Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PIRACICABA, SP
2005
A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da professora e o
desenvolvimento da reflexividade nas crianças.
PIRACICABA, SP
2005
BANCA EXAMINADORA
Para a realização deste trabalho contei com o auxílio da Agência de Fomento CAPES.
Resumo
Ometto, Cláudia B. de C. N. “A PRÁTICA DA PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da professora e o desenvolvimento da
reflexividade nas crianças”. 202 pp. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de
Pós-Graduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, 2005.
I – LIMIAR ........................................................................................................................ 9
Perdi as contas de quantas vezes revisei este texto para que chegasse à forma em que se
encontra atualmente. Algumas das idéias aqui apresentadas ocorreram-me nos mais
diferentes momentos: caminhando, tomando banho, lendo, em momentos em que não me
era possível registrá-las...
Escrever é assim, necessita de idéias e de disposição para organizá-las em uma
composição que se materializa em palavras e em dizeres, que são e não são nossos, uma
vez que tanto a situação que nos leva a escrever quanto os leitores a quem gostaríamos de
dirigir nossos dizeres enlaçando-os em uma interlocução, marcam, desde o início e sem
que o percebamos, as escolhas que vamos fazendo por entre o léxico, a sintaxe, as
tonalidades estilísticas que imprimimos ao texto que vamos tecendo (Bakhtin, 2002).
Essa disposição em organizar as idéias em um texto nasce dos motivos que temos para
escrever e dos desejos que nos levam a fazê-lo.
Ana Maria Machado faz um belíssimo relato a respeito do “nascimento” de um texto, em
seu livro “De Carta em Carta” (2002).
12
Imagem de fundo: Capa da obra de Ana Maria Machado, De carta em carta, Ed. Moderna, 2002.
13
Este relato assinala o quanto a nossa constituição como leitores e escritores é mediada
pelo outro e por nossas vivências. Conforme Bakhtin (2002:121) “o centro organizador de
toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio
social que envolve o indivíduo”.
Ainda, para Bakhtin,
No processo de organização do que se quer dizer por escrito, por entre lembranças,
experiências, compreensões e sentidos diversos, as idéias vêm e vão. Algumas permanecem
do início ao final do trabalho, outras se perdem pelo caminho, pois talvez não tivessem
tanta relevância. E tendo o texto se materializado em uma primeira versão, revisões1, ajustes
e acertos são feitos: retomam-se passagens já escritas, trocam-se palavras, acrescentam-se
algumas, suprimem-se outras, deslocam-se vírgulas.
Nesse sentido, além das idéias e da disposição para organizá-las, o autor, na composição
de um texto, perambula por ele, vai e vem, enquanto o vai tecendo. Nesse movimento de
entrar e sair do texto em se fazendo, o tempo passa...
Foi pensando em todas essas dimensões do processo de escritura que acabei denominando
este nosso início de conversa de limiar.
Este início foi escrito quando o texto, basicamente, estava pronto. Posso dizer-lhe, leitor,
que o início deu-se no final do texto, foi a última etapa a ser feita. E essa é uma cumplicidade
que o autor estabelece com seu próprio texto: as possibilidades de digressão, de não
linearidade, de manifestação (explícita ou não) de intenções em um texto que ainda lhe
pertence.
E digo – ainda lhe pertence – porque, como diz Lacerda (2001), enquanto
escrevemos, a folha em que o fazemos, a seguinte e/ou o verso daquela em que
1
Nos estudos relativos a propostas e a análises de processos de produção textual em sala de aula, o processo de revisão aparece
designado de formas distintas segundo diferentes autores, tais como: revisão, refeitura, refacção, reprodução, re-elaboração e
reestruturação. Neste trabalho, estarei utilizando todos eles como equivalentes.
14
acabamos de imprimir caracteres, são de absoluta passividade quanto às marcas que lhe
vão sendo apostas. Porém, no momento em que o leitor percorre esses caracteres impressos,
significando-os, o texto não mais pertence apenas ao autor, ele ganha “vida própria”.
Significações muitas serão feitas dele, com ele e através dele, reafirmando, negando ou
redimensionando as intenções que motivaram sua escrita.
Enquanto esse relato inicial (escrito ao final) ainda me pertence, a intenção que o norteia
é a de explicitar a quem destinei o texto desta dissertação e como esses interlocutores
projetados marcam minhas perambulações por ele.
Gostaria que minhas interlocutoras fossem professoras, que como eu atuam diretamente
em sala de aula, pois esse texto nasceu de uma prática de sala de aula: a produção textual.
Ele contém aprofundamentos teóricos fundamentais para a compreensão dessa prática, e
procura descrevê-la em suas minúcias, privilegiando como foco as mediações de uma
professora.
Essa professora interessa-se pelos processos de elaboração de seus alunos e por seus
modos de participação nesses processos. Preocupa-se tanto com seu processo de formação
pelo trabalho como também com o estudo de “uma teoria da linguagem mais abrangente,
interessada não apenas nas características formais do objeto lingüístico, mas, também, no
modo e na história da sua constituição e constante mutação” (Abaurre, Fiad, Mayrink-
Sabinson, 1997:21).
Daí meu desejo, como professora-pesquisadora-escritora, de produzir um texto
“cheirando” a sala de aula, um texto que trouxesse seus ruídos, seu calor, suas recusas, as
indagações e as dificuldades ali nascidas e enfrentadas. Um texto que, mais do que o
direito, mostrasse o avesso da construção de um trabalho vivenciado no dia-a-dia da
docência... Pois, como alerta Nilma Lacerda (2001:112-146), “todo lado tem dois lados: é
defeito de vista quem só vê o direito [...] o avesso tem história”.
Em minha trajetória como professora encontrei poucos trabalhos com essas características,
direcionados para professoras. Muitos dos trabalhos que li foram realizados por professores
universitários, desvinculados da prática da sala de aula das séries iniciais, ou feitos por
pesquisadores que, pesquisando uma prática alheia, produziam sentidos aproximados ao
de um professor.
Em muitos desses trabalhos reconheci o que Bakhtin considerava como o erro fundamental
dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de
outrem. Segundo ele, o erro estava em terem sistematicamente divorciado o discurso de
outrem do contexto narrativo, perdendo de vista que “o objeto verdadeiro da pesquisa
deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas dimensões, o discurso a transmitir e
aquele que serve para transmiti-lo” (Bakhtin, 2002:148).
15
Assim, sem embarcar na suposição de que nós, que trabalhamos com produção textual
nas séries iniciais, sejamos os únicos capazes de falar sobre o espaço da sala de aula e
sobre como esse processo ali se realiza, ou que sejamos um modelo a ser copiado e
seguido, elaborei essa dissertação procurando descrever como as práticas escriturais
escolares e meu papel como professora dentro delas entrelaçaram-se em indagações,
angústias e suposições que vivenciei na dinâmica interativa produzida na sala de aula,
perguntando como participar, como professora, das elaborações e re-elaborações da escrita
pela criança e como mediar esse processo, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão
reflexiva do ato de escrever como uma das características essenciais da linguagem.
Situando-me como uma professora que pesquisou na sala de aula questões relativas ao
dia-a-dia do fazer docente, relativo à escrita, proponho-me, então, a compartilhar essa
experiência/reflexão com outras professoras que também estão em sala de aula e vivenciam
algumas das mesmas dúvidas. Professoras, que como eu, vivem seu fazer docente na roda
viva do dia-a-dia, precisando responder às demandas imediatas de seu trabalho, muitas
vezes, sem tempo para reflexões mais profundas sobre esse fazer diário.
Assim, o fato de projetar desse modo meu interlocutor define meu texto, como o destaca
Sírio Possenti, pois “dependendo da imagem que o locutor faz do interlocutor no momento
da produção do discurso, ele utiliza um ou outro mecanismo coesivo [...]. Indiretamente, é
a imagem do interlocutor que comanda a decisão” (Possenti, apud: Brito1997:120).
Feito isso, se de alguma forma, o avesso de minha história, por entre imagens refletidas,
encontrar outros avessos, terei encontrado meus pares. Conforme Lacerda
A missão “exemplar” que penso ter assumido neste trabalho foi a de possibilitar aos
alunos interações em que eles pudessem experimentar-se como um escritor que esboça seu
texto, rascunha-o, abandona algumas idéias, incorpora outras, pede revisão alheia, responde
a ela. Enfim, que busca reconhecer seus interlocutores para poder produzir seu texto “com
autonomia” e clareza.
16
Minha história como professora começou muito antes que eu tomasse uma decisão
consciente pelo Magistério. Cresci filha de professora primária e professor universitário.
Minha infância e adolescência foram permeadas por correções de cadernos, preparação
de “semanários”, correções de provas...
De forma não tão consciente, não saberia precisar exatamente por que decidi fazer magistério.
Mas tomada essa decisão, surgiu então algo, que naquele momento tornou-se mais importante
do que o curso escolhido: a preparação para o casamento. Ao terminar o curso de Magistério,
já casada e com um filho pequeno, não iniciei minha vida profissional. Tudo o que havia
aprendido foi ficando adormecido para despertar apenas três anos mais tarde.
Minha primeira classe, em um sítio na zona rural, era multisseriada. Ali trabalhei com
crianças de segunda e quarta séries, enquanto outra professora, na sala ao lado, trabalhava
com crianças de primeira e terceira séries.
Posso dizer que esta foi uma experiência enriquecedora e prazerosa, pois as crianças eram
receptivas a tudo o que lhes era proposto, e naquele momento ainda não havia inquietações
a respeito de minha prática pedagógica. Tudo era novidade. Trabalhei com os famosos
“tijolões”2 que havia herdado de minha mãe, aposentada em meados dos anos 80.
Já no ano seguinte, consegui uma classe na cidade e passei a trabalhar com segunda
série. Foi aí que aconteceu minha primeira inquietação: apareceu a Camila, uma menina
com certa dificuldade para aprender. Eu não sabia o que fazer. E hoje, tenho consciência
de que nada fiz com ela. Mas a inquietação ficou.
Nos anos seguintes, trabalhei com terceiras séries em escolas centrais da cidade de
Piracicaba. As professoras, muitas delas em época de se aposentar, passavam-me materiais,
que eu seguia com certo incômodo, por desconhecer-lhes os objetivos e por desconfiar da
forma como o conteúdo era proposto às crianças.
Em 1991 fui chamada a escolher classe no Estado, após haver prestado concurso público.
No ano seguinte, em uma escola de bairro, mais afastada do centro, assumi minha primeira
classe de alfabetização, no Ciclo Básico Inicial3. Essa experiência foi decisiva na minha
opção consciente pelo magistério, pois até aquele momento eu ainda não tinha certeza se
realmente queria ser professora, se esse seria o caminho que deveria trilhar.
2
Propostas feitas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo nos anos 1970/80.
3
Em 1984 foi implantado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo o Ciclo Básico, que correspondia ao que atualmente
denominamos 1ª série do Ciclo I do Ensino Fundamental, também conhecidas como Classes de Alfabetização. (Parecer CEE nº
1913/83 – DOE 31/12/83).
20
Após essa opção, percebi que minha formação era insuficiente para exercer o papel de
professora e que, se quisesse realizá-la de forma adequada, deveria continuar estudando.
Participei do curso “Alfabetização: Teoria e Prática”, oferecido pela FDE (Fundação para o
Desenvolvimento da Educação) nas várias Delegacias de Ensino do estado nos anos 1980,
do qual me tornaria “capacitadora”4 alguns anos depois.
Conciliando horários, permanecendo em sala de aula, participei de diversos outros cursos
junto a FDE e percebendo lacunas em minha formação teórica busquei a Universidade. No
ano seguinte iniciei a graduação em Pedagogia na UNIMEP (Universidade Metodista de
Piracicaba).
A essa época, eu, filha, mãe, esposa, professora, “capacitadora” da FDE, aluna de
graduação do curso de Pedagogia, vi-me envolvida por uma série de papéis e de experiências
simultâneas, que passavam rapidamente por mim e em mim. Eu me sentia “crescendo”
cada vez mais e via a diferença benéfica que tudo isso causava em sala de aula. Meus
alunos avançavam em suas elaborações da escrita e, dentro do referencial teórico então
assumido, eu entendia o que acontecia com eles. Era o início de minha incursão pelo
construtivismo.
A direção da escola em que eu trabalhava passou a me indicar para fazer outros cursos
na Delegacia de Ensino de Piracicaba5, junto à Oficina Pedagógica, nos quais discutíamos
teoria e prática. Em abril de 1994, para minha surpresa, veio o convite para atuar como
Assistente Técnico Pedagógico (ATP) de Alfabetização e Língua Portuguesa, junto aos
professores de Ciclo Básico - quarta série.
O trabalho então desenvolvido era interessante. Tratava-se de capacitar o docente que
estava na sala de aula, na grande maioria das vezes sem conhecimentos acadêmicos, já
que oriundo do Curso de Magistério. Repensar a relação professor-aluno, tentar descentralizar
o foco do “como se ensina” para o “como se aprende”, tentar fazer com que a Proposta
Curricular – “Ciclo Básico em Jornada Única” - realmente fizesse sentido para professores
- que pensavam: para quê mudar se eu faço assim há tantos anos e meus alunos saem
alfabetizados? – foram desafios experimentados nesse período.
Olhando para o passado com os olhos de hoje, percebo o quanto participei intensamente
do modelo de capacitação de professores então vigente, pautado na racionalidade técnica.
Segundo Péres Gómez (1992:96), “no modelo da racionalidade técnica, a atividade
profissional é sobretudo instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a
aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas”, desconsiderando as funções sociais da
4
Termo utilizado pela FDE para se referir aos professores que socializavam os cursos ali realizados junto aos professores das diversas
Delegacias de Ensino.
5
Atual Diretoria de Ensino.
21
escola e o contexto de sala de aula. Um contexto singular e complexo, que exige que
enfrentemos situações não previsíveis. Tal modelo deixou marcas tanto em minha própria
atuação docente quanto em minha relação com os professores com os quais eu trabalhava.
Concluído o curso de graduação, iniciei o mestrado na UNIMEP, porém não o concluí,
convalidando as disciplinas como um curso de aperfeiçoamento. Durante este período, continuei
freqüentando cursos de curta duração para professores, promovidos pela Delegacia de Ensino,
FDE e CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas do Estado de São Paulo).
Em 1998, após haver recusado, em outras ocasiões, o convite para trabalhar como
professora em uma conceituada escola particular de Piracicaba, passei a fazer parte de seu
corpo docente.
Nessa escola, apesar de trabalharmos como professoras polivalentes no grupo de
professoras da série, cada uma de nós incumbia-se da seleção e preparo de material para
uma das áreas de conhecimento. Tocou-me sempre a preparação do material da área de
Língua Portuguesa das segundas séries, série em que permaneci durante quatro anos.
No início de 2002, tendo vagado a área de Língua Portuguesa na terceira série (nas
terceiras e quartas séries as professoras trabalham por área) fui convidada para assumir a
função. No início o convite assustou-me. Porém, considerando a possibilidade de ver mais
de perto o resultado do meu trabalho no ano anterior, aceitei.
Foi nessa escola que uma série de questões relativas ao trabalho de produção textual
começaram a inquietar-me como professora. Transformadas em um projeto de pesquisa,
essas questões foram ali investigadas.
22
Inquietações de professora
6
Apud: Nóvoa, António. Vidas de Professores. Portugal: Porto Editora, 1992:13.
23
Ao realizar, ainda que de forma solitária, a leitura de Bakhtin, pude perceber que nas
práticas de textualização por mim propostas eu não explorava a dimensão interlocutiva
da linguagem.
Para que e para quem meus alunos escreviam? Escreviam redações que eram lidas
somente por mim, professora, que as corrigia destacando problemas formais (relacionados
à ortografia e às normas gramaticais) e aspectos discursivos (como paragrafação, pontuação,
repetição de palavras, relações sintáticas) relacionados à produção de sentidos no texto. O
texto corrigido era passado a limpo e aí se encerrava seu ciclo de produção e de circulação.
Com esse procedimento, passei a perceber, eu deixava de explorar a linguagem em
funcionamento na relação social professora/aluno/texto. Ou seja, como professora, eu lia
os textos produzidos por meus alunos, mais preocupada em corrigi-los do que em tomá-los
como um espaço de produção de sentidos – uma relação interlocutiva, no fluxo da qual
aquele que escreve percebe-se escrevendo para dizer algo a alguém, de quem espera, por
sua vez, uma réplica. O que equivale a dizer que aquele que escreve percebe-se escrevendo
para ser lido.
Ao ser lido, um texto instaura uma relação muito mais complexa do que a relação de
correção, centrada nos ajustes gramaticais, lexicais ou semânticos, ainda que a comporte.
O texto, na qualidade de relação interlocutiva, instaura um espaço de produção de
sentidos que articula o leitor ao autor em uma relação de compreensão responsiva. Ou
seja, o leitor responde ao texto: o que me diz o autor neste texto? Como diz o que pretendeu?
Concordo ou não com seus dizeres, com seu estilo? Aceito ou recuso suas intenções, acolho
ou rejeito as entonações que configuram seus modos de dizer, ponho em dúvida os
significados ou a versão dos fatos por ele veiculados?
Nessa relação, o leitor afeta o autor, apontando possibilidades de sentido em seu texto,
lacunas, ambigüidades e a necessidade de ajustes para garantir a função comunicativa da
linguagem (ou seja, o ajuste do discurso às necessidades características do leitor e dos
propósitos da interação).
A relação do autor com as impressões e comentários daquele que leu seu texto, se
explorada, extrapola, em muito, o gesto de passar o texto a limpo. Ela instaura uma
relação de compreensão ativa e responsiva do próprio autor em relação àquilo que ele
escreveu. Respondendo ativamente a seu leitor, ele re-encontra-se com o texto que
produziu, avalia-o em relação aos comentários, considera os ajustes a serem feitos. Ao
voltar-se para seu próprio texto, re-considera suas elaborações, instaurando uma relação
reflexiva com seus dizeres.
24
Reduzido em sua dimensão interlocutiva, o texto produzido por meus alunos empobrecia-
se enquanto modo de dizer e de dizer-se pela escrita, enquanto modo de ler e de ser lido,
enquanto possibilidade de reflexão sobre a própria linguagem.
Procurei então mais leituras e retomei Vygotsky (1989, 2003), teórico que já havia lido
na graduação. A partir dessa leitura reafirmei a importância da dimensão discursiva da
produção textual, problematizei a questão da reflexividade e tomei consciência do papel
do interlocutor no seu desenvolvimento. As diferenças entre os interlocutores, em termos de
suas experiências com a leitura e a escrita, são significativas para a emergência e
desenvolvimento da reflexividade.
Ancorado na tese de que a natureza do psiquismo humano é social, Vygotsky considera
que toda função psicológica desenvolve-se em dois planos: primeiro no da relação entre
indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. Nesse sentido, o domínio das atividades
complexas como a escrita e a reflexividade, como relação consigo mesmo, nasce das/nas
relações com o outro.
Em suas relações sociais, a criança vai se apropriando, mediada pelo outro, das formas
culturais de perceber e estruturar a realidade, de perceber a si mesma e de situar-se nessa
realidade, e as reconstrói internamente. A esse processo de reconstrução interna de uma
atividade externa, Vygotsky dá o nome de internalização. Na internalização, a atividade
interpessoal transforma-se para constituir o funcionamento interno (intrapessoal) (Góes, 1991).
Embora aponte diferenças entre o aprendizado e o desenvolvimento, Vygotsky considera
que os processos de aprendizado – atividades mediadas pelo outro (interpessoal) – suscitam
e impulsionam os processos de desenvolvimento – atividades auto-reguladas (intrapessoal).
O aprendizado humano, destaca ele, “pressupõe uma natureza social específica e um
processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que a cercam”
(Vygotsky, 1989:99), podendo imitar uma variedade de ações que vão muito além dos
limites de suas próprias capacidades. A imitação, tomada como ponto de partida, não só
precede o desenvolvimento como o suscita, criando o que o autor denomina de
desenvolvimento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada, que requerem
a ajuda, a intervenção do outro para se efetivarem.
Vygotsky atribuía grande importância ao desenvolvimento proximal por considerar que
nas atividades compartilhadas divisa-se o futuro do sujeito: “aquilo que a criança é capaz
de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (Idem:98). Porém, o
próprio Vygotsky advertia que para que pudesse haver uma compreensão plena do conceito
de zona de desenvolvimento proximal era necessário que se fizesse uma reavaliação do
papel da imitação no aprendizado:
25
As crianças podem imitar uma variedade de ações que vão muito além
dos limites de suas próprias capacidades. Numa atividade coletiva ou
sob a orientação de adultos, usando a imitação, as crianças são capazes
de fazer muito mais coisas (Vygotsky, 1989:99).
7
Estarei retomando e aprofundando essas questões no decorrer deste trabalho.
26
Meu trabalho de pesquisa ancora-se nas proposições teóricas de Vygotsky, Bakhtin e nos
trabalhos de Geraldi, Góes, Smolka e Fontana, igualmente fundamentados em uma
perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano.
A dimensão histórica, neste caso, refere-se não ao estudo de eventos passados, mas ao
estudo de “eventos no curso de suas transformações, o que engloba o presente, as condições
passadas e aquilo que se projeta para o futuro” (Góes, 2000:13), em suas condições
sociais específicas de produção. A dimensão cultural diz respeito à constituição social dos
modos especificamente humanos de significar e de agir sobre o mundo, sobre o outro e
sobre si mesmo, mediados pelos instrumentos e pelos signos criados em condições históricas
específicas.
Segundo Vygotsky, ao nascer, a criança dispõe de um funcionamento biológico que lhe
permite responder e adaptar-se ao mundo. Imersa em um dado contexto cultural e
participando de práticas sociais historicamente constituídas, mediada pelo outro e pela
linguagem, “a criança vai incorporando, ativamente, formas de ação já consolidadas na
experiência humana” (Góes e Smolka, 1997:10), hominizando-se. Nesse processo, todo o
seu equipamento biológico adaptativo, denominado por Vygotsky como funções elementares,
vai sendo reestruturado como modos culturais de comportamento, mediados e dirigidos
por signos e significados, consolidando-se como funções superiores.
Desde o nascimento, destaca Vygotsky, a criança tem com o mundo uma relação mediada
pelo outro e pela linguagem.
Em suas relações sociais, com a linguagem e pela linguagem, a criança vai se apropriando,
mediada pelo outro, das formas culturais de perceber e estruturar a realidade e as internaliza
- reconstrói internamente – o que constitui o funcionamento intrapessoal.
Dessa perspectiva, a linguagem, em suas diversas formas de materialização, “situa-se
como o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos”
(Geraldi, 1997:41), seja no sentido da apropriação e da elaboração das práticas de
significação e da compreensão do mundo, seja no sentido do desenvolvimento da análise
e do julgamento de si mesmos e da reflexividade.
O conhecimento do mundo e de si mesmo no mundo - o pensar sobre si mesmo, sobre
o próprio fazer e sobre o próprio pensar – não são formas de atividade “inerentes” ao ser
humano. Elas demandam a mediação do outro e da linguagem para que se desenvolvam.
30
Nesse sentido, o desenvolvimento envolve aprendizado, compondo com ele uma unidade,
ainda que não uma identidade:
8
O conceito de relações de ensino, formulado por Smolka (1993), destaca a dimensão relacional dos processos de ensinar/aprender.
33
Um modo de atuar
Tendo optado por realizar a pesquisa nas relações de ensino vividas por mim e por meus
alunos, passei a documentar, de modo sistemático, todo o meu trabalho como professora,
relativo às práticas de produção textual - das atividades propostas às intervenções que
registrava nos textos dos alunos, dos comentários e pedidos de ajuda dos alunos à
reestruturação de seus textos, da organização e circulação das várias versões de cada texto
ao planejamento e às avaliações do processo em curso. Reuni, também, todos os textos
produzidos pelos alunos em suas variadas versões.
Nesse modo de atuar, o conjunto de fazeres pedagógicos, próprios do trabalho docente,
foi também meu conjunto de procedimentos de investigação e de levantamento de
indicadores sobre os processos de produção textual das crianças. Da mesma forma, os
procedimentos de avaliação e de replanejamento das atividades de ensino vividas pautaram
as análises dos indicadores reunidos e a reflexão interessada sobre os efeitos da mediação
docente.
Tal encaminhamento metodológico, que articula as atividades de ensino e de pesquisa,
ancora-se em Vygotsky, que insistia no fato de que a pesquisa em Psicologia não deveria
divorciar-se do mundo real. Os problemas centrais da existência humana, tais como sentidos
na escola, no trabalho, na clínica, segundo ele, deveriam ser investigados nas suas condições
reais de produção.
Fontana (2000: 31) explana com muita clareza o pensamento de Vygotsky relativo à
situação da pesquisa: “mais do que a criação de situações ostensivamente experimentais, a
tônica de sua proposta é a de viver experimentalmente as situações, jogando com as
atividades do próprio contexto em estudo”.
Ao atuar na situação real de sala de aula, como professora e pesquisadora, fui
modificando, deliberadamente, as condições de produção da mediação docente em
interlocução com a produção textual das crianças, com suas demandas e intervenções. Ou
seja, da mesma forma que meus encaminhamentos como professora configuravam as
condições de produção das relações de ensino, os efeitos por eles suscitados, devolvidos a
mim pelas crianças, afetavam minhas decisões e a continuidade do meu trabalho docente.
Os conhecimentos que fui construindo nesse meu pequeno percurso enquanto pesquisadora,
mediaram os fazeres e saberes da professora e foram, por sua vez, por eles mediados.
A professora, entrelaçada à pesquisadora, não esperou que todas as leituras se
realizassem, que todas as elaborações se concretizassem, que todos os achados fossem
analisados para redimensionar seu fazer. A sala de aula tem urgências e a professora que
pesquisa questões que a instigam, no próprio acontecer da docência, estuda e ensina,
observa, registra e intervém sobre seu próprio atuar do dia-a-dia.
34
A partir desses princípios, pude analisar minha prática docente anterior, no que se
refere à produção textual, e perceber que, embora já levasse em conta o texto enquanto
espaço de interlocução, minha preocupação maior ainda centrava-se nas formas da
língua e não no funcionamento da linguagem. Ou seja, eu cindia em dois o caminho
articulado, proposto por Bakhtin.
Com relação ao momento de escritura, eu valorizava a linguagem em funcionamento,
reconhecendo o texto em sua “função social” para as crianças. Minha participação como
professora era a de uma interlocutora interessada, que compartilhava pistas, sugeria
possibilidades de encaminhamento do texto quando as crianças me pediam ajuda.
No momento da leitura do texto produzido, eu privilegiava as formas da língua, perdendo
de vista a compreensão das distintas enunciações em ligação estreita com a interação,
produzida em condições concretas e específicas. Eu não me preocupava com o
desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever, ou seja, em ajudar os pequenos
escritores a analisarem seu próprio texto, a tomá-lo como objeto de atenção. Assim, o texto
corrigido, ao ser devolvido para que o aluno o passasse a limpo, explicitava para ele que
a escrita na escola era mais um exercício de utilização e treino das formas padrão da
língua, do que uma possibilidade interlocutiva, empobrecendo a sua condição de autor e a
minha condição de leitora.
Ao realizar esta pesquisa, a professora, que sou, passou a compreender de uma forma
mais complexa a trama interlocutiva instaurada pelo texto, privilegiando não só o resultado
da produção, mas todo o processo de elaboração e de re-elaboração pelo qual ele vai
passando, entendendo esse conjunto de re-elaborações como momentos de interlocução
do jovem escrevinhador com seus leitores.
Eu mudei a compreensão que tinha sobre o ato da produção do texto: passei a encarar
as crianças como pequenos escrevinhadores que no momento da produção textual vivem
uma prática de interação verbal. Passei a privilegiar os momentos da interação que não
eram, anteriormente, objeto de minha atenção. Antes, mesmo propiciando a interação
entre as crianças, mesmo mediando seus pedidos de ajuda, eu ouvia pouco o que elas
diziam, não prestava atenção à coreografia das relações que estabeleciam entre si, com o
texto e comigo, feita de palavras, gestos, olhares, movimentos. Eu privilegiava o produto
final – o texto – e o considerava como minha única fonte de indicadores sobre o processo
de produção da escrita pelas crianças.
Ao tomar consciência de que a ordem metodológica proposta por Bakhtin para o estudo
da linguagem indicava um caminho muito mais complexo do que aquele que eu fazia,
passei a participar mais intensamente dos momentos de produção e re-elaboração textual
em sala de aula.
Isso modificou a minha relação com o tempo da produção. O texto deixou de ser algo que
acontecia em duas aulas: a aula em que era produzido e a aula em que era passado a limpo,
estendendo-se por todos os momentos de leitura, releituras, revisões e re-elaborações.
36
Mudou também a minha relação com os textos já produzidos. Se antes eles eram o
produto final da atividade de redação, passaram a ser um ato de fala concreto que só se
configura em sua relação estreita com o próprio momento e com a própria condição de
produção. Isso redimensionou a leitura e os comentários que eu passei a fazer nos textos
que os alunos escreviam, porque mudou o meu lugar na interlocução.
Com essa outra forma de compreensão da própria linguagem eu deixei de ser a professora
que corrigia o texto e passei a ser uma leitora, uma interlocutora interessada nas várias
versões dos textos que os jovens escrevinhadores compartilhavam comigo.
Mas nem por isso as formas da língua foram esquecidas por mim. O domínio delas era
necessário, tanto para que o jovem escrevinhador conseguisse dizer o que queria por escrito,
quanto para que ele refinasse os usos que já fazia da língua escrita. O domínio das formas
da língua também me era necessário para que, como professora, pudesse mediar a
apropriação da escrita por meus alunos. O que modificou nessa nova condição de
organização das relações de ensino foi o fato de que a produção de textos passou a ser o
eixo central do ensino da língua. O uso real da escrita passou a pautar o processo de
formalização da língua, necessário na hora de escrever.
A passagem da professora que corrigia para a interlocutora e a passagem do aluno à
condição de ‘pequeno escrevinhador’ foram se dando ao longo do percurso, mediadas
pela apropriação e elaboração, pela professora, de conhecimentos sobre a linguagem.
A professora foi se transformando enquanto estudava e enquanto pesquisava a sua
própria atividade mediadora junto às crianças e, nesse processo, foi modificando as
condições de produção das relações de ensino, possibilitando aos seus alunos a experiência
de escreverem para serem lidos e a si mesma a experiência de outros modos de viver e de
organizar seu trabalho pedagógico.
Hoje, re-encontrando-me com todos os registros, visualizo o processo passo a passo,
com seus equívocos e acertos, com seus desvios e desvãos.
37
Os sujeitos da pesquisa
9
“Gêneros discursivos” é o termo que eu utilizo ao elaborar este texto, mediada pelas leituras de Bakhtin. Segundo esse autor, os
gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados que se produzem e se estabilizam nas condições específicas e nas
finalidades das diferentes esferas de utilização da língua (2003). No entanto, as professoras, ao descrever seus procedimentos,
utilizaram os termos “tipos de textos” ou “tipologia textual” para caracterizar o trabalho feito com contos e narrativas.
38
Primeiros Passos
Para descrever o processo vivido e o modo como os dados foram produzidos, apresento
a seguir uma síntese do trabalho desenvolvido em sala de aula.
Organizei o processo de ensino da língua centrando-o em três práticas - a leitura de
textos, a produção textual e a análise lingüística – de acordo com a proposta desenvolvida
por Geraldi no livro “O texto na sala de aula” (1997c). Segundo o autor, a proposta assenta-
se em uma concepção que “situa a linguagem como o lugar de constituição de relações
sociais, onde os falantes se tornam sujeitos” (Idem:41).
Nessa perspectiva, a leitura de textos é entendida como um “processo de interlocução
entre leitor/texto/autor. O aluno-leitor não é passivo, mas o agente que busca significações”
(Geraldi e Fonseca, 1997:107). A produção textual, por sua vez, considera os alunos como
produtores de textos, e não como produtores de redação, porque não é apenas uma pessoa
na função “professor-escola” que os lê. Geraldi e Fonseca, recorrendo a Roventa-Frumusani,
destacam que “é preciso que se entenda que um texto (ou discurso) não é apenas sobre
alguma coisa, mas também que é produzido por alguém, para alguém” (Idem:106).
A análise lingüística, tal qual proposta por Geraldi,
A análise lingüística refere-se portanto aos aspectos estruturais da língua escrita que
devem ser apropriados pela criança. Como assinala Geraldi, o essencial nessa prática é “a
substituição do trabalho com metalinguagem pelo trabalho produtivo de correção e
autocorreção de textos produzidos pelos próprios alunos (Idem:79).
43
No decorrer do ano letivo no qual este trabalho foi realizado, foram elaboradas cinco
propostas de produção textual. Cada uma delas instaurou um processo de interlocução
entre o autor do texto, a professora, e seus pares, que resultou na escrita de várias versões
de um mesmo texto.
O conjunto de versões de cada texto, juntamente com as distintas intervenções feitas
por mim, professora, e por outros alunos da classe, compuseram uma coletânea que
possibilitava, a cada aluno, reencontrar-se com os diferentes momentos de sua produção
e avaliar-se diante deles.
À medida em que fui organizando os textos das crianças nessas coletâneas, fui organizando
também meu trabalho docente e o processo da pesquisa. O conjunto de versões de cada
aluno, tomado como espaço de produção de sentidos, além de ter documentado meus
modos de intervenção sobre os textos, os efeitos de minhas intervenções sobre esses textos
e os efeitos desses textos sobre mim, tornou-se a principal referência para minhas decisões
na organização do processo de ensino e de pesquisa.
Organizei uma coletânea reunindo toda a produção de cada uma das classes e escrevi
uma introdução, dirigida aos pais, na qual eu explicava o que fiz, como fiz e porque fiz o
que fiz. Estas coletâneas foram apresentadas a eles nas reuniões trimestrais. A produção
desses textos de apresentação foi importante para o andamento da pesquisa porque exigiram-
me sínteses parciais do processo vivido.
45
De colchas e retalhos...
N os finais de semana, Felipe vai para a casa da vovó. É uma delícia! Vovó sabe fazer bolo de
chocolate, brigadeiro, bala de côco, pão de queijo... enfim, sabe fazer tudo que Felipe gosta. E lá não
tem esse negócio de “hora de comer isso, hora de comer aquilo... hora de brincar, hora de dormir...”
Vovó sabe contar histórias como ninguém.
- Conta mais uma, vovó. Só mais uma!
Vovó coloca os óculos bem na ponta do nariz, faz uma cara engraçada e fala bem fininho e
fraquinho, imitando a voz da Chapeuzinho Vermelho, e bem grosso e forte, imitando a voz do lobo
mau. Ah! Quem é que não gosta de uma vovozinha assim?
Um dia, quando Felipe chegou à casa da vovó, entontrou uma porção de pedaços de tecidos
espalhados pelo chão, perto da máquina de costura onde ela estava trabalhando.
- O que é isso, vovó?
- São retalhos, Felipe. Fui juntando os pedaços de pano que sobravam das minhas costuras e,
agora, já dá para fazer uma colcha de retalhos. Vou começar a emendá-los hoje mesmo.
- Posso ajudar, vovó?
- Está bem. Então vá separando os retalhos para mim. Primeiro só os de bolinhas, depois os de
listrinhas...
Felipe esparramou tudo pelo chão e foi separando-os um a um. Tinha pano de florzinha, de lua
e estrela, de bolinha grande e bolinha pequena, listrado, xadrez...
- Olha esse pano listrado, é daquele pijama que você fez para mim quando a gente passou aqueles
dias no sítio, lembra?
- É mesmo, Felipe, estou me lembrando. Que férias gostosas! Andamos a cavalo, chupamos
jabuticaba... As jabuticabeiras estavam carregadinhas!
- E olha esse pano xadrez, que bonito vovó!
- É daquela camisa que eu fiz para você dar ao seu pai, no dia do aniversário dele. Sua mãe
fez um jantar gostoso e convidou todo mundo.
- Ah! Eu me lembro! Veio o tio Paulo, o tio João, a tia Josefina, veio a Cecília e até o Rex,
para brincar com o meu cachorro, Apolo. Parece que um deles fez xixi na cozinha e o outro fez
cocô no quintal, né?
- Seu pai ficou tão bonito! E assoprou as velinhas, todo vaidoso, de camisa nova.
- É mesmo! Mas ficou muito bravo com os cachorros.
- Olha, Felipe, esse retalho aqui. Não é daquele vestido que eu fiz para a sua mãe ir a uma festa de
casamento? Sabe, quando a sua mãe era pequena eu fazia uma porção de vestidos para ela. E gostava
também de bordá-los. Uma vez eu fiz um vestido cor-de-rosa, inteirinho bordado com a branca de
neve e os sete anões. Quando o vestido ficou pronto, ela falou assim::
- Ué, mamãe, está faltando a bruxa!
- Vovó, esse pano azul-marinho está com cara de Vó Maria.
- Era dela mesmo!
- Vovó Maria mora lá no céu, né? Junto com o vovô Luiz e o meu cachorrinho Apolo... Ué, vovó,
você está chorando? O que aconteceu?
48
- Não, - disse a vovó fungando e limpando o nariz com o lenço – não estou chorando, não.
- Ah, vovó! Você não disse que nós somos amigos? Então, me conta o que está acontecendo.
Você está triste?
- É a saudade, Felipe. É a saudade...
- Saudade dói, vovó?
- Às vezes dói. Quando é saudade de alguém que já foi embora para nunca mais voltar...
- Ah!
- Mas existem outras saudades: de um passeio gostoso, de uma viagem, de uma festa, de um
amigo, de uma amiga, de um parente que mora longe...
- Vovó, acho que eu ainda não entendo nada de saudade.
- Eu sei. A gente só entende bem das coisas que já experimentou. Talvez ainda seja muito cedo
para você entender dessas coisas... Felipe, me ajuda aqui. Vamos ver como é que está ficando a nossa
colcha de retalhos!
- Que bonita, vovó! Um dia você faz uma para mim também?
Depois de algum tempo, Felipe nem se lembrava mais da colcha de retalhos. Um dia, ao voltar da
escola...
- Felipe! A vovó mandou uma surpresa para você!
- Uma surpresa para mim? Onde?
- Está lá em cima da sua cama.
Felipe entrou no quarto correndo. A colcha estava esticada sobre a sua cama. Que linda! Mas não
era uma colcha como essas que se vendem nas lojas. Cada retalho tinha uma história.
Ali, deitado sobre a colcha, Felipe passou algum tempo lembrando-se de uma porção de histórias.
Observou um retalho de brim azul...
- Foi quando o papai e a mamãe viajaram de férias e eu fiquei lá na casa da vovó. Um dia, fui subir
na jabuticabeira e levei o maior tombo. Ralei o joelho, fiquei com o bumbum dolorido e o short
rasgado... que vergonha! Vovó veio correndo lá de dentro. Me pegou no colo com carinho e, depois,
nesse mesmo dia, resolveu fazer um short novo para mim. E fez um short deste pano aqui, de brim
azul.
De repente, Felipe começou a sentir uma coisa estranha dentro do peito. E aquilo foi aumentando,
aumentando... Felipe foi atrás de sua mãe:
- Me leva na casa da vovó?
Não demorou nada e os dois já estavam chegando lá na casa da vovó. Tocaram a campainha e ela
veio lá de dentro.
- Parece que eu estava adivinhando que você vinha. Fiz um bolo de chocolate, do jeito que você
gosta!
- Vovó, vem aqui pertinho. Agora, me dá um abraço bem gostoso!
- Aconteceu alguma coisa, Felipe?
- Sabe, vovó... – cochichou Felipe, bem baixinho, no seu ouvido – preciso te contar um segredo:
eu acho que já entendi... agora eu já sei o que é saudade!
Imagens de fundo: Capa da obra e página 17. Silva, Conceil Corrêa da e Silva, Nye Ribeiro. A colcha de retalhos, Ed. Do Brasil, 1995.
49
Passados alguns dias, depois de prontos os textos em sua primeira versão, problematizei
com as crianças, a idéia de revisão: será que na primeira escritura nosso texto já fica bom?
Para que a gente escreve, não é para que alguém leia o nosso texto?
As crianças consideraram minhas indagações: “Os textos sempre podem ser melhorados
(Rê).” “Sempre tem o que melhorar no texto, mesmo que ele já esteja bom, a gente pode
até mudar as idéias (Má).”
Assim, entreguei os textos de volta, para cada uma das duplas de crianças, sem nenhuma
observação, comentário ou apontamento feito por mim e pedi que olhassem para aspectos
que pudessem ser melhorados.
Apesar de ter deixado na mão das crianças os critérios para melhorar os textos, eu tinha
claro que a revisão poderia ser especialmente difícil para elas.
Góes (1997:102) destaca que
e diz que o grau de reflexividade em crianças desta faixa etária ainda não se encontra tão
refinado. Os alunos preocupam-se mais com o que vão dizer do que com o modo de o dizer.
Tendo em conta essas dificuldades, minha intervenção se fez presente antes que as
crianças entrassem nos próprios textos. Assim sendo, fiz comentários sobre diversos textos
dos próprios alunos. Para tanto, selecionei alguns deles, dos quais li vários trechos,
apontando elementos que poderiam ser modificados de modo a facilitar sua leitura e a
compreensão das possíveis intenções de seu autor. Nos destaques feitos por mim, procurei
dirigir-lhes a atenção para os modos de dizer presentes nos textos.
Na seqüência organizei uma atividade para que a classe fosse realizando enquanto eu chamava
dupla por dupla para ensinar-lhes alguns procedimentos de revisão de texto, tais como riscar trechos,
fazer marcas sinalizadoras, incluir palavras etc. Orientei-os também para que não apagassem nada,
para que não perdêssemos a escrita inicial. Procurei direcionar o olhar das crianças, através de
“pistas”, para os modos de dizer escolhidos por elas ao escreverem e como substitui-los por outros.
Em alguns textos eu destaquei a paragrafação, em outros a seqüência em que foram
desenvolvidos os episódios da narrativa. Houve duplas que omitiram fatos importantes
na seqüência narrativa, o que fez com que determinadas informações parecessem “saídas
do nada”. A esses alunos, solicitei que relessem o parágrafo e que procurassem as
informações no livro para verificarem se realmente não faltava nada.
Depois de minhas orientações as crianças voltaram aos seus lugares, trabalharam sobre
os textos, discutiram as idéias que eu havia sugerido, levando-as em conta ou não, e
passaram a limpo a nova versão obtida.
53
Primeira refeitura do texto, ou seja, a segunda versão realizada pelos próprios autores,
Le e Fe.
55
Com esta atividade, mesmo sem ter clareza disso naquele momento, possibilitei que
meus alunos voltassem sua atenção para a forma escrita da língua. Sobre este aspecto,
Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997:23) consideram que a
Ao me reencontrar com a nova versão dos textos das crianças, pude notar que algumas
delas encaminharam parte das minhas sugestões. Outras não modificaram quase nada,
justificando que encontraram poucos problemas a serem resolvidos nos seus textos.
Góes (1997), em estudo realizado na década de 90, sobre o desenvolvimento na criança
da capacidade de fazer propostas de compreensão e de ações sobre a linguagem na
produção da escrita, pesquisando junto a crianças de 2ª, 3ª e 4ª séries, na faixa etária de
oito a 13 anos, identificou um modo de atuação das crianças em relação aos seus próprios
textos bastante semelhante a esse que eu identifiquei em meus alunos. Em seu estudo, Góes
analisa que no procedimento de explicitação em duplas as crianças acabavam concluindo
que tudo estava claro porque a ambigüidade se desfazia no diálogo entre os pares.
De fato, pude observar que entre si, as crianças se justificavam oralmente e muitas vezes
nem mexiam no texto.
No caso das minhas sugestões, enquanto voz de professora, as crianças, embora
negociassem sentidos oralmente comigo, procuravam corresponder em parte às solicitações
e sugestões que recebiam. Atribuo essa diferença no tratamento dado às sugestões feitas
por seus pares e àquelas feitas por mim, à relação de poder que pauta os lugares sociais de
professora e alunos. Essa relação é marcada pela autoridade que o professor representa
para o aluno: a autoridade de adulto experiente, de adulto leitor, de adulto que escreve, a
autoridade de conhecimento perante os olhos das crianças.
Para a criança o adulto é a autoridade que tem o domínio das práticas culturais, da
tradição. Como analisa Cristofoleti, recorrendo a Hannah Arendt, é o saber do professor
que lhe dá autoridade (Cristofoleti, 2003).
Após esta primeira re-estruturação dos textos, decidi trocá-los entre as duas classes, de forma a
que os alunos da 3ª série A fossem os leitores e comentadores dos textos da 3ª série B e vice-versa.
O que pensei naquele momento, como professora, intuitivamente, foi que a troca de textos entre
as classes possibilitaria uma relação mais distanciada do leitor em relação ao autor, obrigando as
crianças a apresentarem por escrito as suas sugestões.
Para iniciar a atividade, sugeri às crianças a importância de se proceder a mais de uma
revisão e perguntei-lhes se os olhos de outra pessoa poderiam ajudar a encontrar outros
aspectos do texto a serem revistos.
56
As crianças disseram que, sem dúvida, o outro que vai ler é que vai saber se dá para
entender o texto.
Assim, em duplas, as crianças das duas classes leram os textos dos colegas com olhos de
quem vai ajudar a melhorar, buscando reconhecer neles, como destaca Lajolo (1988) ao
definir leitura, “o tipo de leitura que seu autor pretendia...”.
Ao final da leitura realizada, cada dupla deixaria uma mensagem dizendo: “O que está
bom” e “O que pode ser melhorado”, procurando “dar pistas” para os autores do que
poderia ser revisto no sentido de que o leitor entendesse o texto com mais facilidade.
57
10
Segundo esses autores, as letras envolvem duas categorizações: a categorização gráfica, que pode ser observada a partir das
muitas maneiras de se traçar uma letra e dos aspectos comuns que a respectiva letra apresenta ao ser traçada das mais diferentes
maneiras, e a categorização funcional, que se refere ao valor que cada uma das letras tem dentro do sistema de escrita, ou seja, com
a posição que uma mesma letra ocupa em diferentes palavras e o som que representa. Nesse sentido, dizem os autores que se a letra
não é identificada, não se pode ler, ou se produzirá uma leitura errada.
59
Essa recorrência chamou-me a atenção. Por um lado, indiciou-me que a atenção das
crianças a essa dimensão da escrita já estava consolidada. Por outro, levou-me a perguntar
por que as crianças detinham-se tanto nessas questões.
Embora em meus comentários e indicações de re-estruturação para as crianças eu não
descuidasse dos aspectos ortográficos e gramaticais presentes nos textos, eles me pareciam
mais pontuais, a exigirem um trabalho de sistematização muito mais fácil de conduzir do
que as questões de ordem discursiva.
Assim, mesmo tendo clareza, desde o início, de que a ortografia seria tematizada na re-
estruturação textual, voltei-me com mais atenção a ela. Procedi a um levantamento minucioso
dos padrões de ortografia das duas turmas, tendo em vista uma programação, para o ano,
com essa dimensão da língua escrita em sua relação com a reflexividade, foco de meus
objetivos junto às crianças.
Nesse sentido, destaca Cagliari (1999-82), “primeiro, a criança precisa aprender a lidar
com a escrita e, depois, preocupar-se em escrever ortograficamente”. Ou seja, ela pode
“escrever alfabeticamente sem levar em conta a ortografia, mas depois será preciso fazer
com que essa escrita passe para a forma ortográfica” (Cagliari, 1999:79).
Como conduzir a criança nesse processo? Mais do que um treino mnemônico das
regras – aprender a norma não é só uma questão de memória (Morais, 1999) – os
lingüistas consideram que a apropriação das normas ortográficas envolve um exercício de
atenção, consulta e sistematização que vai permitindo ao usuário da língua escrita formular
alternativas e antecipar soluções diante das dúvidas que surgem durante o próprio processo
da escrita, assim como daquelas que aparecem quando nos voltamos para o texto já
concluído e nos dispomos a revisá-lo.
61
Para tanto, destaca Cagliari (1999:83), “o professor precisa ficar à disposição dos alunos
para esclarecer todas as dúvidas”.
Assim, durante os processos de re-estruturação do texto procurei colocar-me como fonte
de consulta para meus alunos, que ao se depararem com as listas de erros ortográficos
encontrados pelos colegas, solicitavam-me esclarecimentos constantemente.
Ao entrarem em contato com as sugestões ortográficas que os colegas haviam feito, as
crianças grifavam as palavras erradas no texto (pedi que não as apagassem para que não
perdêssemos o registro) e logo acima as escreviam de modo ortograficamente correto, não
sem antes me consultarem.
Ao ser questionada pelas crianças, em alguns momentos eu escrevia as palavras em que
havia dúvida na lousa ou na própria folha em que as crianças estavam escrevendo. Em
outros momentos a própria criança escrevia a palavra na lousa e perguntava se aquela
forma era a correta. Quando não estava correta, eu ou outro colega de sala dizíamos
como deveria ser e a criança corrigia a palavra, deixando-a escrita ali. Em outros momentos
ainda eu consultava o dicionário, mostrava à criança e pedia que ela a escrevesse na
lousa. Minha intenção ao fazê-lo, era a de que percebessem que o dicionário é uma
importante fonte de consulta.
Quanto ao ato de escrever as palavras na lousa, utilizei este procedimento, tanto porque
muitas das dúvidas eram recorrentes entre as crianças, quanto para disponibilizar a elas um
material para consulta, sem a necessidade de parar a atividade para perguntar, caso algum
colega já o tivesse feito.
Assumindo, ainda, com Cagliari (1999:84), que “a simples produção de textos
espontâneos não leva ninguém a escrever ortograficamente e é preciso trabalhar os textos
espontâneos em versões subseqüentes, até chegar à forma final” e que “a ortografia é um
objetivo a ser conseguido no decorrer das oito séries do Primeiro Grau” (Idem: 93.
Destaques meus), com o qual o professor deve tomar cuidado, eu procurei documentar, a
partir das produções dos alunos, como eles estavam lidando com a dimensão ortográfica
da escrita, quais as dificuldades maiores que estavam enfrentando, o que acertavam ou
erravam com menos freqüência para, desse modo, programar melhor minhas mediações.
Procurei acompanhar também os efeitos de minhas mediações na produção das crianças.
Que efeitos da correção, da análise e da sistematização das questões ortográficas apareciam
nos textos das crianças?
O registro sistemático dos erros apresentados pelos alunos nas diferentes versões de um
mesmo texto tornou-se parte do próprio processo de ensino, na medida em que possibilitou
à professora levantar indícios, nas produções das crianças, da mediação de seu trabalho
junto a elas. Até que ponto e como, aquilo que se planejou e implementou durante as aulas
afetava os alunos em suas práticas de escrita? Diante desses efeitos, como continuar esse
trabalho? Como avançar na consolidação das normas ortográficas ou como retomar e
propor atividades que conduzissem a ela?
62
Ao estudar os erros ortográficos feitos pelas crianças eu passei a “verificar em que medida
o rendimento ortográfico observável – que aparece externamente na folha de papel, traduzido
em erros e acertos – tem [tinha] a ver com o nível de conhecimentos que o aluno elaborou
internamente sobre a norma ortográfica” (Morais, 1999:38), uma vez que várias crianças
que cometeram alguns erros semelhantes aos de seus colegas eram capazes de corrigi-los
no texto alheio.
Frente a esse indicador formulei a suposição de que muitos dos erros de meus alunos
seriam ocasionais, isso se justificava devido ao fato de que esses erros foram desaparecendo
nas versões finais.
63
Mas percebi também que alguns dos erros permaneciam de forma mais recorrente,
como por exemplo, nas palavras “colcha” (“concha”, “conconcha”, “coucha”); “disse” (“dice”,
“dise”); “em cima” (“emcima”, “encima”, “ensima”); “férias” (“ferias”); “pediu” (“pedio”);
“saudade” (“saldade”, “saldades”, “saudade”, “saudade”, “saudades”); “separando/
separavam” (“ceparando”, “separavão”).
Possenti (2002:44) nos ensina que “há duas maneiras de contar erros: uma é contar os
erros individualmente, sem classificá-los; outra é contar tipos de erros, isto é, contar erros
classificando-os”. Era preciso analisá-los e classificá-los, pois frente a erros distintos seriam
feitas distintas formas de mediação.
Recorrendo aos estudos de Morais (1996, 1999) e aos estudos de Cagliari (1999) sobre
ortografia, elenquei algumas categorias que me orientaram na classificação dos erros.
Destaquei como focos de minha atenção, aquilo que Morais (1996:72) denomina como
“as tradicionais categorias de substituição, omissão, adição e deslocamento de letras,
acentuação e segmentação de palavras” e também erros relativos às categorias gráfica e
funcional das letras (ver nota nº 10 à p. 58). As categorias de substituição, omissão,
adição e deslocamento de letras, como a própria nomenclatura indica, dizem respeito ao
posicionamento das letras dentro da palavra. A categoria da segmentação entre palavras
refere-se à separação convencional entre elas.
Inicialmente minha atenção voltou-se para as questões de segmentação, substituição,
omissões e acréscimo de letras.
Como exemplos de segmentação de palavras, pude elencar as seguintes:
64
Ao observar o quadro, pude perceber que, mesmo no que se refere a segmentação das
palavras, é possível identificar diferenças entre os seus usos. O que me chamou a atenção
foi que as incidências maiores em termos da segmentação ocorreram nos casos de adjuntos
adverbiais de tempo e lugar, expressões compostas por duas palavras de uso corriqueiro na
língua, bem como no uso dos verbos seguidos de pronomes - os casos de ênclise.
Quanto aos adjuntos adverbiais, compostos por duas palavras, tais como: em cima, às vezes, de
novo, de repente, algum tempo, cuja grafia é objeto de equívoco mesmo entre adultos usuários
habituais da escrita, procurei destacar para meus alunos a forma correta de grafá-las.
Evidenciou-se que o uso do pronome após o verbo gerava confusão. As crianças estavam
em fase de elaboração do uso dessas expressões, e nesse caso, fui mostrando, gradativamente,
a lógica dessa forma de utilização da língua, sem esperar, nesse momento, que sua
compreensão fosse mais apurada ou mesmo que fosse consolidada pelas crianças, o que se
indiciaria na superação definitiva da aglutinação verbo-pronome, por entender tratar-se de
um aspecto da língua a ser trabalhado ao longo das oito séries do ensino fundamental.
Chamaram-me a atenção também dois outros fatos. O primeiro é de que em uma
terceira série as incidências de aglutinação dos artigos com os substantivos são pouco
recorrentes, tornando-se praticamente insignificantes, o que indicia que o processo de
elaboração dessa relação artigo-substantivo já está mais consolidado para as crianças.
O segundo fato que me chamou a atenção, ainda que sua freqüência tenha sido baixa,
foi que algumas crianças juntaram palavras, em expressões compostas, por exemplo:
“tambémse”, “foipegando”, “subicorrendo”. Dada a sua baixa incidência eu destaquei
que se escreviam separadamente, por considerar, com Góes e Smolka, que ao escrever,
muitas crianças tendem a fazer “ligações a partir de blocos significativos, geralmente
relacionados ao ritmo e entonação da fala (“erumavez”, pufavor”, “porcaso”, derepente”,
quepassarinho bonito”)” (Góes e Smolka, 1993:55).
Embora na imediaticidade das relações de ensino eu não soubesse explicar
lingüisticamente essas ocorrências, como professora foi de fundamental importância enxergá-
las, e nelas reconhecer uma especificidade para, a partir delas, chamar a atenção das
crianças nos momentos de re-estruturação do texto. Por serem expressões muito utilizadas,
tive várias oportunidades de voltar a elas em nossos trabalhos de revisão textual.
Mesmo não recorrendo a regras gramaticais ou ortográficas, foi possível, no decorrer
do trabalho com a re-estruturação de textos, destacar para as crianças a forma de grafar
tais palavras e expressões.
Segundo Possenti (2002),
saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se
aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e
sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento
(intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua.
(...) Resumidamente, pode-se dizer que saber uma gramática é saber
dizer e saber entender frases (Possenti, 2002:30-31).
65
Ao olhar para o quadro, o que se destaca são as substituições marcadas pela oralidade.
Com essa observação, pude considerar que crianças de terceira série, que já dominam o
sistema alfabético, estão, ainda, em fase de elaboração das normas ortográficas. É, portanto,
possível supor que tendam, conforme indicam Góes e Smolka, a “registrar os enunciados
com inúmeras marcas da fala: [a criança] não só registra palavras como fala (“muinto”,
“mulé”, “bassora”), como também liga e segmenta em função do significado e do ritmo da
fala” (Góes e Smolka, 1993: 55).
A maioria das substituições encontradas nas produções de meus alunos justifica-se por
grafarem as palavras da forma como as pronunciam. Fontana e Cruz (1997), referindo-se
a trabalhos de Smolka, explanam com clareza que
Pude considerar que, no caso específico da palavra “respondeo”, até como contrapartida
ao apoio na oralidade, revela-se um possível caso de hipercorreção (Possenti, 2002) no
sentido de que, acostumada a ser corrigida pelo apoio na fala, quando se defronta com
situações em que as palavras são grafadas tal qual pronunciadas, a criança começa a
generalizar e duvidar do seu próprio conhecimento, usando, embora equivocadamente, a
regra já internalizada anteriormente.
Os casos de omissões que apareceram apresentam uma pequena incidência, e foram
omissões do tipo:
Considerei que as omissões de “chamava” por “camava”, “quarto” por “quato”, “quado”
por “quando” e “ninguém” por “niguém” foram ocasionais, pois não percebi nelas indícios
de que a criança estivesse em processo de elaboração.
No caso de “brigadero” e “jabuticabera”, indiciava-se, novamente, um apoio na
oralidade, conforme já explanado anteriormente e no caso da palavra “istórias”, cabe
destacar a análise de Cagliari (1999c:103) quando nos esclarece que
Vale destacar, também, que para Morais (1999), o emprego da letra H inicial é
considerado um caso de correspondência letra-som irregular, ou seja, não há regra que
ajude o aprendiz, ele precisará memorizar tais palavras.
Os casos de adição de letras que apareceram nos textos foram poucos, porém, foram
interessantes para nos ajudar a pensar no processo de elaboração das crianças.
67
como se estes não fizessem parte dos critérios ortográficos dos alunos.
Esses resultados coincidem com os de López (1992), que também
constatou entre alunos espanhóis de oitava série de educação básica a
alta propensão a omitir acentos (Morais, 1996:73).
No entanto, Luh, um aluno que gosta muito das atividades de produção de texto, chamou-
me a atenção pela maneira como foi distribuindo acentos nas palavras. As correspondências
letra-som, para ele, eram muito marcantes, a ponto de acentuar quase todas as sílabas
tônicas das palavras, mesmo que tais sílabas não fossem acentuadas.
Este comportamento de Luh parece um indício da elaboração da tonicidade em sua
relação com a acentuação. As palavras excessivamente acentuadas sugeriam seus esforços
em desvendar os mistérios da acentuação.
Abaurre (1996), ao assinalar seu interesse pelo singular, o variável, o idiossincrático, o
cambiante, destaca que não se trata de deixar de lado o regular, o sistemático, o geral, mas
de reafirmar o interesse teórico pela
Tendo feito essas observações, frente a esses indícios manifestados por meus alunos, era
necessário compreender melhor como está organizada a norma ortográfica de nossa língua
no que diz respeito à notação gráfica das palavras, ou seja, que algumas correspondências
letra-som são regulares e, portanto, podem ser incorporadas pela compreensão, e outras
são irregulares, exigindo que o aprendiz as memorize. Ainda, segundo Morais (1999:27)
“erros semelhantes em sua aparência [...] têm naturezas diferentes”.
Com Morais (1999) aprendemos que existem três tipos de correspondências letra-som
regulares: regulares “diretas”, regulares “contextuais” e regulares “morfológico-gramaticais”.
Para esse autor os casos de regulares “diretas” são aqueles em que existe uma relação
biunívoca entre letra e som, os sons em questão são muito parecidos, como nas grafias de
P, B, T, D, F e V, os chamados “pares mínimos” (diferença em um traço da produção sonora).
Cagliari (1999) as denomina de letras “surdas/sonoras” e explicita que para aprendê-las
pode-se observar a fala, na maioria dos casos.
69
Nas produções textuais das crianças encontrei poucos erros referentes a esse tipo de
regularidade. Mais especificamente, duas crianças faziam esse tipo de troca de letras.
11
Morais, Artur Gomes. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática, 1999. Nesta obra o autor apresenta quadros com casos de
regularidades “contextuais” e regularidades “morfológico-gramaticais”. Massini-Cagliri, Gladis & Cagliari, Luiz Carlos. Diante
das Letras: a escrita na alfabetização. Campinas, SP: Mercado de Letras & Associação de Leitura do Brasil – ALB, SP: Fapesp, 1999.
Nesta obra os autores apresentam casos ortográficos possíveis de se trabalharem com regrinhas.
70
Observando o quadro acima, foi possível perceber que, apesar da pequena incidência,
o uso das letras M e N marcando nasalidade nos finais de sílabas, ainda era um objeto de
elaboração entre as crianças. Sobre este aspecto, nota Morais:
A escrita das vogais nasais e dos ditongos nasais constitui uma grande
fonte de dificuldade para os aprendizes. Isso é compreensível se levarmos
em conta que na escrita do português existem cinco modos de ‘marcar’
a nasalidade [e o uso das letras M e N nos finais de sílabas marcam
apenas uma dessas maneiras] [...] Essa variedade de alternativas (no
sistema alfabético) explica por que, a princípio, as crianças têm tanta
dificuldade de adotar as formas corretas (Morais, 1999:30-31).
Além das regularidades, Morais (1999) nos esclarece que ainda temos um grupo de
palavras que não possui regras a serem entendidas. É o grupo de palavras com
correspondências letra-som irregulares. Nele, encontram-se, dentre outros, os sons da letra
S, o som do G, do Z, do X. O emprego do H inicial, a disputa do L com o LH etc. “Em todos
esses casos realmente não há regra que ajude o aprendiz. É preciso, na dúvida, consultar
modelos autorizados (como o dicionário) e memorizar!!” (Morais, 1999:35).
72
Ao deparar-me com as palavras acima, fui percebendo que palavras como: “abraço”,
“começo”, “trouxe”, “lembrança” e “xadrez” evidenciavam as tentativas de elaboração das
crianças. “É necessário que conheçamos o que os ‘erros’ das crianças podem estar
representando nessa dura jornada de compreensão da língua escrita” (Monteiro, 2002:48).
73
Acredito, também, que será através do trabalho constante de leitura e escrita, na escola,
bem como das re-estruturações textuais, que o professor das séries iniciais poderá propiciar
momentos significativos para que os alunos se apropriem das regras ortográficas da escrita.
Sobre essa função docente, diz Possenti:
Assim, com relação aos aspectos ortográficos dos textos produzidos, meu objetivo, ao
longo de todo o ano, foi o de contribuir para que, além da constatação dos equívocos
ortográficos, os alunos passassem a considerar as questões ortográficas como um momento
de aprendizado da língua escrita.
Nesse sentido, observo com Morais que
a revisão dos escritos foi uma oportunidade para duvidar das soluções
ortográficas que tinham adotado. Ainda que nem sempre a atividade de
autocorreção tenha produzido resultados bem-sucedidos, possibilitou a
introdução de um maior número de mudanças corretas que incorretas.
Parece mais importante, no entanto, reconhecer que as práticas de revisão
são um ingrediente para a formação, no aprendiz, de uma atitude mais
rigorosa para com a norma socialmente exigida no ato de escrever: levar
em consideração o leitor que lerá o texto; a consciência do papel da
norma enquanto convenção facilitadora da comunicação; e a consciência
da legitimação que a norma estabelece, assim como a consciência da
discriminação que a violação da norma acarreta (Morais, 1996:80).
Neste texto da dissertação, com o intuito de evitar repetições, optei por apresentar uma
análise mais detalhada do conhecimento e domínio da norma ortográfica apenas
relativamente ao primeiro conjunto de textos produzidos no ano.
Ao fazer uma análise mais detalhada das produções textuais que se seguiram pude
perceber que, os tipos de erros mantiveram-se, mas a quantidade de manifestações diminuiu.
Fui percebendo, ao longo do ano, que as crianças passaram a perguntar mais. Os
questionamentos giravam, principalmente, em torno de acentuação e da categorização
funcional das letras, isto é, das relações entre as letras e sons e do lugar que cada uma delas
ocupa nas palavras. “Tem acento nessa palavra? Onde é o acento, no primeiro ou no
segundo a?”, “Que letra eu uso pra escrever a palavra ‘tal’?”, “Tal’ palavra escreve com S
ou Ç?”, “O quê escreve junto ou separado?”, “Essa palavra escreve com um ou dois erres?”.
Essas enunciações e questionamentos, bem como tantas outras que ocorreram durante
os processos de produção e re-estruturação dos textos, indiciavam-me todo um processo
de elaboração das crianças referente às questões ortográficas da língua.
Ao longo do ano muitos desses erros continuaram se manifestando, mas também consegui
perceber, através das produções das crianças, os indícios dessas elaborações, tanto no
sentido de incorporação das informações que eu levava, quanto no sentido de que as
crianças passaram a perguntar mais, passaram a se preocupar mais em escrever corretamente
e a utilizar o dicionário, demonstrando perceber que essa era uma importante fonte de
consulta que poderiam utilizar de forma autônoma, sem precisarem depender sempre de
outra pessoa para a resolução de seus problemas ortográficos.
76
Com Barthes (1984) aprendi que nossas análises devem conduzir a ver menos o que
se encaixa nos modelos do que aquilo que os desmantela, devemos escutar o sutil
rumor da linguagem.
O que foi me deixando maravilhada foi o fato de conseguir ver no texto gráfico o “rumor”
da linguagem através das escolhas que meus alunos faziam. Passei a olhar mais para o que
não se encaixava nos modelos dessa nossa língua institucionalizada.
Através do “alvoroço” das letras grafadas nos textos, fui percebendo que as escolhas das
crianças indicavam possibilidades da língua, bem como elaborações em curso de seus
aspectos ortográficos.
Nesse processo passei a conceber que quando nos propomos aos estudos da linguagem
selecionamos os detalhes e indícios aos quais atribuímos particular significação, mas que
também precisamos estar abertos ao maravilhamento, à perplexidade que a singularidade
das escritas das crianças nos oferecem, para que possamos, como professores, mediar,
cada vez mais, a sua relação com essa linguagem.
Revisão do texto realizada pelos autores Le e Fe a partir das sugestões feitas pelos
leitores.
79
Cabe aqui destacar que ao longo de todo o trabalho procurei ter claro, para mim mesma,
que meu foco de análise deveria ser o processo de produção, análise e reescritura do texto.
Assim, cada atividade de produção textual reuniria diferentes versões de um mesmo texto e
somente a comparação entre essas diferentes versões daria parâmetros do desenvolvimento
da atividade de escrita em cada aluno. Portanto, não se tratava de esgotar todos os aspectos
da escrita que requeriam revisão em apenas uma das produções. Eles estariam sendo
elaborados ao longo do ano. O que se fazia necessário era documentar quais os aspectos
da escrita que se iam consolidando e quais deles ainda necessitavam de novas intervenções.
Após a produção da versão final, cada dupla de trabalho avaliou tanto o texto por elas
produzido quanto seu desempenho ao longo da atividade de produção e revisão. Estas
foram feitas individualmente, visto que cada participante da dupla poderia ter opiniões
diversas das do companheiro, pois todo o processo envolvendo a tríade leitura/produção de
textos e análise sobre a escrita se constitui como um processo no qual o sujeito não passivo
busca “significações [...] que ele produz em situações dialógicas ilimitadas que constituem
suas leituras possíveis” (Authier-Revuz, J., Apud: Geraldi, 1997d:91). Assim sendo, cada
sujeito atribuiu sentidos singulares ao trabalho desenvolvido, sentidos esses que se enraizavam
na história das suas experiências com a leitura, com a escrita, enfim, com a vida.
81
Continuando a caminhada
- Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.
Então, Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar
memórias para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas,
guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera
todo mundo rir, e colocou-a na cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô
lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro;
por fim, entrou no galinheiro e pegou um ovo fresquinho,
ainda quente, debaixo da galinha.
Ai, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia
e deu à ela, uma por uma, cada coisa de sua cesta.
“Que criança adorável que me traz essas
coisas maravilhosas”, pensou Dona Antônia.
E então ela começou a se lembrar.
Ela segurou o ovo ainda quente e contou a
Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado,
que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho,
no jardim da casa de sua tia.
Ela encostou uma das conchas no ouvido e lembrou
da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo,
e como sentira calor com suas botas de amarrar.
Ela pegou a medalha e lembrou,
com tristeza, de seu irmão mais velho,
que havia ido para a guerra e que nunca voltou.
Ela sorriu para a marionete e lembrou
da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha,
que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau.
Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto
e lembrou do dia em que se conheceram
e de todos os segredos que haviam compartilhado.
E os dois sorriram e sorriram, pois toda
a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada,
por um menino que nem era tão velho asssim.
Imagens de fundo: Capa e contracapa da obra. Fox, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes, Ed. Brinque-book, 1995.
84
Escolhi essa história porque ela apresenta marcas lingüísticas específicas da narrativa,
tal como destaca Perroni (1992): um verbo no imperfeito introduzindo a abertura da história;
o uso de expressões como “daí, então, depois, um belo dia”, introduzindo a ação
propriamente dita, seção essencialmente narrativa; e fórmulas de fechamento da história.
Além dessas marcas lingüísticas, o texto apresenta uma expectativa, um conflito e um
encadeamento de ações, em um jogo de causa/efeito, próprio da narrativa, conforme
Siqueira (1992).
A produção escrita das crianças seria novamente um reconto. No processo de produção
e de revisão do primeiro texto delas, chamara minha atenção o fato de que as crianças se
prendiam excessivamente a inúmeros detalhes referentes à história lida, produzindo textos
bastante longos e, não conseguiam concluí-los, muitas vezes. Estudando, na busca de
encaminhamentos para essa questão, fui percebendo que a capacidade de síntese articula-
se à leitura. Rojo (2004), destaca que o processo de síntese de um texto está profundamente
articulado às capacidades da comparação e de generalização das informações do texto
lido. Segundo a autora, durante o processo de compreensão do texto, o leitor vai construindo
os sentido do que está lendo a partir de comparação de informações advindas de várias
ordens: de outros textos, de seu conhecimento de mundo etc., o que propicia ao sujeito
avaliar a relevância das informações, facilitando o processo de síntese (Rojo, 2004).
A generalização, por sua vez, se dá quando o sujeito seleciona as informações pertinentes
a serem retidas, excluindo redundâncias, repetições ou, até mesmo, explicações. “Podemos
guardar alguns [dos] trechos [do texto] ou citações que mais nos impressionaram, mas em
geral armazenamos informações na forma de generalizações responsáveis, em grande parte,
pela síntese”, diz a autora (Idem:06).
Nesse sentido, a comparação e a generalização, como duas habilidades que nos
ajudariam no processo de síntese do texto, deveriam ser trabalhadas.
Como é que eu iria intervir junto às crianças? Desenvolvi o trabalho com elas de forma
a possibilitar deliberadamente a comparação de informações e a generalização dessas
informações.
Assim, após a realização da leitura, discutimos as idéias apresentadas no livro, o assunto
tratado e como ele se relacionava com o livro lido anteriormente, “A colcha de retalhos”.
Logo de início, as crianças perceberam que os temas eram semelhantes. A nova história
também tratava das relações entre crianças e idosos. Conversamos sobre a vivência delas
com pessoas idosas. Muitas, em idade de catequese, (3ª série – 9 anos), relataram ter
refletido sobre o tema da Campanha da Fraternidade: “Vida, dignidade e esperança”, que
tratava da questão dos idosos.
A relação entre os textos e os relatos de experiências das crianças possibilitaram maior
qualidade de leitura. Segundo Geraldi (1997c:112) “a qualidade (profundidade) do
mergulho de um leitor num texto depende de seus mergulhos anteriores. Mergulho não só
nas obras que leu, mas também na leitura que faz de sua vida”.
85
Depois de termos conversado sobre a relação da nova leitura com as leituras anteriores,
discutimos como poderíamos recontar a nova narrativa.
Durante o relato, os alunos extraíram as idéias principais e a partir delas destaquei o
conceito de síntese.
O que viria a ser uma síntese? Para as crianças síntese era o mesmo que resumo. “Bom,
não precisa contar todos os detalhes (Ja)”, “Você pode contar sem precisar contar todas as
lembranças que apareceram escritas no livro (Ni)”.
Em interlocução com as crianças destaquei que para escrevermos a síntese de um livro
era necessário direcionar o olhar para alguns dos aspectos do texto, pois havia uma intenção
pautando o processo daquela leitura: o reconto do texto lido. Assim, ainda que não fosse
necessário ater-se a todos os detalhes como os alunos haviam destacado, era preciso
garantir que os elementos essenciais da narrativa estivessem expostos, de modo a garantir
a compreensão da síntese por um outro leitor.
Nesse processo trabalhamos tanto a compreensão leitora, como também uma das funções
de escrita, se considerarmos que a síntese configura um gênero de discurso, ligado a algumas
atividades específicas, envolvendo certas intenções discursivas, que implicam um tipo de
leitura e o domínio de certas marcas estilísticas de escrita.
A síntese, como gênero, é utilizada em várias atividades: para apresentar um trabalho,
para elaborar comentários ou pareceres sobre um texto, para organizar uma exposição ou
uma aula. E, pelo fato de a síntese configurar um gênero, julguei importante que as crianças
se apropriassem dele.
Apesar de todo o meu interesse pelo exercício da síntese, procurei não perder de vista as
críticas que as cercam nas práticas escolares. Segundo Barthes
Na produção textual anterior, eu apenas lera alguns dos textos produzidos para as crianças
e juntos fomos refazendo os parágrafos na lousa. Desta vez utilizei uma outra forma de
mediar a relação delas com os textos produzidos. Para desenvolver a atividade, escolhi
algumas produções que apresentavam os problemas que eu elegera como foco e outras
em que tais problemas não se encontravam.
Reproduzi os textos selecionados em transparências, omitindo os nomes dos autores.
Ao iniciar a aula, solicitei que as crianças observassem as produções que eu estaria
apresentando e que tentassem, nelas, encontrar as respostas para aquelas questões que eu
havia selecionado como critério para a análise e que haviam sido registradas na lousa.
Iniciamos então o trabalho com o retroprojetor. A princípio projetei na tela um texto que
90
Também percebi muitas crianças voltando-se para lousa para se utilizarem do que estava
escrito. Algumas delas chegavam a perguntar algumas informações e, imediatamente após
realizarem a pergunta, já se lembravam que as informações estavam disponíveis no quadro,
chegando a comentar: “Ah! Está lá na lousa!”.
Porém, outras crianças apresentavam bastante dificuldade em saber o que precisaria ser
modificado em seu texto. Nesses momentos eu, como professora, ia mediando a sua relação
com o texto e apontando quais as possibilidades de mudanças a serem feitas, fazendo, com
elas, as marcas sinalizadoras, para que percebessem tais possibilidades. Foi o que aconteceu
na revisão de Leb.
94
95
Essas nuances na forma de conduzir a revisão dos próprios textos evidenciaram que a
mediação e seus efeitos são sempre diversos, porque os sujeitos estão em processos de
elaboração distintos, e se apropriam de forma distinta daquilo que se compartilha com eles.
A compreensão dos processos singulares em que meus alunos experimentavam-se
naquele momento particular da escrita, através da observação da forma como utilizavam
as marcações externas, dirigiu minhas intervenções no sentido de possibilitar-lhes uma
maior autonomia na utilização desses sinalizadores, seja utilizando-os com a criança,
mostrando a ela como fazê-lo; seja disponibilizando elementos para consulta.
Segundo Vygotsky (1989:62), a função reguladora dos signos nasce das/nas atividades
interpessoais e internaliza-se como forma de controle do próprio indivíduo, tornando-o
independente da situação imediata. Os signos externos constituem “um meio da atividade
interna dirigido para o controle do próprio indivíduo”, e ao operar com signos, as crianças
dependem crucialmente dos signos externos. Nesse sentido a importância da atividade
interpessoal mostrou-se relevante no processo de internalização do uso de signos.
Em estudo voltado especificamente para a produção textual, Cardoso (2003) retomando
esse conceito – de internalização – de Vygotsky, nos explica que
E realmente foi interessante observar como o fato de ter compartilhado com as crianças
essas anotações e apontamentos feitos conjuntamente, repercutiu nos textos revistos. Em
sua maioria o mecanismo utilizado na revisão foi a inclusão de informações, evidenciando
que muitos dos alunos recorreram às anotações da lousa nos momentos de indecisão sobre
o que precisariam escrever. Um exemplo desse recurso pode ser ilustrado pela segunda
versão dos textos de Gu e Di.
96
97
98
Ao deparar-me com este texto fiquei pensando em como poderia mediar a relação dessa
criança com o próprio texto. Naquele momento fui acometida de uma forte sensação de
impotência, mas pensava que algo deveria ser feito pela professora.
Assim, após todo o trabalho com as transparências e os registros feitos na lousa, conforme
já relatei anteriormente, ao circular pela classe, eu sempre procurava passar por sua carteira
dispondo-me a ajudá-la, caso ela julgasse necessitar. Fab recorreu muito pouco a mim.
Ansiosa, procurei pela segunda versão de seu texto.
101
102
Ao me reencontrar com a segunda versão do texto de Cha, reafirmei para mim mesma
a importância da revisão, também como um momento de produção do texto (Fiad e
Sabinson, 2001).
A mediação da professora, possibilitando que o aluno compreendesse os motivos de se
escrever o texto de forma mais completa e coerente, resultou em um outro texto.
Foi ao centrar minha atenção muito mais no processo do que no produto final que pude
compreender o quanto a mediação da professora possibilitando a volta da criança ao texto
mostrava-se relevante à relação pedagógica, sustentando os aprendizados e elaborações
por ela suscitados.
Vivendo essas situações, compreendi também o quanto minha mediação, enquanto
professora, é modulada pelos saberes de meus alunos, pelas propostas de atividades feitas
por mim e pelas elaborações diferenciadas entre as crianças.
Um outro aspecto a considerar é que ainda que o foco central de minha atenção fosse
com a estrutura da narrativa, nos textos de algumas crianças tive preocupação com a
paragrafação e com a pontuação do diálogo, como organizadores textuais. O texto de
Ama chamou-me a atenção pelo uso abusivo do travessão.
107
108
Surpresa, perguntava-me o que Thi quisera dizer com: “...então ele perguntou a galinha,
como procurar para voltar a memória de Dona Antônia não sei se a galinha respondeu. Só
que o menino ele achou a memória de Dona Antônia em uma cesta de brinquedos? (sic)”.
Parece tão fácil para a professora ler os textos de seus alunos...
Somente ao reler o livro, formulei uma hipótese para aquilo que Thi havia escrito –
talvez ele tivesse lido as imagens do livro –, lançando mão de um recurso que, como
professora, eu não esperava que pudesse acontecer.
Ao se deparar com a tarefa do reconto, pareceu-me que o aluno foi juntando fragmentos
do texto que havia sido lido, e que ele ainda se lembrava, com as imagens da ilustração.
Se para nós, leitores adultos, não há ambigüidade nas imagens, pois as vamos significando
a partir do texto lido, para as crianças, nem sempre isso é verdadeiro. Com Thi pude
aprender que, muitas vezes, nossos alunos já alfabetizados fazem o movimento em sentido
inverso, primeiro lêem as imagens.
Outro aspecto bastante interessante neste texto foi a forma como o aluno deixou
transparecer sua voz no decorrer do texto. Seus enunciados misturaram-se aos enunciados
do narrador.
Ao escrever “que coitada nada”, Thi desvela para o leitor o seu ponto de vista com
relação ao problema de Dona Antônia. Ele assume a sua voz, coloca-se como mediador
entre o texto lido por ele e seus leitores, deixando transparecer a forma como ele próprio
significou a situação vivida pela personagem.
Em continuidade ao processo de revisão, submetemos o texto a um novo interlocutor.
Novamente optei pela troca de textos entre a 3ª série A e a 3ª série B.
Neste momento de revisão solicitei que os leitores buscassem respostas às mesmas
questões elencadas no dia da revisão feita pelo próprio autor. Assim, as crianças estariam,
em uma folha a parte, registrando suas dúvidas quanto ao entendimento do texto, bem
como suas sugestões para uma nova revisão.
Passados mais alguns dias os produtores dos textos puderam entrar em contato com as
sugestões feitas pelos leitores da outra classe. Assim, realizaram uma nova leitura de seus
textos e uma posterior leitura das sugestões, analisando-as.
Alguns alunos mostraram dificuldade em aceitar as sugestões dos colegas, porém
encontraram “falhas” em seus textos que ainda poderiam ser melhoradas. Outros aceitaram
com bastante naturalidade a opinião do leitor, demonstrando, tanto em um caso quanto no
outro que estavam assumindo o papel de interlocutores que falam, escrevem, lêem, seja
para concordar, seja para discordar. A concordância e a discordância com os leitores
mediatizam o re-encontro do autor com o seu próprio texto.
Como destaca Antunes (2002:41), “o trabalho do professor é, como se percebe, essencial
mas, de forma alguma, permite que se ignore a importância também extraordinária da
interação aluno/aluno no avanço progressivo e significativo” do processo educativo.
Na tríade leitura/produção de textos e análise lingüística, além de apontar alguns caminhos
possíveis de serem seguidos, procurei assumir o papel de representante leitor do aluno.
Creio que esta postura fica esclarecida com o que dizem Fonseca e Geraldi (1997c:107):
Aprendi com Gianni Rodari outras formas de instaurar a produção de textos. Optei pelo
“binômio-fantástico”.
A proposta do binômio-fantástico consiste no seguinte: uma criança escreve em um lado
visível da lousa uma palavra, e outra criança escreve outra palavra em uma parte coberta
da lousa, criando expectativa em relação aos pares de palavras encontradas, para posterior
realização da atividade.
Rodari argumenta que quanto mais inusitado o encontro das palavras, mais interessante
será a atividade a ser desenvolvida, na medida em que
Preparando as crianças para a produção textual, dois dias antes eu disse a elas que
iríamos começar a produção de um novo “livro” e que, para tanto, iríamos produzir um
tipo de texto diferente daqueles produzidos anteriormente. Percebi que a maioria das crianças
entusiasmou-se, pois perguntaram qual seria a leitura que iria nos ajudar na escrita.
Respondi a elas que este texto não seria trabalhado a partir de uma leitura, que este
seria o texto que elas haviam me pedido, o texto inventado, criativo... Disse também que
antes de iniciarmos a produção iríamos brincar um pouco com as palavras.
As crianças ficaram muito curiosas, perguntaram qual seria a brincadeira, que palavras
usaríamos etc.. Propositadamente, não desfiz a curiosidade, e a provocação fez efeito.
Várias crianças procuraram-me no corredor para saber qual seria a brincadeira. “Tia, conta
o que é que nós vamos fazer! (Ca)”, “Ah! Porque você não fala só pra nós como vamos
escrever o texto? (Era um grupo de quatro meninas: Ca, Na, Ju e Já)”.
Enquanto isso, em sobressaltos, eu também aguardava o grande dia.
“Professora, que proposta é essa que ousa adentrar sua classe, quebrando os padrões
de produção textual desta escola? Você tem certeza que sabe o que está fazendo com
essas crianças?”
Esse era o pensamento que me perseguia nos dias que antecederam ao trabalho.
Afinal,
Viajando no imaginário
Para esses autores, uma frase como: “a galinha estava grávida [...] seria responsável por
incoerência por contrariar o conhecimento geral, embora isto só represente incoerência, se
o mundo representado pelo texto for o mundo ‘real’ e não, por exemplo, o mundo fantástico,
mágico, de fantasia” (op.cit.:11).
117
Assim, com alguns exemplos que extraí do próprio texto de Gianni Rodari, propus que
imaginássemos um “homem-vidro” e perguntei às crianças se esse meu homem de vidro
poderia ter maus pensamentos e por quê.
As crianças se deliciaram em apontar diversas respostas. Até o ponto de que... “Todos
veriam o pensamento dele!”
Então, disse a elas que o meu homem de vidro havia descoberto uma maneira de esconder
os pensamentos. Qual seria essa maneira? Oportunamente apareceram duas respostas
bastante coerentes: “Ele passou a usar boné!”, “Ele deixou o cabelo crescer!”
Antes de iniciar a atividade, persisti no homem vidro: ele pode lutar judô ou fazer capoeira?
Por quê?
Quem passasse por minha sala de aula, naquele momento, pensaria que as crianças
estavam sozinhas, querendo todas falar ao mesmo tempo. Foi preciso parar a atividade por
alguns minutos para reorganizar a sala e poder ouvir a todos. Até concluir-se que: “o
homem de vidro não tem flexibilidade, por isso não consegue lutar judô. Não pode porque
senão quebra!”
Caracterizada assim uma das exigências do tipo de texto com o qual iríamos trabalhar,
qual seja: a criação de um texto recorrendo a elementos do imaginário, passamos para a
produção dos diversos binômios de palavras.
Adaptei a atividade proposta por Rodari para a realidade de minha sala de aula. Entreguei
a cada dupla dois pedaços de papel e pedi que em cada um deles escrevessem um
substantivo comum. Recolhi-os dobrados como se fosse usá-los para um sorteio. Fui até a
lousa e enumerei de um a doze de um dos lados e de um a doze em outro lado.
Sorteados, os doze primeiros substantivos foram escritos ao lado esquerdo da lousa.
Posteriormente, sorteei as outras doze palavras e as escrevi ao lado direito da lousa. Assim,
formamos doze binômios.
1 – raio –chuva
2 – homem – magia
3 - mistério – nascente
4 – escada - fênix (viram-na no filme Harry Potter)
5 - dentadura – relógio
6 – ariranha – nascente
7 – raio – chuva
8 – escola - trasgo (viram-no no filme Harry Potter)
9 – mata – cachorro
10 – cachorro – cachorro
11 – cavalo - princesa
12 – cemitério – machado
118
Tendo em vista que o binômio-fantástico não garante nada em si mesmo, pois os criamos
a partir de referências já elaboradas e de sentidos experimentados nas interlocuções, meu
papel, enquanto professora, foi o de explorar esta característica humana da criatividade
nos sujeitos com os quais trabalhava. Segundo Rodari, o papel do professor é o de promotor
da criatividade, não como amestrador de focas ou potros, transmitindo saberes prontos em
bocados diários, mas como “um adulto em meio a crianças, pronto a exprimir o melhor de
si mesmo, a desenvolver em si mesmo os hábitos da criação, da imaginação” (Rodari,
1982:142).
Assim, após formados os binômios-fantásticos, propus que conversássemos sobre como
poderiam ser desenvolvidas as diversas narrativas, utilizando os binômios encontrados.
A exploração da própria proposta entre os sujeitos que iriam desenvolvê-la possibilitou
ao grupo compartilhar idéias e comentários, oriundos de seus conhecimentos e da diversidade
de experiências vividas por eles. Como destaca o próprio Rodari, a riqueza do binômio-
fantástico encontra-se na provocação entre as palavras. Palavras que se desdobram em
possibilidades de sentidos porque remetem à riqueza e variedade da experiência cultural,
como destacam Fontana e Cruz:
Após a revisão realizada pelos próprios autores, os textos circularam em sala de aula
para que os colegas os lessem. As crianças se mostraram muito interessadas, uma vez que
esses textos eram inéditos, ou seja, não haviam sido produzidos a partir de uma leitura
realizada anteriormente pelo grupo.
Como minha intenção era de que a atividade de linguagem escrita da/na criança se
aprimorasse, tendo impacto significativo sobre seu desenvolvimento, a atenção às condições
de produção dessa atividade na sala de aula mostrou-se fundamental no sentido de avaliar
o quanto estavam possibilitando (ou não), às crianças, a apreensão e a diferenciação entre
as funções comunicativa e individual da escrita.
Se a função comunicativa enfatiza a importância do outro na produção da escrita, a
função individual, segundo Góes e Smolka (op.cit.), aprimora-se quando através da produção
do discurso o sujeito desenvolve uma atitude de análise sobre o texto que produz, organizando
e regulando o próprio pensamento.
Em meu encontro com os textos produzidos, minha atenção voltou-se para os modos de
mediar um processo de produção textual em que a criança produziu os elementos da
narrativa, bem como o seu desenvolvimento, sem as referências que estariam asseguradas
de antemão por um texto conhecido.
Como eu sempre trabalhara com o reconto, não me havia indagado ainda sobre
os recursos que as crianças mobilizam no momento em que produzem um texto de
autoria própria.
Os elementos a que as crianças recorreram, remeteram-me à questão da intertextualidade.
Barthes (1984:75) define o texto como “o entretexto de outro texto” e diz que “as citações
de que é feito um texto são anônimas, irreconhecíveis e, no entanto, já lidas: são citações
sem aspas”.
Koch (1998) ao explanar sobre a construção dos sentidos nos textos tece uma reflexão
sobre intertextualidade e polifonia, recorrendo a Barthes e a Bakhtin.
E ainda:
Dessa perspectiva, é possível afirmar que um texto não existe sozinho, ele faz
parte de uma cadeia de enunciados. Como um enunciado está sempre em relação
com outros enunciados, todo enunciado é pleno de vozes, é polifônico. São os
vários enunciados que falam em mim, portanto, “todo caso de intertextualidade é
um caso de polifonia” (Koch, 1998:57).
De modo geral, como assinala Smolka (1993), a escola não tem considerado o
trabalho com a produção de textos nas séries iniciais como um processo de interação,
um processo discursivo, dialógico. “Com isso, a escola reduz a dimensão da
linguagem, limita as possibilidades da escritura, restringe os espaços de elaboração
e interlocução pela imposição de um só modo de fazer e de dizer as coisas” (p. 76).
Em meu reencontro com os textos das crianças, fui identificando a dimensão inter-
discursiva da elaboração textual, através da presença de personagens de histórias
e narrativas já conhecidas pelos alunos, de padrões de linguagem e de
comportamento típicos dessas narrativas, de modos de compor o cenário, as cenas
e seu desenvolvimento, que são nesse caso bastante próximos dos estilos explorados
nas novelas de TV, nos filmes, nos vídeo-games. E, também, em meio à presença de
outros tantos textos, fui identificando as experiências de vida das crianças, seus
valores, conhecimentos e conceitos.
Diante da diversidade de caminhos percorridos pelas crianças, considerei, na
análise de seus textos, os modos como elas ocuparam o espaço de interlocução
instaurado pela proposta de produção textual, e que posições assumiram ao escrever
o que escreveram. Considerando o texto como unidade de análise, procurei
possibilitar aos meus alunos que retomassem o texto e que, através de seus dizeres,
lidassem com os dilemas da linguagem e com os dilemas da cultura humana, pois o
que é o texto senão uma reflexão sobre a experiência e a experiência da reflexão
(Chiappinni Leite e Marques, 1988)?
Já no título Hen explicitava o objeto cultural que mediatizou sua produção: “TOMB
RAIDER III – A nova aventura de Lara Croft”. Lara Croft é a personagem principal de um
jogo de vídeo-game e de um filme baseado nesse jogo eletrônico.
Em minha primeira leitura desse texto, considerei-o truncado. A personagem deslocava-
se, de repente, de um cenário para outro sem muitas explicações, tirava armas do nada...
Em minhas primeiras mediações, solicitei que Hen preenchesse aquilo que eu lia como
“lacunas”, como falta de informações na superfície de seu texto. No momento da revisão,
ele atendeu às minhas solicitações.
Posteriormente, retomei seu texto inicial para uma análise mais detida, tendo em vista a
dissertação, e fui me dando conta das marcas da linguagem do vídeo-game, presentes na
organização daquela narrativa. Mediado pelo jogo e pelo filme, Hen fora bastante fiel ao
estilo do “gênero” vídeo-game.
Em um vídeo-game, mais do que o enredo - que ao mesmo tempo existe e não existe,
uma vez que serve apenas para situar o cenário e caracterizar o personagem e seus modos
de ação -, o que interessa é a sucessão das ações. Sucessão que se explica como etapas do
jogo, reduzindo a relação causa/efeito existente entre as ações, à relação ganhar/perder.
Ao ganhar passa-se para a etapa seguinte, e ao perder reinicia-se a etapa em que se
estava. Dentro dessa lógica, o tempo narrativo e os efeitos das ações dos personagens
desfazem-se a cada re-início, que apaga o vivido. O efeito é de que a história não tem
conseqüências, nem tem fim, basta reiniciá-la.
Embora esse estilo estivesse presente nos enunciados do texto de Hen desde o início,
somente o percebi em uma outra leitura de sua produção inicial, depois de ter-lhe sugerido
alterações em seu texto.
Na re-leitura que fiz da primeira versão do texto de Hen, vi-me sobressaltada por uma
série de indagações: o que os objetos criados pela indústria cultural têm feito com a escrita,
com a leitura, com os modos de narrar? O que têm feito com as crianças? O que têm feito
com a escrita e a leitura escolares? E ainda, o que fazer, como escola, com a escrita
marcada pelas experiências de que as crianças são portadoras? Em outras palavras, como
intervir em um texto como o de Hen?
Essas dúvidas aumentaram ainda mais diante do texto de Felm. Ele também escreveu um
texto tendo como mediador o jogo eletrônico Tomb Raider.
125
126
Mesmo tendo feito essas anotações, decidi realizar uma leitura juntamente com Felm. Ao
me colocar como leitora de seu texto, instaurei a condição de escritor no aluno, possibilitando-
lhe perceber, através das perguntas que lhe dirigia, que algumas passagens não estavam
suficientemente esclarecidas para mim.
Durante a leitura o aluno foi explicitando o que queria ter dito quando escreveu suas
idéias e eu o ajudei a reorganizar seu texto.
129
130
o texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos,
mas que realiza o próprio plural no sentido: um plural irredutível (e
não apenas aceitável). O Texto não é coexistência de sentidos, mas
passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação,
[...] o texto é um tecido.
Cabe, então, considerar que, mediados pelo uso dos jogos eletrônicos, produtos da
Indústria Cultural, como é o caso da Tomb Raider, e expostos a filmes baseados nesses
jogos, Hen e Felm produziram narrativas bastante fiéis ao estilo no qual se apoiaram para
a escritura e, nesse sentido, foram coerentes em seus enunciados.
Reconhecer, como professora, essa coerência, levanta, como assinala Smolka (1993:67),
indagações:
Somente fazendo a leitura do texto produzido com seu autor – um jovem escrevinhador
em processo de apropriação e de elaboração da escrita – apreendi os limites de minha
mediação como professora, não para descartá-la e assumir a intocabilidade da produção
da criança, mas para compreendê-la em sua dimensão relacional, discursiva. Ou seja, a
leitura do texto produzido pelo aluno é relevante enquanto uma forma de mediação que
explicita tanto para a professora, quanto para o aluno, a compreensão que ambos elaboram
do texto, possibilitando, a um e outro, a negociação dos sentidos em jogo e a reflexividade
sobre os dilemas e possibilidades da escrita.
Conforme destaca Smolka (1993:111):
Mediadas pelos filmes e pelos livros de Harry Poter, por livros lidos em sala, por uma
novela de TV, em exibição na época deste estudo, e influenciadas também, acredito, pela
força da palavra fantástico, presente no nome da proposta de produção que estávamos
desenvolvendo e que havia sido destacada por mim logo que a iniciamos, muitas crianças
recorreram a bruxos e bruxas, vampiros e outros seres imagináveis e ao estilo de narrativa
de que eles fazem parte.
A interlocução com esses outros textos, marca a construção das personagens, dotando
a criança de modos de caracterizá-las, de certas ambiências por onde elas circulam, de
marcas temporais, de modos de ação e de valores que as constituem. Também alimentam
o imaginário dos jovens autores que se apropriam de suas fontes inspiradoras de modos
diversos. As crianças reproduzem passagens das mesmas, imitam-nas, combinam alguns
de seus elementos com outras narrativas, transformam, em parte, personagens, cenários
e ações. Enfim, praticam a leitura e a escrita nos seus contextos de utilização, elaborando
significados e sentidos do/no texto, fazendo-se leitores e escrevinhadores, pois estes,
como assinala Nilma Lacerda (2003:228), “não nascem feitos [...] mas se formam com
trabalho e determinação”.
No jogo composicional da escritura, Car apropriou-se da personagem central do livro –
“A menina que queria ser bruxa” (1992), de Giselda Laporta Nicolelis - que havia sido lido
em sala de aula - entrelaçando-o à leitura de Harry Poter, ao livro “O fantástico mistério de
Feiurinha” e a experiências cotidianas vivenciadas por seres não fantásticos.
132
133
134
Assumindo modos de caracterização próprios dos contos de fada, Car descreve sua
personagem como sendo “bonita, linda, tinha olhos azuis, cabelo loirinho, pele clara e
lábios vermelhos [...] todos falavam que ela era uma menina horrível”.
Possivelmente inspirada no filme de Harry Potter, em seu texto ela se reporta ao século
XIX. “Lá pelo século XIX nasceu uma bruxinha ra(sic) uma bruxinha, chamada Lina”.
A literatura, como assinala Smolka (1993:80):
Apesar de ser possível reconhecer a presença desses outros textos na produção de Car,
é como interlocutora que ela os entretece, produzindo uma narrativa singular.
Como Car, nas produções individuais do binômio fantástico, Yna também se apropria
de trechos do livro, “A Moura Torta”, de Pedro Bandeira, lido em sala de aula, para
descrever características físicas e psicológicas das personagens.
Mo também produz um texto em interlocução com a história da “Feiurinha”.
135
136
137
138
Neste texto, Mo, inspirada pela história de Pedro Bandeira, reúne as princesas dos contos
“A Bela e a Fera”, “Branca de Neve”, “Cinderela” e “Chapeuzinho Vermelho”. Essas princesas,
como na história de Bandeira, fazem uma reunião depois de muitos anos que não se viam.
Diferentemente daquele autor, Mo elege a perda de um dos sapatinhos de cristal como o
elemento desencadeador de sua narrativa, singularizando-a.
No texto em grupo, as alunas Mo, Car e Bi se reportam ao filme “Jumanji”, descrevendo,
nitidamente, seqüências de cenas daquela produção. “Certo dia resolveram investigar esse
barulho esquisito. Procuraram pela casa inteira, quando estavam desistindo resolveram ir
até sótão (sic). [...] Abriram o jogo e pensaram em jogar derrepente sem mais nem menos
as peças adaram sozinhas, agora não tinha jeito tinham que continuar a jogar (sic)”.
Mas foi Harry Potter o personagem que mais marcou os textos produzidos. O jogo de
quadribol, a assombração de trasgo, a fênix e outros elementos dessa narrativa foram
reproduzidos pelos alunos ou inseridos, como parte de um outro enredo, em seus textos.
Nessas apropriações, elementos do Harry Potter original apareciam re-elaborados,
nuançados pelas compreensões das crianças ou pelo contexto do enredo em que era inserido.
Meu gosto pessoal por esse gênero de textos e de filmes aproximou-me mais de meus
alunos. Embora meu interesse pelo tipo de fantasia presente nesse gênero não decorra de
minha condição de professora, contribuiu grandemente para ela, permitindo-me identificar
sua presença nos diversos textos produzidos e também os modos como as crianças os
utilizavam. O texto de Felf ilustra um desses modos de utilização.
139
140
A produção cultural que mediatizou a produção do texto de Felf foi “Harry Potter e a
Pedra Filosofal”.
“No dia seguinte ele começou a jornada e depois de 10 km apareceu um cachorro de
10 metros de altura e com 7 cabeças e 10 patas e 4 rabos...”
Harry se virou – e viu, muito claramente, o que foi. Por um instante teve
a certeza de que entrara num pesadelo – era demais depois de tudo o
que já acontecera.
Não estavam numa sala, conforme ele supusera. Achavam-se num
corredor. O corredor proibido do terceiro andar. E agora sabiam por que
era proibido.
Estavam encarando os olhos de um cachorro monstruoso, um cachorro
que ocupava todo o espaço entre o teto e o piso. Tinha três cabeças. Três
pares de olhos que giravam enlouquecidos; três narizes, que franziam e
estremeciam farejando-os; três bocas babosas, a saliva escorrendo em
cordões viscosos das presas amarelas... (Rowling, J. K. “Harry Potter e a
Pedra Filosofal”, 2000:140-141).
Felf criou uma personagem fantástica combinando elementos extraídos de Harry Potter e
também incorporou ao seu discurso o clima e a ambiência presentes naquele texto. Porém,
fez modificações na imagem da qual se apropriou, criando um outro cão gigante apoiado
em uma criação já existente anteriormente.
O processo criativo humano, como afirma Vygotsky, apóia-se em nossa faculdade de
combinar o antigo com o novo a partir de elementos da sua própria experiência. Nesse
sentido, a interlocução com Harry Potter deu a Felf a possibilidade de pensar para além
daquilo que já havia sido pensado pela autora, Rowling, J. K. (2000).
Tal qual o texto de Felf, a inspiração para a criação da produção a seguir também se deu
a partir de Harry Potter. Nesta obra, “Harry Potter e a Câmara Secreta” (2000), a própria
autora, Rowling, J. K., apropria-se de uma personagem da mitologia grega, a ave Fênix.
Conta a lenda que essa ave fabulosa, cuja plumagem era uma combinação de vermelho,
azul-claro, púrpura e ouro, de porte imponente como a águia, era a única ave existente de
sua espécie, não podendo, assim, reproduzir-se como as demais. O mito, por isso, centrou-
se em sua morte e renascimento.
Quando sentia avizinhar-se a morte, Fênix reunia plantas aromáticas, incenso, amomo e
formava uma espécie de ninho. A partir desse ponto, há duas versões para sua morte e
renascimento: ela mesma põe fogo em sua pira perfumada ou a incendeia com seu próprio
calor, renascendo das cinzas uma nova Fênix12.
12
www.filonet.pro.br/mitologia/fenix.htm
www.cultodavida.online.pt/story. Disponível em 12/10/2004.
141
142
143
Nota-se que os alunos apropriaram-se das idéias desenvolvidas pela autora, que por
sua vez havia criado uma personagem se apropriando das idéias de uma lenda da mitologia
grega, e criaram um pássaro com poderes de cura e de ressurreição: “A Fênix ficou triste ao
queimar a folha, mas ficou feliz ao sustentar a árvore. Então Fênix foi fazer uma magia com
um animal morto, ela viu o animal morto e começou a chorar e, quando as lágrimas da
Fênix caiu (sic) sobre o animal começou a se mexer e a Fênix descobriu que suas lágrimas
tinham poder de dar vida em animais mortos”.
Se observarmos o trecho abaixo perceberemos que os enunciados dos alunos se apoiavam
em um enunciado já existente, conferindo-lhe, porém, um caráter próprio, demonstrando
novamente que mesmo recorrendo a outros enunciados já existentes, cada um dos enunciados
produzidos traz características próprias de seu criador.
Uma nesga de vermelho passou por ele, e Harry ouviu unhas baterem
ao seu lado suavemente.
– Fawkes – disse com voz engrolada. – Você foi fantástico, Fawkes... – Ele
sentiu o pássaro deitar a bela cabeça no lugar em que a presa da serpente
o furara. [...].
– Você está morto, Harry Potter – disse a voz de Riddle do alto. – Morto.
Até o pássaro de Dumbledore sabe disso. Você está vendo o que ele está
fazendo, Potter? Está chorando. [...]
– Afaste-se dele, pássaro – disse a voz de Riddle inesperadamente. –
Afaste-se dele, eu falei, afaste-se...
Harry levantou a cabeça. Riddle estava apontando a varinha de Harry
para Fawkes; ouviu-se um estampido como o de um revólver e Fawkes
levantou vôo outra vez num redemoinho dourado e vermelho.
– Lágrimas de fênix... – disse Riddle baixinho, olhando o braço de Harry.
– É claro... poderes curativos... me esqueci... (Rowling, J. K. “Harry Potter
e a Câmara Secreta”, 2000:270-271).
Em função do conhecimento que eu tinha dos filmes vistos por meus alunos e de
muitos dos textos lidos por eles, pude perceber como as crianças os utilizavam e também
estabelecer uma certa cumplicidade com elas nos comentários que registrava em seus
trabalhos, após minha leitura.
Sempre que eu revelava conhecer os textos e filmes que apareciam em suas produções,
as crianças entusiasmavam-se e vinham perguntar: “você assistiu esse filme, tia?”, “você
também leu?”.
Todavia, para compreender seus modos de criação textual, não foi suficiente conhecer
suas leituras. No próprio movimento de tecer o trabalho docente, vivenciando o conflito e a
tensão do dia-a-dia, esbarrei em minha insuficiência de conhecimentos no campo da
textualidade, um campo que normalmente não faz parte da formação docente.
144
No caso de Gus, a mediadora de sua produção foi uma novela cujo enredo era a história
de vampiros. A novela “O Beijo do Vampiro” (Antônio Calmon, 2002), exibida pela Rede
Globo de Televisão, girava em torno de um garoto, filho de um vampiro e uma mulher normal.
Ao completar 13 anos ele tornou-se vampiro também, porém era um vampiro do bem.
Gus escreve um texto que gira em torno de um vampiro e um cachorro. Em minha
primeira leitura de seu texto, percebi claramente que Gus baseara-se na novela, porém eu
não havia notado que, ao criar um novo texto a partir dela, o menino abordara um dilema
da cultura humana – a luta entre o bem e o mal – que vinha sendo tratado, inclusive de
forma cômica, na novela.
A princípio eu considerei que ao fazer o vampiro comer o cachorro Gus liquidava com
sua narrativa. “Morte significa[va] ‘fim’, ‘término’, ‘ponto final’, ‘acabou a história’ (Smolka,
1993:96)”. Minhas intervenções então apontavam na direção de uma revisão dessa
passagem da narrativa.
147
148
Ao reescrever o texto em sua segunda versão Gus procurou atender às solicitações que
fiz, mas manteve o foco do que queria contar: o vampiro come o cachorro.
149
A persistência de Gus levou-me a fazer uma análise mais detida de seu texto. Foi quando
percebi que nele havia uma dinâmica, marcada pela passagem do tempo. Gus escrevia:
“passa um tempão, o vampiro ressuscita como vampiro, os vampiros continuam; passa
outro tempão e tudo começa de novo”.
Ele utilizava, desde sua primeira versão, expressões como “passou dois cecolos (sic)”, “o
homem resusitou (sic)”, “morreu [...] e comessou (sic) tudo de novo, e viveram eternamente”.
Através desses usos da língua ele marcava uma circularidade em sua narrativa, elaborando
sentidos e valores relativos ao tempo e à finitude da vida.
Através dessa análise mais detida fui entendendo a dinâmica do enredo da narrativa de
Gus e compreendendo que a idéia que perpassava o seu texto era a da luta entre o bem e
o mal. E que entre o bem e o mal estava a morte, que punia a pessoa ruim. Em sua
produção emergiam crenças, rituais e valores, e sua voz adentrava ao texto de um modo
particular, na quarta versão, quando dizia que “coando moreu uma pessoa má, virou vampiro
e voltou tudo de novo de vampiro. Ai Deus tirrou todos os vanpiros do mundo iteiro (sic)”.
150
151
Em seu texto o mal era punido sendo transformado em vampiro e o bem, representado
por Deus, acabava com os vampiros no mundo inteiro. Ficção e narrativa se confundem no
texto de Gus, como podemos entender através de Smolka:
Fomos educados na dicotomia entre o bem e o mal. O bem está de um lado e o mal
de outro. E a novela, como um meio de comunicação de massa, que traz as marcas da
indústria cultural, marca também a prática escolar. Nesse sentido, “a linguagem escrita
faz parte do discurso social no contexto das sociedades letradas e da indústria cultural”
(Smolka, 1993:66). A criança chama esse embate para dentro da sua narrativa e vai
procurando elaborar os sentidos produzidos por essa forma de ver o mundo, que, de
resto, é uma forma consolidada no mundo ocidental.
A negociação de Gus, ajustando sua produção às demandas da professora, de modo a
preservar o foco narrativo que lhe interessava, redirecionou minha compreensão de seu
texto, levando-me a pensar o quanto nós, professores, muitas vezes trabalhamos em função
de um certo padrão de escrita e de nossas leituras, empobrecendo as possibilidades da
produção textual como espaço de trabalho e lugar de interação.
Olhando para o que os alunos produziam e procurando fazer intervenções que entrassem
em sintonia com o que eles queriam dizer, pude me experimentar em novos modos de
interação professor/alunos/textos.
Novamente o trabalho de Fab, aluna cuja produção foi comentada no capítulo anterior,
chamou-me particularmente a atenção. O texto que ela e sua parceira de dupla produziram
entrelaçava-se a novela “O Beijo do Vampiro”, o modo como Fab lidou com a tarefa de escritura foi
o que atraiu minha atenção, como relato a seguir.
Ao circular pelas carteiras, durante o desenvolvimento da atividade, percebi que ela estava fazendo
alguns desenhos em sua agenda. Chegando perto da aluna, perguntei o que eram aqueles desenhos.
Imediatamente ela me respondeu que eram a história que estava criando.
Diante de sua dificuldade para escrever, e desejosa de participar da atividade proposta,
Fab não ficou parada: ela buscou um recurso que dominava bem e no qual poderia se
apoiar. Diferentemente de sua primeira versão do reconto de “Guilherme Augusto Araújo
Fernandes”, quando o desenho feito por ela não tinha relação com o texto lido, no momento
da produção do binômio-fantástico, ela e sua parceira produziram o texto em duas versões:
She registrava-o por escrito. Fab registrava-o através de desenhos.
152
153
154
155
Situações como essa geram impasses para a professora. Como considerar a produção
de Fab? Eu poderia simplesmente desconsiderar os seus desenhos, por não atenderem à
atividade solicitada, não os reconhecendo como componentes do processo de produção
textual. Poderia, por outro lado, compreendê-los como um mediador externo do qual a
menina lançara mão para realizar a atividade e para chegar à escrita.
O que eu iria priorizar, o que ela não fazia ou o que ela ainda não fazia porque estava
elaborando algo? Fiz a opção pelo que ela ainda estava elaborando, por considerar que
essas elaborações não eram a afirmação da sua incapacidade, mas a afirmação das suas
possibilidades. Fab não se colocava como alguém que não se sentia capaz de fazer, mas
como alguém que, fazendo uso do que sabia, criava mecanismos, abria caminhos, mesmo
que sinuosos, para dar conta de responder ao que lhe era solicitado.
Smolka (1989:42) ajuda-me a aprofundar nessa reflexão.
Fab era real, ela existia e estava ali, sentada a minha frente. Era um sujeito em constituição
nas interações comigo, com os colegas, com o trabalho de escritura e vinha produzindo
novos sentidos e significados em seu processo de aprendizagem da língua escrita. Foi assim
que “olhei” para ela e para a sua produção, apostando com Vygotsky (1989) que as relações
de ensino, como condição de produção imediata de seu aprendizado, poderiam mediar a
sua apropriação e elaboração da escrita.
Em seu texto Luf “brinca de ser alguém”. Reportando-se ao filme “Gladiador”, Universal
Pictures, Direção de Ridley Scott (2000), ele cria um enredo no qual coloca-se como a
personagem central de sua história. Nessa circunstância, passa a ser um herói que
consegue ganhar a mão da princesa após enfrentar várias batalhas, tal qual a
personagem central do filme.
Segundo Góes e Lopes (2004), ao brincar de “ser alguém”, a criança assume um
personagem, um “eu fictício” experienciando o “eu do outro” (expressões que as autoras
emprestam, respectivamente, de Vygotsky, 1984 e Bakhtin, 1997). Esse faz-de-conta guiado
pela imaginação e pela linguagem permite à criança elaborar-se e elaborar o outro como
membros da cultura e como indivíduos singulares (Góes e Lopes, op. cit.).
Brincando, imaginando, Luf utiliza a linguagem como espaço interdiscursivo e
ocupa esse espaço experimentando-se, relacionando-se, imaginando-se, expressando-
se, compreendendo-se, confrontando-se, negociando, transformando-se, sendo
(Fontana e Cruz, 1997).
Luf assume-se como um lutador, um gladiador, que está sempre enfrentando os embates
e vai vencendo as dificuldades à medida em que lhe vão sendo impostas. Esse embate
parece não ter fim, tanto que Luf finaliza seu texto da seguinte forma: “se casaram e viveram
felises (sic.) mas com problemas”.
Outra característica que se ressalta em seu texto é o modo como ele compõe o final,
rompendo com a forma clássica dos contos de fadas: “e viveram felizes para sempre”.
Quem vive feliz para sempre? Luf parece de fato tomar o texto como espaço de elaboração
de sentidos. Como gladiador, Luf vence os embates e, ao final do texto, ele se volta para
a realidade, na qual existe a possibilidade da felicidade, ainda que com problemas.
Tal qual Luf, Lui entra no jogo imaginário e brinca de faz-de-conta ao elaborar seu texto.
161
162
A personagem principal, sua melhor amiga, é transformada por ela em uma princesa
que se apaixona por um cupido, que na verdade é um colega de classe, e mais, é o
“paquera” da “personagem” na vida real. Tanto os nomes dos pais da princesa quanto as
situações descritas correspondem ao mundo real. No entanto, através do jogo de papéis,
ela recria a situação real como uma situação imaginária.
Compreendemos, com Smolka, que
quando surgem os desejos que não podem ser [...] satisfeitos ou esquecidos
[...] o comportamento da criança muda. Para resolver essa tensão, a
criança [...] envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos
não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos
de brinquedo.
Encontrei um outro modo de abordar as próprias experiências, pela palavra, no texto de Ul.
163
164
165
13
Geraldi (2001) distingue “trabalho sobre a linguagem” e “trabalho com a linguagem”. Segundo ele, o trabalho sobre a
linguagem contempla os aspectos formais da língua e o trabalho com a linguagem considera-a em sua dimensão discursiva. Nesse
sentido, o trabalho com a linguagem é mais amplo e abarca também o trabalho sobre a linguagem.
166
Após ter vivenciado o processo, concordo inteiramente com os dizeres de Soares (2002),
que ao explanar sobre as pesquisas referentes à formação e à prática de professores, nos
ensina que
Apresento a seguir uma seleção de falas e gestos de algumas das crianças que indiciaram-
me o sentimento de prazer experimentado diante de uma produção de texto na qual puderam
falar, e muito, socializar idéias, pensar, criar e, realmente, dar asas à imaginação...
“Que legal!... Eu adoro escrever... (Ca)”, “Hoje nós vamos fazer a revisão do texto, tia
Cláudia? (Thi)”, “Tia, eu preciso acabar o meu texto, hoje vamos escrever? (Ví)”, “Tia, eu
ainda não terminei meu texto, vai ser hoje que eu vou terminar? (Le)”, “Tia, posso fazer essa
letra diferente pra mostrar que ele fala enrolado? (Na)”, “Tia Cláudia, eu escrevi assim
porque ele está gritando. (Hel)”, “Tia, eu vou fazer uns desenhos diferentes no texto pra
representar um jeito diferente de escrever, tá? (Leo)”, “Tia, posso escrever outro texto? Eu
não achei que esse ficou bom! (Yna)”.
Esses enunciados dos alunos me reportam a Manoel de Barros “Memórias Inventadas -
A infância” (2003).
168
“Não vou colocar enxadas nas mãos de “meus” alunos! Quero ser como o pai...”,
pensei. No exercício de viver o pai em mim, fui aprendendo a compartilhar modelos,
compartilhar as normas da língua, não para que meus alunos se fixassem nelas como
sendo as formas certas e únicas, mas para que se apropriassem delas para poderem dizer
suas histórias e dizer-se nelas, podendo até romper com as normas, não por desconhecê-
las, mas por discordar delas.
No percorrer desta etapa fui me sentindo mais segura, mais preparada como professora.
As disciplinas cursadas no Mestrado davam suporte para a pesquisadora que em mim se
desenvolvia, e esta por sua vez incutia, na professora, mais segurança na tomada de decisões.
Se fui percebendo que meu trabalho diferenciava-se das práticas dominantes no contexto
escolar, levando algumas pessoas, em certos momentos, a me questionarem, a colocarem
em dúvidas as minhas opções, fui me dando conta, também, que estava construindo um
conhecimento mais sólido com relação a minha ação docente.
No decorrer desta pesquisa, cheguei a ter a sensação de que as crianças passaram a
gostar mais de mim, e eu delas. Hoje eu também gosto mais da professora que se anuncia
em mim, embora respeite e acolha com carinho a professora que eu era, com seus erros e
acertos, pois foram suas inquietações que impulsionaram a busca de respostas que fazem
com que hoje eu tome o trabalho docente em minhas próprias mãos.
É como se partes isoladas de mim mesma começassem a adquirir unicidade e
passassem a fazer sentido. Eu tinha a percepção de que passava a compreender melhor
as especificidades do papel da professora. Era como se eu estivesse chegando a um
lugar de compreensão de meu próprio trabalho: de saber fazer, de sua função social,
política, histórica e técnica. Compreendi a arte de realmente ensinar meus alunos e de
aprender com eles novas formas de ensiná-los. Eu passava do simples desejo de fazê-lo
ao cumprimento do ato.
Bakhtin, na obra “Estética da Criação Verbal” (2003), nos remete aos três campos da
cultura humana – a ciência, a arte e a vida. Para ele, “a arte é de uma presunção
excessivamente atrevida, é patética demais, pois não lhe cabe responder pela vida que, é
claro, não lhe anda no encalço. ‘Sim, mas onde é que nós temos essa arte – diz a vida -,
nós temos a prosa do dia-a-dia’ (op. cit.:XXXIII).
Vivenciando minhas ações docentes do dia-a-dia, sujeita a acertos e erros, juntas,
eu e as crianças, passamos a compreender melhor o significado dessa arte de ensinar
– e de aprender – que agora revestia de sentido o fazer da professora e o estar ali
daqueles alunos.
Noto que minha responsabilidade aumentou através da pesquisa, dos conhecimentos
de que fui me apropriando – da ciência. Estudei questões que me inquietavam, trabalhei
nelas, com elas e por elas. Vivenciei novas experiências. “Pelo que vivenciei e compreendi
na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido
nela não permaneçam inativos” (Bakhtin, op. cit.: XXXIV).
170
Das perguntas iniciais que me trouxeram até aqui, referentes à produção textual nas
séries iniciais - por que fazer isso ou aquilo? Por que fazer isso e não aquilo? - posso dizer
que na realização deste trabalho sinto-me mais capaz na tomada de decisões. Se nelas
ainda erro aprendo também com os equívocos, porque vou em busca das suas origens e
das suposições que os alimentaram. Hoje sei, mais do que antes, fundamentar teoricamente
minhas ações e, mais que isso, me vejo capaz de fazer reflexões de cunho teórico-prático
sobre a prática da produção de textos nas séries iniciais do ensino fundamental, e isso tem
me permitido ousar no meu fazer docente do dia-a-dia. Ousadia que, se não me isenta de
erros, tampouco me isenta de culpas, pois
Escrevendo juntos
Como nosso texto seria produzido durante várias aulas, sentimos a necessidade de
elaborar um roteiro com os temas que seriam abordados para que não nos perdêssemos
e para que pudéssemos articular as idéias que já haviam sido escritas com o que ainda
tínhamos por dizer.
Para iniciarmos a elaboração do roteiro – outro gênero discursivo - pedi às crianças que
me dissessem quais os assuntos que haviam sido trabalhados durante o desenvolvimento
do projeto. Inicialmente, elas enunciaram os assuntos que haviam sido trabalhados nos
últimos encontros, porém algumas delas recordavam-se de informações tratadas nos
encontros iniciais. Assim, sem uma determinada ordenação de idéias, as crianças
conseguiram recuperar tudo o que havia sido discutido no decorrer do ano.
Conforme foram enunciando os temas, eu os fui escrevendo na lousa. Porém, ao
terminarmos de recuperar o conjunto de informações que haviam sido trabalhadas desde o
início do ano, frente à grande quantidade de informações de que dispúnhamos, percebi
que seria necessário fazer uma mediação no sentido de chamar-lhes a atenção para o fato
de que precisaríamos ordenar esses temas.
Foi preciso explicitar às crianças que nosso texto trataria da história da origem do planeta,
bem como da origem dos seres humanos, e, que essa idéia de origem determina uma certa
lógica de ordenação, sem a qual nosso texto não produziria sentido para o leitor. Pois,
conforme Bakhtin,
Roteiro da 3ª série A:
Levantamento dos dados para a produção do texto sobre a evolução
da Terra.
1. Big Bang e início do universo;
2. Partículas;
3. Nuvens de partículas;
4. Estrelas – Sol;
5. Poeira cósmica;
6. Gases;
7. Planetas (Terra) localização na galáxia;
8. Meteoros;
9. Surgimento dos vulcões e das montanhas;
10. Chuva que enche os buracos causados pelos meteoros –
formação dos oceanos;
11. Surgimento da vida na água e vegetais (uma célula que depois
se reproduz);
12. Peixes;
13. As águas começam a diminuir;
14. Peixes se desenvolvem e surgem os répteis;
15. Surgem as aves;
16. Surgem pássaros enormes;
17. Surgem dinossauros;
18. Extinção dos dinossauros;
19. Origem e a evolução (Plesiadapis) (andam com quatro membros
e depois foram ficando eretos e passaram a usar só os pés);
20. Homens das cavernas (Lucy – Homo habilis);
21. Como descobriram o fogo;
22. Homo Sapiens Sapiens aprende a fazer e a utilizar armas para
caça e faz utensílios.
175
Roteiro da 3ª série B:
Levantamento dos dados para a produção do texto:
1. Big Bang – surgimento do Universo;
2. Partículas;
3. Nuvens;
4. Estrelas (Sol);
5. Poeira cósmica;
6. Gases;
7. Surgimento da Terra (Formação dos Planetas);
8. Meteoros;
9. Montanhas e vulcões;
10. Chuva;
11. Formação dos grandes oceanos;
12. Reprodução das bactérias;
13. Surgimento da vida na água (célula) e dos vegetais;
14. Peixes e animais aquáticos;
15. Diminuição das águas;
16. Répteis;
17. Surgimento das aves e dos grandes pássaros;
18. Dinossauros e o afastamento dos continentes;
19. Plesiadapis – o 1º mamífero;
20. Origem do homem;
21. Evolução do homem – apoiava-se nos quatro membros e foi
ficando ereto passando a andar com dois pés;
22. Homem das cavernas;
23. Lucy – homo sapiens (homem da pedra);
24. Descobrimento do fogo;
25. Homo Sapiens Sapiens;
26. Surgimento dos materiais feitos pelo homem – ferramentas.
176
Por serem duas turmas e a professora uma só, creio que isso tenha influenciado na
elaboração dos roteiros, pois é possível perceber que ambos ficaram bastante semelhantes,
o que não se repetiu entretanto no processo da produção do texto, tendo sido produzidos
dois textos bastante distintos.
Os textos produzidos
3ª série A
O PASSADO: BIG BANG. O PRESENTE: SERES HUMANOS.
O FUTURO: INCERTEZA!
Saturno, o sexto planeta, como Júpiter, também é gasoso. Ao seu redor giram alguns anéis
formados de gelo, de rochas e de gases, mais conhecidos como “Os anéis de Saturno”.
Urano, assim como Saturno, também contém anéis, que são nove e estão virados na vertical.
Sua cor azulada explica-se porque lá tem muito metano, hidrogênio e oxigênio. Este planeta possui
quinze luas e a maior chama-se Ariel. Geralmente não é visto a olho nu; foi descoberto em 1781
e é o sétimo planeta do Sistema Solar.
O quarto maior planeta gasoso e congelado é Netuno. Ele também é azul; lá, um dia tem
dezesseis horas. Este oitavo planeta tem uma lua chamada Tritão, sua temperatura chega a 400ºC.
Ele foi descoberto em 1846 por astrônomos alemães.
Finalmente, o último planeta, o mais distante do Sol, Plutão. Descoberto em 1930, é o menor planeta do
sistema solar. Ele é menor que o Brasil e leva quase 250 anos para dar uma volta ao redor do Sol.
Entre os planetas circulavam rochas congeladas, que ao entrarem em contato com a atmosfera da
Terra, se incendiavam, e, ao se chocarem com o planeta, formavam enormes buracos chamados crateras.
Os meteoros que caiam iam alterando a superfície do planeta e provocando a formação de
montanhas. O interior da Terra era, e ainda é, muito quente. Por isso, a lava se movimentava e
assim formaram-se os vulcões.
A lava que saía dos vulcões era tão quente que soltava uma grande quantidade de vapor. Esse
vapor, ao entrar em contato com a atmosfera que tinha uma temperatura menor, se condensava
formando as nuvens que provocavam as chuvas. A chuva que caía, em grande quantidade, provocou
o endurecimento da lava que havia saído dos vulcões, formando assim a crosta terrestre. Esta
chuva foi enchendo as crateras, formando os grandes oceanos.
Foi nas águas desses oceanos que surgiu a primeira espécie de vida em nosso planeta. Era uma única e
minúscula célula que depois se reproduziu e se desenvolveu dando origem a novas espécies de vida. Desta
única célula que se reproduziu, surgiram os primeiros animais marinhos, tais como: os caramujos, os
caranguejos, os peixes e as lulas. Surgiram também as algas, os vegetais dos quais estes animais se alimentavam.
Alguns milhões de anos depois, as águas dos oceanos começaram a diminuir, os animais e as
plantas que viviam nessas águas precisaram se adaptar ao novo ambiente. Desse modo, surgiram
os répteis, tais como: os lagartos, os crocodilos e os sapos.
Assim, as criaturas sobre a face da Terra foram evoluindo até o aparecimento das grandes aves
e dos dinossauros que reinaram sobre a Terra por, aproximadamente, 100.000.000 anos.
Os dinossauros entraram em extinção após a queda de um grande meteoro que atingiu nosso planeta
provocando uma gigantesca nuvem de poeira, que não permitia mais que a luz do sol penetrasse na
atmosfera. Assim, as plantas não conseguiam mais fazer fotossíntese e acabaram morrendo. Desta
forma, houve uma quebra na cadeia alimentar, o que provocou a extinção dos dinossauros.
Após a extinção dos dinossauros sobraram apenas alguns pequenos animais terrestres e aquáticos.
Com o passar do tempo a nuvem de poeira foi sumindo e o sol voltou a iluminar a Terra.
Como algumas formas de vida continuaram a existir foi possível que se desenvolvessem e dessem
origem a um pequeno animal chamado Plesiadapis. Esse pequeno animal vivia nas copas das árvores
e se alimentava de seus frutos e de insetos. Porém, desde a época dos dinossauros, o grande e único
continente conhecido como Pangéia já estava se separando em cinco grandes partes como conhecemos
178
hoje. Em busca de alimentos, os Plesiadapis precisaram sair das florestas e ir para as savanas,
abandonando as árvores. Esse pequeno animal deu origem aos primeiros primatas.
Esses primatas andavam arqueados, apoiados nos dois pés e nas duas mãos, seus braços eram
mais longos para poderem alcançar o chão. Seu cérebro era bem menor do que o do homem atual
e por este motivo não tinham bom raciocínio. Sua altura era bem inferior à nossa e seu corpo era
totalmente coberto de pêlos.
Durante a evolução da espécie humana, o cérebro foi crescendo, ele começou a raciocinar mais,
seus braços foram “encolhendo”, ele foi ficando em uma posição ereta, seus pêlos foram diminuindo
e ele passou a segurar coisas com as mãos.
Cientistas atuais vêm pesquisando sobre esses homens primitivos e descobriram um esqueleto
que teria sido o mais antigo já descoberto na Terra. A esse esqueleto, feminino, deram o nome de
Lucy (era um australopitecos).
Através dele foi possível descobrir que a face desses homens era alongada, pois o osso de sua
mandíbula era bem maior do que o nosso.
Esses homens primitivos já utilizavam as mãos, eles receberam o nome de Homo habilis e, para
facilitar suas vidas, o primeiro material que usaram foi a pedra.
Primeiro eles usavam a pedra da forma que a encontravam na natureza, depois aprenderam a
lascá-la para que ela ficasse afiada ou pontuda, e, com isso puderam fazer instrumentos como
machadinhas e lanças para caçar.
Esses homens primitivos, que se deslocavam constantemente, perceberam que ao chover, às
vezes, fazia um forte barulho e, logo em seguida, aparecia um clarão que, ao atingir a mata, provocava
incêndios. Com isso, descobriram o fogo. No início eles se assustaram, porém, com o passar do
tempo, aprenderam a dominar e utilizar o fogo em benefício próprio.
A partir deste momento os homens e as mulheres começaram a se organizar em comunidades,
morar em cavernas, utilizar peles de animais como roupas e construir utensílios para conseguir
passar a viver em melhores condições de vida.
Esses homens e mulheres passaram a criar novas formas de vestimentas e a aperfeiçoarem os
utensílios que criavam. Assim, foi surgindo a tecnologia, os seres humanos trocaram as cavernas
por casas de alvenaria e, cada vez mais, foram descobrindo sua capacidade de criatividade e de força
de trabalho, buscando mais conforto e bem estar.
Porém, é muito importante que estejamos atentos para o fato de que quanto mais o homem cria, mais
ele altera a natureza, e, conseqüentemente, prejudica a si mesmo. Assim, faz-se necessário que a nova
geração se conscientize de que todos nós precisamos colaborar para a preservação do nosso planeta.
É no encontro com seu passado que um grupo humano
encontra energia para enfrentar seu presente e preparar o seu futuro.
Edgar Morin (2002:77).
BIBLIOGRAFIA
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.
179
3ª série B
Introdução
Este texto nos conta sobre a origem do Universo e dos planetas, a origem da vida na Terra e
sobre a evolução do homem.
Tudo começou há 13 bilhões de anos com um pontinho de luz carregado de partículas de energia.
Essa energia foi aumentando tanto que causou uma grande explosão chamada Big Bang.
trocarmos a letra “a” da palavra Marte pela letra “o” teremos a palavra morte. Os cientistas
acreditam que em Marte pode ter existido água no estado líquido, pois comprovadamente, sabe-se
que hoje este planeta contém água no estado sólido. Essas afirmações é que fazem com que
acreditemos que lá pode ter existido algum tipo de vida, o que chamamos de “vida extraterrestre”.
Este é o quarto planeta do Sistema Solar.
O maior planeta do Sistema Solar, Júpiter, o quinto planeta. É o primeiro planeta gasoso após o
cinturão de asteróides que separa os planetas rochosos dos planetas gasosos. Júpiter tem vinte e três
satélites naturais e uma de suas características mais conhecidas pelo homem é possuir um furacão
vermelho, que gira em sentido anti-horário e sua extensão é três vezes o tamanho da Terra.
Normalmente os planetas maiores definem o destino dos planetas menores do Sistema Solar,
pois seu tamanho pode barrar a chegada de meteoros até os pequenos.
Um dos planetas de anéis, o sexto planeta, Saturno. Seus anéis são constituídos de pedras de gelo
e estão na posição horizontal. É o segundo maior planeta conhecido.
Urano também contém anéis, só que na posição vertical. Sua cor é azulada devido à grande
quantidade de metano que possui. Partindo do Sol este é o sétimo planeta.
O oitavo planeta, Netuno, para os romanos “deus da água”. Sua cor é azul, porém em uma
tonalidade mais escura do que a de Urano.
Finalmente, o último planeta do Sistema Solar, Plutão. Um planeta composto de gelo, é o menor
e mais frio planeta conhecido. Por ser um planeta tão pequeno, para os cientistas, Plutão até poderia
ser considerado um asteróide. Para dar uma volta completa ao redor do Sol, Plutão demora em
torno de 240 anos.
Mensageiro dos
MERCÚRIO Hermes deuses e protetor
dos viajantes.
Deusa do amor e da
VÊNUS Afrodite beleza.
O nome de nosso planeta, Terra, vem do latim ters que
significa seca, em oposição ao mar (mare). Com o passar do
TERRA tempo foi sendo usado para se referir a todo o planeta. A deusa
da Terra é Gaia, mãe de Cronos, deus do tempo para os gregos.
Deus da agricultura
SATURNO Cronos e da fartura. É ele
quem comanda o
tempo.
Deus do mar e da
NETUNO Posseidôn água.
Deus do mundo
PLUTÃO Hades subterrâneo, do
inferno.
182
descobrir diversos aspectos referentes ao seu modo de vida. A essa ossada deram o nome de Lucy,
por descobrirem ser de uma Australopithecos do sexo feminino.
Esse primata continuou a sua evolução. Ele foi ficando mais alto, seus pêlos foram diminuindo,
seu crânio e seu cérebro foram aumentando, seu maxilar diminuiu e ele começou a utilizar as mãos
com mais habilidade. Com isso começou a produzir ferramentas para facilitar a sua vida. A esse
homem foi dado o nome de Homo habilis.
Foi mais ou menos nessa época que esse homem primitivo aprendeu a dominar o fogo e utilizá-
lo em benefício próprio. Também começou a utilizar peles de animais para se cobrir, se abrigar em
cavernas e se alimentar de forma diferente.
Continuando essa evolução, o Homo sapiens, que já raciocinava mais, começa a criar novos objetos
utilizando recursos naturais. Com isso, começa um processo de destruição do próprio ambiente
onde vive.
Dessa forma os homens e as mulheres tornam-se mais ambiciosos e, com isso, egoístas,
preocupando-se cada vez mais consigo mesmos e deixando de lado a preocupação com o bem estar
coletivo e com a natureza.
Conselho ao leitor
Ao percebermos o egoísmo dos seres humanos, sentimos o compromisso de aconselhar a você,
leitor, sobre a necessidade de modificar suas atitudes em busca de melhores condições de vida,
visando sempre o bem comum e a preservação do nosso grande lar, o nosso planeta!
Bibliografia
· Coleção de olho no mundo. A força da natureza. Recreio, nº 7, Ed. Abril, 2000.
· Grande enciclopédia do mundo da criança. Vol 1, Cia de Livros, 1994.
· MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez,
2002.
· PRIETO, Heloisa. Divinas Aventuras: Mitologia Grega. São Paulo, Ed. Companhia das letrinhas,
2000.
· ROCHA, Ruth. Odisséia. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2002.
· RODRIGUES, Rosicler M. A vida dos dinossauros. São Paulo, Ed. Moderna, 2002.
· Site: http://www.brasil.terravista.pt/Praia Brava/3715/planetas.html
· Site: www.recreionline.com.br
· Site: http://planeta.terra.com.br/educacao/astrociencia/sistemasolar19.htm
184
Tecendo textos...
Como professora, eu vivi a situação. Encantei-me com os dois textos, tive preferência
por um deles, porém naquele momento não me detive em compará-los.
Ao fazer a comparação, já no momento da dissertação, fui notando o modo como as
crianças produziram os textos, e percebi que a terceira série A desenvolveu um texto mais
presa ao roteiro do que a terceira série B.
No encaminhamento da produção da terceira série A íamos ao tópico que seria
desenvolvido, escrevíamos a parte do texto referente àquele tópico e voltávamos ao roteiro,
sempre mantendo a seqüência do que seria escrito.
Nesse sentido, o processo de produção textual foi transcorrendo na consulta aos
apontamentos e à retomada, pela memória, das informações compartilhadas nas aulas de
educação ambiental, o que resultou em um resumo daquilo que havia sido aprendido durante
o ano. No texto produzido, as informações foram sendo justapostas na seqüência do roteiro.
De forma bastante distinta ocorreu a produção do texto da terceira série B. Nesta turma
houve uma clara preocupação com a organização textual e não só com o desenvolvimento
do roteiro, o que imprimiu à produção um estilo bastante diferenciado do texto produzido
pela outra classe.
Essa distinção se deu a ver já com as preocupações sobre como deveríamos iniciar o texto.
Lu sugeriu que iniciássemos com: Era uma vez um ponto de luz.... Neste momento,
questionei a classe perguntando se “Era uma vez” seria a melhor forma de começar um
texto com informações científicas, visto que as crianças já haviam entrado em contato com
os dois gêneros textuais - contos e científicos - de forma assistemática.
Muitos disseram que não e Lê explicitou: “Era uma vez serve para começar contos de
fadas, mas nesse tipo de texto não dá certo”, e sugeriu algumas formas de início, tais
como: “Havia um ponto de luz...”, ou, “Há bilhões de anos atrás houve um ponto de luz...”
Através do enunciado de Lê foi possível notar quanto à discussão do gênero, que na
estabilidade dos modos de dizer, se por um lado a criança reconhecia ser um modo de
dizer mais apropriado a um gênero do que a outro, por outro lado, ao fazer as suas
propostas, tanto separou os dois gêneros quanto os articulou.
Sobre este aspecto dirá Bakhtin que “é possível uma reacentuação dos gêneros,
característica da comunicação discursiva em geral; assim, por exemplo, pode-se transferir
a forma de gênero [...] pode-se misturar deliberadamente os gêneros” (Bakhtin, 2003:284).
Colocando-me como mediadora, - pois a mediação do outro possibilita a emergência
de funções que, embora a criança não domine autonomamente, pode realizar em conjunto,
de forma compartilhada (Vygotsky 1989), - explicitei às crianças que escrever é diferente
de falar, e que escrever uma história é diferente de escrever um texto científico/informativo.
Aproveitando-me do enunciado de Lê, pedi que explicitassem como deveríamos escrever,
como deveríamos iniciar o parágrafo e desenvolver as idéias que ali estariam contidas.
185
Também dei a elas alguns exemplos de como poderia ser feito o que eu pedia, tais como:
“foi há muito tempo...”, “este texto nos conta sobre...”, ou, “as informações aqui contidas...”
Fiz esta intervenção considerando o pressuposto de que ninguém cria do nada, no processo
de aprendizagem a presença participativa do outro deve ser constante e efetiva.
Neste processo de negociações Mo sugeriu: “Por que não fazemos o primeiro parágrafo
falando sobre o que o texto vai contar? Assim, mais ou menos como em um jornal?” E
assim foi feito. Resumimos e adensamos em um primeiro parágrafo as informações que o
leitor encontraria em nosso texto.
Neste momento Bi sugeriu: “Por que não fazemos um texto em capítulos e esse parágrafo
fica sendo a introdução?”
Através de seus enunciados, Lê, Mo e Bi demonstram ter um conhecimento produzido em
condições de convívio cultural mais complexo desenvolvido e organizado predominantemente
pela escrita (Bakhtin, 2003).
Assim, a turma produziu um texto organizando os enunciados em partes, o que implicou,
que, mais do que uma retomada das informações do roteiro, fôssemos sintetizando e
organizando as idéias em uma linguagem muito mais apurada em termos de um texto de
gênero informativo.
A preocupação com os modos de dizer, instaurada por algumas das crianças do grupo
(Lê, Mo e Bi), imprimiu na produção da terceira série B um estilo distinto do texto da terceira A.
Outras crianças também trouxeram suas experiências como leitores para a sala de aula
e estabeleceram relações com o texto que estávamos produzindo. Isso ficou bastante claro
quando, no decorrer do processo, ao produzirmos o parágrafo sobre o nosso planeta, Na
sugeriu que se iniciasse o parágrafo escrevendo: “Azul e lindo, nosso planeta, Terra”,
reportando-se ao livro “Azul e lindo”, de Ruth Rocha e Otavio Roth (1990), que fora lido no
início do ano em sala.
186
“E NOSSO PLANETA
CONTINUARÁ A SER
O QUE AINDA HOJE É:
AZUL E LINDO!”
Através de seu enunciado, Na demonstrou ter se apropriado tanto do que dizer como do
modo de o fazer, trazendo sua experiência para o texto que estava sendo produzido. São os
atos de linguagem relacionados a outros atos de linguagem, são vozes que soam no
enunciado que está sendo produzido em resposta a enunciados que o antecederam.
Segundo Bakhtin,
Há que se considerar, também, que para a terceira série B, o próprio texto foi motivo de
curiosidade, de interesse, de continuação de investigações e de busca de informações pelo
grupo, o que permitiu incluir outros elementos que não haviam sido desenvolvidos nas
aulas de educação ambiental e que não se encontravam no roteiro que havíamos produzido
como norteador do texto que escreveríamos.
Quando estávamos produzindo o parágrafo com informações referentes ao planeta Marte,
Vi sugeriu que se acrescentássemos alguns detalhes sobre marcianos, que ele teria visto no
filme “Sinais”, Touchstone Pictures, Direção de M. Night Shyamalan (2002). Imediatamente,
Bi voltou-se para ele e disse: “Mas nesse tipo de texto não cabe esse tipo de informação”. Vi
insistiu e novamente Bi argumentou: “Esse texto é científico e o filme Sinais é ficção”.
Com seus enunciados, Bi indiciava-me ter compreendido – mesmo que de forma não
explícita para ela - que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
187
E assim foi feito. Nos entregamos a essa penosa e feliz tarefa de escrever para nossos
leitores, e porque não, para nós mesmos também!
190
Fevereiro de 2004.
“Oi Tia Cláudia, eu nem acredito que é você, é verdade?”, “Tia Cláudia, que bom
que você vai dar aula na quarta série!!”, “É verdade mesmo que você veio pra
quarta, tia Cláudia?”.
Havia emoção, acredito que de ambas as partes... O reencontro foi extremamente
significativo para mim. Novamente eu acompanhava meus alunos, desta vez da terceira
série para a quarta série.
Um (quase) recomeço: a continuidade do trabalho.
Primeiro dia da primeira semana: as professoras prepararam uma atividade de
recepção aos alunos, uma caça-ao-tesouro. As crianças encontraram pistas, receberam
um mapa e seguiram por um caminho cheio de mistérios. A cada etapa cumprida,
recebiam novas pistas.
Chegando ao tesouro, descobriram que nosso bem mais precioso é o planeta: nosso
“azul e lindo” planeta Terra. A retomada dos conteúdos desenvolvidos no ano anterior era
o mote para iniciarmos o novo ano escolar.
Ao se defrontarem com o tesouro, no mesmo instante Luh vira-se para mim e pergunta:
“Tia Cláudia, nós vamos continuar aquele texto do ano passado?”, referindo-se ao texto
sobre o “Livro da Terra”, nossa última produção textual do ano anterior.
Segundo dia da primeira semana de aulas: Ao entrar em sala de aula: “Tia Cláudia, por
que a gente não escreve uma história da caça-ao-tesouro que fizemos ontem?”, “Tia, esse
ano a gente não vai ler livros?”.
Impressiona-me hoje o fato de que antes desta pesquisa talvez eu não tivesse ouvidos
apurados para captar os enunciados de meus alunos nas relações cotidianas da dinâmica
da sala de aula. Não tenho lembranças de em anos anteriores as crianças pedirem para
produzir textos, nem tampouco questionarem sobre as leituras que faríamos no decorrer do
ano letivo. Essa escuta agora me emocionava.
Novamente as solicitações das crianças levaram-me a tomar a decisão de produzirmos
um texto a partir da experiência vivenciada no primeiro dia de aula. Iniciamos a discussão
sobre como escreveríamos o texto sobre a caça ao tesouro e, coletivamente decidimos que
não seria um relatório, mas sim uma narrativa, que poderia conter até alguns elementos
fantásticos, visto que para desencadear a atividade, fora sugerido que as crianças
desenhassem “uma máquina mais potente do que um avião, mais rápida do que um foguete,
mais forte do que um navio”. Ao final do texto, as crianças explicitariam ao leitor que
aquela história, na verdade havia acontecido com eles, mas não da forma fantástica narrada.
Ao iniciarem a escrita eu circulava pela sala de aula e não esperava que as crianças se
portassem da maneira como o fizeram.
Em duplas, de maneira bastante autônoma, as crianças desenvolviam as idéias, pedindo
sugestões sobre a melhor forma de escrever o que queriam dizer por escrito. Thi levantou-
se da carteira e se dirigiu a mim perguntando com entusiasmo: “quanto tempo nós temos,
194
tia?, Vai poder ficar até a hora do recreio?”. Ficar até a hora do recreio seria o
correspondente a debruçar-se sobre o texto durante três horas-aula. Prática que havíamos
construído no decorrer do ano anterior. No entusiasmo de Thi eu encontrava alguns dos
efeitos do trabalho de produção textual que havíamos produzido.
Durante o processo de produção textual meus ouvidos, mais atentos do que antes,
captavam diversos enunciados que circulavam pela sala de aula: “Ni, nós esquecemos de
escrever a parte do caçador”, “Faz um sinal aqui; a gente escreve no final da folha, depois
a gente arruma.”, Ou ainda: “Thi, você riscou essa palavra ao invés de apagar”, “E daí,
não tem problema, é rascunho!”.
Na aula seguinte, “perguntas mil” receberam-me, assim que entrei na sala de aula: “tia
Cláudia, hoje nós vamos acabar o texto?” “Tia Cláudia, nós não acabamos o nosso texto,
podemos terminar hoje?”, “Tia, nós já acabamos o texto, podemos começar a revisão?”.
Parei! Ainda não havia me referido aos processos de revisão textual. Quem falava deles
eram as crianças, “devolvendo-me” a professora que eu havia sido e os alunos que eles
haviam sido no ano anterior. Ouvindo seus comentários e olhando para o trabalho deles,
fui-me dando conta dos efeitos suscitados pelo meu trabalho, naquela atividade que eles
realizavam com tanto prazer. Éramos o avesso e o direito de uma mesma tecitura.
No ano anterior, os processos de revisão textual configuraram momentos importantes
para o desenvolvimento da reflexividade do ato de escrever, uma vez que era na volta ao
próprio texto que seus pequenos autores poderiam realizar alguns procedimentos de análise
sobre a própria escrita. No início do novo ano letivo, eu via e ouvia meus alunos lidarem
com a produção textual como processo, como um modo de interlocução em meio às muitas
possibilidade de dizer o que se quer e de participar das relações sociais. Ouvia deles a
demanda pela volta ao texto, pela revisão.
Meus alunos eram outros em sua relação com a escrita e a leitura. Eu também era outra
professora. Os procedimentos de produção, revisão e análise sobre a própria escrita,
compartilhados entre nós, constituíam-nos e haviam transformado, ao longo do ano, nossas
relações com a escrita e a docência.
Tal qual Teseu ao entrar no labirinto, mediado por frágeis fios, sustentados, na outra
extremidade, pelas mãos de Ariadne, meus alunos puderam se experimentar por caminhos
diversos, mediados pela leitura e pela escrita, sustentados, na outra extremidade, pela
professora que eu era. Puderam experimentar-se também na volta ao caminho percorrido,
vivendo, pela escrita, a experiência da reflexividade.
Se em um labirinto é preciso experimentar caminhos para encontrar a saída, também
na experiência do desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever não existem
caminhos previamente definidos. É preciso experimentar novos percursos para desenvolvê-
la. E digo desenvolvê-la, pois não considero que a reflexividade dos sujeitos seja um
estado ou patamar a ser alcançado, mas sim um modo de funcionamento que se
aprende com o outro, pelo outro.
195
que havia produzido, mediada por sua orientadora, ensinou à professora que eu era,
modos de ler o texto, modos de conversar com ele e seu autor, modos de viver o papel
de representante-leitor, modos de sugerir o que dizer e como fazê-lo. Como professora
fui aprendendo, com a aluna que eu era e com a professora que me ensinava, a
desfazer as dificuldades encontradas no trabalho pedagógico com a produção de textos,
no exercício desse próprio trabalho.
O domínio do registro e da análise, que fui construindo enquanto pesquisadora, não
nasceram em mim. Eles foram aprendidos com um outro, foram mediando os fazeres da
professora e foram, por sua vez, por eles mediados. Se a reflexão sobre o feito foi uma das
modificações que o registro sistemático produziu em mim, evidenciando as possibilidades
da escrita como mediadora da reflexividade, algo que eu procurava e continuo procurando
trabalhar com as crianças, não cheguei a ela por mim mesma.
No processo vivido ao longo dos últimos dois anos, aprendi que a reflexividade da
professora, da pesquisadora, do aluno, do produtor de textos, não nascem de dentro do
sujeito, mas da sua relação com o outro. Fui desenvolvendo minha reflexividade no lugar
de aluna e de pesquisadora, com minha orientadora e no lugar de professora, com meus
alunos. Minha orientadora mediou a reflexividade da professora e da pesquisadora. A
pesquisadora mediou os fazeres da professora. A professora procurou instaurar a reflexividade
nos alunos enquanto produziam seus textos.
Aprendi que é nesse espaço intersubjetivo que o desenvolvimento da dimensão reflexiva
do ato de escrever vai se constituindo, quer no processo de formação da professora, quer
nos saberes dos alunos. Tanto a reflexividade da professora quanto a dos alunos demanda
tempo, demanda retomadas e reencontros com a produção realizada ao longo da trajetória.
Afetada, profundamente, em meu modo de ser professora, pelo processo de pesquisa e
aprendizado vivido, (entendendo por aprendizado a complexa articulação entre ensinar e
aprender), destaco como uma de suas implicações para os processos de formação de
professores, a centralidade da dimensão relacional da prática educativa, não só como
princípio a ser enunciado, mas vivido na formação inicial e continuada de professores.
O acesso à pesquisa acadêmica e aos cursos de “capacitação” oferecidos pelas
redes de ensino, ainda que sejam importantes, não bastam. Eles ajudam o professor a
perceber o que ainda não sabe, mas não o ajudam a suprir o não saber na dimensão
prática. A articulação teoria/prática passa pela mediação, pelo aprendizado com um
outro - seja ele professor, coordenador, supervisor, orientador – que, tendo conhecimentos
das referências teóricas e dos fazeres práticos, disponha-se como interlocutor do professor,
a mediar, no trabalho pedagógico por ele desenvolvido, os nós com que ele se defronta,
os significados de que se apropria, os sentidos que elabora. Um mediador que nos
possibilite vivenciar a reflexividade sobre os textos que produzimos, com nossos corpos
e dizeres, nas coreografias das relações de ensino.
VI
bibliografia
198
ANTUNES, C. Vygotsky, quem diria?! Em minha sala de aula. Fascículo 12. 2ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
________, M. Estética da Criação Verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: a Infância. São Paulo: Planeta, 2003.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. 3ª ed. Vol.
1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
BRITO, Luiz Percival Leme. “Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de
produção de textos escolares)”. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala
de aula. São Paulo: Ática, 1997.
FIAD, Raquel S. e MAYRINK-SABINSON, Maria Laura T. “A escrita como trabalho”. In: MARTINS,
Maria Helena (Org). Questões de Linguagem. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2001.
________, Roseli A. Cação. Mediação Pedagógica na Sala de Aula. 3.ª ed. Campinas:
Autores Associados, 2000.
FONTES, Joaquim B. O Livro dos Simulacros. Florianópolis: Editora Clavicórdio Ltda: 2000.
FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. São Paulo: Ed. Brinque-Book, 1995.
________, João Wanderley. “Prática da leitura na escola”. In: GERALDI, João Wanderley
(org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997d.
200
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997e.
________, João Wanderley. “O professor como leitor do texto do aluno”. In: MARTINS,
Maria Helena (Org). Questões de Linguagem. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2001.
KOCH, Ingedore V. e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência Textual. 3ª ed. São Paulo:
Contexto, 1991.
________, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 1998.
________, Ingedore V. Desvendando os segredos do texto. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
________, Nilma G. “Os Peixes de Schopenhauer: Leitura e Classe Pensante”. In: VIELLA,
Maria dos Anjos L. (Org.) Tempo e espaços de formação. Chapecó: Argos, 2003.
201
LAJOLO, M. “O texto não é pretexto”. In: Zilberman, R. (org.) Leitura em crise na escola:
as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 51-62.
MONTEIRO, Ana Márcia L. “SEBRA – SSONO – PESSADO – ASADO’ O uso do ‘S’ sob a
ótica daquele que aprende”. In: Morais, Artur Gomes (Org). O aprendizado da
ortografia. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
MORAIS, Artur Gomes de. “Escrever como deve ser”. In: TOLCHINSKY, Liliana e
TEBEROSKY, Ana (Orgs.). Além da alfabetização A aprendizagem fonológica,
ortográfica, textual e matemática. São Paulo: Ática, 1996.
________, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
PÉRES GÓMEZ, Angel. “Formar professores como profissionais reflexivos”. In: NÓVOA,
A. (Org). Os professores e a sua formação. Lisboa, Portugal: Codex, 1992.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. 8ª ed. Campinas: Mercado
de Letras: Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2002.
ROCHA, Ruth e ROTH, Otavio. Azul e Lindo: Planeta Terra, nossa casa. São Paulo:
Moderna/Salamandra, 1990.
SILVA, C.C. da e SILVA, N.R. A colcha de retalhos. São Paulo: Ed. do Brasil, 1995.
SOARES, Magda. “As pesquisas nas áreas específicas influenciando o curso de formação
de professores”. In: ANDRÉ, Marli (Org.). O papel da pesquisa na formação e na
prática dos professores. 2ª ed. Campinas: Papirus, 2002.