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A tragédia na Romênia comunista que revelou à ciência os danos da

negligência na infância
● Paula Adamo Idoeta - @paulaidoeta
● Da BBC News Brasil em São Paulo
21 dezembro 2019

Imagens de arquivo dos orfanatos romenos nos anos 1990, onde crianças viviam em más
condições de higiene e sem interações produtivas com adultos

Dentro do antigo orfanato, na sala onde bebês ficavam enfileirados em berços, o cientista
americano Nathan Fox ficou impressionado pelo silêncio, tão incomum em um local com tantas
crianças pequenas. Elas simplesmente não choravam. Muitas, já mais velhas, ficavam o tempo
todo balançando a cabeça para frente e para trás.
Isso, conforme Fox descobriria mais tarde, era o resultado de anos de negligência e absoluta
ausência de estímulos. "Não escutávamos lá o choro que normalmente se escuta em um berçário",
conta o cientista, que é professor no Departamento de Desenvolvimento Humano da Universidade
de Maryland (EUA), à BBC News Brasil.

"Concluímos que isso acontecia porque ninguém respondia a esses choros. Não havia nenhuma
interação típica entre um cuidador e uma criança, entre uma mãe e um filho. Logo elas
aprenderam que ninguém as atendia quando choravam. Um grande número de crianças balançava
seus corpos para frente e para trás, algo comum entre as que são privadas de estímulos. Na
ausência de interação social, é o que elas faziam (para não se entediar)."
Essa cena ocorreu 20 anos atrás em um orfanato de Bucareste, capital da Romênia, e a tragédia
decorrente disso daria origem a estudos pioneiros sobre como a negligência e a desatenção com
crianças moldam negativamente o cérebro delas, com impactos que podem persistir até a vida
adulta.
Esses estudos, agora, estão inspirando uma iniciativa para estimular crianças paulistanas.
Mas, antes de entrar nessa parte da história, é preciso entender como aqueles abrigos infantis
romenos, que passaram décadas escondidos no pequeno país do Leste Europeu, ganharam as
manchetes mundiais.
Nicolae Ceausescu, ditador comunista da Romênia, implementou política de estímulo à natalidade,
que acabou inchando os abrigos estatais infantis

O fim de um regime totalitário


Em 1989, há exatos 30 anos, a Romênia teve um Natal peculiar. O ditador comunista Nicolae
Ceausescu, líder do país havia um quarto de século, foi derrubado em uma revolução relâmpago,
que, alimentada por anos de escassez de produtos básicos e queda nas condições de vida da
população, começou quando o líder reagiu com brutalidade a manifestações populares.
Essas mesmas manifestações logo chegaram a Bucareste e, quando o Exército romeno aderiu aos
protestos, em 22 de dezembro, Ceausescu e sua mulher foram detidos. Naquele 25 de dezembro,
ele foi executado a tiros depois de ser condenado às pressas por um tribunal militar especial.
Seu regime fora marcado por políticas linha-dura, inclusive uma voltada a reverter as baixas
taxas de natalidade do país – a ideia era de que aumentar a população fomentaria a economia e
fortaleceria a Romênia.
Ainda no início do seu governo, nos anos 1960, Ceausescu implementou um decreto que restringia
o aborto e o acesso a contraceptivos. "Quem evita ter filhos é um desertor que abandona as leis
de continuidade nacional", declarou o ditador em discurso.
Registros históricos apontam que o decreto pôs em prática um controle absoluto da vida
reprodutiva feminina. Autoridades – que ficaram conhecidas como a "polícia menstrual" –
submetiam mulheres a testes ginecológicos obrigatórios em seus locais de trabalho e
monitoravam suas gestações. Casais que não procriassem tinham de pagar impostos adicionais.
Como resultado, a taxa de natalidade romena cresceu com rapidez, mas com duros efeitos
colaterais: um aumento nas taxas de mortalidade materna e infantil e, também, no número de
crianças que acabavam abandonadas, aos milhares, em abrigos estatais.

Crianças contaram mais tarde que eram 'tratadas como animais selvagens que precisavam ser
enjaulados'

À medida que o regime de Ceausescu se deteriorava, também pioravam as condições nesses


abrigos: as crianças eram submetidas a abusos físicos, não eram devidamente limpas ou
alimentadas, seus cuidadores eram mal preparados. As que saíram de lá contaram mais tarde que
eram "tratadas como animais selvagens que precisavam ser enjaulados".
Além disso, passavam os dias sem nenhuma interação produtiva com adultos, sem brincar ou
conversar, olhando para paredes ou deitadas sozinhas em seus berços, de onde só saíam para
serem trocadas ou alimentadas. Muitas tinham (ou desenvolveram) problemas mentais.
Foi só depois daquele Natal de 1989 que, com a queda de Ceausescu e a cobertura da imprensa
sobre o país, a situação dessas dezenas de milhares de crianças veio a público e chocou o mundo.
"Essas crianças não são cuidadas, são contidas", disse uma reportagem da BBC dos anos 1990
sobre um orfanato romeno para crianças com deficiência. "(Elas ficam em) quartos escuros e
imundos, com excrementos por todo lado. São crianças que precisam dos melhores cuidados, mas
recebem os piores possíveis."
Ao longo dos anos 1990, algumas crianças acabaram adotadas por famílias estrangeiras,
sobretudo de Reino Unido, Canadá e Estados Unidos, onde os relatos midiáticos sobre os abrigos
causaram comoção. Outras permaneceram nos abrigos, sem ter para onde ir e ainda sob
condições insatisfatórias.
É nessa parte da história que entra o americano Nathan Fox e outros colegas cientistas,
chamados, em 2001, pelo novo governo romeno para avaliar os impactos que os abrigos tiveram na
vida das crianças e buscar formas de intervir.

'Um grande número de crianças balançava seus corpos para frente e para trás. Na ausência de
interação social, é o que elas faziam (para não se entediar)'

Marco nos estudos de desenvolvimento infantil


Nessa época, já havia estudos científicos indicando que adversidades e negligência vividas na
infância impactavam o desenvolvimento e o comportamento das crianças.
"Mas, como não se pode colocar crianças nesse tipo de situação (para fins meramente de
pesquisas), era difícil identificar a causalidade" entre a negligência e o desenvolvimento infantil,
explica Fox à BBC News Brasil.
Em Bucareste, porém, o cenário para a pesquisa, infelizmente, estava dado. E as terríveis
condições vividas pelas crianças romenas acabaram sendo um ponto de virada nas pesquisas sobre
o cérebro infantil.
"Conseguimos examinar a causalidade e dizer, com alto grau de certeza, que a adversidade no
início da vida tem impacto no cérebro. (...) Estímulos ou interação são cruciais para a arquitetura
cerebral e, se não há uma mudança de circunstâncias para essas crianças, esses efeitos podem
perdurar para a vida toda. É um grande fardo para a sociedade."
Na prática, explicam os neurocientistas, desde o primeiro dia de vida as crianças precisam da
interação com seus cuidadores como uma espécie de "nutriente" para seu cérebro: conversas,
olhares, carinhos e brincadeiras são biologicamente essenciais, porque ajudam o cérebro infantil
a construir redes neurais que mais tarde as ajudarão a se desenvolver emocionalmente e
cognitivamente.
Em contrapartida, "na ausência da mediação do adulto, o sistema de estresse da criança é
ativado, e isso pode se tornar crônico", diz Fox.
Ou seja, quando as crianças sofrem violência, problemas socioeconômicos extremos, maus-tratos
ou são radicalmente negligenciadas, o estresse tóxico decorrente disso impede o cérebro de
realizar conexões neurais, o que pode levar a dificuldades de aprendizado e de comportamento.
'(Elas ficam em) quartos escuros e imundos, com excrementos por todo lado. São crianças que
precisam dos melhores cuidados, mas recebem os piores possíveis', disse uma reportagem da BBC
dos anos 1990

Em estudos publicados em 2003 e 2004, Fox e seus colegas analisaram eletroencefalogramas de


crianças romenas institucionalizadas e compararam esses exames com os de crianças romenas
que viviam com suas famílias.
As que haviam passado pelas condições extremas dos abrigos tinham um cérebro diferente das
que tinham tido uma infância tradicional: frequência cerebral menor em áreas cruciais e
imaturidade do sistema nervoso.
A vida pós-orfanato
As crianças que conseguiram ser adotadas tiveram mais sorte: Fox e seus colegas notaram que
elas tinham um desenvolvimento cognitivo melhor do que as que não tinham podido deixar os
abrigos romenos.
Mas algumas conviveram com os efeitos negativos dos abrigos até a vida adulta, segundo um
estudo feito em 2017 por outra equipe de cientistas internacionais.
Eles acompanharam 165 crianças romenas adotadas no Reino Unido entre 1990 e 1992.
Inicialmente, todas tinham atrasos de desenvolvimento e estavam subnutridas. As que passaram
menos de seis meses nos abrigos apresentaram uma recuperação surpreendente ao chegarem aos
5 ou 6 anos de vida.
Já as que haviam passado períodos mais longos nos abrigos tinham mais problemas sociais,
emocionais e cognitivos na vida adulta – desde dificuldade em se concentrar e arrumar emprego
até em se relacionar com os outros e maior propensão a problemas mentais.
Por isso, é importante tirar as crianças o mais rápido possível de situações de negligência e
colocá-las sob os cuidados de pessoas amorosas, disse à época à BBC um dos autores do estudo,
Edmund Sonuga-Barke, da Universidade King's College, em Londres.
No geral, o economista brasileiro Flavio Cunha, que pesquisa desigualdade, pobreza e
desenvolvimento infantil na Universidade de Rice, nos Estados Unidos – e que não tem relação
com o estudo romeno –, afirma que as pesquisas sobre o país do Leste Europeu mostram que "se
nós retirarmos uma criança de um ambiente tão adverso e a colocarmos em um ambiente com uma
família acolhedora, (...) melhoram o seu desenvolvimento sócioemocional, especialmente
externalização (comportamento agressivo, desafiador, perturbador ou hiperativo); o seu
desenvolvimento de linguagem; e o seu controle inibitório (que é a capacidade de manter o
autocontrole em situações de estresse)".
"Todas essas três (melhoras) são muito importantes para o desenvolvimento futuro da criança",
afirma Cunha à BBC News Brasil.
A negligência é 'tão grave quanto' o abuso
Migrante hondurenho carrega criança perto do México, em outubro de 2018, em tentativa de
chegar à fronteira dos EUA; separação de crianças de seus cuidadores também desencadeia
estresse tóxico

Enquanto abusos físicos contra crianças costumam gerar forte reação social, a negligência e a
privação infantil tendem a ser menos perceptíveis – embora possam ter um efeito igualmente
grave, diz o estudo A Ciência da Negligência, de 2012, feito pelo Centro de Desenvolvimento
Infantil da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e coassinado por diversos
neurocientistas, incluindo Nathan Fox.
"Muitas crianças pequenas identificadas pelo sistema de proteção social (...) não têm evidências
de danos físicos, mas podem ter tido perturbações no desenvolvimento de seus circuitos
cerebrais que podem ter sérias consequências pela vida inteira", aponta o texto, que descreve a
negligência como "a ausência de atenção suficiente e da proteção que são apropriadas à idade e
às necessidades das crianças" e a "ausência de quantidades suficientes de experiências
essenciais para o bem-estar" infantil.
E essa negligência pode estar presente não apenas em abrigos, mas também, por exemplo, em
lares de famílias social e economicamente marginalizadas, ou cujos pais sofrem de problemas
mentais não devidamente tratados. Por isso, é também a forma mais prevalente de maus-tratos
contra crianças, aponta esse mesmo estudo.
"O mais comum é a negligência, nos Estados Unidos e imagino que também em outros lugares do
mundo", prossegue Fox. "As crianças precisam estar sob os cuidados de pessoas que as amem e
que as façam se sentir seguras."
Pesquisadores apontam que crianças sob situações extremas, como as que são vítimas de guerras,
violência urbana, migração forçada ou separação forçada de seus pais, também podem ter seu
desenvolvimento cerebral alterado, por estarem sob constante estresse.
Nos Estados Unidos, um caso que tem alimentado debates é o de crianças filhas de imigrantes
irregulares que têm sido separadas de seus pais na fronteira e colocadas em centros provisórios
de detenção.
Em depoimento ao Congresso americano, em fevereiro, a um subcomitê da Câmara que investiga a
política de separação de famílias migrantes, o médico Jack Shonkoff, diretor do Centro de
Desenvolvimento Infantil de Harvard, afirmou que "o estresse (em decorrência dessas
separações) desencadeia uma enorme reação dentro das crianças. (...) Uma importante base para
o desenvolvimento saudável em crianças pequenas exige um relacionamento saudável, estável e
compassivo com ao menos um dos pais ou cuidador primário. Níveis de estresse altos e
persistentes podem perturbar a arquitetura do cérebro ainda em desenvolvimento".
Treinando cuidadores no Brasil

Cientista americano fará, em 2020, projeto para treinar cuidadores de crianças que estejam em
abrigos no Brasil

Agora, Fox e seus colegas preparam um projeto em São Paulo, para treinar, em 2020, cuidadores
que possam dar atenção individualizada a crianças pequenas atualmente vivendo em abrigos da
cidade (e, portanto, desprovidas do contato permanente com suas famílias).
Como a iniciativa ainda está em fase de elaboração, Fox diz que não é possível dar mais detalhes
sobre a metodologia e a prática, apenas afirma que deve incluir treinamentos em vídeo que
expliquem a esses cuidadores o que os cientistas chamam de "saque e devolução" – que, à
semelhança de esportes como tênis e pingue-pongue, se refere ao ir e vir da interação produtiva
entre crianças e adultos: o olhar, som ou fala de uma criança é o "saque", que o adulto devolve
com outro olhar ou com alguma resposta.
Isso, explicam os pesquisadores do Centro de Desenvolvimento Infantil de Harvard, ajuda a
literalmente construir redes neurais no cérebro, dando uma base mais sólida para o
desenvolvimento acadêmico, emocional e social da criança ao longo da vida.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social brasileiro, no projeto de Fox também será
"analisada e comparada a qualidade do desenvolvimento de crianças em instituições, como abrigos
e orfanatos, e em acolhimento familiar".
No país do Leste Europeu, a comoção em torno dos abrigos da era comunista fez com que
autoridades proibissem que bebês e crianças pequenas ficassem em abrigos, deixando-as sob os
cuidados de famílias provisórias, diz Fox.
Ainda assim, muitas crianças mais velhas continuam vivendo com poucas perspectivas de adoção
ou de melhores condições de vida. "Crianças com deficiência ou problemas de nascença são as que
têm menos chance de serem adotadas, e isso ainda é um grande problema lá", relata.
O que Fox diz ter aprendido com seus estudos (ainda em curso) na Romênia é que o cuidado
individualizado e amoroso das crianças é a melhor forma de intervenção contra a negligência, e
que essas intervenções têm mais chance de sucesso se ocorrerem cedo, de preferência antes de
essas crianças completarem dois anos, quando seu cérebro apresenta o mais alto grau de
plasticidade.
"É uma questão social que interessa a todos: como podemos dar apoio aos cuidadores, para que
eles possam oferecer mais possibilidades às crianças", afirma.

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