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ADOLESCÊNCIA - UM CONCEITO PRECÁRIO

ADOLESCENCE - A PRECARIOUS CONCEPT

[In Rev Med Minas Gerais, 12(01), Belo Horizonte, MG, Coopmed/Associação Mineira de Educação
Médica, 2002, p. 24-29].

RESUMO

O conceito de adolescência na sua acepção moderna chega até nós depois do final do século XVIII.

Noções como “idades do homem” e “idades da vida”, tomar a adolescência a partir de ideais

reformadores e, até a noção contemporânea de adolescência como sintoma social, mostram como as

chamadas Ciências Humanas encontram dificuldades em precisar esse conceito.

Levando em consideração essas noções, mas a elas se contrapondo, a Psicanálise concebe a

adolescência a partir do conceito de puberdade e situa os contornos pulsionais que revelam o mal-

estar vivido por cada sujeito, tomando-os em sua especificidade.

Palavras-chave:

Adolescência, Ritos Iniciáticos, Sociabilidade, Família, Rebeldia, Luta de Gerações, Transgressão,

Sexualidade, Sintoma Social, Sujeito.

SUMMARY

The concept of adolescence in its modern version reaches us from after the end of the eighteenth

century. Notions such as "ages of man", "ages of life", taking adolescence from Reformation ideals,

through to the contemporary idea of adolescence as a social symptom, show how the so-called Human

Sciences find it difficult to define this concept with precision. Considering these ideas, but also

positioning itself before them, Psychoanalysis thinks of adolescence from the concept of puberty

and places the pulsional contours that reveal the discomfort lived by each subject, taking them in

their specificity.

Key words:

Adolescence, Initiation rites, Sociability, Family, Rebelliousness, Generation Gap, Transgression,

Sexuality, Social Symptom, Subject.


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ADOLESCÊNCIA - UM CONCEITO PRECÁRIO

Jorge A. Pimenta Filho

A adolescência situada entre “as idades da vida” e “as idades do homem”

Estudos já consagrados em disciplinas como História, Sociologia e Antropologia, apontam que

o termo adolescência surge, na sua acepção moderna, entre o final do Século XVIII e início do Século

XIX.

Havia uma dificuldade enorme em se delimitar claramente os momentos, as fases do ser

humano, ou, como se dizia, “as idades da vida”. Não havia, como temos hoje, sobretudo depois do

século XIX, as exigências de identidade civil. A qualquer criança dos nossos dias é ensinado, quando

começa a falar, seu nome, saber o nome de seus pais e sua idade. Isso surpreenderia muito um

indivíduo dos séculos XVI ou XVII. A inscrição do nascimento nos registros paroquiais só se inicia em
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finais do século XVIII. Áries (1) revela-nos que a expressão “as idades da vida” era uma

terminologia mais confusa do que esclarecedora. Assim, nos tratados da Idade Média, falava-se em

infância e puerilidade, juventude e adolescência, velhice e senilidade.

Essas noções, segundo Ariès, teriam se derivado de uma compilação latina do século XIII,

traduzida para o francês em 1556. Tratava-se de um compêndio chamado Le Grand Propriétaire de

toutes choses, que era uma espécie de enciclopédia sacra e profana. Prevalecia nessa obra, uma visão

de equilíbrio, de ordem, de um determinismo universal, de que não havia oposição entre o natural e

sobrenatural. Assim, as “idades da vida” ou “idades do homem” correspondiam às figuras do cosmo e

seriam sete, tal como o número dos planetas conhecidos até então. A primeira idade era a infância,

que começava quando a criança nascia e ia até os sete anos. A partir daí, viria a pueritia (que durava

até os l4 anos), depois a adolescência (que terminava, segundo Constantino, aos 21 anos ou, segundo

Isidoro, aos 28 anos). Daí se seguia a juventude, que ia até os 45 ou 50 anos. Então havia a senectude,

que estava entre a juventude e a velhice. Por fim, havia a última etapa, a velhice, chamada senies ou,

em francês, vieillesse. Ariès indica-nos que a língua francesa, diferentemente do que acontecia com o

latim clássico, não dispunha de palavras suficientes para descrever essas etapas. Então restaram,

somente, enfance, jeunesse e vieillesse. Ele observa que, como juventude significava força da idade,
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“idade média”, não havia lugar para adolescência, e que até século XVIII, essa noção também se

confundia com a infância. Nos colégios, sobretudo os jesuítas, onde se empregavam, segundo tradição

religiosa, os termos em latim, se dizia, indistintamente, puer ou adolescens. Há registros também de

bonus puer para um rapaz de 15 anos e optimus puer para um seu colega de 13 anos. Pôde-se também

apurar empregos da palavra enfant como sinônimo de valets, valeton, garçon, fils, beau fils -

expressões que encerravam em si a idéia de dependência, pois originavam do vocabulário das relações

feudais ou senhoriais.

A idéia que temos hoje sobre o adolescente pode ter surgido a partir do combatente, do

conscrito, ou seja, dos jovens recrutados para as tropas, para as milícias burguesas, já dentro de uma

nova ordem. Esta não concernia mais ao Feudalismo, mas se deduzia das lutas internas das nações, ou

de suas guerras, a partir do século XIX. A adolescência, nos oitocentos, deixou de ser concebida nos

marcos de uma separação por idade ou uma cronologia: o que se requeria era a idéia de virilidade, de

agir como homem feito, comandar e combater. Ariès destaca o personagem Siegfried, da ópera de

igual nome composta por Richard Wagner, como o protótipo do que seria conhecido como o

adolescente moderno. Há no personagem wagneriano, uma mistura de pureza (provisória), de força

física, de naturalidade, de espontaneidade e de alegria de viver - ideais que se requer para a

juventude na medida em que ela se torna, para os políticos e ideólogos, depositária de valores novos,

capazes de renovar e reavivar a velha sociedade esclerosada.

Com relação ao setor das classes trabalhadoras, houve, com a incorporação cada vez mais

crescente dos jovens aos processos produtivos, preocupações legais que diziam respeito à sua

proteção. Com o desenvolvimento industrial, a partir de meados do século XIX, uma parcela

significativa dos jovens estava envolvida nos trabalhos das manufaturas, das minas de carvão, etc.
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Perrot (2) nos demonstra que se instaurou uma nova categoria de trabalhadores. Adolescentes

passaram a ser definidos a partir de sua incorporação nos processos produtivos. Na França, jovens de

doze aos dezoito anos passaram a estar submetidos a uma lei de 1892, que estabelecia a interdição do

trabalho noturno, a proibição quanto à descida ao fundo das minas. Quanto aos menores de 16 anos,

era limitada sua jornada de trabalho a dez horas. Após os 18 anos, prevalecia o mesmo regime dos

adultos.
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A despeito da dificuldade dos pesquisadores de fixar linhas determinantes para a clara

distinção entre o que era visto como adolescência e como juventude, havia dois marcos que, tais como

ritos iniciáticos, funcionavam como referência. Perrot vê um primeiro marco que era a cerimônia da

primeira comunhão. Rito que, mesmo perdendo progressivamente a importância devido a uma

descristianização variável conforme as regiões e os meios, funcionava como o que separava os

rapazes, (a partir dos 12 anos) e as moças (a partir dos 11 anos), da sua infância. Citando um cura de

Pas-de-Calais, a pesquisadora diz: ”para muitos garotos, a primeira comunhão é a carta de

emancipação, o começo da vida de jovem”. (2) 2


Tratava-se de um rito que coincidia, cada vez mais,

com o início da aprendizagem. Como outro marco, havia a preocupação quanto à fixação de limites para

a exploração no trabalho. Sempre houve dificuldades em se estabelecer fronteiras nítidas capazes de

resumir em conceitos bem definidos essa “idade da vida”.

Quanto, ainda, à dimensão do trabalho, no final do século XIX, era ela o que mais distinguia a

infância da juventude. A infância era, cada vez mais, subtraída do trabalho em razão direta das

conquistas sociais, sobretudo em função do crescimento e valorização do papel da escolarização

infantil. Por outro lado, a juventude era cada vez mais assimilada aos processos de trabalho

produtivo. “Os menores de doze anos desaparecem da mina e da fábrica ao longo do século XIX, e se

reduzem à oficina familiar, (...). Nada disso acontece com os adolescentes. Passados os treze anos,

com as restrições que já mencionamos, o trabalho é a norma”. (2) 2

As péssimas condições do trabalho nas fábricas, fizeram com que muitos jovens se

rebelassem, protestassem. O nascente movimento operário teve, nessa parcela jovem, um forte apelo

para as lutas reivindicativas. Isso alimentou os movimentos políticos operários de ideologias

libertárias. Entre os trabalhadores, os jovens chegaram a constituir um efetivo numérico

significativo: “Na Alsácia entre 1850 e 1870, os jovens operários formam mais de 22% dos grevistas,

abrangendo também mulheres. No conjunto da França, entre 1870 e 1890, eles são responsáveis por

mais da metade das greves”.( 2) 2


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Adolescência e a nova ordem: da afirmação burguesa aos ideais libertários

A busca de empregos, os constantes deslocamentos de população proporcionados por uma

demanda crescente de mão de obra por parte das fábricas e das diversas corporações industriais,

fizeram com que muitos jovens saíssem de suas pequenas cidades e lugarejos e alcançassem as

grandes cidades. Nestas, eles foram morar em alojamentos ou pensionatos. Na França, no final do

século XIX, houve um verdadeiro tour. É esse o componente estrutural do sistema econômico, que já

se impunha. As viagens e os deslocamentos de cidade a cidade, ao lado das iniciações junto aos

diversos ofícios, a necessária sociabilidade, um certo espírito de aventura e descoberta pessoal,

faziam sua inserção na vida pública. Tudo isso funcionava para os jovens como marcas necessárias de

rupturas e de sua entrada no mundo adulto. Perrot demonstra-nos que, no caso da França, as grandes

cidades (sobretudo a capital) ofereceram aos jovens possibilidades múltiplas de um alargamento de

seus horizontes.

Na Paris da Belle Époque, jovens ávidos de diversão acudiam aos cafés-concertos, onde

apreciavam as diversas formas de teatro. E então, mais preocupados com o corpo, freqüentavam os

banhos públicos. Há um relato de um jovem vidreiro, Saulnier, citado por Perrot, que dizia de sua

alegria de ir com os seus companheiros aos banhos quentes. Nos dias de sol, eles nadavam e também

remavam. Quanto ao esporte, os jovens preferiam o boxe francês à esgrima, considerada uma prática

dos jovens abastados.

E o que sucedia com as moças operárias? Na família, havia pouca segregação na primeira

infância. As menininhas participavam, juntamente com os seus irmãos, das operações proto-industriais

ou manufatureiras. A diferença começava com as aprendizagens formais, as escolas ou as indústrias,

em grande parte, excluíam as meninas. A escola ainda era considerada algo secundário para elas. Os

costumes e as iniciações das jovens estavam a cargo de suas mães. A igreja substituía o Estado. As

meninas pobres eram, sobretudo, confiadas às religiosas ou às damas de caridade que, em suas

escolas, lhes ensinavam as orações, a moral, a costura e os rudimentos de uma instrução.

Nas fábricas, poucas moças sabiam ler ou escrever. Elas trabalhavam em oficinas mal

conservadas, em locais com precárias condições higiênicas e os lugares de dormir eram medíocres.
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Expostas a doenças, como a tuberculose, suas condições tinham a precariedade característica de

todos operários naquele tempo. Isso se agravava com a conivência de suas famílias e o fato de não

poderem se revoltar e nem fugir. As adolescentes eram fixadas nesses lugares por suas próprias

famílias, sobretudo pela ação do pai. Perrot faz menção ao relato de uma jovem, Jeanne Bouvier. Ela

falava de suas dificuldades. Não conseguia se fixar nos diversos ateliês de costura. Alternativas se

abriam para algumas, que, a duras penas, adquiriam habilidades e podiam trabalhar como modistas,

plumistas, bordadeiras, etc. Essas alternativas podiam render-lhes melhor salário e prestígio.

A expectativa que se tinha das jovens à essa época era a de que as “moças não são feitas para

exercer os ofícios, mas para realizar trabalhos provisórios”, à espera do casamento e da vida

doméstica. Depois do trabalho doméstico, a saída para elas era alcançar, no máximo, a indústria do

vestuário. Perrot: aponta-nos ainda que

“para as jovens, sobretudo as migrantes, trata-se de uma passagem

praticamente obrigatória, que muitas famílias consideram como uma quase

aprendizagem. Elas são “colocadas”, a partir dos catorze anos, por intermédio de

conhecidos, do cura, de família de notáveis, primeiro nas vizinhanças, depois cada vez

mais longe, os salários urbanos sendo mais elevados. Assim, para as moças, conservou-

se o life cycle servant do Antigo Regime. Na verdade, ele está relacionado antes ao

campesinato que ao mundo operário, cada vez mais reticente diante da servidão

pessoal que o serviço doméstico implica. (...) ... a grande maioria das jovens se

encontra nas fábricas têxteis, onde formam, dos doze aos vinte e cinco anos, o grosso

da mão de obra, tendo garotos por auxiliares e homens por chefes. (2) 2

Para a autora essa situação das jovens operárias as predispunham a uma submissão hedionda,

em que os seus chefes homens se achavam no direito de dispor de seus corpos: “o direito à primeira

noite”. Elas eram, dessa forma, submetidas a trocas complacentes, abusos e exigências lúbricas entre

empregados do escritório, contra-mestres e filhos dos fabricantes. Estavam pressionadas pelo poder

e vontade de seus chefes e a complacência de suas famílias, indiferentes, por muito tempo, à sua

sujeição sexual. Diante desse quadro, surgiu, como tentativa de coibir essa situação, um decreto do

prefeito do Amiens, datado de 1821, que proibia aos donos de fiação escolherem entre seus auxiliares

jovens do sexo feminino.


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Essa situação de submissão às normas familiares e patriarcais não distinguia tanto as moças

das classes trabalhadoras daquelas das classes mais abastadas. Quanto à sua instrução e educação

prevalecia o que anedoticamente ficou conhecido como a fórmula alemã dos três K – Kirche, Kinder,

Küche – Igreja, crianças, cozinha. Vistas como verdadeiros “párias” da humanidade, as mulheres

encontravam nesse preceito um postulado definido desde o século XV por Gerson: “Todo o ensino
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para as mulheres deve ser considerado suspeito”. Este postulado, segundo Caron, (3) situava o

atraso extremo a que ficou relegado o ensino reservado às moças, não só no Antigo Regime, mas até

meados do Século XIX.

Uma questão que se destaca, sobretudo a partir de meados do século XIX, diz respeito à

rebeldia dos jovens, seu espírito audaz. As revoluções ocorridas na Europa em todo esse período dão

conta de uma juventude inquieta ou rebelde: são os carbonários franceses ou italianos de 1820, os

jovens operários das barricadas parisienses de 1848, de 1871, etc.

Luzzatto (4)4 mostra que a história da primeira parte do século XX confirmou a permanência

de uma equação que se desenhava antes, qual seja: a dos jovens rebeldes. Tanto na França quanto na

Inglaterra, na Alemanha ou na Itália, observamos os porta-vozes da juventude européia invocando as

virtudes regeneradoras da guerra. O apelo às armas foi prontamente recebido pela juventude,

aclamada como portadora de ideais mudancistas, revolucionários e libertários. Um apelo à luta de

gerações.

Luzzatto indica como certas análises limitavam-se a apontar a questão do que chama

“dinâmicas geracionais”. Constata o historiador um apelo à guerra que surgia como fantasma, para

alguns, e miragens, para outros. Cita os austro-marxistas Otto Bauer e Max Adler que centraram

suas propostas teórico-políticas de cunho libertário em torno da ação dos jovens.

Em oposição a essa concepção, Luzzatto distingue a posição assumida por certos artistas de

vanguarda na Viena do final do século XIX. Para o autor “os expressionistas fugiam à tentação de

afirmar a própria identidade em termos de conflitos com os pais (...)” (4).4 Ele lembra que, nos anos

em que Freud afirma a centralidade individual e social da revolta edipiana, outros intelectuais seus
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contemporâneos como Shiele, Kokoschka, Trakl, Musil, Schönberg, Wittgenstein, estavam mais

preocupados em refletir sobre a condição do homem em geral, que em centrar suas observações em

termos de pais e de gerações, de passado e de modernidade.

Do ideal da eterna juventude - concepção nazi-fascista à adolescência como sintoma

Talvez a exacerbação extrema da crença na juventude, ou de uma juventude eterna, tomada

por um ideal de nação, tenha sido o ideal fascista proposto por Benito Mussolini. A construção desse

mito, muito além de qualquer limite histórico ou de geração, propõe um ideal universalizante e

totalizante. Malvano (5) 5 , citando uma publicação italiana, aponta que a

“unidade espiritual entre a figura máxima do Duce (Mussolini) e o fascismo

exigia uma estreita concordância de elementos conotativos: a juventude eterna do

fascismo devia ser inapelavelmente a de seu chefe“ (...) “...a nossa juventude é um

símbolo que domina, desvinculado do espaço e do tempo: ele resume o amor, e a

beleza, a força e o canto (Giuventù Fascista)”.

Um pouco diferente, porque se centrava numa afirmação racista do ‘homem novo’, mas na

mesma linha totalitária e aplastante a toda a perspectiva do sujeito, o Nazismo apelava também para

uma idéia de eterna juventude. Como comenta Michaud (6) 6, citando Gregor Strasse, um dos chefes

do Partido Nazista: “Só o que é eternamente jovem deve ter seu lugar (Heimat) em nossa Alemanha”.

No Nazismo, cita ainda Michaud, a tarefa de formação (Bildung) e de educação (Erziehung) cabia em

primeiro lugar ao Estado racista ou “étnico” (völkisch): a família e a escola iam, pouco a pouco, se

tornar lugares ou instâncias secundárias, naturalmente subordinadas às organizações paramilitares da

juventude. Mas essa arregimentação geral na ‘Juventude do Estado’ apenas se tornou efetiva às

vésperas da guerra, quando o terror havia terminado de elaborar as leis e seus decretos de aplicação

visando tornar obrigatória a entrada na Hitler-Jugend.

Com esses exemplos históricos do nazi-fascismo, pode-se apreender uma noção que promovia

uma vinculação estreita entre juventude-guerra e que, de certa maneira, radicalizava o que já se

observara anteriormente. No fascismo havia uma vinculação também de um outro atributo jovem, o da

masculinidade, o que associava um certo continuum ideal: juventude-masculinidade-virilidade-guerra.


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De exemplos históricos de enaltecimento, de exaltação até o limite de uma exacerbação do

jovem, da juventude, do adolescente, que absorvia desde as propostas revolucionárias (de diversos

matizes ideológicos) até as propostas mais reacionárias e totalizantes, chega-se a meados do século

XX. Agora já se tratava da juventude vista sob a dimensão de problema, de crise: a juventude é

concebida como desestabilizadora, e isso se refere à adolescência como sintoma social. Passerini (7) 7,

explicita:

“o jovem como conceito simbólico, revela-se o concentrado das angústias da

sociedade – do desemprego ao sentido de inutilidade de vida -, mas torna-se também o

modelo de futuro, portanto, ameaça e esperança. Acentua-se sua fragilidade,

enquanto depositário de valores que a sociedade não soube realizar e que o colocam

numa posição de fronteira crítica, mais ou menos egoísta, da existência. Os jovens de

carne e osso introjetam essas imagens, como um processo iniciado no período entre as

duas guerras e levado a cabo no segundo pós-guerra. Na década de 1950, será

acentuada a insistência sobre o tema do desvio, com loucura da utopia representada

pelos jovens e degeneração do mal social que está neles. Na década de 1960, irá

prevalecer o elemento otimista, a representação de um novo universalismo dos novos

sujeitos capazes de redesenhar o mundo segundo critérios de liberdade e justiça. (...)

Como fundo, a escolarização prolongada e sobretudo a formação de um mercado para

os jovens fornecerão as bases de uma verdadeira e própria cultura juvenil, baseada

numa democratização consumista e criadora de um nivelamento pelo menos exterior. A

luta de gerações terminará por parecer tão relevante quanto a luta de classes, mesmo

no âmbito das posições políticas de esquerda. Em relação a tais mudanças, as imagens

da Itália fascista representam um momento ao mesmo tempo arcaico e antecipador,

advertência de alguns aspectos inseridos numa concepção do moderno como

aceleração, anomia, técnica e domínio.”

A dimensão da juventude como problema, surgiu particularmente nos Estados Unidos numa

publicação de 1904, Adolescence, do psicólogo G. Stanley Hall. Este autor citado por Passerini,

atribuia a essa faixa etária qualidades antitéticas retomadas de Rousseau: hiperatividade e inércia,

sensibilidade social e autocentrismo, intuição aguda e loucura infantil.


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Passerini cita algumas obras que ficaram famosas por abordarem esse aspecto da

adolescência. Nesse contexto destaca “On the road”, escrito por Kerouac em 1941, que tinha como

título original The beat generation. Uma outra referência literária importante é Rebel without a

cause, romance escrito por Robert Lindner e que se popularizou com o filme homônimo, estrelado por

James Dean e Natalie Wood, conhecido no Brasil como “Juventude Transviada”. Ora, é essa mesma

expressão que vai dominar o cenário dos anos 50, tornando uma espécie de ícone para um certo

comportamento transgressor dos jovens.

Nos Estados Unidos, iniciou-se uma série de intervenções governamentais visando a iniciativas

e estudos para a discussão do problema dos jovens: em 1951, foi criado o Youth Correction Division,

para tratar de transgressores até 22 anos e em 1953, fundou-se o Subcomitê do Senado para

Delinqüência Juvenil. Esses atos governamentais, segundo Passerini

“refletem um modo de perceber os jovens como indivíduos perigosos para a

sociedade e para si próprios, e, ao mesmo tempo, necessitando de proteção e de ajuda

particulares”. (7) 7

Passerini cita ainda um estudo realizado e concebido na primavera de 1955. Trata-se da

pesquisa do sociólogo James Coleman, que analisava traços emergentes do que ele chamou “subcultura

adolescente na sociedade industrial”.

“Esses jovens falam outra língua [...] a língua que falam está se tornando cada vez

mais diferente e a sociedade adolescente está se tornando cada vez mais forte nos

subúrbios de classe média [...] difunde-se entre os pais a sensação de que o mundo
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dos teenagers seja uma coisa à parte”. (7)

A autora cita também o psicólogo Edgar Friedenberg, para quem os teenagers pareciam ter

substituído o comunista como objeto de controvérsia pública. Foi percebido que, em relação aos

adolescentes, passou-se a usar terminologias que acentuavam a estranheza deles em relação à

sociedade. Assim, “casta”, “tribo”, “subcultura”, expressões derivadas de certos estudos


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etnográficos, passaram a designar também esses outros de uma cultura, de uma tradição: os

adolescentes.

Numa sociedade cada vez mais baseada e orientada, por um lado, pela idéia de abundância

econômica, de riqueza, e por outro, fundada no burocratismo, na fruição passiva, no conformismo, um

dos aspectos a se destacar é a explosão do consumo de massa. Havia aspectos contraditórios: por um

lado a abundância, por outro a angústia. Esta invadiu os lares particularmente nos momentos duros

que acarretaram perdas de um enorme contingente de jovens envolvidos nas intervenções bélicas

americanas: Coréia, 1953, Vietnam, nos anos sessenta, intervenções oriundas da “Guerra Fria”. Havia

ainda as conturbadas tensões raciais (a luta dos negros pelos Direitos Civis) bem como as

transformações sexuais (a revolução nos costumes dos jovens; o rock and roll, etc). Mais tarde os

EUA terão que se haver com a invasão dos “chicanos”, os pobres estrangeiros, oriundos da América

Central e Latina. Parcelas americanas inteiras se tornaram marginalizadas socialmente, e seus

adolescentes são “os delinqüentes” que se apresentam como o um pesadelo frente ao “american

dream”.

Tentativas de enquadramento legal, ao lado de programas preventivos, propunham dar conta

dessas tensões internas. Houve controle das publicações, do cinema, das artes, dos gibis, declarou-se

uma guerra interna, uma verdadeira “caça às bruxas”, tal como se deu a partir da decisão do Senado

americano que, em 1954, acusava os gibis de incentivarem a delinqüência juvenil. Essas ações

incentivaram o americano médio e a opinião pública a se indignarem contra o cinema e o rádio que

eram acusados de difundir músicas e hábitos capazes de dar coesão e identidade a ”cultura juvenil”

transgressiva. Culpavam-se cantores como Bill Haley e Elvis Presley, “que haviam absorvido a

transgressão da música afro-americana, suas alusões à sexualidade, recriando-as em outros estilos


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de vida, em modos diversos de mover o corpo” (7).

Ainda quanto à questão da sexualidade do adolescente, Passerini destaca que o tema foi

tratado por diversos estudos realizados por psicólogos, psicanalistas e sociólogos americanos. Em

muitos desses estudos as moças e as mulheres muitas vezes estavam ausentes ou mudas. Alguns

autores e intérpretes, que reconheciam tal ausência, justificavam-na de modo apressado, garantindo

que as moças pareciam não fazer parte do problema que envolvia, sobretudo, os jovens. Diziam que as
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jovens estavam mais interessadas na maternidade e também não demonstravam uma consciência

adequada das instituições em que se inseriam, como a escola.

O estereótipo do teenager continha muitos elementos sexuais que

incomodavam os homens adultos, que receavam nele comportamentos julgados homossexuais. Viam,

por exemplo, no uso do jeans muito apertado atitudes provocatórias que sugeriam a copulação.

Julgavam esses hábitos como capazes de levar à desordem e à perda de controle social. Temiam a

crescente democratização das relações entre jovens e adultos. Para justificar seus temores, diante

das formas de manifestação da sexualidade dos adolescentes, preferiam dizer que essas se baseavam

nos comportamentos “desviados” dos negros e dos membros das classes médias baixas. Para eles, as

formas de controle e sanções sociais já não funcionavam, ou funcionavam muito precariamente.

Havia, então uma necessidade exagerada de se salvar as aparências, o que é revelador do

caráter hipócrita das relações na sociedade americana. Cultuavam-se, por exemplo, símbolos da

sexualidade por sua virilidade manifesta, tal como aconteceu com o astro hollywoodiano Rock Hudson.

Até que, na década de 80, em decorrência da AIDS, se descobre, não sem uma comoção social, sua

opção homossexual. O cinema é a fonte privilegiada para se pesquisar esse discurso sobre a

juventude: as produções dos anos cinqüenta dão destaque e privilégio a temas e protagonistas

adolescentes, voltando-se para esse público consumidor. Filmes como Rebel without a cause,

[Juventude Transviada], estrelado por James Dean, mostram que, na realidade, os comportamentos

irregulares dos jovens eram conseqüências das infelicidades promovidas por genitores fracos ou

indiferentes, o que leva os adolescentes a formarem tribos, fechando-se em grupos de amigos,

criando sistemas de lealdades.

Essa forma de grupos será, de alguma maneira, precursora de outros que surgirão nos dois

últimos decênios do Século XX, e não só nos guetos negros das cidades americanas ou nos bairros

pobres de migrantes desse país e em setores de suas classes médias baixas. Essas “tribos” também

se espalham por dezenas de cidades, - ou de suas periferias – por todo o globo. Vemos surgir, por

exemplo, grupos de adolescentes ‘rappers’, ‘hip-hop’, ‘skin-heads’, ‘neo-nazistas’, ‘grafiteiros’,

‘pichadores’, ‘torcidas organizadas’ de clubes de futebol, consumidores de drogas lícitas e ilícitas.

Esses “transviados”, hoje, habitam as cidades como Londres, Berlim, Milão, Roma, Paris, Tóquio, Rio
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de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte. Claro, há especificidade em suas manifestações, em suas

organizações e mesmo em suas linguagens. São grupos tanto de minorias étnicas (que sofrem os

horrores da discriminação, preconceitos, exclusão e marginalização social), mas também adolescentes

de outras classes sociais mais abastadas que não conseguem conviver com ‘os diferentes’. Na maioria

dos casos, vive-se em situações de grande risco. Para todos esses adolescentes já não funcionam as

orientações dos grandes ideais: estamos num tempo da inexistência do Outro, ou seja, de um mal-

estar na cultura, bastante indicativo do modelo civilizatório atual.

E esse tempo define qual é o lugar para se conceber o adolescente. Laurent e Miller indicam

uma pista para se pensar o mal-estar contemporâneo, quando se perguntam: o que é uma civilização? E

respondem: “Digamos que é um sistema de distribuição de gozo a partir de semblantes. Na

perspectiva analítica, isto é do supereu -, uma civilização é um modo de gozo e mesmo um modo

comum de gozo, uma repartição sistematizada dos meios e das maneiras de gozar”. (8) 8

Só encontraremos os contornos particulares desse percurso numa abordagem que não é

historiográfica ou sociológica. Cabe à Psicanálise permitir perceber os contornos pulsionais que

revelam o mal-estar contemporâneo, vivido por cada sujeito. Vê-se, nos tempos atuais, a proliferação

inusitada de formas de gozo proporcionada pela abundância da oferta capitalista de objetos – que

Lacan (9) 9 chamou de latusas. Objetos dispostos nos mercados globalizados do mundo contemporâneo

que sendo de “livre escolha” estão prontos para o uso. Mas um uso que leva ao tédio e à morosidade,

porque pouco exige daquele que o consome. É possível se fazer um bom uso dos objetos

contemporâneos? E quem mais disponível para usá-los que os jovens? Diante dessas questões como

vislumbrar as saídas possíveis para os adolescentes no mundo contemporâneo? Como levá-los a

construir novas formas de convívio para tratar os excessos de satisfação, tratá-los de um mais além

do prazer proporcionados por esta pletora de objetos?


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R
EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1978.

2
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3
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São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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9
LACAN, J. O seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise (1969/1970), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992 : 153 :
179.

JORGE ANTÔNIO PIMENTA FILHO

Sociologist, Master in Education, Member of the Adolescence Health Team – Pediatrics Service of the University Hospital
of the Federal University of Minas Gerais and Associate Member of the Brazilian School of Psychoanalysis of the Freudian
Field.

Telefones: (31) 3248-9541, 3292-6084, e 9974-9440.

Ambulatório Bias Fortes – Setor de Saúde do Adolescente


Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais
Alameda Álvaro Celso, 175 – 6º andar.
30.170-050 – Belo Horizonte – Minas Gerais

(Artigo Original – ensaio ; Educação Continuada).

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