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O HOMEM, ANIMAL DE EXPERIÊNCIA

A experiência é a vida em exercício, a realização do ser humano em um processo onde desenvolve a sua
abertura ao mundo, seu poder de criatividade econômico-social, sua configuração interna, etc. O homem não
emerge em um cosmos acabado. Isto significa que não pode refugiar-se em um saber perfeito de princípios e
ideais já fixados. Em constante interação, fluxo e refluxo de pulsões e estímulos, necessidades e esperanças,
o homem vai provando/testando o sentido de seu mundo e prova, ao mesmo tempo, a sua existência.
Constrói assim linhas de significação que lhe permitem conhecer o mundo e conhecer-se. Dessa forma
realiza-se como aquele vivente que, superando o mundo de estímulos-instintos, vive em campo de
experiência.
Experiência é a forma especificamente humana de encontrar-nos abertos para aquilo que sempre nos
transcende por meio de um encontro ativo e receptivo com o mundo, com a própria vida e a existência dos
outros.1

1 . O animal e o homem
O animal está determinado por dois princípios internamente relacionados: sua própria estrutura psicofísica
(dotada de uma série de instintos e capacidades de reação), e o meio circundante (condensado nos estímulos
que vêm do contexto). Entre estes princípios existe um tipo de saturação mútua: o meio oferece ao animal
aquilo que pode estimulá-lo, o animal responde ajustando-se a esse meio.
Segundo isto, os animais mantêm-se em tensão dinâmica com relação ao meio:
a) os estímulos perturbam o vivente que responde a fim de tornar ao equilíbrio;
b) o equilíbrio assim adquirido pode ser diferente do anterior, de tal forma que o vivente adquire 1
assim novas possibilidades de estimulação.
Os animais são os viventes que especializaram de tal forma a capacidade de receber estímulos e dar respostas
que sua vida se centra no sentir. Todavia, esse sentir com tudo o que implica de instinto, memória associativa
e inteligência prática, mantém o animal em um conjunto clausurado, dentro das possibilidades e tensões do
ambiente, como um momento relativo do grande processo tensional do cosmos. Cada espécie animal tem seu
próprio meio, isto é, um âmbito de estimulação determinado.

Frente ao animal, o homem se define pela sua abertura. A abertura implica, em primeiro lugar, um fato
biológico: por configuração cerebral, o homem carece da capacidade de responder aos estímulos que recebe.
Deverá apreender a comportar-se, superando o meio e suscitando seu próprio mundo de sentido. Em segundo
lugar, abertura é capacidade de criação: deverá criar seu mundo, aberto a infinitas possibilidades de
interpretação e concreção.
Frente ao animal, que está ajustado ao meio e só tem uma pequena margem de ensaio e experiência
criadores, o homem define-se como aquele vivente estranho que desborda a estrutura de equilíbrio com o
mundo e consegue ser um especialista na arte de provar todo tipo de situações. O homem se constitui como
um gesto de equilíbrio desequilibrado e busca infinita que se plasma em diferentes esquemas de
compreensão da realidade, que valem por certo tempo, e depois dão lugar a novas tentativas de prova e
equilíbrio.2

1
Cf. Xavier PIKAZA, Experiencia religiosa y cristianismo, 29-100; Martin VELASCO, Valor teológico de la
experiencia humana, 245-249; A. López QUNTÁS, La experiencia filosófica y la necesidad de su ampliación, 447-542.
2
O termo latino experientia provém do antigo periri que, com o seu equivalente grego peirao, significa arriscar-se,
correr perigo para alcançar algo, intentar ou provar. Nesse aspecto, a experiência reflete o saber humano que se funda
na vontade de testar a realidade, o risco que isso implica e a perícia que se consegue com isso.
2 . Momentos da experiência
Podemos indicar três momentos na experiência:
Abertura. Existe um excedente de possibilidades e exigências que tornam o homem um ser desajustado. A
superação estrutural do instintivo e a abertura para uma nova forma de contato com a realidade tornam o
homem um animal de experiência.
As direções são três.
1. Quebrada a clausura que o encerra em um campo de estímulos, em gesto de absoluto risco e de
interesse comprometido, o homem assoma-se ante a imensidade de seu contexto (tendencialmente
infinito) e descobre-se aberto à realidade como mundo.
2. Olhando para o externo e compreendendo que seu campo vital é o infinito, o homem pode voltar-se a
si mesmo: descobre sua própria realidade, a prova, a conhece. Esta abertura para o interno expressa-
se tematicamente como autoconsciência.
3. Os homens descobrem seu mundo em comum. Ninguém é capaz de transcender o plano do instinto e
realizar-se como humano se não há outros que lhe abram os olhos para ver a realidade, os ouvidos
para escutá-la, a língua para nomeá-la e o coração para amá-la. A abertura para os outros permite a
aprendizagem e transmissão da experiência.

Para o homem que está aberto e busca seu sentido, cada coisa em seu entorno adquire transparência: abre-se
desde dentro e começa a remeter para algo transcendente. Mas esse “primeiro” contato não se realiza de
forma pura. Querendo ou não, ele se sente obrigado a situá-la em um contexto de significação cultural. Isto
significa que o homem não conhece os signos das coisas como isoladas, as conhece em sistemas, em
conjuntos de sentido onde cada elemento torna-se inteligível dentro do todo. 2
Quebrada a tranquilidade paradisíaca do instinto, onde o homem sabe de antemão o que deve fazer, a
abertura experiencial o conduz para um fazer mais elevado, onde emerge a possibilidade do êxito ou do
fracasso, do bem ou do mal, da criatividade ou da destruição.

Ponderação da prova e da busca. Para que exista experiência, a abertura não é suficiente. O homem, se
quiser viver, deve provar, em um processo de busca arriscada. O homem prova por ser imperfeito, mas
também para saber os limites das coisas: procura novas formas de ver, de comportamento; valora e cultiva as
coisas.
O homem é um provador por excelência, ser estranho que nunca fica contente com aquilo que as coisas dão
de si. Provando, ele atualiza sua fantasia: aquela força interna que capacita o homem para ir/ver além do
instinto. Somente assim o homem constrói um mundo cultural significativo e ordenado.
Neste processo podemos ver três momentos:
1. Projeto: construção de um modelo mental de interpretação e práxis que responde à contextura da
realidade.
2. Experimentação: processo de aproximação e prova através do qual se examina a viabilidade do
modelo projetado.
3. Ajuste significativo: reconhece o valor do projeto, se este se mantiver através das provas.

Fixação significativa. O projeto e a prova culminam no surgimento de um modelo cultural, que é aceito e
transmitido por um grupo social a modo de campo básico de experiência ou forma concreta de concepção e
vivência do mundo.
O modelo significativo começa sendo um projeto, um centro de orientação que serve para reunir as diferentes
experiências em uma totalidade de sentido. Uma vez que esse modelo se fixa torna-se para aqueles que o
aceitam em princípio de compreensão e obtém a validade até o momento em que os homens, advertindo
deficiências, consigam projetar, provar e ajustar um modelo mais completo e mais significativo.
Isso significa que todas as culturas – tipos de visão do mundo que o homem elaborou em sua experiência –,
encontram-se em processo de constante mutação. Cada modelo brota de um determinado ajuste significativo
que se objetiva em uma série relativamente extensa de elementos: meios de expressão ou de linguagem,
símbolos religiosos, capacidades de atuação etc. Quando essa cultura se quebra e surge uma diferente,
perdem-se irremediavelmente alguns dos elementos constitutivos do ajuste anterior, dando lugar a outros
diferentes, configurados em um sistema referencial novo.
Nesse processo de fixação, queda e surgimento de modelos culturais, é necessário evitar extremismos: o
daqueles que se empenham em conservar um esquema já passado e o daqueles que querem que mude tudo.
Frente à absolutização de uma cultura que intenta converter-se em normativa, e frente à absolutização de um
evolucionismo que não aceita outra variável que o processo, assinalamos a existência de um caminho de
avanço relativo no qual, junto à mudança de modelos culturais, destaca-se a existência de constantes que se
transmitem de cultura a cultura e recebem em cada uma delas uma configuração algo distinta. Entre essas
constantes podemos encontrar expressões e valores religiosos.

3 . Notas da experiência
As observações anteriores permitem destacar as notas principais da experiência.
Distância. A experiência implica uma distância dupla:
1. o homem se distancia do imediatismo natural, fixa um campo de realidade, o separa do mar dos
instintos e o coloca frente a si, como elemento objetivo, diferente,
2. essa distância faz possível que o homem se aproxime de forma absolutamente nova às coisas: 3
compromete-se vitalmente com elas, as investiga, as padece, as conforma e as transforma.

Significado. A experiência realiza-se através de mediações significativas.


O signo significativo constitui a expressão da unidade que se estabelece entre o mundo (distante) e o sujeito
que nele trabalha e o conhece. O significado é do mundo (o exprime), mas só existe desde o homem (em
contexto cultural). A conexão entre sujeito e mundo, através de um processo experiencial, realizado em
signos culturais, constitui um pressuposto de todo pensamento e práxis do homem.
Por isso, toda experiência é significativa, interpretada. Resulta impossível falar de experiência neutra,
separada do processo de interpretação. A experiência contém sempre elementos de interpretação, um modo
humano de aproximar-se à realidade e de situá-la em contexto significativo.

Estrutura. Não existe experiência se não se concretiza em unidades complexas de significado. O homem
não experimenta fatos isolados, acontecimentos independentes, mas o faz com um pano de fundo de
unidades complexas ou sistemas de sentido.
Um fato isolado que não possa incluir-se num paradigma3, resulta incompreensível. Cada significado adquire
seu sentido e se define a partir do sistema superior em que se inclui. Desde esta perspectiva, os diversos
modelos de conhecimento estarão determinados sociologicamente.

Práxis. O homem não vive só para contemplar; ele necessita atuar sobre o seu meio de forma organizada,
significativa, estruturada. Só a partir de uma atuação – que podemos definir como trabalho –, ele pode
conseguir aqueles bens que fundamentam a sua própria subsistência e sua cultura.

3
O paradigma, como modelo mental aceito, é um dado prévio (não pode ser verificado/demonstrado, mas oferece
modos de leitura, compreensão e práxis com as coisas) e necessário (o homem precisa dele para enfrentar o mundo,
fazer perguntas e escutar respostas).
O homem não trabalha só para viver (satisfazer as necessidades imediatas), mas também para criar formas de
existência (mundo do sentido). Neste nível começa a ser especificamente humano.

Comunicação. A experiência é comunicada/comunicável. Isto significa que para entender seu sentido não
resulta necessário tê-la realizado pessoalmente, basta com que outros a comuniquem. Isto é possível porque o
homem pode objetivar a sua intimidade em signos de comunicação experiencial, que se estruturam e centram
entorno à palavra. Um vivente que ainda não tenha chegado à palavra, será incapaz de experiência
verdadeira, significativa, estruturada, prática.
Através de um processo de aprendizagem, centrado na aquisição de uma linguagem e umas leis compartidas,
o homem apropria-se das possibilidades experienciais do grupo.

História. A transmissão da experiência que, através de um processo de lembrança e criatividade, vai ligando
internamente as gerações sucessivas de um grupo, constitui o sentido da história.
A história é, por um lado, expressão de deficiência: o homem nunca pode estabelecer-se num momento do
caminho, deve tender a uma meta. Ao mesmo tempo, é sinal de sua grandeza: por não achar-se clausurado, o
homem pode projetar e construir novas formas de acesso para as coisas, novos signos culturais, mais
perfeitos na sua formulação, mais operativos em seu uso.

4 . Para que se experimenta?


O homem experimenta em um contexto ilimitado de criatividade
• para viver. Incapaz de subsistir num nível de estímulo e resposta, o homem experimenta para ser
viável como espécie. Experimenta ou morre. Para o homem viver não é biologia, é muito mais: é um 4
processo de experimentação por meio do qual se suscitam incessantemente formas novas de entender
e fazer-se. O homem vive humanamente ou já não vive.
• para compreender. Nasce sem saber, por isso tem que compreender se quer subsistir na selva de
grandezas e ilusões. Esse animal prematuro, que carece da segurança do saber instintivo, suscita um
processo de compreensão experiencial que o situa por cima de todos os seres viventes. Este saber é
um processo, porque uma vez que compreendeu a importância do saber, experimentará para saber
mais. O saber surge como um apetite superior ao mesmo apetite de viver.
• para produzir. O meio não oferece garantias imediatas de existência. Tem que experimentar se quer
conseguir bens que lhe sirvam de alimento, de sentido, de valor, de subsistência. Nada que seja
especificamente humano situa-se já em nível de necessidade natural; tudo resulta criação de cultura.
• para transcender. Primeiramente transcende o plano do imediato, das coisas naturais, objetivando-
as. Depois, em um segundo grau, nasce a pergunta pelo excedente do mundo, por esse além que as
coisas sugerem/evocam. A transcendência aparece como pressuposto de todo processo vital, como
horizonte de emergência de nosso conhecimento, como limite de nossa práxis. Não deve ser
inventada, mas somente abrir os olhos para vê-la.

EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA E EXPERIÊNCIA DE SENTIDO

Em um mundo tão determinado pela ciência como o nosso, dentro de um sistema de razão que tende a ser
definitiva, existem diversos tipos de experiência e várias formas de acesso ao real que devem ser respeitadas.
Descobrimos que existe um sincronismo experiencial que oferece, pelo menos, dois níveis que são
irredutíveis:
a) O campo da ciência, onde opera o que podemos chamar a razão pura, com sua exatidão discursiva e
seus esquemas de formalização operativa.
Neste campo a experiência científica tende ao conhecimento neutral, verificável e operativo. Certamente
supõe o contato com o externo, com a novidade e a surpresa. Mas esse contato filtra-se em uma peneira
matemática que só registra e valoriza aquelas impressões que se podem ordenar em um sistema
formalizado (leis exatas) e operativo (explicitado pela técnica).
A partir dos séculos XVII-XVIII foi tanto e tão valioso o alcançado pela ciência que sua forma de
conhecimento experimental quis tornar-se paradigma exclusivo, como indicava A. Comte.4

b) O campo do sentido, onde opera o que podemos chamar a razão interpretadora ou hermenêutica.
Aqui, a experiência de sentido não tende para objetos diferentes, esquecidos pela ciência, mas peneira, de
forma interpretativa e simbólica, nas bases daquilo que a ciência assinalou sem profundidade, formalizou
sem profundeza.
É valorativa porque consegue co-implicar à pessoa, incluindo-a em um campo de significação e riqueza
que não pode ser objetivada de forma neutral. É simbólica porque dirige a pessoa às profundezas,
desdobrando frente a ela valores de realidade não objetivável.5
É um conhecimento que converte o homem em ser que escuta, recepta a realidade e enriquece-se a partir
dela. A experiência de sentido reflete uma ruptura significativa, isto é, aquilo captado torna-se um
significante de uma realidade superior. O próprio sujeito participa dessa ruptura significativa com a sua
riqueza e suas limitações. É neste plano que devemos situar a experiência religiosa.

Por outro lado, que esses níveis são irredutíveis significa dizer que: 5
• a ciência é absoluta dentro de seu campo. Isso supõe que em sua esfera não existem exceções nem
buracos que conduzem a um espaço superior ou religioso.
• a experiência de sentido não se prova pela ciência: vale por si mesma, na verdade que ela transmite,
na profundidade que desvela. Ela não deve justificar-se diante do tribunal da ciência. Ela se justifica
criando valores: sua capacidade de suscitar âmbitos de verdade, iluminação transformadora, vida e
plenitude.
• a unidade desses níveis, impossível em campo horizontal, talvez possa encontrar-se em dimensão de
profundidade. Trata-se de uma forma de unidade mais postulada do que provada, mais vislumbrada
do que explicada. Toda imposição de um nível sobre o outro é destruidora.
Esta unidade da experiência científica e da experiência hermenêutica é uma espécie de pressuposto
antropológico: sendo um o homem que se exprime em ambos os casos, parece lógico supor que na
sua raiz se achem unidos os dois troncos da ciência e do sentido.

4
Auguste Comte (1798-1857) reúne em si o empirismo científico (só vale o conhecimento positivo), o messianismo
humanista (a ciência inaugura o novo tempo salvador), e a confiança na história (esta é o lugar de salvação que conduz
à plenitude).
5
O símbolo é aquela significação que transmite um sentido e coloca-nos em contato com uma realidade latente. Isto
significa que só de forma alusiva e participativa pode desvelar-se.

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