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R A Y M O N D II LLIAM S

AB REV IA TU RAS

PALAVRAS —CHAVE No texto, utilizam-se as seguintes abreviaturas:


c. : circa, aproximadamente (antes de uma data)
u m vocab ul àrio de cu l t u r a e so ci e dade
OED: New English Dictionary on Historical Principles (Oxford)
p.i./pp.ii.: precursora(s) imediata(s) de uma palavra, no mesmo idioma
ou em outro
p.r./pp.rr.: última(s) palavra(s) rastreável (rastreáveis), da(s) qual (quais)
se derivam os significados de raiz
S: século seguido de um número (S19: século 19)
v./vv.: ver verbete(s)

Tra duçúo Cabe fazer, além disso, os seguintes esclarecimentos: início do século refere-se
SANDRA GL'ARDINI VASCONCELOS ao primeiro terço dele; meados, ao segundo terço; fim, ao último terço. O in-
glês antigo é anterior a 1100; o inglês médio é o que teve vigência entre 1100 e
1500, aproximadamente. As citações seguidas unicamente por um nome e data,
ou somente por uma data, correspondem a exemplos mencionados no OED.
As demais citações são seguidas por suas fontes específicas. As referências a
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e obras secundárias são feitas pelo sobrenome do autor, tal como constam em
sociedade. Trad. de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: “Referéncias e bibliografia selecionada”.
Boitempo, 2007
A RT E 61
60 ARTE

a nossa vocação, amigo: a arte criativa”. A associação hoje corrente com criativo
A RT E [art] e imaginativo, como matéria de classificação, data efetivamente do final do S18 e
início do Sl9. O significativo adjetivo artístico remonta a meados do Sl9.
O significado geral primitivo de arte, para referir-se a qualquer tipo de habi- Temperamento artístico e sensibilidade artística datam do mesmo período.
lidade, ainda vigora na língua inglesa. Mas tornou-se comum o sentido mais O mesmo ocorre com artista de espetáculos‘ \artiste], outra especialização para
especializado, que predomina em as artes e, em grande medida, em artista. intérpretes, como atores e cantores, reservando-se artista para pintor, escultor
O termo art é usado no inglês desde o S13, da p.i. art, do francês antigo, e, finalmente (desde meados do S19), para escritor e compositor.
e da p.r. latina unem, habilidade. Teve ampla aplicação, sem especialização É interessante observar quais palavras, em diferentes períodos, distinguem-
predominante, até finais do S17, em assuntos tão diversos quanto matemática, -se habitualmente de arte ou contrastam com ela. Antes de meados do S17,
medicina e pesca com vara. Nos currículos das universidades medievais, as artes sem arte [artless] significava “inábil” ou “destituído de habilidade”, e o sentido
(“as sete artes” e, mais tarde, “as artes LIBERAIS [v.]”) eram a gramática, a lógica, sobreviveu. Ocorreu, porém, um primeiro contraste regular entre arte e natureza,
a retórica, a aritmética, a geometria, a música e a astronomia; e artista, a partir isto é, entre o produto da habilidade humana e o produto de alguma qualidade
do Sl6, foi primeiro usado nesse contexto, embora com desenvolvimentos quase inerente. Sem arte adquiriu então, desde meados do S17, mas sobretudo a par-
contemporâneos para descrever qualquer pessoa habilidosa (como tal, o termo tir do final do S18, um sentido positivo para assinalar espontaneidade mesmo
é substancialmente idêntico a artesão até finais do S16) ou praticante de uma em “arte”. Enquanto arte ainda significava habilidade e INDÚSTRIA (v.) uma
das artes correspondentes ao grupo presidido pelas sete musas: história, poesia, habilidade diligente, elas eram amiúde intimamente associadas, mas, uma vez
comédia, tragédia, música, dança e astronomia. Adiante, a partir do final do S17, tornadas abstratas e especializadas, foram contrastadas com frequência, desde
tornou-se cada vez mais comum uma aplicação especializada a um conjunto de o início do S19, como áreas independentes da imaginação e da utilidade. Até o
habilidades até então não representadas formalmente: pintura, desenho, gra- S18, a maioria das ciências eram artes; a distinção moderna entre ciéncio e
vura e escultura. O uso hoje dominante de arte e artista para referir-se a essas arte, como áreas opostas de habilidade e de esforço humanos, com métodos
habilidades ainda não se havia estabelecido plenamente até o final do S19, mas e finalidades fundamentalmente diferentes, remonta a meados do S19, embora
foi nesse conjunto que, no final do Sl8, e com especial referência à exclusão os próprios termos se tenham contraposto muito antes, no sentido de “teoria”
dos gravadores da nova Royal Academy, fortaleceu-se e popularizou-se uma e “prática” (ver CIENCIA, TEORIA).
distinção hoje generalizada entre artista e artesão — este último reservado ao Esse conjunto complexo de distinções históricas entre os diversos tipos de
“trabalhador manual especializado’, sem propósitos ‘intelectuais , "imaginati- habilidade humana e os propósitos básicos variáveis no uso dessas habilidades
vos” ou criativos”. Esse desenvolvimento de artesão e a definição de cientista de
está obviamente relacionado tanto com as mudanças na divisão prática do
meados do S19 possibilitaram a especialização de artista e a distinção já não
trabalho quanto com as mudanças fundamentais nas definições práticas dos
das artes liberais, mas das belas-artes.
propósitos do exercício da habilidade. É possível relacioná-lo principalmente
O surgimento de uma Arte abstrata e grafada com letra maiúscula, com
com as mudanças inerentes à produção capitalista de mercadorias, com sua
seus próprios princípios internos, porém gerais, é difícil de situar. Há vários
especialização e redução de valores de uso a valores de troca. Em consequên-
usos setecentistas plausíveis, mas foi no S19 que o conceito se generalizou.
Relaciona-se historicamente, nesse sentido, ao desenvolvimento de CULTURA ‘ Em inglés, artiste, em contraposição a artist. (N. T.)
e ESTÉTICA (vv.). Em 1815, Wordsworth escreveu ao pintor Haydon: “Elevada é
82 C I Ê N CI A CIV I LI Z AÇ ÃO

62 ART E

ra, estético e subjetivo) para definir a limitação igualmente evidente da “outra”


cia, houve uma especialização defensiva de certas habilidades e propósitos, posição, na realidade complementar.
que passaram a designar-se as artes ou os humanidades, nas quais as formas Ver xRrE, EMP ÍR ICO, EK PER IÊ NCIA, MATERI A LISM O, P OSI TIV ISTA, SUB JETIVO,
de uso e de intenção gerais que não estavam determinadas pela troca imediata TEORIA.

podiam ao menos tornar-se conceitualmente abstratas. Essa é a base formal da


distinção entre arte e indústria, e entre belas-artes e artes úteis (estas últimas
adquiririam, por fim, um novo termo especializado em TECNOLOGIA [v.]).
Nessa perspectiva fundamental, o artista distingue-se não apenas do cien- CIVILI ZA SAO [civilizafion]
tista e do tecnólogo - cada um deles teria sido chamado de artista em períodos Em geral, usa-se civilização hoje para designar um estado ou condição consu-
anteriores -, mas do artesão, do artifice e do trabalhador especializado, que hoje
mada de vida social organizada. Como CULTURA (v.) — com a qual tem uma
são operários em termos de uma definição e de uma organização específicas
longa e ainda difícil interação, a palavra se referia originalmente a um processo
do TRABALHO (v.). Quando essas distinções práticas se fazem valer, num modo
e, em alguns contextos, esse sentido ainda sobrevive.
determinado de produção, arte e artista suscitam associações ainda mais gerais
Civilization foi precedida em inglês por civilize, que surgiu no início do Sl7
(e vagas) e propõem-se a expressar um interesse humano geral (isto é, não uti-
a partir do francês civiliser, do Sl6, p.i. civilizare, do latim medieval (transformar
litário), ainda que, ironicamente, a maioria das obras de arte seja efetivamente
uma questão criminal em uma questão civil e, por extensão, incorporar a uma
tratada como mercadoria e a maioria dos artistas, ainda que com justiça afirmem
forma de organização social). A p.r. é civil, do latim civilis (de ou pertencente
intenções muito diferentes, seja efetivamente tratada como uma categoria de
aos cidadãos), do latim civis (cidadão). Civil, portanto, foi usado em inglês a
artesãos ou trabalhadores especializados independentes, que produzem certo
tipo de mercadoria marginal. partir do Sl4 e, por volta do Sl6, adquiriu os sentidos ampliados de ordeiro

Ver ci ENCIA, Co ixriVO, CULTURA, ESTÉT ICO, GÊNIO, I t.iDÜSTRIA, TECNOLOG IA. e educado. Em 1594, Hooker referiu-se à “sociedade civil” - uma expressão
que se tornaria central no S17 e especialmente no S18 -, mas o principal de-
senvolvimento para a descrição de uma sociedade ordenada foi civility, da p.i.
civilitas, do latim medieval (comunidade). Civilidade foi usada no S17 e Sl8 em
contextos nos quais hoje se esperaria encontrar civilização, e ainda em 1772,
em visita a Johnson, Boswell

encontrou-o ocupado, preparando a quarta ediçâo de seu dicionário in folio 2...).


Ele se recusava a admitir civilização, mas apenas civilidade. Com todo o respeito
que ele merecia, eu considerava civilização, de civilizar, melhor que civilidade, no
sentido oposto a barbdrie.

Boswell identificou corretamente o principal uso que começava a surgir e que


enfatizava não tanto um processo, mas um estado de ordem social e refinamento,
particularmente em contraste histórico ou cultural deliberado com barbaris-
84 CIVI L I ZAÇfi O

C IV I LI ZAÇfi O 83
fortes sobre os fracosi as grandes obras realizadas em todos os cantos do globo
ano. Civilizotion apareceu no dicionário de Ash em 1775 para indicar tanto o graças à cooperação de multidões.
estado quanto o processo. Tornou-se comum por volta do final do S18 e mais
Essa é a gama de exemplos positivos de civilização que Mill oferece; trata-se
marcadamente no 519.
de uma gama totalmente moderna. Seguem-se os efeitos negativos: a perda de
De certo modo, o novo sentido de civilização, a partir do final do S18, é uma
independência, a criação de necessidades artificiais, monotonia, compreensão
combinação específica das ideias de um processo e de uma condição adquirida.
Tem atrás de si o espírito geral do Iluminismo, com sua ênfase no autodesenvol-
mecânica e estreita, desigualdade e pobreza sem esperanças. O contraste feito
vimento humano secular e progressivo. Civilização expressou esse sentido de por Coleridge e outros era entre civilização e cultura ou cultivo:
processo histórico, mas também celebrou o sentido associado de modernidade: A distinção permanente e o contraste ocasional entre cultivo e civilização (...) A
uma condição adquirida de refinamento e ordem. Na reação romàntica contra
permanência da nação [...] e seu caráter progressista e liberdade pessoal [...] de-
essas pretensões da civilização, palavras alternativas desenvolveram-se para pendem de uma civilização contínua e progressista. Mas a própria civilização não
exprimir outros tipos de desenvolvimento humano e outros critérios para o
é senão um bem misto, se não uma influência muito mais corruptora, a héctica da
bem-estar humano, notadamente CULTURA (v.). No final do S18, a associação
enfermidade e nào o viço da saúde, e é mais apropriado chamar uma nação assim
de civilização com refinamento de maneiras era normal tanto no inglês como
distinta de um povo com verniz e não de um povo polido, onde essa civilização não se
no francês. Burke escreveu em Reflexões sobre a Revolução em França: “nos-
ffuunnddaa nnoo ccuullttiivvoo,, nnoo ddeesseennvvoollvviim
meennttoo hhaarrm
m oonniioossoo ddaaqquueellaass qquuaalliiddaaddeess ee ffaaccuullddaaddeess
sos costumes e civilização, e todas as boas coisas que deles decorrem"’. Aqui
qquueeccaarraacctteerriizzaam
m nnoossssaa hhuum
maanniiddaaddee.. ((O
Onn tthheeCCoonnssttiittuuitioorni oo/f C
Chhu
urrcchh aanndd SSttaattee,, VV))
os termos parecem quase sinônimos, embora devamos obser var que maneiras
tem uma referência mais ampla do que no uso moderno corrente. A partir do N essa passagem, éé eevviddeenntee qquuee Coleridge eesstaavvaa ccoonnssccieenntee ddaa aassssoocciaaççããoo
início do S17, o desenvolvimento de civilização para seu sentido moderno, no eenntrree ccivvilizzaaççããoo ee polimento ddaass maneiras; eessssee éé oo sseenntiddoo do ar g ument o ssoobbrree
qual se enfatiza tanto a ordem social e o conhecimento ordenado (mais tarde, oo verniz, ee aa ddisstinnççããoo lembraa aa ccuurrioossaa juusstaappoossiiççããoo, no innggléêss ee no ffrraannccêêss d o
CIhNCIA [v.]) quanto o refinamento de maneiras e o comportamento, é, de S1l8, entre ppoolisshheedd [polido] ee ppoolitee [[ccoorrtéêss]], qquuee p o s s u e m aa mesma rraaiizz.. Mas aa
modo geral, mais precoce no francês do que no inglés. Mas há um momento ddeessccrriççããoo d e ccivvilizzaaççããoo como um “bem missttoo””, as sim como aa ddeessccrriççããoo ma is
decisivo na língua inglesa nos anos 1830, quando Mill escreveu, em seu ensaio eelaabboorraaddaa ffeeitaa po r Mill ee seus eeffeeitooss positivos ee nneeggaativvooss, m a r c a oo momento
sobre Coleridge: em q u e aa ppaalaavvrraa p assou aa rreepprreesseenntaarr todo u m pro cesso ssoocciaal mo de r n o . A
partir ddaaí, eessssee sseennttiddoo t ornou-ssee dominante, quer ooss eeffeeitooss fo s s e m ccoonnssiddeerraaddooss
Considere-se, por exemplo, a questão de quanto a humanidade ganhou com a ci-
bbo n s , maus oouu m i s t o s .
vilização. Um observador forçosamente surpreende-se com a multiplicação dos
Não obstante, eelee aainnddaa eerraa vviissttoo sobretudo como u m p ro cesso ggeerraal ee cceerr--
confortos materiais; o avanço e a difusão do conhecimento: a decadência da su-
tamente universal. Houve um m omento ccrríticcoo em qquuee ssee u s o u ccivvilizzaaççããoo n o
perstição; as facilidades de intercâmbio recíproco; o abrandamento das maneirasi
plural. IIssssoo ocorre m a i s tardiamente com ccivvilizzaaççõõeess d o qquuee com ccuultuurraass,-; sseeuu
o declínio da guerra e do conflito pessoali a limitação progressiva da tirania dos
primeiro u s o manifesto ddeeuu--ssee em ffrraannccêêss (Ballanche), em 11881199. É p recedido
em inngglêêss p or uussooss implícitos ppaarraa rreeffeerrirr--ssee aa uma ccivvilizzaaççããoo m a i s aanntiggaa, mas
* Trad. Renato de Assumpção Faria, Denis F. S. Pinto e Carmen Lidia R. R. Moura, 2. ed., n ã o éécomum em luuggaarr nenhum aatéé aaddééccaaddaa d e 11886600.
Brasília, Unb, 1997, p. 102. (N. T.)
CO MUN IC AÇÃ O CO M U N I DA DE t03
CI V I LI ZAÇx I CLA SSE 85

a muitos e partilhar - podem ser lidos em qualquer uma das direções, e a


Em inglês moderno, civilicação ainda se refere a uma condição ou estado
escolha de direção é frequentemente crucial. Daí a tentativa de generalizar
geral, e ainda em contraste com selvageria ou barbarismo. Mas o relativismo
a distinção em duas expressões tão opostas como comunicação(ções) mani-
inerente aos estudos comparados, e com reflexos no uso de civüizações, afetou puladora(s) e comunicação(ções) participativa(s).
esse sentido principal, e atualmente a palavra atrai algum adjetivo definidor: Ver coouM.
civilização ocidental, civilização moderna, civilização industrial, civiliza-
ção científica e tecnológica. Como tal, passou a ser uma forma relativamente
neutra para referir-se a qualquer ordem social ou modo de vida adquirido,
COMUNI DADE [community]
e nesse sentido tem uma relação complicada e muito discutida com o sentido
social moderno de cultura. Contudo, o sentido de um estado adquirido ainda Comriiiinify está presente na língua inglesa desde o S14, da p.i. comuneté, do
tem força suficiente para conservar alguma qualidade normativai assim, a ci- francês antigo, do latim communitatem (comunidade de relações ou sentimen-
vilização, um modo civilizado de vida, as condiçóes da sociedade civilizada tos), da p.r. latina communis (COMUM [v.]). Fixou-se, em inglês, em uma gama
podem ser vistos como algo que se pode perder ou conquistar. de sentidos: (i) os comuns ou pessoas comuns, enquanto distintas das pessoas de
Ver CIDADE, CULTURA DESBNVOLV IM ENTO, MODERNO, OCI DENTAL, SOCIEDA DE. condição (S14-S17); (ii) um estado ou sociedade organizada, em seus usos
mais tardios relativamente pequena (do S14 em diante); (iii) as pessoas de um
distrito (do S18 em diante); (iv) a condição de possuir algo em comum, como
em comunidade de interesses, comunidade de bens (do S16 em diante); (v)
um senso de identidade e características comuns (S16 em diante). Veremos que
os sentidos (i) a (iii) indicam grupos sociais reais; os sentidos (iv) e (v), uma
qualidade específica de relação (como em communitas j. Desde o S17, há sinais
da distinção que se tornou particularmente importante do Sl9 em diante e
pela qual se percebia que comunidade era mais imediata do que SOCIEDADE
(v.), embora se deva lembrar que a própria sociedade teve esse sentido mais
imediato até o S18, e que sociedade civil (ver CIVILIZAÇAO) foi originalmente,
como sociedade e comunidade nesses usos, uma tentativa de fazer uma distin-
ção entre o conjunto de relações diretas e o estabelecimento organizado do
reino ou do Estado. A partir do S19, o sentido de proximidade ou de localidade
desenvolveu-se rigorosamente no contexto das sociedades industriais maiores
e mais complexas. A palavra comunidade foi normalmente escolhida para
referir-se aos experimentos em um tipo alternativo de vida em grupo. Ainda é
usada nesse sentido e se lhe agregou, em um sentido mais limitado, a palavra
comuna (o francês commune - menor divisão administrativa — e o alemão
C RIT I Cx ! c u rT U Rx 117

104 CO M U N I DADE

se mantém a mesma espécie de atividade, mas livrar-se do hábito, que depende


Gemeinde - divisão civil e eclesiástica — haviam interagido entre si e com íundamentalmente da abstração da resposta de sua situação e circunstâncias
comunidade, e também entraram no pensamento socialista — especialmente reais: a elevação ao caráter de “juízo” e a um processo aparentemente geral,
comuna — e na sociologia — especialmente Gemeinde - para expressar tipos quando o que é preciso compreender é a especificidade da resposta, que não é
específicos de relações sociais). O contraste, expresso de modo crescente no um “juízo” abstrato, mas uma prática definida em relações ativas e complexas

S19, entre as relações mais diretas, mais totais e portanto mais significativas com sua situação e contexto totais, mesmo quando inclui, como é frequen-

de comunidade e as relações mais formais, mais abstratas e mais instrumen- temente necessário, respostas positivas ou negativas.
Ver CONSUMID OR, ESTÉTICO, G OSTO, SEN SI B IU DADE.
tais de Estado ou de sociedade em seu sentido moderno foi formalizado de
maneira decisiva por Tönnies (1887) como um contraste entre Gemeinschaft
e Gesellschaft,- esses termos às vezes são usados ainda hoje em outras línguas
na forma original. Uma distinção comparável é evidente nos usos de comu- CULTURA [culture
nidade de meados do S20. Em alguns deles, foi-lhes conferida uma agudeza
Culture é uma das dnas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa.
polêmica, como em política comunitária, que se distingue näo apenas de politics
Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico em
nacional, mas de politics local formal e, via de regra, envolve diversos tipos de
diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada para
ação e de organização local diretas, “trabalhar diretamente com as pessoas”, e
referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais distintas
como tal se distingue de “serviço para a comunidade”, que tern um sentido mais
e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis.
antigo de trabalho voluntário suplementar à provisäo oficial ou ao serviço pago.
A p.i. é o latim cultura, da p.r. colere. Colere tinha uma gama de significados:
A complexidade de comunidade, portanto, diz respeito à difícil interaçäo
habitar, cultivar, proteger, honrar com veneração. Alguns desses significados
entre as tendências originalmente distintas no desenvolvimento histórico:
finalmente se separaram nos substantivos derivados, embora ainda haja su-
por um lado, o sentido de um interesse comum direto; por outro, a materializa-
perposições ocasionais. Dessa maneira, “habitar” desenvolveu-se do latim
ção de diversas formas de organização comum, que pode ou não expressá-la de
colours ate chegar a colony [colónia]. “Honrar com veneração” desenvolveu-se
maneira adequada. Comunidade pode ser a palavra calidamente persuasiva para
do latim cultus ate chegar a cult [culto]. Culture assumiu o sentido principal
descrever um conjunto existente de relações, ou a palavra calidamente persuasiva
de cultivo ou cuidado, incluindo, como em Cícero, culture animi, embora com
para descrever um conjunto alternativo de relações. O mais importante, talvez,
significados medievais subsidiários de honra e adoração (cf., em inglês, cultu-
é que, diferentemente de todos os outros termos de organização social (Esfodo,
ra como “adoração” em Caxton, 1483). As formas francesas dO liltim Culture
naçäo, sociedade etc.), ela parece jamais ser usada de modo desfavorável e nunca
eram couture, do francês antigo, que a partir de então desenvolveu seu próprio
receber nenhum termo positivo de oposição ou de distinção.
sentido especializado, e mais tarde culture, que por volta do início do S15 havia
Ver civ iLi Znçño, come, COMUN ISMO, NAC IONALI STA, SO CIE DA DE.
passado para o inglês. O sentido primordial referia-se, então, a lavoura, isto é,
o cuidado com o crescimento natural.
Em todos os primeiros usos, cultura era um substantivo que se referia a um
processo: o cuidado com algo, basicamente com as colheitas on com os animais.
118 C U LT UR A CULTURA 119

O subsidiário coulter (relha de arado) tomou um rumo linguístico diferente a sobre um processo social geral, e esse é um estágio definido de desenvolvimento.
partir do latim culter (relha de arado) passando pelo inglés antigo culter até che- da Inglaterra setecentista, esse processo geral adquiriu associações definidas de
gar às ortografias inglesas variantes culter, colter, coulter e, até mesmo no início classe apesar de cultivo e ciiltivado serem mais comumente usados com esse
do S17, culture (Webster, A Duquesa de Malfi, III, ii: "relhas de arado [alhures] significado. Mas há uma carta de 1730 (do bispo de Killala para Mrs. Clayton,
em brasas”). Isso proporcionou outra base para a etapa seguinte e importante citada em England in the Eighteenth Century, de Plumb) que tem esse sentido
de significado, por metaforização. A partir do princípio do S16, o cuidado com ilaro: “não tem sido costume entre pessoas de nascimento ou cultura criar seus
o crescimento natural ampliou-se para incluir o processo de desenvolvimento tilhos para a Igreja'* Akenside í Pleasures of lmagination, 1744) escreveu: “nem
humano, e esse, ao lado do significado original relativo a lavoura, foi o sentido berço de ouro nem cultura podem outorgar”; Wordsworth escreveu: “onde se
principal até o final do Sl8 e início do 519. Daí More: “para a cultura e o pro-
desconhece completamente a graça da cultura" (1805); e Jane Austen (Emma,
veito de suas mentes”; Bacon: “a cultura e o cultivo das mentes” (1605); Hobbes:
1816):“todas as vantagens da disciplina e da cultura’'
“uma cultura de suas mentes” ( 1651); Johnson: "ela negligenciou a cultura de
Desse modo, fica claro que cultura se desenvolvia em inglés para alguns de
seu discernimento" (1759). Em diversos momentos do desenvolvimento, ocor-
seus sentidos modernos antes dos efeitos decisivos de um novo movimento social
reram duas mudanças cruciais: em primeiro lugar, certo grau de adaptação à
e intelectual. No entanto, para seguir a evolução por meio desse movimento, no
metáfora, que tornou direto o sentido de cuidado humano; em segundo lugar,
fim do Sl8 e princípios do S19, temos de examinar também os desenvolvimen-
uma extensão dos processos específicos ao processo geral, que a palavra poderia
tos em outras línguas, especialmente no alemão.
carregar de modo abstrato. Naturalmente, é a partir deste último desenvolvi-
No francés, até o S18, cultura sempre esteve acompanhada de uma forma
mento que o substantivo independente cultura iniciou sua complicada história
gramatical indicativa do assunto que se cultivava, tal qual no uso em inglés
moderna, mas o processo de mudança é tão intrincado, e os sentidos latentes
já assinalado. Sua utilização ocasional como substantivo independente data
às vezes se aproximam tanto, que não é possível afirmar uma data definitiva.
de meados do 518, bem posterior a usos ocasionais semelhantes em inglês. O
Como substantivo independente, cultura - processo abstrato ou o produto de tal
substantivo independente civilização também surgiu em meados do 518; a partir
processo - só passa a ser importante no final do S18 e não é comum antes de
de então, sua relação com cultura é muito complicada (cf. CIVILIZAÇÃO e a dis-
meados do S19. Há um uso interessante em Milton, na segunda edição revisada
cussão a seguir). Havia nessa época um desenvolvimento importante em alemão:
de The Readie and Easie Way to Establish a Free Commonwealth (1660):
a palavra foi empreitada do francês, primeiro grafada Cultur e, a partir do S19,
difundir muito mais conhecimento e civilidade, e até religião, por todos os lugares Kultur. Seu principal uso era ainda corno sinônimo de civilização: primeiro, no
do país, comunicando o calor natural do governo e da cultura de modo mais bem sentido abstrato de um processo geral de tornar-se "civilizado” ou ‘cultivado”;
distribuído a todas as partes extremas, que hoje permanecem no aturdimento e na segundo, no sentido que já fora estabelecido para civilização pelos historiadores
ignorância. do Iluminismo, na popular forma setecentista das histórias universais, como

Aqui, o sentido metafórico (“calor natural”) ainda parece presente, e ainda se uma descrição do processo secular de desenvolvimento humano. Então, Herder
diz civilidade (cf. CIVILIZAÇÃO) quando, no 519, se esperaria normalmente introduziu uma mudança decisiva de uso. Em sua obra inacabada Auch eine
cultura. Contudo, pode-se igualmente ler "governo e cultura” em um sentido Phílosophie der Geschichte zur Bildung der Menscheit [Sobre a filosofia da história
bastante moderno. De acordo com o teor de sua argumentação, Milton escreve para a educação da humanidade] (1784-91), ele escreveu a respeito de Cultur:
“nada é mais indeterminado que essa palavra e nada mais enganoso que sua
121
120 C U LT U R A

*História cultural geral da humanidade” (1843-52) — de G. F. Klemm, que traçava


aplicação a todas as nações e a todos os períodos”. Ele atacava o pressuposto das
histórias universais de que “civilização" ou “cultura" — o autodesenvolvimento o desenvolvimento humano desde a selvageria ate a liberdade, passando pela

histórico da humanidade — fosse o que hoje chamaríamos de processo unilinear domesticação. Embora o antropólogo norte-americano Morgan, ao rastrear es-

e conduziria ao ponto alto e dominante da cultura europeia do 518. Na verdade, tágios comparáveis, tenha usado “sociedade antiga", culminando em civifiznçõo,

atacava o que chamava de subjugação e dominação europeias dos quatro cantos o sentido que lhe deu Klemm se manteve e foi seguido diretamente em inglês

do globo e escrevia: por Tylor em Primitive Culture (1870). O sentido predominante nas ciências
sociais modernas deve ser traçado segundo essa linha de referência.
Homens de todas as regiões do globo que haveis perecido ao longo das épocas, não
É possível avaliar, portanto, a complexidade do desenvolvimento e do uso
vivestes apenas para adubar a terra com vossas cinzas, para que ao final dos tempos
modernos da palavra. É fácil distinguir o sentido que depende de uma conti-
a cultura europeia derramasse felicidade sobre vossa posteridade. A própria ideia
nuidade literal do processo físico, como hoje em “cultura de beterraba’, ou, na
de uma cultura europeia superior é um insulto flagrante à majestade da Natureza.
aplicação física especializada em bacteriologia desde a década de 1880, “cultura
Argumentava que era necessário, no que consistia uma inovação decisiva, falar de germes". Mas, quando vamos além da referência física, temos de reconhecer
de “culturas" no plural: culturas específicas e variáveis de diferentes naçöes e três categorias amplas e ativas de uso. Já discutimos as fontes de duas delas:
períodos, mas também culturas específicas e variáveis dos grupos sociais e eco- i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desen-
nòmicos no interior de uma nação. Esse sentido desenvolveu-se amplamente volvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do S18; (ii) o substantivo
no movimento romàntico como alternativa ao ortodoxo e dominante “civifi- independente, quer seja usado de modo geral on específico, indicando um
zaçõo". Primeiro, foi usado para enfatizar as culturas nacionais e tradicionais, modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da
incluindo o novo conceito de cultura popular (cf. FOLK). Mais tarde, passou humanidade em geral, desde Herder e Klemm. Mas também é preciso reconhe-
a ser usado para atacar o que era visto como o caráter “MECÂNICO" (v.) da nova cer (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práti-
civilização que então emergia: tanto por seu racionalismo abstrato quanto pela cas da atividade intelectual e, particularmente, artística. Com frequência, esse
“inumanidade" do desenvolvimento industrial da época. O termo foi usado para parece ser hoje o sentido mais difundido: cultura é música, literatura, pin-
distinguir desenvolvimento “humano" do "material". Politicamente, como era tura, escultura, teatro e cinema. Um Ministério da Cultura refere-se a essas
frequente no período, oscilava entre o radicalismo e a reação e não raras vezes, atividades específicas, algumas vezes com o acréscimo da filosofia, do saber
na confusão de importantes mudanças sociais, fundia elementos de ambos. acadêmico, da história. O uso (iii) é, na verdade, relativamente tardio. É difícil
(Também seria necessário salientar, embora isso só aumente a real complicação, datá-lo com precisão porque é, na origem, uma forma aplicada do sentido (i):
que Humboldt e outros fizeram o mesmo tipo de distinção, principalmente entre aplicou-se e transferiu-se a ideia de um processo geral de desenvolvimento
desenvolvimento “material" e “espiritual", mesmo ate 1900, com uma inversão intelectual, espiritual e estético às obras e às práticas que o representam e sus-
dos termos: cultura material e civilização espiritual. Em geral, no entanto, tentam. Mas também se desenvolveu a partir do sentido anterior de processo;
predominava a distinção oposta.)
cf. “cultura progressiva das belas-artes”, em Millar Htstorical View of the English
Por outro lado, a partir da década de 1840, na Alemanha, utilizava-se Kufftir
Government, IV, 314 (1812). Em inglês, (i) e (iii) estão ainda próximos; às vezes,
em um sentido muito parecido com o que tivera civilizaçäo nas histórias univer-
por razões internas, são indiscerníveis, como em Arnold, Culture and Anarchy
sais do Sl8. A inovação decisiva foi All emeine Kultur eschichte der Menschheit - (1867); ao passo que o sentido (ii) foi decididamente introduzido no inglês
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por for, em Primitive Culture (1870), na esteira de Klemm. O desenvol-


palavra complexa indica. A complexidade, vale dizer, não está, afinal, na palavra
vimento decisivo do sentido (ii) em inglês ocorreu no final do Sl9 e início mas nos problemas que as variações de uso indicam de maneira significativa.
do S20. fi necessário examinar, igualmente, as palavras associadas e derivadas. Cul-
Diante dessa complexa e ainda ativa história da palavra, é fácil reagir com a tivo e cultivado sofreram a mesma extensão metafórica de um sentido físico
escolha de um sentido “verdadeiro'” “adequado” ou “científico" e descartar ou- para um sentido social ou educacional no 517; eram palavras particularmente
tros sentidos por serem vagos ou confusos. Há provas dessa reação mesmo no significativas no S18. Coleridge, ao fazer uma distinção típica do início do S19
excelente estudo de Kroeber e Kluckhohn, Culture: a Critical Review ofConcepts entre civilização e cultura, escreveu (1830): “a distinção permanente, e o con-
and Definitions, em que o uso na antropologia norte-americana é adotado como traste ocasional, entre cultivo e civilização‘' O substantivo, nesse sentido, efeti-
norma. É claro que, em uma disciplina, é preciso esclarecer o uso conceitual. e-amente desapareceu, mas o adjetivo ainda é bastante comum, especialmente
Mas, em geral, o que é significativo é o leque e a sobreposição de sentidos. O em relação aos costumes e gostos. O importante adjetivo cultural parece datar
complexo de significados indica uma argumentação complexa sobre as relações da década de 1870 e tornou-se comum por volta da década de 1890. A palavra
entre desenvolvimento humano geral e um modo específico de vida, e entre am- só esteve disponível no sentido moderno quando o substantivo independente,
bos e as obras e práticas da arte e da inteligência. É particularmente interessante nos sentidos artístico, intelectual ou antropológico, tornou-se familiar. A hos-
que, na arqueologia e na antropologia cultural, a referência a cultura ou a uma tilidade à palavra cultura em inglês parece datar da controvérsia a respeito das
cultura aponte primordialmente a produção material, enquanto na história e posições de Arnold. Ganhou força no final do Sl9 e início do S20, em associação
nos estudos culturais a referência indique fundamentalmente os sistemas de sig- com igual hostilidade a esteta e ESTÉTICO (v.). Sua associação com distinções

nificação ou simbólicos. Isso confunde amiúde, mas, ainda mais frequentemente, de classe produziu o arremedo culchah‘. Havia também uma área de hostili-

esconde a questão central das relações entre produção “material” e “simbólica’, dade associada ao sentimento antialemão, durante e após a Primeira Guerra,
em relação à propaganda sobre Ktiffur. A área central de hostilidade persistiu,
que em algumas discussões recentes — cf. meu próprio Cultura - foram mais
e um de seus elementos foi enfatizado pela recente expressão norte-americana
relacionadas do que contrastadas. Nessa complexa argumentação, há posições
cultura-vulture [cultura-abutre]. É significativo que praticamente toda a
fundamentalmente opostas e também efetivamente superpostas; há ainda — o
hostilidade (com a única exceção da temporária associação antialemã) tenha
que é compreensível — muitas questões não resolvidas e respostas confusas. Mas
sido vinculada aos usos que envolviam afirmações de conhecimento superior
não se podem resolver esses argumentos e questões reduzindo-se a complexidade
(cf. o substantivo INTELECTUAL), refinamento (culchah) e distinções entre
do uso real. Esse ponto é relevante também aos usos de formas da palavra em
arte “alta” (cultura) e arte e entretenimento populares. Ela registra, portanto,
outras línguas além do inglês, em que existem variações consideráveis. O uso
uma história social real e uma fase muito difícil e confusa do desenvolvimento
antropológico é comum nos grupos linguísticos alemão, escandinavo e eslavo,
social e cultural. É interessante que o uso social e antropológico em constante
mas subordina-se de maneira distinta aos sentidos de arte e de erudição ou de
expansão de cultura e cultural e de formações como subcultura (a cultura de
um processo geral de desenvolvimento humano em italiano e francês. Entre um grupo discernível menor) tenha ou eludido ou diminuído a hostilidade e o
línguas, assim como no interior delas, o leque e a complexidade de sentidos e
referências indicam tanto a diferença de posiçào intelectual quanto algum obs- Ê como soa a palavra culture quando pronunciada por pessoas de alto nível sociocultural.
curecimento ou sobreposição. Essas variações, de qualquer espécie, envolvem (N. T.)
necessariamente visões alternativas das atividades, relações e processos que essa
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mal-estar e embaraço que lhe são associados, exceto em certas áreas (notada-
mente no entretenimento popular). O uso recente de culturalisma para indicar
um contraste metodológico com estruturalismo na análise social mantém muitas
das dificuldades anteriores e nem sempre evita a hostilidade.
Ver aNT ROPOLOGIA, ARTE, CIÉNCIA, CIV ILIZAÇÃO, DESENVOLVI MENTO, ESTÉ-
TICO, FOLK, H UMANI DA DE, OCIDENTAL.

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