pagamento a terceiros de crédito contra a Fazenda405 e no art. 1.420, CC, em sua
segunda parte, o qual estabelece que “só os bens que se podem alienar poderão ser dados em
penhor, anticrese ou hipoteca”406.
Entretanto, pontua-se que há na literatura jurídica quem defenda a possibilidade de oneração dos
bens públicos dominiais para servirem de garantias nos contratos da Administração Pública,
observados os requisitos da “avaliação prévia do bem, justificativa, realização de licitação
397 “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Brasil. Arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único.
Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> . Acesso em: 10 set. 2020.
399 “Os bens imóveis da União, seja qual for a sua natureza, não são sujeitos a usucapião” (BRASIL. Decreto Lei n.
9.760, 5º de setembro de 1946. Dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 06 de set. 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-
Lei/Del9760.htm>. Acesso em: 12 jun. 2020).
400 “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos
por usucapião” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=3319>. Acesso em: 10 set. 2020).
401 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, ob. cit, p. 636.
402 MARÇAL, Thaís Boia; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A função Social e a Usucapião dos Bens Públicos: Uma
145
(obrigatória para celebração do próprio contrato) e, no caso de imóveis, prévia autorização
legislativa”407.
Por fim, os bens públicos dominiais são impenhoráveis, ou seja, não incidirá nos bens públicos,
incluindo os bens dominiais, a execução forçada408, visto que se definiu o pagamento de crédito
devido pela Fazenda por meio dos precatórios, conforme disposição constitucional, no caput do
art. 100 e §3409.
407 “Entendemos, no entanto, que a impossibilidade de oneração de bem público não alcança os bens dominicais que,
após o cumprimento dos requisitos legais, podem ser alienados. Conforme assinalado acima, os bens alienáveis podem
ser dados em garantia real, não havendo motivo para exclusão dos bens dominicais. Dessa forma, nada impede, por
exemplo, que bens dominicais sejam dados em garantia nos contratos celebrados pela Administração Pública, desde
que haja avaliação prévia do bem, justificativa, realização de licitação (obrigatória para celebração do próprio contrato)
e, no caso de imóveis, prévia autorização legislativa” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito
Administrativo, ob. cit, p. 637).
408MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, ob. cit, pp. 250.
409 “Art. 100 - Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude
de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos
créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais
abertos para este fim. [...] §3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica
aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em
virtude de sentença judicial transitada em julgado” (BRASIL. Arts. 100, caput, e §3º. Constituição da República
Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> . Acesso em: 11 set. 2020).
410 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, ob. cit, p. 1195.
146
Esquematização
Referências bibliográficas
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outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 de set. 1946. Disponível em:
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Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1riEjHu4XlN2Gq--kJQ-
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MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed., Rio de Janeiro:
Método, 2020.
147
Inusucapibilidade de bens públicos
411 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo, Atlas, 2015, p. 1196.
412 “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 set. 2020).
413 “Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião” (BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código
Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Art. 102. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 set. 2020).
414 “Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião” (Decreto Lei n. 9.760, 5º de
setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15
set. 1946. Art. 200. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del9760.htm>. Acesso em:
12 jun. 2020).
415 “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos
por usucapião” (Brasil. Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=3319>. Acesso em: 15 set. 2020).
416 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 916.
417 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, ob. cit, p. 916.
148
Assim, mesmo que sejam preenchidos os requisitos para a aquisição do bem por usucapião,
qualquer que seja a modalidade418, o interessado em usucapir o bem público não conseguirá
transformar esse domínio em propriedade419. Ilustrativamente, observa-se no seguinte julgado a
posição majoritária dos precedentes judiciais:
O Supremo Tribunal Federal (STF), com a súmula 340, se pronunciou acerca do tema, não restando
dúvidas que a imprescritibilidade abrange todos os bens públicos, in verbis: “Desde a vigência do
Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por
usucapião”421. Todavia, não obstante tudo que foi demonstrado anteriormente, a inusucapibilidade
de bens públicos não se trata de um tema pacífico, muito pelo contrário, há autores que defendem
a possibilidade da prescrição aquisitiva dos bens públicos dominiais (dominicais) ou formalmente
públicos422.
418 “As Constituições de 1934, 1937 e 1946 admitiam exceções à imprescritibilidade ao estabelecerem a denominada
usucapião pro labore, cujo objetivo era assegurar o direito de propriedade àquele que cultivasse a terra com o próprio
trabalho e o de sua família. Contudo, por oportunidade da entrada em vigor da Constituição de 1967, não mais foi
contemplada esta modalidade de usucapião no ordenamento jurídico pátrio, mas foi prevista a legitimação de posse e
o direito de preferência à aquisição de até cem hectares de terras públicas por aqueles que as tornarem produtivas com
o seu trabalho e de sua família [...]. Da mesma forma, a Lei n° 6.969/1981 admitia a usucapião de terras devolutas
situadas na área rural” (MARÇAL, Thaís Boia; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A função Social e a Usucapião dos
Bens Públicos: Uma Releitura a partir da Constitucionalização do Ordenamento Jurídico. In: BOLETIM DE DIREITO
ADMINISTRATIVO, v. 29, n.12, dezembro 2013. São Paulo, 2013, p. 1265. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1riEjHu4XlN2Gq--kJQ-NKAZ6WxWmefpq/view?usp=sharing> . Acesso em:
10 jun. 2020).
419 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo, Atlas, 2015, p. 1195.
420 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70064142144. Disponível em:
<https://www.tjrs.jus.br/novo/buscas-solr/?aba=jurisprudencia&q=&conteudo_busca=ementa_completa>.
Acesso em: 15 set. 2020.
421BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 340. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=3319>. Acesso em: 15 set. 2020.
422 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed., Rio de Janeiro: Método, 2020, p. 631.
149
A (im)prescritibilidade de bens públicos dominicais ou formalmente públicos
Bens públicos dominicais são aqueles bens públicos, móveis ou imóveis, que não foram destinados
para serem utilizados pela sociedade ou para o serviço público e administrativo em geral. Tratam-
se de bens públicos desafetados423, haja vista não possuírem destinação pública específica
(afetação)424. Por outro lado, tradicionalmente, atribui-se ao bem dominical destinação patrimonial
ou financeira, pois pode ser usado como meio de renda para o Estado, por conta disso, a
administração desse bem era encarada como atuação privada da Administração e não como serviço
público425. Além disso, os bens dominicais subordinam-se ao “regime jurídico de direito privado,
pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado”426.
Nota-se que os processos de afetação e desafetação estão relacionados com a utilização, ou não,
do bem público para determinada função pública427. Ainda, destaca-se que os bens públicos de uso
comum e especial podem passar pelo processo de desafetação, transformando-se, regra geral, em
bens públicos dominicais, justamente para que seja possível a alienação, visto que o Código Civil
assegura a alienação de bem público dominical. Nessa linha, Odete Medauar comenta que:
Nessa perspectiva, o bem público dominical, não obstante ser de titularidade estatal, não está
afetado para uma destinação de uso que atenda o interesse público geral429, portanto, trata-se de
um bem formalmente público. Conforme explica Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias,
o bem público deveria ser classificado levando-se em conta a sua função pública, assim sendo, ter-
se-ia o bem formalmente público e materialmente público430. O bem formalmente público seria o
423 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, ob. cit, p. 631.
424 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, ob. cit, p. 915.
425 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2019, p. 857.
426 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, ob. cit, pág. 857.
427 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, ob. cit, p. 632.
428 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 249.
429 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, ob. cit, pág. 857.
430 FARIAS, Cristiano Chaves; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil 5: Direito
150
caso dos bens dominicais, apesar de estarem sob a titularidade do Estado, não há sobre esses bens
afetação431, ou seja, inexiste nesses bens moradias ou algum tipo de atividade produtiva (sem
ocupação) e o bem materialmente público é aquele adequado a cumprir os fundamentos de
legitimidade e merecimento, lugar provido de função social432.
Desse modo, tratando-se de bem público materialmente público, indiscutivelmente não poderá
sofrer usucapião, por exemplo, uma escola mantida pelo Estado. Contudo, quando se fala em bem
formalmente público, existe uma parte minoritária da literatura jurídica que defende a possibilidade
da prescrição aquisitiva quando preenchidos os requisitos.
Essa linha sustenta o fundamento de que não há razões para que se mantenha a proteção
constitucional da imprescritibilidade sobre os bens formalmente públicos, tendo em vista que tais
bens não cumprem com a função social, de modo que, a insistência de assegurar a
imprescritibilidade sobre esses bens lesa o princípio da proporcionalidade433. Comenta Rafael
Carvalho Rezende, defensor dessa linha minoritária, que:
Outrossim, conforme visto anteriormente, o art. 101, Código Civil435 assegura a possibilidade de
alienação bem público dominical, inclusive, foi visto que o poder público, por meio do processo
de desafetação436, pode transformar o bem público de uso comum e/ou especial em bens
dominicais com o propósito de aliená-los437. Em vista disso, há quem sustente ser contraditório
431 “Afetação é a atribuição, a um bem público, de sua destinação específica” (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo
Moderno. ob. cit, p. 249).
432 FARIAS, Cristiano Chaves; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil 5: Direito
janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Art. 101. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> . Acesso em: 15 set. 2020).
436 “De regra, a desafetação visa a incluir bens de uso comum do povo ou bens de uso especial na categoria de bens
dominicais para possibilitar a alienação” (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, ob. cit, p. 249).
437 Em exposição realizada no dia 23/10/2019, para a turma do 6º período da Universidade Federal do Espírito Santo,
na matéria de Direito das Coisas, o Prof. Dr. Gilberto Fachetti Silvestre, ao comentar acerca dos requisitos da
151
que um sistema jurídico permita a alienação de bens públicos (dominicais)438, mas, ao mesmo
tempo, não possa perdê-los pela usucapião439. Nessa linha, Maria Sylvia Zanella Di Pietro comenta
que:
Portanto, “quem pode mais pode menos”441, ou seja, tendo em vista que os bens públicos
dominicais fazem parte do patrimônio disponível do Estado442, não havendo uma destinação
pública específica para esses bens (desafetados) e preenchidos os requisitos legais, há quem entenda
pela possibilidade da aquisição da propriedade pela usucapião dos bens públicos dominicais ou
formalmente públicos.
usucapião, destacou que a coisa (móvel ou imóvel) será hábil a sofrer usucapião se tiver “usucapibilidade”, sendo que
a “usucapibilidade” é a alienabilidade, ou seja, coisas que podem ter a propriedade transferida. Destarte, pontuou que
já que os bens públicos dominicais têm alienabilidade, há corrente minoritária que sustenta que esses bens podem ser
usucapidos, desde que os ocupantes exerçam a função social em sua posse.
438 “De toda sorte, vale lembrar que sou favorável à usucapião de bens públicos dominicais, seguindo a antiga tese
encabeçada por Silvio Rodrigues, para quem esses bens são prescritíveis, pelo fato de serem alienáveis” (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil: Direito das coisas. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 4, p. 247).
439 “Se é possível ao Estado alienar certo tipo de bem, não faz sentido que ele não possa perdê-lo, pela sua própria
inércia. Impedir a prescrição aquisitiva do bem desprezado pelo Estado afronta a função social da propriedade”
(BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Embargos Infringentes nº: 9172311-97.2007.8.26.0000/50000.
Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1tFwc3QyuDPxStJ9NjOyRM72s61pluLHG/view?usp=sharing>.
Acesso em: 19 set. 2020, p. 12).
440 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, ob. cit, pág. 858.
441 “Argumento utilizado no processo lógico de enunciação de regras implícitas a partir de regras explícitas” (BRASIL.
152
A EMDEC obrigou-se a alienar um dos lotes para a empresa Coppersteel Bimetálicos Ltda., a qual
se estabeleceu na área recém-adquirida. Acontece que por diversos problemas jurídicos e
políticos443, mesmo estando no lote há mais de 30 anos, a Coppersteel Bimetálicos Ltda. ainda não
havia adquirido o seu domínio. Dessa forma, não restando outro caminho, a Coppersteel
Bimetálicos Ltda. buscou o judiciário para requerer a usucapião dos lotes que fazia uso.
O juiz de piso, 1ª Vara da Fazenda Pública do Foro de Campinas, extinguiu o processo sem
resolução do mérito, haja vista a impossibilidade do pedido, atendendo a tese da corrente
majoritária de imprescritibilidade dos bens públicos independente da sua destinação444. Entretanto,
o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria, entendeu que não se tratava de um
pedido impossível, afastando a imprescritibilidade do bem público dominical. O TJSP relatou que
se tratava de empresa fixada na área há mais de 30 anos445, a qual possuía mais de 300 funcionários,
cumprindo integralmente com a função social do bem. Além disso, asseverou que, não obstante
ser um bem público (dominical), o próprio município realizou processo de desafetação, tornando-
o alienável, tendo a Coppersteel Bimetálicos Ltda. realizado o pagamento pelo bem.
Logo, a Turma não encontrou motivos que impedisse a sua prescrição aquisitiva446. Estabeleceu-se
a seguinte ementa:
443 “[...] os entraves à regularização fundiária na região são basicamente dois: a enorme dívida fiscal da EMDEC, que
impossibilita a obtenção da certidão negativa de débito (CND) necessária à alienação de bens imóveis, e a demora no
pagamento dos precatórios referentes às indenizações devidas aos expropriados ” (BRASIL. Tribunal de Justiça do
estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/14MaKAtxzmbOkGyfI0zZBqCfN8COKKAFF/view?usp=sharing>. Acesso em:
22 set. 2020).
444 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000, ob. cit. Acesso em:
22 set. 2020).
445 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000, ob. cit. Acesso em:
22 set. 2020).
446 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000, ob. cit. Acesso em:
22 set. 2020).
447 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000, ob. cit. Acesso em:
22 set. 2020).
448BRASIL. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Embargos Infringentes nº: 9172311-97.2007.8.26.0000/50000, ob.
153
há mais de 30 anos uma área de sua propriedade que foi usada como acampamentos para esses
servidores quando estavam realizando construção de rodovias estaduais449. O juiz de piso entendeu
pela improcedência do pedido inicial e julgou procedente o pedido contraposto formulado pelos
réus, no qual foi declarado o domínio dos requeridos sobre os imóveis presentes na propriedade,
bem como serviu a sentença como título para registro no Cartório de Registro de Imóveis450.
Indignado, o DER-MG apelou contra a decisão do magistrado a quo, mas o Tribunal de Justiça de
Minas Gerais (TJMG) negou provimento ao recurso, assim ementado:
Assim, aquele que por mais de trinta anos, como no presente caso, tem como seu
o imóvel, tratando-o ou cultivando-o, tornando-o útil, não pode ser compelido
a desocupá-lo à instância de quem o abandonou. Na espécie, os réus
demonstraram a aquisição da posse do imóvel há mais de trinta anos, sem
qualquer oposição do DER (grifo nosso). Destarte, demonstrado está que os
réus, ora apelados, não detinham apenas a mera detenção do bem, mas
verdadeiramente sua posse, como se donos fossem. [...] Constata-se ter sido
preenchido não só o requisito temporal exigido no Código Civil, como também
a qualidade dos apelados de legítimos possuidores a título próprio, da fração do
imóvel objeto da presente demanda, sendo mister o reconhecimento de seu
direito à aquisição da sua propriedade pela usucapião, ao contrário do que
defende o apelante (grifo nosso)452.
449 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1ScKV5DpP7RcAmuy3QfMo3oLuQ4mumnMQ/view?usp=sharing>. Acesso
em: 23 set. 2020, p. 2.
450 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001. ob. cit, p. 2. Acesso em: 23
set. 2020
451 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001. ob. cit, p. 2. Acesso em: 23
set. 2020
452 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001. ob. cit, p. 1. Acesso em: 23
set. 2020.
154
Dessa forma, nota-se que esses dois julgados servem bem para ilustrar essa corrente que sustenta
pela prescritibilidade do bem público dominical, não obstante ser minoritária, no sistema jurídico
nacional, aos poucos, vão aparecendo precedentes judiciais que consagram essa linha de
pensamento.
Referências bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.
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______. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Apelação n° 9172311-97.2007.8.26.0000.
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______. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. Embargos Infringentes nº: 9172311-
97.2007.8.26.0000/50000. Disponível em:
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OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed., Rio de Janeiro:
Método, 2020.
156
Existe “praia particular”?
É comum ouvir que condomínios, hotéis, pousadas ou mesmo pessoas seriam “donos de praias”
ou teriam “praias particulares”. Isso, porém, entre em conflito com a ideia de bens públicos, afinal,
a praia é um terreno de marinha e, consequentemente, tem como proprietária a União.
Veja que o dono da praia não é o povo, mas a União; o povo não é titular de direito de propriedade.
Entre 2009 e 2017 ganhou repercussão um caso judicializado envolvendo o apresentador de
programa de auditório Luciano Huck453.
Em 2009, o então Governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral promulgou o Decreto nº. 41.921
para permitir que fossem feitas construções em áreas de preservação ambiental no balneário de
Angra dos Reis. A lei promulgada foi jocosamente apelidada de “Lei Luciano Huck”.
Na ocasião, o apresentador cercou com boias e redes um trecho de mar em torno de sua mansão
em uma ilha, de modo a impedir o acesso de outras pessoas.
Em 2011, o juízo da 1ª Vara Federal de Angra dos Reis entendeu que o objetivo do cerco feito por
Huck era se apoderar de bem de uso comum do povo. Além de determinar a retirada das boias e
redes, foi determinado o pagamento de uma indenização por danos materiais e imateriais no valor
de R$ 40 mil.
O apresentador recorreu, mas teve seu recurso improvido no Tribunal Regional Federal da 2ª
Região (TRF-2). Recorrendo ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), também perdeu e teve que
pagar o valor arbitrado e está proibido de utilizar com exclusividade o trecho da zona de praia.
Em 2019, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) entendeu que condomínios não
podem “privatizar” praia para uso exclusivo por seus proprietários, ou seja, não podem impedir o
acesso do público454.
453 HUCK e a “privatização” das praias: praia tem dono?. Folha de S. Paulo. 6 jul. 2011. Disponível em:
<http://direito.folha.uol.com.br/blog/huck-e-a-privatizao-das-praias-praia-tem-dono>. Acesso em 01 out. 2020.
454 MARTINS, Jomar. Condomínio fechado não pode 'privatizar' praia para moradores, diz TRF-4. Conjur. 11 nov.
157
A Lei nº. 7.661/1988, que institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC) define
em seu art. 10 que as praias são de uso comum do povo e que seu amplo acesso pelo público
somente pode ser retingido nos casos de segurança nacional ou proteção de áreas ambientais:
Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado,
sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido,
ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou
incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
§ 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo
na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste
artigo.
§ 2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades
de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.
§ 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas
águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias,
cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural,
ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.
Pois bem. O Decreto-Lei nº. 9.760/1946, que dispõe sobre os bens da União, no caput do art. 2º,
caracteriza os terrenos de marinha como sendo aqueles medidos horizontalmente na profundidade
de 33 metros para dentro do continente com base na preamar (maré alta) do ano de 1831:
Esses terrenos de marinha podem ser objeto de aforamento (enfiteuse) (arts. 99 e segs.) do
Decreto-Lei nº. 9.760/1946. Ocorre, porém, que os imóveis construídos na zona costeira sob
regime de aforamento não se estendem às praias, pois estas não são objeto de aforamento pelo
Decreto-Lei nº. 9.760/1946. É que o § 1º do art. 10 da Lei nº. 7.661/1988 não permite a
urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na zona costeira que impeça ou dificulte o
acesso público assegurado no caput do art. 10, pelo qual as praias são bens de uso comum do povo e
deve ser assegurado, sempre, o livre acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido.
Desse modo, não é possível tornar como privada (particular) um trecho de praia. Havendo
bloqueio à livre circulação de pessoas para acesso à área, os obstáculos devem ser removidos. Mas,
a remoção não pode ser feita pela pessoa impedida de acessar a praia, pois na hipótese não cabe
158
autotutela; o prejudicado deverá “denunciar” ou noticiar a situação aos órgãos competentes para
que sejam tomadas as medidas administrativas ou judiciais cabíveis. Os órgãos são, a título de
exemplo: Secretaria do Patrimônio da União (SPU); Ministério Público Federal (MPF); ou
Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação da Controladoria Geral da União
(Fala.BR/CGU).
159
Terrenos de marinha e aforamento, enfiteuse, emprazamento ou
freehold
O caput do art. 2º do Decreto-Lei nº. 9.760/1946, que dispõe sobre os bens da União, caracteriza
os terrenos de marinha como sendo aqueles medidos horizontalmente na profundidade de 33
metros para dentro do continente com base na maré alta do ano de 1831. Veja, in verbis:
Essas áreas (terrenos de marinha), para garantir uma utilização mais eficiente do solo, especialmente
nas cidades, podem ser objeto de constituição de um direito real chamado enfiteuse, também
designado aforamento, emprazamento ou freehold.
O art. 678 do Código Civil de 1916 assim definia a enfiteuse como a situação em que o proprietário
de um terreno (senhorio) concede a outra pessoa (enfiteuta) o domínio útil do imóvel, que consiste
no direito de construir ou plantar perpetuamente sobre aquele terreno. Haverá duas propriedades:
a do solo e a do imóvel construído. O enfiteuta pagará ao senhorio um valor pecuniário anual,
160
chamado foro, cânon ou pensão. Além disso, se o enfiteuta desejar alienar onerosamente (vender
ou trocar) o imóvel construído para um terceiro, deverá pagar ao senhorio um percentual sobre o
valor do imóvel. Esse percentual é chamado de laudêmio.
O aforamento é situação constituída para ser eterna, ou seja, para sempre haverá essas duas
propriedades.
As enfiteuses podem ser pessoas particulares ou entre particular e a União.
O art. 2.038 do Código Civil de 2002 proibiu a constituição de novas enfiteuses entre particulares
e a cobrança de laudêmio a partir de 2003. Contudo, as enfiteuses constituídas com a União seguem
regidas por lei especial (Decreto-Lei nº. 9.760/1946, Decreto-Lei nº. 2.398/1987, Lei nº.
7.661/1988 e Lei nº. 13.465, de 2017).
No caso entre particulares e a União, tem-se o seguinte:
a União é proprietária de um terreno de marinha;
a União, por meio de um negócio jurídico, cede ao particular o direito de construir um
imóvel (individual ou condomínio) sobre o terreno de marinha;
a União será o senhorio;
o particular será o enfiteuta;
a União será a proprietária do terreno, ou seja, do solo (do “lote”) (chamado domínio
direto);
o particular será o proprietário do imóvel construído (chamado domínio útil);
o todo (domínio útil + domínio direto) constitui o chamado domínio pleno;
o enfiteuta (particular) pagará anualmente um valor para a União (senhorio), assim como
ocorre, por exemplo, com o IPTU (só que este é pago ao Município);
o valor pago anualmente recebe o nome de foro ou cânon, mas em alguns lugares tornou-
se usual chamá-lo de “taxa de terreno de marinha”;
o foro corresponde a um percentual de 0,6% do valor do terreno;
algumas pessoas têm construção autorizada em terreno de marinha, porém estão isentas
por lei do pagamento de foro;
a isenção do foro (remição de foro) depende de lei e as leis que existem quanto a isso
geralmente isentam faixas ou regiões, e não a totalidade dos aforamentos;
o enfiteuta deve pagar, também, a chamada taxa de ocupação, equivalente a 2% do preço
do terreno;
quando o enfiteuta aliena onerosamente (vender ou trocar) seu domínio útil (imóvel),
deverá pagar o laudêmio, que consiste em um percentual corresponde a 5% do valor venal
do imóvel;
o domínio útil recebido em herança ou doação não são obrigados a pagar laudêmio.
Em julho de 2020, o Presidente da República sancionou a Lei nº. 14.011/2020, que facilita a
remição de foro de algumas áreas e possibilita que enfiteutas de imóveis em terrenos de marinha
adquiram o terreno da União (comprem). Assim, os proprietários dos imóveis passarão a ter o
domínio pleno sobre o terreno e o imóvel.
161
Bens dos indígenas
Ao tratar sobre os bens455, a literatura jurídica e o ordenamento jurídico não elencam uma
qualificação específica atinente aos indígenas. Há, entretanto, um conjunto patrimonial legalmente
previsto aos índios, a fim de lhes assegurar e reconhecer seus direitos à moradia, à subsistência e à
preservação da cultura e dos costumes tradicionais.
A par do estudo tradicional da teoria dos bens, é salutar percorrer aquilo que a legislação garante
aos povos indígenas na seara patrimonial e verificar suas características. Isso porque, ao adentrar
nas especificidades dos direitos indigenistas é possível ter uma melhor compreensão das
consequências jurídicas pertinentes ao tema e as diferenças relevantes em relação ao direito privado.
Ressalta-se que ao dizer bens dos indígenas está inequivocamente se associando a posse ou a
propriedade de um determinado objeto ao índio. Como se verá a seguir, mais do que dispor sobre
determinados bens aos indígenas, o texto constitucional e infraconstitucional tratou sobre o
usufruto e a posse desses bens e destacou as eventuais situações de aquisição de propriedade pelo
índio.
Contudo, não se pode perder de vista que propriedade, posse e usufruto456 são conceitos distintos
no direito civil, mas que inevitavelmente se inserem no presente estudo e ganham relevos diferentes
quando se trata de patrimônio indígena como se verá a seguir.
455 Toma-se aqui a lição de Francisco Amaral quando leciona que “bem é tudo aquilo que tem valor e que, por isso,
entra no mundo jurídico, como objeto de direito” (Direito Civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
347).
456 Para melhor elucidação, rememore-se as precisas lições de Maria Helena Diniz sobre i) a posse quando aduz que o
Código Civil adotou a teoria objetiva para se definir posse, a qual compreende o instituto como a exteriorização do
exercício do domínio sobre determinado objeto; ii) a propriedade ao definir “como sendo o direito que a pessoa
natural ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo,
bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”; iii) o usufruto, o qual seria “o direito real (CC, art. 1.225,
IV) conferido a alguém de retirar, temporariamente, da coisa alheia os frutos e utilidades que ela produz, sem alterar-
lhe a substância” (Curso de Direito Civil Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v. 4, p. 53, 134 e 463).
162
Dito isso, imperioso analisar a Constituição Federal de 1988 a qual garantiu um rol de direitos
territoriais direcionado aos indígenas. Para melhor elucidação, observe-se o art. 231 da CRFB/88:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos,
a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma
da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad
referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno
imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham
por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo,
ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que
dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Inegável que o constituinte de 1988 elegeu as terras indígenas como marco na garantia patrimonial
aos indígenas, estando inseridas no escopo dos bens de natureza corpórea do contexto indigenista
brasileiro. Importante mencionar que a mudança paradigmática da CRFB/88 tratou de forma mais
adequada a noção das terras indígenas. Nas palavras de Cavalcante:
Com isso em mente, observa-se que o texto constitucional não deixa dúvida de que os bens
destinados aos indígenas são de natureza pública. Tanto é que o art. 20, XI, da CFRB/88 dispõe
que são bens da União “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”.
Diante disso, optou-se pela concessão administrativa de terras de propriedade pública aos índios,
sob o fundamento da original458 ocupação das terras hoje tidas como brasileiras, cabendo também
à União a demarcação do perímetro e a proteção desse espaço. Nesse ponto é salutar a lição de
Souza Filho quando diz que “as comunidades indígenas têm direito a suas terras e o Estado
brasileiro o reconhece e garante”, sendo que “os atos, demarcação e registro, apenas servem para
dar conhecimento a terceiros”.459
Dessa forma, afirma-se que esses bens “constituem patrimônio da União, ou seja, são bens públicos
de uso especial. Por esse motivo, além de inalienáveis e indisponíveis, essas terras não podem ser
objeto de utilização de qualquer espécie por outros que não os próprios índios”460, conforme
estabelecido no art. 231, §4º, da CRFB/88 e do art. 100 do Código Civil.
Inserem-se nesse espectro os recursos naturais, como as riquezas naturais do solo, os rios e os lagos
existentes, os quais estão adstritos à subsistência dos que ali habitam e ao uso coletivo. Nesse
tocante, o texto constitucional prevê, paralelamente ao reconhecimento dos bens, o usufruto e a
posse permanente das terras demarcadas e dos bens acessórios que lhe acompanham.
Com isso, é importante mencionar que o exercício desses direitos se dá na perspectiva do
tratamento especial dessas áreas. Ao índio é lícito, por exemplo, a caça de animais silvestres e o uso
de matas ciliares em consonância às tradições e costumes daqueles povos sem que isso, todavia,
possa culminar em imputações administrativas ou penais.461
Ademais, Souza Filho alerta que a CRFB/88 ao tratar da posse permanente e do usufruto exclusivo
não se consubstanciam no entendimento individual e material do direito privado, mas sim na
compreensão coletiva do exercício do direito e de acordo com os usos e os costumes tradicionais
dos povos indígenas. Desse modo, a posse se qualifica quando observado o conteúdo entabulado
pelo art. 231, §1º, da CRFB/88, e a forma de fruição desses bens cabe à comunidade indígena
definir. Nesse sentido,
o que se faz ou não se faz com área é assunto da comunidade, que exclusivamente
deliberará. As riquezas exploráveis e comercializáveis do solo, dos rios e dos lagos
457 CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. “Terra Indígena”: aspectos históricos da construção e aplicação de um
conceito jurídico. In: História. Vol. 35, n. 75. [online], jul. 2016, p. 5-6.
458 “O reconhecimento da “originalidade” dos direitos territoriais indígenas funda-se na chamada tese do “indigenato”,
o que significa dizer que se trata de direito “congênito”, anterior a todos os outros reconhecidos pelo ordenamento
jurídico brasileiro, até porque é anterior ao próprio ordenamento” (CAVALCANTE, “Terra Indígena”: aspectos
históricos da construção e aplicação de um conceito jurídico, op. cit., p. 6).
459 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Capítulo VIII - Dos Índios. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes
et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 2.225.
460 FUNAI. Demarcações de Terras: bases legais. [s.d]. Online.
461 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Capítulo VIII - Dos Índios, op. cit., p. 2.256.
164
poderão ser utilizáveis pelos índios ou exploradas em parceria com terceiros não
índios, sempre com a supervisão do Estado brasileiro, que tem obrigação de
preservar não só a cultura como os bens indígenas.462
No que se refere ao tratamento legal específico dos indígenas, a Lei nº 6.001 de 1973, o Estatuto
do Índio, dispõe que sobre as os bens do Patrimônio Indígena:
A legislação específica assegura, dessa forma, aquilo que se pode compreender como o conjunto
patrimonial especial da coletividade indígena, os quais devem ser manejados tendo em vista a
especialidade desse regime.
Questiona-se, ainda, se ao índio seria permitido adquirir bens fora da sistemática apresentada. A
resposta é positiva, na medida que a própria Lei nº 6.001/73 aponta o que não se confundiria ao
Patrimônio Indígena:
Além disso, o art. 32 da referida Lei estabelece a possibilidade de o indígena adquirir um bem que
não esteja abarcado pelo reconhecimento estatal ao prescrever que “são de propriedade plena do
462 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Capítulo VIII - Dos Índios, op. cit., p. 2.257.
165
índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de
aquisição do domínio, nos termos da legislação civil”.
Contudo, deve-se ter em mente que nesses casos as relações jurídicas serão regidas pelo direito
civil, sendo observadas sempre possíveis lesões aos direitos atinentes à qualidade de índio no
sistema jurídico. Ademais, no caso dessas transações estarem em concomitância aos direitos da
coletividade indígena, devem ser observadas as decisões deliberadas da comunidade sobre a
utilização.
Nota-se, portanto, que existe uma situação de reconhecimento jurídico das terras e dos bens
constantes nesses espaços, os quais são de propriedade da União e destinados ao uso e à posse
pelos indígenas com fundamento no direito originário. Isso, todavia, não quer dizer que seja
impossível ao índio ter patrimônio alheio àquele ou que o patrimônio destinado aos povos
indígenas se integre ao bem adquirido pelo índio ou pela comunidade por meio do regime comum
das relações privadas.
Cabe observar, por fim, que esse panorama legal é muitas vezes criticado por parte da literatura
jurídica. Carlos Frederico Marés de Souza Filho argumenta sobre a necessidade de se criar uma
regulação específica para o tratamento dos direitos patrimoniais dos indígenas. O autor aduz que
(...) a grande dificuldade, porém, é justamente criar uma lei ou conjunto de leis
que regulem as relações jurídicas entre índios, entre índios e sociedade brasileira
e entre índios e Estado. Maior dificuldade ainda quando a base desta criação é o
Direito Privado brasileiro, especialmente quando se visa tratar de conceitos como
pessoa jurídica, propriedade, posse, etc. Ocorre que todas estas relações têm um
caráter eminentemente público, coletivo, nas relações indígenas, não existe o
caráter individualista e privado do Direito positivo brasileiro. De fato, a idéia de
grupo indígena, de comunidade, povo, ou nação, não é o de uma pessoa jurídica
de direito privado, já que não é composta de número certo de pessoas, nem tem
seu patrimônio divisível em partes ideais, é insuscetível de aquisição mortis causa
(...)463
463SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Índios e Direito: o jogo duro do Estado. In: Revista Sequência – Estudos
Jurídicos e Políticos. Vol. 09, n. 17. Florianópolis, 1988, p. 57-58.
166
a) A Constituição Federal de 1988 sagrou direitos territoriais aos indígenas, sob fundamento
do reconhecimento do direito originários dos povos tradicionais de pertencimento desses
espaços.
b) As terras indígenas e os recursos naturais que as compõem estão previstas no art. 231, da
CRFB/88, sendo bens públicos federais destinados ao uso exclusivo e à posse permanente
dos povos indígenas. Para tanto, cabe à União a demarcação, a proteção e o respeito das
terras indígenas e dos bens ali existentes;
c) O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), mesmo anterior à CFRB/88, também prevê os bens
que constituem o Patrimônio Indígena e seus titulares, conforme se observa no art. 39 e 40
da referida Lei;
d) Não há prejuízo a aquisição de bens por índios, situação prevista no art. 32 do Estatuto do
Índio e que serão regidas pelo sistema do direito civil;
e) Há críticas quanto ao uso de institutos tradicionais do direito privado na elaboração da
regulação do regramento específico dos povos indígenas, sendo necessária uma leitura
desses conceitos à luz do texto constitucional.
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CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. “Terra Indígena”: aspectos históricos da construção e
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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Capítulo VIII - Dos Índios. In: CANOTILHO, José
Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 2.250-
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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Índios e Direito: o jogo duro do Estado. In: Revista
Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos. Vol. 09, n. 17. Florianópolis, 1988, pp. 51-66. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16279/14815>. Acesso em: 14
set. 2020.
167
Bens dos quilombolas
A princípio, importante destacar que o objetivo da abordagem aqui exposta não é o de esgotamento
das nuances sobre o tema bens quilombolas. Dessa forma, busca-se tão somente cotejar uma breve
apresentação dos paradigmas e legislações subsequentes, advindos dos aspectos que a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) conferiu sobre o direito à propriedade aos
remanescentes das comunidades dos quilombos, ou também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades
Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras designações.
Para tanto, faz-se necessário contextualizar que os denominados quilombolas são os descendentes
de negros e negras escravizados advindos do deslocamento forçado de África para América durante
o período “colonial” e que ainda permanecem naquele local. Os quilombos constituíram e
constituem espaços de luta, de sobrevivência e de conquista de direitos até os dias atuais para a
população negra, sendo ao lado da resistência indígena no Brasil um dos primeiros movimentos de
luta social em prol da liberdade e contra a escravidão na América Latina.
Para além do período em que os negros foram escravizados no Brasil e tiveram sua humanidade
negada, o direito as suas terras ocupadas só foi reconhecido na CRFB/88, tendo em vista que
historicamente os quilombos eram criminalizados ainda na Lei de Terras de 1850 e até mesmo depois
da abolição formal da escravatura, em 1888. É como expõem Souza Filho e Prioste:
168
existentes em 1888, portanto, continuavam não só ilegais, como sujeitos a
criminalização à luz da lei de terras.464
Apesar de termos em vista que as terras para os quilombolas constituem grande parte de sua
identidade histórico-cultural, pois é por ela que perpetuam sua memória e resistência às opressões,
não iremos aqui tratar dessas propriedades na modalidade de bens culturais. Vale a menção de que
por estes também são entendidos as terras, entretanto compõe todo grupo de bens materiais e
imateriais, resguardados pelos art. 216 da CRFB/88, dispondo:
Nesse sentido, cabe por óbvio pontuar que, aos quilombolas não há restrição à aquisição de outros
bens, sendo essas relações jurídicas tuteladas pelo direito privado.
Com isso, destacaremos os dois principais dispositivos legais465 que dispõem sobre a possibilidade
da emissão de títulos das terras historicamente ocupadas pelos quilombolas: o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CRFB/88 e o Decreto nº 4.887 de 2003, que
464 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de e PRIOSTE, Fernando. Quilombos no Brasil e direitos
socioambientais na América Latina. In: Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, n. 4, 2017, p. 2.912.
465 Tais mecanismos legais advém da articulação do Movimento Negro nacional à época, segundo Ricardo Monteiro,
Souza Filho e Prioste em: MONTEIRO, Manoel Ricardo. As discussões em torno da regulamentação do art. 68 do
ADCT e a ineficiência da regularização fundiária no Brasil. In: Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 13 – n. 42-43, p.
465-480 – jan./dez. 2014, p. 468-471 e SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de e PRIOSTE, Fernando.
Quilombos no Brasil e direitos socioambientais na América Latina. In: Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08,
n. 4, 2017, p. 2.914-2.921.
169
“regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos” de que trata o
referido artigo. Vejamos:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos.
No que concerne a este estudo, pontua-se que os bens tutelados pelo art. 68 são as terras ocupadas
por remanescentes de quilombos, as quais se caracterizam como bens materiais e imóveis (arts. 79 a 81
do Código Civil brasileiro de 2002).466
Importante salientar que o Decreto nº 4.887/2003 já foi objeto de Ação Direta de
Inconstitucionalidade467, oportunidade que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela
improcedência.468 Razão pela qual, não há que se questionar a incompatibilidade do referido
Decreto em face do texto constitucional.
Nessa senda, coube ao Poder Executivo nacional delimitar por meio do Decreto nº 4.887/2003
quais seriam os grupos étnicos considerados remanescentes de quilombos, para fim de terem direito aos
bens a estes destinados em forma de propriedade reconhecida com a efetiva titularidade. Assim
dispõe o referido Decreto:
466 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 9. ed. [3. Reimpr.]. São Paulo: MÉTODO, 2019, p. 174-
178.
467 Sobre o tema, ver em: JEVEAUX, Geovany Cardoso. Capítulo IV - Controle de Constitucionalidade. In: Teorias do
Estado e da Constituição. 1. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015, p. 211-364.
468 Supremo Tribunal Federal - Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluto,
170
A partir de uma perspectiva internacional do tema, pontua-se que este entendimento corrobora
com a Convenção nº 169 da OIT, visto que esta define a auto identificação como critério
fundamental para definição dos grupos indígenas e quilombolas469.
Contudo, sob o risco de reduzir os conceitos sócio-históricos dos quilombolas no Brasil,470
pontuamos apenas que quanto a sua identificação perante ao ordenamento jurídico e a sociedade
a “autoafirmação identitária diz respeito somente aos membros do grupo. Não basta apenas que
um indivíduo afirme ou negue sua identidade étnica, é necessário que esta identidade seja
referendada pelo coletivo”.471
Ademais, pode-se dizer que essa identificação ocorre “a despeito das pessoas manterem sua
autonomia enquanto indivíduo e dessas regras tradicionais se alterarem ao longo do tempo. Ou
seja, tradição não é submissão e nem estagnação absoluta”.472 De forma a coadunar com essa ideia,
é como explica Vogt, quando diz que
Dessa maneira, no que concerne ao território dos quilombolas, o pertencimento desses indivíduos
aos territórios étnicos, se dá pela inserção em determinadas tradições históricas de resistência da
população negra no Brasil, inseridas em modelos transgeracionais reconhecidos nos quilombos.
É, também, por meio do decreto em comento, a definição de que o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é o órgão do poder Executivo que se incubirá de intervir
e proporcionar a titularização das terras aos quilombolas - sem prejuízo das disposições e
regulamentações dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O INCRA pode de ofício (independente de pedidos) ou a requerimento de interessados, iniciar o
processo administrativo para efetivação da titularidade das terras. Em função disso, o órgão deve
identificar e delimitar as áreas e submeter os relatórios técnicos às seguintes entidades: a) Instituto
do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN; b) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; c) Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão; d) Fundação Nacional do Índio - FUNAI; f) Secretaria
469 OIT. Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente à ação da OIT / Organização Internacional do Trabalho.
Brasília: OIT, 2011, p. 15.
470 Para maior elucidação sobre o surgimento dos quilombos no Brasil e a contribuição da população negra na formação
da sociedade nacional, indicamos a leitura de: NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-
africanista. Editora Vozes, Petrópolis: 1980; MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. Editora Ática, São Paulo: 1988.
471 INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Regularização de território quilombola, perguntas e
07.
473 VOGT, Gabriel Carvalho. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como
instrumento de reparação: território, identidade e políticas de reconhecimento. In: O Social em Questão - Ano XVII - nº
32 - 2014, p. 157.
171
Executiva do Conselho de Defesa Nacional; g) Fundação Cultural Palmares. Assim, a titulação da
terra ocupada será finalizada em não havendo impugnações ou sendo a titularidade rejeitada.
A par do estabelecido pelo art. 68 da ADCT, há quem entenda que a transferência da propriedade
dos antigos titulares das terras ocupadas pelos quilombolas já foi realizada aos destinatários,
“cabendo ao Estado tão-somente adotar as providências para efetivação no mundo real desta
mudança de titularidade”.474
É por meio da desapropriação que será efetuada a transferência das terras ora ocupadas por
terceiros que não os quilombolas, como visto da análise do art. 13 do Decreto 4.4887/2003:
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades
dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade,
prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será
realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos
necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1º Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel
de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos
de comunicação prévia. § 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de
desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a
autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da
cadeia dominial do imóvel até a sua origem. (grifos nossos)
172
Nos casos da desapropriação de áreas particulares mencionada pelo dispositivo legal, ficam
salvaguardados o direito de moradia e as benfeitorias feitas de boa-fé por antigos proprietários,
sendo conferido a estes a possibilidade de reaver os valores dos bens por meio de ação
indenizatória. Como bem alude Sarmento:
A aludida desapropriação está presente no regimento executivo em questão, haja vista o disposto
em seu art. 14, o qual garante o reassentamento para as famílias de agricultores pertencentes à
clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, aos que estiverem
ocupando terras anteriormente pertencentes às Terras de Preto.
Não obstante ao exposto, observa-se que a importância do disposto no Art. 6º do Decreto
4.887/2003, que assegura a participação das comunidades quilombolas nos procedimentos
administrativos, é exemplificada com a decisão da Justiça Federal do Sergipe, em que se considerou
o depoimento da comunidade como prova substancial para dar validade ao processo administrativo
de desapropriação:
173
Os títulos expedidos pelo INCRA são coletivos e são registrados em nome de associações que
legalmente representem as comunidades quilombolas contempladas. Durante o registro é
obrigatório que no título seja inserido cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e
impenhorabilidade.475
No entanto, os mecanismos para efetivação da emissão de títulos das propriedades aos quilombolas
não gozam de plena eficácia no plano da realidade nacional, haja vista que de certa forma se
subordina o fim pretendido à capacidade orçamentária e à política institucional do INCRA, sendo
“fatores estes que causam insegurança jurídica, aumentam a possibilidade de conflitos”.476
Não se pode esquecer que “todo o processo de colonização e a colonialidade posterior tiveram
como ordem a destruição dos povos, coletivamente, e da natureza”477. Assim, é de suma
importância, portanto, a contínua atenção e mobilização na defesa do direito à terra, já reconhecido
constitucionalmente aos indivíduos das Terras de Preto.
Registra-se que apesar deste texto ter se atido a ponderações sobre o art. 68 da ADCT e o Decreto
nº 4.887/2003, existem outros diplomas legais que tutelam os direitos dos quilombolas no Brasil,
como: i) Portaria nº 98, de 2007, da Fundação Cultural Palmares, que instituiu o Cadastro Geral de
Remanescentes das Comunidades dos Quilombos; ii) Instrução Normativa nº 57/2009, do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); e iii) Estatuto da Igualdade Racial,
Lei nº 12.288/2010.
Em suma, conclui-se que:
i) A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reconhece a propriedade
definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos, que as estejam ocupando.
ii) O Decreto nº 4.887/2003 reconheceu o critério de autodefinição para os remanescentes
de quilombos;
iv) É atribuído ao INCRA a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação
e a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos;
v) Aos ocupantes irregulares das terras destinadas a esse fim, é cabível processo
administrativo de desapropriação, resguardando os direitos às benfeitorias de boa-fé e a
moradia;
Referências bibliográficas
JEVEAUX, Geovany Cardoso. Capítulo IV - Controle de Constitucionalidade. In: Teorias do Estado
e da Constituição. 1. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015.
INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Regularização de território
quilombola, perguntas e respostas Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária. Coordenação
475 INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Regularização de território quilombola, op. cit, p.
16.
476 MONTEIRO, Manoel Ricardo. As discussões em torno da regulamentação do art. 68 do ADCT e a ineficiência da
regularização fundiária no Brasil. In: Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 13 – n. 42-43, p. 465-480 – jan./dez. 2014,
p. 478.
477 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de e PRIOSTE, Fernando. Quilombos no Brasil e direitos
socioambientais na América Latina. In: Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, n. 4, 2017, p. 2.921.
174
Geral de Regularização de Territórios Quilombolas. Brasília/DF: 2017, Disponível em:
<http://www.incra.gov.br/media/docs/quilombolas/perguntas_respostas.pdf>. Acesso em: 23
de set 2020.
MONTEIRO, Manoel Ricardo. As discussões em torno da regulamentação do art. 68 do ADCT e
a ineficiência da regularização fundiária no Brasil. In: Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 13, n. 42-
43, p. 465-480 – jan./dez. 2014.
OIT. Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente à ação da OIT / Organização
Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf>. Acesso em
01 set. 2020.
SARMENTO, Daniel. Territórios Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e a Constitucionalidade do
Decreto 4.887/03. Ministério Público Federal - Procuradoria Regional da República – 2ª Região,
2008.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de e PRIOSTE, Fernando. Quilombos no Brasil e
direitos socioambientais na América Latina. In: Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, n. 4,
2017, p. 2903-2926.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 9. ed. São Paulo: MÉTODO, 2019.
VOGT, Gabriel Carvalho. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) como instrumento de reparação: território, identidade e políticas de reconhecimento. In:
O Social em Questão - Ano XVII - nº 32 - 2014, p. 151 - 164.
175
Terras devolutas: história, definição e tipos
478CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. In:
Revista Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado, 2 ed., São Paulo, 2005, p. 4.
176
devolvidas eram as “terras devolutas”479; afinal, o termo “devoluta” tem origem no latim devolutus,
que significa “aquilo que foi obtido por meio de devolução”480. Tem-se, portanto, a primeira noção
do instituto no Brasil.
No entanto, tais restrições da Coroa não eram acompanhadas de uma rigorosa fiscalização, o que
acabava por permitir abusos e concessões indiscriminadas de sesmarias no território colonial. Tanto
é, que passou a ser comum a revenda da posse de terras, o monopólio das sesmarias, bem como o
abandono destas atrelada à uma expansão ilegal para o interior, subvertendo a essência do
instituto481. Diante disso, a partir da Resolução do Reino nº 76 de 1822, D. Pedro I suspendeu as
concessões de sesmarias, iniciando um período de vagueza legal conhecido como Regime de Posse
de Terras Devolutas. O único meio de ter domínio sobre uma terra passou a ser a sua ocupação e
concomitante produtividade, de forma que “a posse pressupunha a exploração da terra para depois
vir o reconhecimento legal estatal da situação”482. Assim, a ausência de regulamentação específica
importou em uma ocupação desordenada, em que não se sabia os limites entre o que era público e
o que era privado483.
Apenas em 1850 – após quase trinta anos - é que se aprovou um instrumento para regularizar o
caos que se encontrava o contexto fundiário brasileiro; tem-se, pois, a aprovação da Lei de Terras
– Lei nº 601. Esta, buscava compreender e regular a situação agrária no Brasil 484, tendo como
intenção oculta obstaculizar a posse de terras por parte de escravos livres. De sorte que, as terras
passaram a ser consideradas mercadorias, sendo adquiridas unicamente por meio da compra e não
mais por meio de concessões ou privilégios485.
Entre as inovações trazidas por tal dispositivo, tem-se a possibilidade de legitimação das ocupações
irregulares – em que não se tinha a autorização da Coroa (art. 5º) - e das sesmarias ou concessões,
ante sua ocupação útil ou o cultivo da terra (art. 4º). Era uma forma de anistia concedida àqueles
que se apossavam das terras de forma irregular486. De igual maneira, a Lei de Terras veio a definir
o conceito de “terras devolutas”, as quais passaram a ser compreendidas como aquelas que não
estivessem sob uso público ou domínio particular, sendo, pois, incorporadas ao patrimônio do
Império. Era uma definição por exclusão487, passando a imperar a lógica de que todas as terras no
479 Há na literatura jurídica, autores que defendem que as terras devolutas abrangem não apenas as terras devolvidas à
Coroa durante o período colonial, “pois: a) nem todas as terras do Brasil-Colônia foram objeto de concessão aos
donatários das Capitanias. […] b) por outro lado, muito território o Brasil veio a adquirir, após a cessação do regime
das capitanias. Desta forma, essas novas terras que passaram a integrar a extensão do solo pátrio (inclusive as do
território do Acre) não poderiam ser tidas como devolutas, pois que não foram, em época alguma, devolvidas à Coroa
Portuguesa’.” (CUNHA JUNIOR, Dirley. Terras devolutas nas constituições republicanas. In: Revista Jurídica dos
formandos em direito da UFBA, v. 4. Salvador, 1998, p. 267).
480 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8 ed. Curitiba: Positivo, 2010,
p. 230.
481 MIRANDA, Newton Rodrigues. Breve histórico da questão das terras devolutas no brasil e dos instrumentos legais
de posse sobre esses bens. In: Revista do CAAP, n. 2, 7 ed., Belo Horizonte, 2011, p. 156.
482ARAÚJO, Ionara Vieira de; TÁRREGA, Maria Cristina V. Blanco. Apropriação de terras no Brasil e o instituto das
terras devolutas. In: Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 1., n. 19, jun./dez., 2011, p. 6.
483 SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 2008. p.146.
484 ARAÚJO, Ionara Vieira de; TÁRREGA, Maria Cristina V. Blanco. Apropriação de terras no Brasil e o instituto das
Revista Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado, 2 ed., São Paulo, 2005, p. 5.
486 MIRANDA, Newton Rodrigues. Breve histórico da questão das terras devolutas no brasil e dos instrumentos legais
177
território brasileiro eram consideradas devolutas, exceto aquelas que estivessem sob domínio
privado ou que fossem utilizadas pelo poder público488.
Portanto, percebe-se uma mudança quanto ao conceito e abrangência do termo “terras devolutas”,
como se vê abaixo:
Eram as sesmarias devolvidas à Coroa, seja Eram todas as terras que não estivessem sob
por descumprimento obrigacional por parte domínio privado – “não tivessem título de
do colono – não ocupar e cultivar -, seja por domínio ou de uso reconhecido pelo
ausência de formalidades na sua concessão. Estado”489 - ou que não fossem utilizadas
pelo poder público.
488 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1164.
489 MIRANDA, Newton Rodrigues. Breve histórico da questão das terras devolutas no brasil e dos instrumentos legais
de posse sobre esses bens, ob. cit., p. 161.
490 MIRANDA, Newton Rodrigues. Breve histórico da questão das terras devolutas no brasil e dos instrumentos legais
178
“Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus
respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for
indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e
estradas de ferro federais.”
Apesar de tal autonomia concedida aos Estados, o que se percebe, em verdade, é que estes
mantiveram as premissas da Lei de Terras, pouco promovendo mudanças quanto ao regime de
terras devolutas. A grande diferença recai sobre o estímulo e flexibilização quanto à questão dos
apossamentos, servindo aos interesses dos grandes posseiros e invertendo um dos objetivos básicos
da lei anterior491.
As subsequentes Constituições – 1934, 1937 e 1946 - mantiveram a ótica de estadualização das
terras devolutas, mantendo a competência dos Estados sobre o domínio e regulamentação de tais
áreas.
Em 1946, o Decreto-Lei nº 9.760 trouxe um novo conceito de terras devolutas, entendendo estas
como sendo, “na faixa da fronteira, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que,
não sendo próprios nem aplicadas a algum uso público federal, estadual territorial ou municipal,
não se incorporaram ao domínio privado” (art. 5º). Destarte, cabe ressaltar, que, em 1964, a partir
do Estatuto da Terra – Lei nº 4.504 -, as terras devolutas passaram a ser consideras terras públicas
(art. 9º), estabelecendo-se uma diferenciação entre as terras públicas stricto sensu e as terras devolutas
(art. 99); a qual será abordada posteriormente.
Mesmo que permanente a tendência de estadualização, ainda não havia sido realizada qualquer
discriminação das terras devolutas, ou seja, “a correta repartição entre União e Estados das áreas
referidas pelas Constituições do período”492; o que demonstra o caos que pairava sobre a questão
fundiária no país. Desse modo, a Lei nº 6.383/76 veio a especificar certas regras acerca do
procedimento discriminatório, bem como passou a permitir a legitimação de posses em terras
pertencentes à União (art. 29)493. De maneira complementar, em 1981, a Lei nº 6.969, permitiu a
possibilidade de usucapião especial sobre as terras devolutas. Ou seja, as terras devolutas, além de
passíveis de posse, também tornaram-se também alvo de usucapião.
“Art. 1º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, possuir
como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área rural contínua,
não excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com
seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe-á o domínio,
independentemente de justo título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim
o declare por sentença, a qual servirá de título para transcrição no Registro de
Imóveis.
Parágrafo único. Prevalecerá a área do módulo rural aplicável à espécie, na forma
da legislação específica, se aquele for superior a 25 (vinte e cinco) hectares.
491 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo:
Malheiros, 2005, p.134.
492 MIRANDA, Newton Rodrigues. Breve histórico da questão das terras devolutas no brasil e dos instrumentos legais
179
Art. 2º - A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as terras
particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos
conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre
processo discriminatório de terras devolutas.”
1850
1554- 1822 1822-1850 Lei de Terras
Período Colonial Resolução do Reino nº 76 - Devolutas eram as terras que
- Terras devolutas eram as terras - Regime de Posse de Terras não estivessem sob domínio
devolvidas à Coroa. Devolutas. privado ou que não fossem
utilizadas pelo poder público.
1946 1964
1891 Decreto-Lei nº 9.760 Estatuto da Terra
Constituição de 1891 - Art. 5º: são as terras que, não -São consideradas terras
sendo próprios nem aplicadas a públicas;
- Estadualização das terras
algum uso público, não se
devolutas. -Terras Públicas Stricto Sensu X
incorporaram ao domínio
privado. Terras Devolutas.
1976
Constituição de 1988
Lei nº 6.386 1981
- Regra geral de
- Regras do procedimento de Lei nº 6.969 Inusucapabilidade;
discriminação; - Possibilidade de usucapião
- Abragência das áreas
- Legitimação da posse em especial.
ambientas (indisponíveis).
terras da União.
180
do colono. Por isso, qualificadas como “devolutas”, ou seja, aquilo que foi devolvido. Apesar da
manutenção do termo, a acepção que se tem hoje do instituto não é a mesma que se tinha no
passado, o que traduz sua trajetória histórico-cultural. Dessa forma, entende-se por terras devolutas
aquelas que não estão sob o domínio privado e que não são utilizadas pelo poder público, sendo
sua titularidade, em via de regra, dos Estados e, excepcionalmente, da União. Persiste ainda uma
definição por exclusão, herança da Constituição de 1891.
Parece que o legislador acertou ao manter o termo “terras devolutas”, na medida em que este traduz
tanto um significado histórico-cultural, quanto expressa sua noção contemporânea. Por mais que
o termo “devolutas” importe na ideia de devolução – dai o sentido original -, este também expressa
uma ideia de desocupação, abandono e vagueza. Este último significado correlaciona-se ao sentido
contemporâneo empregado quanto às terras devolutas, expressando a ideia de não afetação –
ausência de destinação pública – que lhes é característica. Portanto, apesar de eventuais críticas
quanto à suposta obsolescência do termo “devolutas”, entende-se que, em verdade, este é um
termo cirúrgico, que representa a essência do instituto, traduzindo sua carga histórico-cultural e, ao
mesmo tempo, seu significado contemporâneo.
As terras devolutas são caracterizadas pela ausência de utilização econômica, compreendendo as
áreas públicas que até hoje não foram registradas, não exercendo a União e os Estados seus direitos
de propriedade494. Isto é, são terras que, desde a proclamação da República, não foram formalmente
arrecadadas ao patrimônio público, estando “indiscriminadas no rol dos bens públicos por devir
histórico-político”495. São áreas, pois, que pertencem originalmente à União496, sendo um domínio
oriundo da influência histórica sobre a questão fundiária no país. Nesse sentido, cabe expor a
definição cunhada por Celso Antônio Bandeira de Mello497:
“Pode-se definir as terras devolutas como sendo as que, dada sua origem pública
da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado – sem estarem aplicadas
a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do Poder Público aos
particulares, ou se o foram caíram em comisso, nem se integraram no domínio
privado por algum título reconhecido como legítimo.”
“As áreas que, integrando o patrimônio das pessoas federativas, não são
utilizadas para quaisquer finalidades públicas específicas. [...] Em outras palavras,
trata-se de áreas sem utilização, nas quais não se desempenha qualquer serviço
administrativo, ou seja, não ostentam serventia para o poder público.”
494 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 10 ed. rev. e modificada. São Paulo: Saraiva Educação, p. 453.
495 STEFANINI, Luis de Lima. A Propriedade no Direito Agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 243.
496 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, ob. cit., p. 453.
497 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2010 , p. 920.
498 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.,
p 1106.
181
Já Clóvis Bevilácqua, de maneira objetiva e sintetizada, compreende por devolutas as terras
“desocupadas, sem donos”499. Com a devida data vênia, entende-se que parece ser incorreta a
definição cunhada pelo autor. Afinal, apesar de desocupadas, os art. 20 e 26 da Constituição da
República reconhecem estas como sendo bens da União – aquelas indispensáveis à defesa das
fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à
preservação ambiental, definidas em lei – ou dos Estados – as demais terras devolutas. A
titularidade das terras devolutas pertence, pois, em via de regra, aos Estados-membros, com
exceção daquelas áreas que sejam indispensáveis para o interesse nacional, as quais pertencem à
União500. Logo, apesar de realmente desocupadas e desafetadas, são de domínio público, de sorte
que incorreto seria alegar que são terras “sem donos”.
Destarte, cabe ressaltar que o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), bem como faz o art. 188 da
Constituição, veio a reconhecer as terras devolutas como uma espécie do sentido amplo de terras
públicas, diferenciando-as das terras públicas stricto sensu. Portanto, “terras públicas” seria gênero,
que compreende todas as terras de domínio público. Fragmenta-se, pois, em duas diferentes
espécies: terras públicas stricto sensu e terras devolutas.
Terras Públicas
A primeira diz respeito aos bens determinados que compõe o patrimônio público, sendo utilizados
por este, de forma especial ou patrimonial. Já as terras devolutas seriam bens indeterminados ou
determináveis - não há certeza sobre sua localização, extensão etc. -, que, apesar de integrarem o
patrimônio público, não são destinadas a algum uso501. Logo, a determinação ou não do bem é
essencial para que se prossiga com tal classificação, sendo a “indeterminação física” característica
das terras devolutas502. Tanto é que, se realizado o procedimento discriminatório, tendo a terra
devoluta sido determinada, esta passa a ser considerada como terra pública stricto sensu. Assim,
cumpre expor a lição de Cunha Junior503:
499 BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil brasileiro: trabalhos relativos à sua elaboração, v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1917-1919, p. 158.
500 PEREIRA, José Edgar Penna Amorim. Terra Devolutas. In: O Direito Agrário na Constituição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p.54.
501 CUNHA JUNIOR, Dirley. Terras devolutas nas Constituições republicanas, ob. cit., p.266-267.
502 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, ob. cit., p. 1107.
503 CUNHA JUNIOR, Dirley. Terras devolutas nas constituições republicanas, ob. cit., p.266-267
182
tomada, a expressão terras públicas é gênero. É o que se pode chamar de terras
públicas lato sensu. [...] Assim, as terras devolutas são espécie de terras públicas
lato sensu. A outra espécie são as terras públicas stricto sensu. Temos, pois,
duas espécies de terras públicas lato sensu (gênero): as terras devolutas e as
terras públicas stricto sensu. Esse é o sentido, pois, empregado no art. 188 da
CF de 1988, ao mencionar que "A destinação de terras públicas e devolutas...".
Entenda-se, aí, terras públicas stricto sensu. E terras públicas stricto sensu, são
aqueles bens determinados que integram o patrimônio público como bem de
uso especial ou patrimonial. Assim, v. g., é terra pública stricto sensu uma
fazenda de propriedade da administração pública, que esta utiliza para fins de
pesquisa. De notar-se, pois, que a noção de bens determinados e determináveis
é fundamental para compreensão do que sejam terras devolutas. Tanto que as
terras devolutas passam a ser terras públicas stricto sensu depois de
discriminadas, vez que passam a ser bens determinados.”
As terras devolutas também são consideradas bens públicos. Como já esclarecido em capítulo
anterior, estes são classificados em: bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais,
quanto à sua utilização504. Os bens dominicais são os que constituem patrimônio das pessoas
jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal ou real de cada uma dessas entidades,
conforme dispõe o art. 99, inciso III, do Código Civil. É nessa categoria que se inserem as terras
devolutas, “pois fazem parte do patrimônio estatal, sem contudo serem de fruição geral ou estarem
afetados a atividades especificamente administrativas”505. O enquadramento dos bens em questão
em outra categoria importaria na automática eliminação da qualificação como terra devoluta506.
Afinal, tanto os bens de uso comum quanto os bens de uso especial são destinados a uma finalidade
pública, enquanto que as terras devolutas são caracterizadas pela desafetação (não possuem
destinação). Logo, enquadrá-las em uma outra categoria – que não a de bens dominicais - ensejaria
a deturpação de sua essência, na medida em que reconheceria uma afetação, indo em desencontro
à qualidade das terras devolutas de não utilização.
Apesar de não serem destinadas a um fim público específico, como fazem os bens de uso comum
e os de uso especial, a Constituição de 1988 atribuiu um caráter socioambiental às terras devolutas.
O art. 188 deste dispositivo, preceitua que o poder público deve destinar as terras públicas e
devolutas – note-se a distinção já abordada – para fins de colonização e de reforma agrária, em
harmonia com a política agrícola507. É uma tentativa do legislador de corporificar o viés social da
norma, reservando as terras inalienáveis por direitos ambientais, indígenas ou comunitários
tradicionais, e destinando as terras alienáveis à fins de reforma agrária 508. Assim, busca-se suscitar,
por meio das terras devolutas, a preservação dos ecossistemas naturais, bem como destiná-las à
na questão agrária brasileira. Tese de Mestrado. Universidade Federal de Goiás. Orientadora: Profª. Drª. Vilma de Fátima
Machado, 2012., p. 34.
183
reforma agrária, quando já não mais apropriadas e utilizadas para uma finalidade pública ou para a
execução de fins da política agrícola; evidenciando, pois, o caráter socioambiental do instituto509.
Importa pontuar que, dentre os aspectos que caracterizam os bens públicos, tem-se a noção de
imprescritibilidade, isto é, a impossibilidade destes serem adquiridos por meio de usucapião. Assim
dispõe a Constituição da República nos art. 183, §3º, e 191, parágrafo único, e o Código Civil no
art. 102: “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. Em outras palavras, significa dizer que
se “refuta a possibilidade de um particular, utilizando-se de um bem público e [...] acumulando
requisitos de posse prolongada no tempo e uso efetivo do bem, possa adquirir-lhe a propriedade”.
Apesar da clareza e objetividade legal, ainda pairam infrutíferas alegações acerca da usucapibilidade
dos bens dominicais, o que é eliminado a partir da Súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal:
“Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem
ser adquiridos por usucapião”. Colaciona-se, pois, alguns julgados:
509MACHADO, Edna Moreira de Lima. Discriminação de terras devolutas: tarefa inconclusa, desde o Brasil imperial, em prejuízo
para a reforma agrária. Tese de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Dr. Raymundo Juliano
Rêgo Feitosa. 2002, p. 50.
184
1.339.270/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 11/4/2018;
REsp 1.717.124/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe
12/12/2018. 3. Agravo Interno não provido. (AgInt no REsp 1839083/SP.
Segunda Turma. Relator Ministro HERMAN BENJAMIN. Data do Julgamento
25/08/2020. Data da Publicação/Fonte DJe 08/09/2020).”
Nesse sentido, dispõe Carvalho Filho acerca da inusucapibilidade dos bens dominicais 510:
Assim, a conclusão que se chega é de que, apesar de eventuais dissidências na literatura jurídica e
jurisprudencial, tal discussão já foi superada - mesmo que em sede de bens dominicais -,
prevalecendo a literalidade legal acerca da impossibilidade dos bens públicos serem adquiridos por
usucapião511. De sorte que, não há o que se falar em usucapião sobre as terras devolutas, visto seu
caráter público.
3. Referências bibliográficas
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510CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, ob. cit., p. 1059.
511GONCALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 1: Esquematizado – Parte geral, obrigações e contratos. 9 ed., São Paulo:
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187
Discriminação de terras devolutas
No Brasil, a questão fundiária sempre foi palco de discussões e incertezas, sendo caracterizada por
ocupações desordenadas e ilegais e pela histórica negligência estatal. Assim, muitas vezes, não se
sabe a quem pertence determinada terra, se é pública ou privada, qual sua real extensão, localização
etc. Desse modo, a Lei de Terras, propondo-se a sanar tais hesitações, instituiu a possibilidade de
processos discriminatórios, os quais, de forma ainda prematura, consistiam “numa linha imaginária
traçada que delimitava a superfície que representa o conjunto de imóveis objeto da
discriminação”512. Era uma tentativa de realizar uma separação das terras que eram de particulares,
de modo a reconhecer o domínio público sobre o que foi discriminado513.
Tal procedimento adquire contornos específicos a partir da Lei nº 6.383/76, que veio a suscitar
uma descentralização do processo discriminatório514. Este é, portanto, um procedimento estatal em
que se busca estabelecer a natureza jurídica da terra, discutindo se esta pertence ao domínio público
ou privado, buscando, pois, separar as terras devolutas das terras privadas 515. Afinal, a simples
ausência de registro junto ao Registro de Imóveis não gera a presunção de que a terra é pública,
sendo preciso que o ente público comprove seu domínio por meio de uma ação discriminatória516.
512 SERRÃO, Sybelle Lima; SOUZA, Carmo Antônio. Revisão bibliográfica sobre o Direito Agrário no Estado do
Amapá como subsídio para as questões das terras devolutas e de direito ambiental. In: Biota Amazônia - Open Journal
System. v. 2, n. 2, Macapá, 2021, p. 74.
513 PORTO, Ary Eduardo. Aspectos de dominialidade, 2011, p. 4. Disponível em:
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/regulariza2/doutrina1.html> . Acesso em: 28 set.
2020.
514 MACHADO, Edna Moreira de Lima. Discriminação de terras devolutas: tarefa inconclusa, desde o Brasil imperial, em prejuízo
para a reforma agrária. Tese de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Dr. Raymundo Juliano
Rêgo Feitosa. 2002, p. 116.
515 CRETELA JUNIOR, José. Tratado de domínio público. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 348.
516 FERRO JÚNIOR, Izaías Gomes. Trabalhos Forenses: Terras devolutas. In: Revista de Direito Imobiliário, v. 81, 2016,
p. 7.
188
“AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
ALEGAÇÃO DE OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. USUCAPIÃO. TERRAS
SEM REGISTRO. FALTA DE PRESUNÇÃO. TERRAS DEVOLUTAS.
CONSTATAÇÃO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA
AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. 1. Inexiste
violação do art. 535 do CPC/73, porquanto não significa omissão quando o
julgador adota outro fundamento que não aquele perquirido pela parte. 2. A
inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz
presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado
provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição
aquisitiva. (AgInt no AREsp 936508/PI. Quarta Turma. Relator Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO. Data do Julgamento 13/03/2018. Data da
Publicação/Fonte DJe 20/03/2018).”
A discriminação é realizada apenas no âmbito das terras devolutas, sendo os demais bens públicos
apurados a partir da ação de demarcação de terras517. Dentre os benefícios deste instituto, tem-se a
“regularização fundiária; o mapeamento da superfície delimitada, das zonas urbanas e aglomerados
populacionais rurais e [...] suporte aos Cartórios de Registro de Imóveis (CRI).”518
O processo discriminatório pode vir a ser administrativo ou judicial, sendo aquela sempre a
primeira opção. Na via administrativa, instaura-se uma Comissão Especial, que deve instruir o
processo com um memorial descritivo contendo as qualificações da área, como o perímetro, suas
características, o esboço circunstanciado da gleba a ser discriminada, seu levantamento
aerofotogramétrico etc (art. 3º, Lei nº 6.383). Os dados coletados são submetidos à Comissão, que
“avaliará o cabimento da deflagração do processo discriminatório”, de modo que, “cabível a
discriminação, deflagrado o processo”, inicia-se a fase do chamamento editalício”519.
Nesta nova fase, a Comissão convoca os interessados, a partir de edital, para que apresentem –
além de documentos e provas - informações de interesse, como títulos que possuírem da área,
financiamento e ônus incidentes sobre o imóvel e comprovantes de impostos pagos (art. 4º, §1º) .
Recolhidos tais documentos e elementos probatórios, parte-se para o levantamento destes,
analisando a legitimidade, validade etc520. Realizado o levantamento, cabe ao presidente do Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) emitir parecer conclusivo, após o qual é
“lavrado um auto solene e circunstanciado, referente à aceitação da discriminação pelas partes
envolvidas no procedimento discriminatório”521.
Após isso, designa-se um agrimensor para que realize o levantamento geodésico e topográfico das
terras, determinando, pois, a demarcação das terras devolutas (art. 11). Concluídos os trabalhos
517 COSTA, Helio Roberto Novoa. Discriminação das terras devolutas. São Paulo: Universitária de Direito, 2000, p.116-
117.
518 SERRÃO, Sybelle Lima; SOUZA, Carmo Antônio. Revisão bibliográfica sobre o Direito Agrário no Estado do
Amapá como subsídio para as questões das terras devolutas e de direito ambiental, ob. cit., p. 74.
519 MACHADO, Edna Moreira de Lima. Discriminação de terras devolutas: tarefa inconclusa, desde o Brasil imperial,
189
demarcatórios, lavra-se um termo com informações detalhadas da terra, encerrando o
procedimento e providenciando o registro das terras devolutas discriminadas como bens públicos,
em nome da União. A partir desta última fase, tornando-se a terra determinada e discriminada, esta
passa a ser vislumbrada não mais como terra devoluta, mas como uma terra pública stricto sensu.
522 CARVALHO, Francisco de Sales Vieira de. Processo disciminatório de terras: o cosal do pontal do paranapanema (SP). Tese
de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Jurgen Wilhem Philips, 2004, p. 39.
523 MACHADO, Edna Moreira de Lima. Discriminação de terras devolutas: tarefa inconclusa, desde o Brasil imperial,
190
não figura como representante da União, mas sim como substituto processual, “pois age em nome
próprio na defesa de direito da União Federal”525 .
De acordo com Pontes de Miranda, o procedimento de discriminação judicial possui natureza
jurídica de ação declaratória, tendo em vista que “a sentença não atribui domínio ao autor, pois este
preexiste à propositura da ação, tendo pois a sentença efeito meramente declaratório do domínio
estatal”526. No entanto, parcela minoritária da literatura jurídica ousa discordar, argumentando que,
em verdade, a natureza desta seria constitutiva-condenatória, como faz Marcos Afonso Borges527.
5. Referências bibliográficas
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BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
525 ARAÚJO, Ionara Vieira de; TÁRREGA, Maria Cristina V. Blanco. Apropriação de terras no Brasil e o instituto das
terras devolutas, ob. cit., p. 16.
526 ARAÚJO, Ionara Vieira de; TÁRREGA, Maria Cristina V. Blanco. Apropriação de terras no Brasil e o instituto das
Pontal do Paranapanema (SP). In: Estudos Avançados, v. 15, n. 43, 2001, p 247.
529 CONJUR. Área do Pontal de Paranapanema pertence a São Paulo. In: Conjur. Disponível em:
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