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EDIÇÃO 33 | JUNHO_2009
carta de Dubai
RACHADURAS NO PARAÍSO
Com a crise, aparecem as primeiras fissuras e as paisagens menos cintilantes do templo do
consumismo global
JOHANN HARI
FOTO: LAYINGWITHLIGHTDUBAI
A
imagem sorridente do xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum,
o soberano de Dubai, aparece a cada dois arranha-céus do emirado.
Ele vendeu Dubai ao mundo como a cidade das Mil e Uma Luzes,
uma Shangri-lá do Oriente Médio protegida das tempestades de areia
que assolam a região. Sua imagem domina a silhueta que imita a de
Manhattan, radiante entre as pirâmides de vidro e os hotéis construídos
em forma de moedas de ouro empilhadas. Lá está ele, no prédio mais alto
do mundo – uma agulha fina, invadindo o céu como nenhuma outra
construção humana na história.
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A canadense Karen Andrews não consegue falar. Toda vez que começa a
contar sua história, abaixa a cabeça. Ela é magra e forte, com o esplendor
embotado de quem já foi rico. Suas roupas estão amarrotadas como a
testa, enrugada. Encontro-a no estacionamento de um dos hotéis mais
chiques de Dubai, dentro de um Range Rover. Karen dorme naquele
carro e naquela garagem há meses, graças à caridade dos funcionários
bengaleses do estacionamento, que não tiveram coragem de expulsá-la.
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Mas, pela primeira vez na vida, ele se embaralhou nas finanças. O casal
acabou se endividando e Karen começou a estranhar as confusões
financeiras do marido. Passado um ano, descobriu que Daniel tinha um
tumor maligno no cérebro.
As dívidas cresceram. “Até então, eu não sabia nada a respeito das leis de
Dubai. Com todas essas grandes corporações se instalando no emirado,
imaginei que o sistema local deveria ser parecido com o do Canadá, ou o
de qualquer outra democracia liberal.” Ninguém lhe havia contado que
em Dubai não existe o conceito de falência. Quem se endividar e não tiver
como pagar vai para a cadeia.
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T
rinta anos atrás, quase toda a área onde se ergue hoje o emirado de
Dubai era deserta, habitada somente por cactos, plantas e escorpiões.
Tudo começou em meados do século XVIII, com a fundação de uma
pequena vila ao sul do Golfo Pérsico que atraiu mergulhadores em busca
de pérolas. Em pouco tempo, a população foi se tornando mais
cosmopolita, com viajantes vindos da Pérsia, do subcontinente indiano e
de outros países árabes. Todos na esperança de enriquecer. Batizaram a
vila com o nome de um gafanhoto predador que reinava na região, daba.
Mas não tardou para a cidade ser dominada pelas Forças Armadas do
Império Britânico, e assim permaneceu até 1971. Quando os ingleses
bateram em retirada, Dubai se juntou a seis pequenos estados vizinhos e
formaram uma federação, os Emirados Árabes Unidos.
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E
xistem três Dubais diferentes, cada um girando em torno dos outros
dois. Há os expatriados ocidentais, como Karen, os árabes nativos
ou dubaienses, liderados pelo xeque Mohammed, e a mão de obra
estrangeira, que construiu a cidade e ali ficou presa. Essa última
permanece invisível, apesar de estar por toda parte, enfiada em
uniformes azuis e seguindo um regime de trabalho forçado.
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O
s reluzentes centros comerciais de mármore se espalham por toda a
cidade. O calor é tão grande que não se vê ninguém nas calçadas.
No interior dessas catedrais, o tempo parece não passar. O dia tem
sempre a mesma luminosidade artificial, o mesmo piso brilhante, as
mesmas grifes de luxo globais. Neles, Dubai se reduz à sua essência:
compras e mais compras. Nos shoppings mais caros, onde circulo quase
sozinho, me dizem que os negócios vão bem, obrigado.
Extraoficialmente, os vendedores parecem assustados. Passo por uma
exposição de chapéus que promove o Grande Prêmio de Turfe de 2009,
com peças que custam 1 600 dólares. Entre um e outro shopping, não há
nada além de asfalto. Todas as ruas têm no mínimo quatro pistas. Andar
a pé é coisa de suicida.
Á
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Ele se inclina para frente e prossegue: “Entenda: meu avô acordava cedo
todo dia e disputava o primeiro lugar na fila do poço. Quando o poço
secava, a água era distribuída por camelos. Todos viviam com fome,
tinham sede e buscavam trabalho. Meu avô mancou a vida inteira porque
não havia tratamento médico quando ele quebrou a perna. Agora, olhe só
para nós!”
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N
colunista da imprensa e colecionador de arte com fama de liberal e
contestatório. Sultan se veste com roupas ocidentais – jeans e
camiseta Ralph Lauren – e fala absurdamente rápido, arrolando
argumentos.
Mas quando tento falar da mão de obra escrava que construiu Dubai, ele
se irrita. “O resto do mundo deveria nos dar mais crédito”, sustenta
Sultan, “pois somos os seres mais tolerantes do planeta. Dubai é a única
cidade realmente internacional no mundo. Qualquer um que vem aqui é
tratado com respeito.”
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cujo solo esbanja petróleo, Dubai já teria falido. “Agora é Abu Dhabi que
dita o ritmo – e eles são muito mais conservadores e fechados do que
nós”, explica Mohammed. “Nossa liberdade de expressão tende a ficar
ainda mais restrita”, acredita ele. De fato, já existe uma lei de imprensa
que proíbe os veículos de comunicação de divulgar qualquer notícia que
possa “prejudicar a imagem ou a economia” de Dubai.
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O
multicultural. Percebo, contudo, que cada grupo tende a
permanecer em seu próprio enclave étnico, tornando-se uma
caricatura de si mesmo. Basta adentrar o Double Decker, um bar
para expatriados ingleses. Na entrada, a inevitável cabine de
telefone vermelha e placas de trânsito londrinas. O interior de madeira
sugere um clube colonial dos tempos do Império Britânico, mesclado a
discoteca dos anos 80 com luzes estroboscópicas e música estridente.
Mais tarde, num bar de hotel, conversei com uma americana que trabalha
na indústria de cosméticos e mantém distância dos expatriados típicos.
“Quem não conseguiu ter sucesso em seu país vem para Dubai. Nunca vi
tanta gente incompetente, ocupando cargos tão altos, em nenhum outro
lugar do mundo”, diz ela. “Tornam o lugar racista. A filipina que
trabalhava para mim ganhava um quarto do salário de uma funcionária
européia que exercia a mesma função. Quem trabalha de fato não ganha
quase nada, enquanto esses gerentes de meia tigela ganham 63 600
dólares por mês.”
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O
arquipélago artificial The World, ainda em construção, que forma o
desenho do mapa-múndi, está vazio. Foi abandonado. De binóculo,
consigo vislumbrar uma ilha autônoma, infértil na brisa salina, que
seria a “Inglaterra”. Foi aqui que os empreiteiros se propuseram a
reconstruir o mundo. Criaram ilhas artificiais na forma das massas
terrestres do planeta, com planos de vender cada “continente” como
terreno para futuras edificações. Havia rumores de que o casal Beckham
compraria a “Inglaterra”. Mas quem trabalha próximo ao
megaempreendimento conta que há meses não vê movimento na obra.
“O mundo acabou”, diz um sul-africano, aproveitando o trocadilho.
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Por toda a cidade, projetos delirantes que antes estavam “em obras”
agora estão em ruínas. Entre eles, uma praia com ar-condicionado e um
sistema de resfriamento da areia para os usuários não queimarem os pés
no longo caminho entre a toalha e o mar.
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tudo bem, que essa possibilidade já foi prevista nos cálculos, mas não
tenho tanta certeza assim.”
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Pergunto à moça filipina do balcão se ela gosta do lugar. “Gosto”, diz ela,
inicialmente. “Pois eu detesto”, rebato. Ela concorda e desabafa:
“Demorei alguns meses para perceber que tudo aqui é falso. Tudo. As
palmeiras são falsas, os contratos de trabalho são falsos, as ilhas são
falsas, os sorrisos são falsos. Dubai é como uma miragem. Você acha que
avistou água, mas quando chega perto vê que é só areia.”
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