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A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES

INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da


professora e o desenvolvimento da reflexividade nas crianças.

Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto


UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES INICIAIS


DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da professora e o
desenvolvimento da reflexividade nas crianças.

Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto

PIRACICABA, SP
2005
A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da professora e o
desenvolvimento da reflexividade nas crianças.

Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto

Orientadora: PROF.ª DR.ª Roseli Aparecida Cação Fontana

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UNIMEP
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Educação.

PIRACICABA, SP
2005
BANCA EXAMINADORA

Nome da orientadora: Roseli Aparecida Cação Fontana

Nome dos componentes da banca:

Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla - UNICAMP


Maria Cecília Rafael de Góes - UNIMEP
Agradecimentos

Cecília e Nascimento, pelo amor infinito.


Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Gregório de Matos

Luiz Carlos, por encantar meu pensamento.


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Vinicius de Moraes

Matheus e Lucas, minha melhor parte.


Entre as partes do todo a melhor parte
Foi a parte em que Deus pôs o amor todo, [...]
Parta-se pois de Deus o corpo em parte,
Que a parte, em que Deus fiou o amor todo
Por mais partes, que façam deste todo,
De todo fica intacta essa só parte.
Gregório de Matos

Marcos, Fábio e Heloisa, pelos risos na infância.


Sou hoje um caçador de achadouros de infância.
Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu
quintal vestígios dos meninos que fomos...
Manoel de Barros
Roseli, por acreditar que seria possível.
Se uma pessoa não tem palavras para descrever algo,
isso significa que aquilo não era importante.
Ou então que era importante demais
para ser descrito em palavras.
Edgar Z. Friedenberg
(Sociólogo americano. Destaques meus).

Fabiana, pela interlocução na tessitura do texto.


Tecer era tudo o que fazia. [Fazíamos]
Tecer era tudo o que queria [queríamos] fazer.
Marina Colassanti

Cristina, amiga e professora que admiro.


Porque me ajudou a desenvolver minhas idéias,
e com isso eu passei a ver as coisas de perto.
Nilma Lacerda

Leda, pela amizade, apoio e incentivo primeiros.


O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.
Carlos Drummond de Andrade

Para a realização deste trabalho contei com o auxílio da Agência de Fomento CAPES.
Resumo
Ometto, Cláudia B. de C. N. “A PRÁTICA DA PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL: as mediações da professora e o desenvolvimento da
reflexividade nas crianças”. 202 pp. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de
Pós-Graduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, 2005.

Este trabalho tematiza as mediações da professora no processo de produção textual da


criança, tendo como objetivo o desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever.
Assumindo como referencial teórico a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento
humano, focaliza o trabalho de produção e revisão de textos desenvolvidos em duas turmas
de terceira série do ensino fundamental ao longo de um ano letivo.
Para tanto, foram tomados como documentos do processo vivido as propostas de
produção e de revisão textual feitas pela professora, as produções das crianças em suas
versões e as intervenções feitas pela professora e por colegas leitores nos textos produzidos.
Também foram documentadas, na forma de um caderno de registros, as interlocuções
produzidas entre a professora e as crianças ao longo da produção e revisão de textos e as
reflexões da professora durante o processo.
Os dados produzidos na pesquisa evidenciam a dimensão intersubjetiva da reflexividade,
tanto dos alunos em relação aos processos de apropriação e elaboração da escrita, quanto
da professora em relação ao seu papel como mediadora e representante leitora da produção
das crianças. Destaca-se a tese de que a reflexividade não é um estado, mas um modo de
funcionamento do psiquismo humano, aprendido, mediado, que vai se transformando ao
longo da experiência dos sujeitos nas práticas culturais em que se inserem, sejam elas a
escrita ou a docência.

Palavras-chave: mediação, reflexividade, produção textual, formação docente.


SUMÁRIO

I – LIMIAR ........................................................................................................................ 9

II – ACERCA DE QUEM ESCREVE E DE COMO TUDO COMEÇOU ................... 17


Os primeiros passos como professora ................................................................................. 20
Inquietações de professora .................................................................................................. 22

III – MEUS INTERLOCUTORES E O MODO DE PESQUISAR .............................. 27


Um modo de atuar .............................................................................................................. 33
Os sujeitos da pesquisa ...................................................................................................... 37

IV – A TRAJETÓRIA PERCORRIDA ........................................................................... 40


Primeiros passos ................................................................................................................. 42
De colchas e retalhos.......................................................................................................... 45
No jogo das letras e palavras .............................................................................................. 59
Retomando o processo de revisão dos textos ...................................................................... 77

Continuando a caminhada ............................................................................................... 81


Quem é esse menino ........................................................................................................... 81
Do texto ao texto: aprendizados possibilitados pela mediação ............................................. 86

Novos passos: o binômio-fantástico ................................................................................ 113


Viajando no imaginário ....................................................................................................... 116
A forte presença da Indústria Cultural: dos jogos de vídeo-game, aos filmes e novelas ......... 121
Construindo um modo de participação ............................................................................... 151
Do vivido ao sentido... As elaborações dos alunos .............................................................. 155
Do vivido ao sentido... As elaborações da professora .......................................................... 165

Escrevendo juntos ........................................................................................................... 171


Dos fatos ao texto .............................................................................................................. 172
Os textos produzidos.......................................................................................................... 176
Tecendo textos ................................................................................................................... 184
A exposição e o reencontro com o texto produzido ............................................................. 190

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 191

VI – BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 197


I
limiar
D izem que era lindo vê-lo escrever: com sua
túnica branca, sentado na cadeira de couro e tachas,
com a mão fazendo dançar a pluma
de ave, já que escrevia sempre devagar. De repente,
levantava-se da cadeira, como se ela
o queimasse: apertava a fronte com as mãos,
andava por seu quarto em grandes passadas,
o rosto atormentado, como padecendo de
uma dor profunda. Era que estava escrevendo [...].
Os olhos se incendiavam
no rosto coberto de lágrimas.
[...]
Assim o ensaísta e poeta cubano José Martí descreve Las
Casas exercendo o que viria a ser sua atividade
primordial: escrever.
(FONTES, 2000:17. Destaques meus).
11

Perdi as contas de quantas vezes revisei este texto para que chegasse à forma em que se
encontra atualmente. Algumas das idéias aqui apresentadas ocorreram-me nos mais
diferentes momentos: caminhando, tomando banho, lendo, em momentos em que não me
era possível registrá-las...
Escrever é assim, necessita de idéias e de disposição para organizá-las em uma
composição que se materializa em palavras e em dizeres, que são e não são nossos, uma
vez que tanto a situação que nos leva a escrever quanto os leitores a quem gostaríamos de
dirigir nossos dizeres enlaçando-os em uma interlocução, marcam, desde o início e sem
que o percebamos, as escolhas que vamos fazendo por entre o léxico, a sintaxe, as
tonalidades estilísticas que imprimimos ao texto que vamos tecendo (Bakhtin, 2002).
Essa disposição em organizar as idéias em um texto nasce dos motivos que temos para
escrever e dos desejos que nos levam a fazê-lo.
Ana Maria Machado faz um belíssimo relato a respeito do “nascimento” de um texto, em
seu livro “De Carta em Carta” (2002).
12

“ D e carta em carta” e de idéia em idéia. Engraçado ver como uma história se


desenvolve. Em 1982 estive no México e fiquei fascinada com as fileiras de escrevinhadores
que se alinhavam em volta do Zócalo, a praça-maior da cidade. Com suas máquinas de escrever
sobre precárias mesinhas, tomavam ditados de quem fazia fila diante deles. “Me alugo para
escrever” foi logo o título que surgiu para a história que começou a me assombrar. Uma
história de um avô e um neto – talvez porque eu estava acabando de escrever “Bisa Bia, Bisa
Bel”, que tratava de bisavós e bisnetas. Mas também porque tinha de ser uma história de
analfabetos, e escolhi dois, nas duas pontas da vida. Fui aos poucos amadurecendo a idéia,
lentamente, como costuma acontecer. Anotei, escrevi uns parágrafos, fui deixando crescer
em paz.
Alguns anos depois, li um livro de contos de García Márquez e vi que um deles se chamava
“Me alugo para sonhar”. Diante dessa coincidência, embora fossem dois enredos
completamente diferentes, abandonei a história.
Mas ela não me abandonou. Pelo contrário, parece que aí mesmo é que ficou mais forte,
tomou forma, começou a se construir em cima dos equívocos de linguagem e dos desencontros
afetivos que, tantas vezes, nos fazem brigar com as pessoas que mais amamos. Continuei
tomando notas. Um dia li que Walter Salles Jr. Estava fazendo um filme a partir de um roteiro
que tratava da relação entre uma mulher que escrevia cartas para analfabetos e um menino
que não sabia escrever. Pronto, pensei, outra coincidência. Agora mesmo é que não podia
mais publicar o livro. Quando assisti ao filme “Central do Brasil”, vi que não havia problema
algum, eram histórias completamente diferentes. Mas aí já tinha interrompido e perdido o
embalo. Desisti.
Não por muito tempo, porém. Em 2000 fui a Cartagena, na Colômbia. Justamente a
cidade de García Márquez, como se os anjos ou as musas quisessem fechar o círculo. Lá
estavam outra vez os escrevinhadores, sob as belas arcadas em volta da Praça Bolívar. A
história que se recusava a morrer voltou de novo. Com força total. O jeito foi me render a ela
e passá-la para o papel em sua forma definitiva. Coisa que nesse momento, depois de vinte
anos, levou apenas poucos dias. Aqui está.

Ana Maria Machado

Imagem de fundo: Capa da obra de Ana Maria Machado, De carta em carta, Ed. Moderna, 2002.
13

Este relato assinala o quanto a nossa constituição como leitores e escritores é mediada
pelo outro e por nossas vivências. Conforme Bakhtin (2002:121) “o centro organizador de
toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio
social que envolve o indivíduo”.
Ainda, para Bakhtin,

toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta


a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia
dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam,
trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da
compreensão (Idem: 98).

No processo de organização do que se quer dizer por escrito, por entre lembranças,
experiências, compreensões e sentidos diversos, as idéias vêm e vão. Algumas permanecem
do início ao final do trabalho, outras se perdem pelo caminho, pois talvez não tivessem
tanta relevância. E tendo o texto se materializado em uma primeira versão, revisões1, ajustes
e acertos são feitos: retomam-se passagens já escritas, trocam-se palavras, acrescentam-se
algumas, suprimem-se outras, deslocam-se vírgulas.
Nesse sentido, além das idéias e da disposição para organizá-las, o autor, na composição
de um texto, perambula por ele, vai e vem, enquanto o vai tecendo. Nesse movimento de
entrar e sair do texto em se fazendo, o tempo passa...
Foi pensando em todas essas dimensões do processo de escritura que acabei denominando
este nosso início de conversa de limiar.

limiar: S. m. 1. Soleira da porta. 2. Patamar junto à porta. 3. Fig. Entrada, começo,


início... (Dicionário Aurélio, 1995:395).

Este início foi escrito quando o texto, basicamente, estava pronto. Posso dizer-lhe, leitor,
que o início deu-se no final do texto, foi a última etapa a ser feita. E essa é uma cumplicidade
que o autor estabelece com seu próprio texto: as possibilidades de digressão, de não
linearidade, de manifestação (explícita ou não) de intenções em um texto que ainda lhe
pertence.
E digo – ainda lhe pertence – porque, como diz Lacerda (2001), enquanto
escrevemos, a folha em que o fazemos, a seguinte e/ou o verso daquela em que

1
Nos estudos relativos a propostas e a análises de processos de produção textual em sala de aula, o processo de revisão aparece
designado de formas distintas segundo diferentes autores, tais como: revisão, refeitura, refacção, reprodução, re-elaboração e
reestruturação. Neste trabalho, estarei utilizando todos eles como equivalentes.
14

acabamos de imprimir caracteres, são de absoluta passividade quanto às marcas que lhe
vão sendo apostas. Porém, no momento em que o leitor percorre esses caracteres impressos,
significando-os, o texto não mais pertence apenas ao autor, ele ganha “vida própria”.
Significações muitas serão feitas dele, com ele e através dele, reafirmando, negando ou
redimensionando as intenções que motivaram sua escrita.
Enquanto esse relato inicial (escrito ao final) ainda me pertence, a intenção que o norteia
é a de explicitar a quem destinei o texto desta dissertação e como esses interlocutores
projetados marcam minhas perambulações por ele.
Gostaria que minhas interlocutoras fossem professoras, que como eu atuam diretamente
em sala de aula, pois esse texto nasceu de uma prática de sala de aula: a produção textual.
Ele contém aprofundamentos teóricos fundamentais para a compreensão dessa prática, e
procura descrevê-la em suas minúcias, privilegiando como foco as mediações de uma
professora.
Essa professora interessa-se pelos processos de elaboração de seus alunos e por seus
modos de participação nesses processos. Preocupa-se tanto com seu processo de formação
pelo trabalho como também com o estudo de “uma teoria da linguagem mais abrangente,
interessada não apenas nas características formais do objeto lingüístico, mas, também, no
modo e na história da sua constituição e constante mutação” (Abaurre, Fiad, Mayrink-
Sabinson, 1997:21).
Daí meu desejo, como professora-pesquisadora-escritora, de produzir um texto
“cheirando” a sala de aula, um texto que trouxesse seus ruídos, seu calor, suas recusas, as
indagações e as dificuldades ali nascidas e enfrentadas. Um texto que, mais do que o
direito, mostrasse o avesso da construção de um trabalho vivenciado no dia-a-dia da
docência... Pois, como alerta Nilma Lacerda (2001:112-146), “todo lado tem dois lados: é
defeito de vista quem só vê o direito [...] o avesso tem história”.
Em minha trajetória como professora encontrei poucos trabalhos com essas características,
direcionados para professoras. Muitos dos trabalhos que li foram realizados por professores
universitários, desvinculados da prática da sala de aula das séries iniciais, ou feitos por
pesquisadores que, pesquisando uma prática alheia, produziam sentidos aproximados ao
de um professor.
Em muitos desses trabalhos reconheci o que Bakhtin considerava como o erro fundamental
dos pesquisadores que já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de
outrem. Segundo ele, o erro estava em terem sistematicamente divorciado o discurso de
outrem do contexto narrativo, perdendo de vista que “o objeto verdadeiro da pesquisa
deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas dimensões, o discurso a transmitir e
aquele que serve para transmiti-lo” (Bakhtin, 2002:148).
15

Assim, sem embarcar na suposição de que nós, que trabalhamos com produção textual
nas séries iniciais, sejamos os únicos capazes de falar sobre o espaço da sala de aula e
sobre como esse processo ali se realiza, ou que sejamos um modelo a ser copiado e
seguido, elaborei essa dissertação procurando descrever como as práticas escriturais
escolares e meu papel como professora dentro delas entrelaçaram-se em indagações,
angústias e suposições que vivenciei na dinâmica interativa produzida na sala de aula,
perguntando como participar, como professora, das elaborações e re-elaborações da escrita
pela criança e como mediar esse processo, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão
reflexiva do ato de escrever como uma das características essenciais da linguagem.
Situando-me como uma professora que pesquisou na sala de aula questões relativas ao
dia-a-dia do fazer docente, relativo à escrita, proponho-me, então, a compartilhar essa
experiência/reflexão com outras professoras que também estão em sala de aula e vivenciam
algumas das mesmas dúvidas. Professoras, que como eu, vivem seu fazer docente na roda
viva do dia-a-dia, precisando responder às demandas imediatas de seu trabalho, muitas
vezes, sem tempo para reflexões mais profundas sobre esse fazer diário.
Assim, o fato de projetar desse modo meu interlocutor define meu texto, como o destaca
Sírio Possenti, pois “dependendo da imagem que o locutor faz do interlocutor no momento
da produção do discurso, ele utiliza um ou outro mecanismo coesivo [...]. Indiretamente, é
a imagem do interlocutor que comanda a decisão” (Possenti, apud: Brito1997:120).
Feito isso, se de alguma forma, o avesso de minha história, por entre imagens refletidas,
encontrar outros avessos, terei encontrado meus pares. Conforme Lacerda

O companheirismo atravessa os vidros e o importante é ver-se em


espelhos, refletida, a fim de que, nenhum instante, a loucura possa nos
atravessar. E, nos panos, enfiamos as mãos para marcá-los e cumprir
nossa missão. Que é exemplar (Lacerda, 2001:82).

A missão “exemplar” que penso ter assumido neste trabalho foi a de possibilitar aos
alunos interações em que eles pudessem experimentar-se como um escritor que esboça seu
texto, rascunha-o, abandona algumas idéias, incorpora outras, pede revisão alheia, responde
a ela. Enfim, que busca reconhecer seus interlocutores para poder produzir seu texto “com
autonomia” e clareza.
16

Se nós, adultos, que supostamente dominamos a língua escrita, enfrentamos dificuldades


ao nos experimentarmos nesse lugar, que dizer das crianças, que estão a se apropriar
dela... Aprende-se a fazer usos diversos da escrita em um longo e trabalhoso processo.
Segundo Geraldi, (1997d:89) “saber língua, é dominar as habilidades de uso da língua
em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados adequados aos
diversos contextos, percebendo as dificuldades entre uma forma de expressão e outra”.
Esse processo é, em certa medida, dolorido, sofrido. Às vezes, nossos olhos se
incendeiam e nosso rosto cobre-se de lágrimas nas paixões dessa nossa entrega, que
tendo se constituído pelos outros muitos que passaram por nós, também se dirige para
muitos outros, dos quais esperamos uma réplica que a complete, que nos complete, pois
a linguagem é uma atividade constitutiva e o trabalho lingüístico não é nem um eterno
recomeçar nem um eterno repetir (Geraldi, 1996).

Para um projeto que queira ao mesmo tempo conhecer a repetição e a


criação num mesmo espaço de produção, é crucial definir, e se impossível,
desenhar ou no mínimo dar-se uma teoria do sujeito. Inspirado em Bakhtin,
entende-se que o sujeito se constitui como tal à medida que interage
com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam
como “produto sempre inacabado” deste mesmo processo no qual o
sujeito internaliza a linguagem e constitui-se como ser social, pois a
linguagem não é o trabalho de um artesão, mas trabalho social e histórico
seu e dos outros e para os outros e com os outros que ela se constitui.
Isto implica que não há um sujeito dado, pronto, que entra em interação,
mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas e nas
falas dos outros (Geraldi, 1996:19).
II
acerca de quem escreve
e de como tudo começou
T raduzir-se

Uma parte de mim Uma parte de mim


é todo mundo: almoça e janta:
outra parte é ninguém: outra parte
fundo sem fundo. se espanta.

Uma parte de mim Uma parte de mim


é multidão: é permanente:
outra parte estranheza outra parte
e solidão. se sabe de repente.

Uma parte de mim Uma parte de mim


pesa, pondera: é só vertigem:
outra parte outra parte,
delira. linguagem.

Traduzir uma parte


na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2000.


19

Minha história como professora começou muito antes que eu tomasse uma decisão
consciente pelo Magistério. Cresci filha de professora primária e professor universitário.
Minha infância e adolescência foram permeadas por correções de cadernos, preparação
de “semanários”, correções de provas...
De forma não tão consciente, não saberia precisar exatamente por que decidi fazer magistério.
Mas tomada essa decisão, surgiu então algo, que naquele momento tornou-se mais importante
do que o curso escolhido: a preparação para o casamento. Ao terminar o curso de Magistério,
já casada e com um filho pequeno, não iniciei minha vida profissional. Tudo o que havia
aprendido foi ficando adormecido para despertar apenas três anos mais tarde.
Minha primeira classe, em um sítio na zona rural, era multisseriada. Ali trabalhei com
crianças de segunda e quarta séries, enquanto outra professora, na sala ao lado, trabalhava
com crianças de primeira e terceira séries.
Posso dizer que esta foi uma experiência enriquecedora e prazerosa, pois as crianças eram
receptivas a tudo o que lhes era proposto, e naquele momento ainda não havia inquietações
a respeito de minha prática pedagógica. Tudo era novidade. Trabalhei com os famosos
“tijolões”2 que havia herdado de minha mãe, aposentada em meados dos anos 80.
Já no ano seguinte, consegui uma classe na cidade e passei a trabalhar com segunda
série. Foi aí que aconteceu minha primeira inquietação: apareceu a Camila, uma menina
com certa dificuldade para aprender. Eu não sabia o que fazer. E hoje, tenho consciência
de que nada fiz com ela. Mas a inquietação ficou.
Nos anos seguintes, trabalhei com terceiras séries em escolas centrais da cidade de
Piracicaba. As professoras, muitas delas em época de se aposentar, passavam-me materiais,
que eu seguia com certo incômodo, por desconhecer-lhes os objetivos e por desconfiar da
forma como o conteúdo era proposto às crianças.
Em 1991 fui chamada a escolher classe no Estado, após haver prestado concurso público.
No ano seguinte, em uma escola de bairro, mais afastada do centro, assumi minha primeira
classe de alfabetização, no Ciclo Básico Inicial3. Essa experiência foi decisiva na minha
opção consciente pelo magistério, pois até aquele momento eu ainda não tinha certeza se
realmente queria ser professora, se esse seria o caminho que deveria trilhar.

2
Propostas feitas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo nos anos 1970/80.
3
Em 1984 foi implantado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo o Ciclo Básico, que correspondia ao que atualmente
denominamos 1ª série do Ciclo I do Ensino Fundamental, também conhecidas como Classes de Alfabetização. (Parecer CEE nº
1913/83 – DOE 31/12/83).
20

Os primeiros passos como professora

Após essa opção, percebi que minha formação era insuficiente para exercer o papel de
professora e que, se quisesse realizá-la de forma adequada, deveria continuar estudando.
Participei do curso “Alfabetização: Teoria e Prática”, oferecido pela FDE (Fundação para o
Desenvolvimento da Educação) nas várias Delegacias de Ensino do estado nos anos 1980,
do qual me tornaria “capacitadora”4 alguns anos depois.
Conciliando horários, permanecendo em sala de aula, participei de diversos outros cursos
junto a FDE e percebendo lacunas em minha formação teórica busquei a Universidade. No
ano seguinte iniciei a graduação em Pedagogia na UNIMEP (Universidade Metodista de
Piracicaba).
A essa época, eu, filha, mãe, esposa, professora, “capacitadora” da FDE, aluna de
graduação do curso de Pedagogia, vi-me envolvida por uma série de papéis e de experiências
simultâneas, que passavam rapidamente por mim e em mim. Eu me sentia “crescendo”
cada vez mais e via a diferença benéfica que tudo isso causava em sala de aula. Meus
alunos avançavam em suas elaborações da escrita e, dentro do referencial teórico então
assumido, eu entendia o que acontecia com eles. Era o início de minha incursão pelo
construtivismo.
A direção da escola em que eu trabalhava passou a me indicar para fazer outros cursos
na Delegacia de Ensino de Piracicaba5, junto à Oficina Pedagógica, nos quais discutíamos
teoria e prática. Em abril de 1994, para minha surpresa, veio o convite para atuar como
Assistente Técnico Pedagógico (ATP) de Alfabetização e Língua Portuguesa, junto aos
professores de Ciclo Básico - quarta série.
O trabalho então desenvolvido era interessante. Tratava-se de capacitar o docente que
estava na sala de aula, na grande maioria das vezes sem conhecimentos acadêmicos, já
que oriundo do Curso de Magistério. Repensar a relação professor-aluno, tentar descentralizar
o foco do “como se ensina” para o “como se aprende”, tentar fazer com que a Proposta
Curricular – “Ciclo Básico em Jornada Única” - realmente fizesse sentido para professores
- que pensavam: para quê mudar se eu faço assim há tantos anos e meus alunos saem
alfabetizados? – foram desafios experimentados nesse período.
Olhando para o passado com os olhos de hoje, percebo o quanto participei intensamente
do modelo de capacitação de professores então vigente, pautado na racionalidade técnica.
Segundo Péres Gómez (1992:96), “no modelo da racionalidade técnica, a atividade
profissional é sobretudo instrumental, dirigida para a solução de problemas mediante a
aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas”, desconsiderando as funções sociais da

4
Termo utilizado pela FDE para se referir aos professores que socializavam os cursos ali realizados junto aos professores das diversas
Delegacias de Ensino.
5
Atual Diretoria de Ensino.
21

escola e o contexto de sala de aula. Um contexto singular e complexo, que exige que
enfrentemos situações não previsíveis. Tal modelo deixou marcas tanto em minha própria
atuação docente quanto em minha relação com os professores com os quais eu trabalhava.
Concluído o curso de graduação, iniciei o mestrado na UNIMEP, porém não o concluí,
convalidando as disciplinas como um curso de aperfeiçoamento. Durante este período, continuei
freqüentando cursos de curta duração para professores, promovidos pela Delegacia de Ensino,
FDE e CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas do Estado de São Paulo).
Em 1998, após haver recusado, em outras ocasiões, o convite para trabalhar como
professora em uma conceituada escola particular de Piracicaba, passei a fazer parte de seu
corpo docente.
Nessa escola, apesar de trabalharmos como professoras polivalentes no grupo de
professoras da série, cada uma de nós incumbia-se da seleção e preparo de material para
uma das áreas de conhecimento. Tocou-me sempre a preparação do material da área de
Língua Portuguesa das segundas séries, série em que permaneci durante quatro anos.
No início de 2002, tendo vagado a área de Língua Portuguesa na terceira série (nas
terceiras e quartas séries as professoras trabalham por área) fui convidada para assumir a
função. No início o convite assustou-me. Porém, considerando a possibilidade de ver mais
de perto o resultado do meu trabalho no ano anterior, aceitei.
Foi nessa escola que uma série de questões relativas ao trabalho de produção textual
começaram a inquietar-me como professora. Transformadas em um projeto de pesquisa,
essas questões foram ali investigadas.
22

Inquietações de professora

Nestes dias assim de trabalho profissional intenso, cada sintoma pesado


numa balança de precisão, cada golpe do bisturi na tangente do erro
que o tornaria fatal, o poeta que dentro de mim não se resigna, nem
se cala, acaba por me irritar como uma criança importuna e teimosa.
[...] E nem a paz do dever cumprido saboreio quando dispo a bata, é
como se um sacerdote acabasse de rezar uma missa em pecado mortal,
com o diabo no corpo.
Miguel Torga, Diário, 10 de Novembro de 19556

Ano de 2002. Acompanhando os alunos da segunda série em seu ingresso na terceira,


dei-me conta do quanto o trabalho com produção de textos incomodava-me. As questões
relativas ao meu papel no desenvolvimento da escrita nas crianças eram muitas. As
respostas, poucas.
Observando meus alunos e pensando na função social da escrita na escola, indagava-
me sobre o que vinha a ser a formação de um produtor de textos nas séries iniciais e quais
os aspectos mais relevantes a serem observados nessa iniciação.
Entendendo que os produtores de texto não saem prontos de nossas mãos, professores
das séries iniciais, mas também entendendo que existem alguns aspectos do processo que
devem ser trabalhados e consolidados nessa etapa da escolarização, preocupava-me quanto
ao como dimensionar o trabalho a ser feito e até onde chegar.
Ao considerar as dificuldades e a complexidade do processo de produção textual – o
que escrever e como organizar o que se decidiu dizer em seqüências escritas – continuava
a me indagar acerca das situações de uso e de exploração da escrita que eu possibilitava
a meus alunos e das compreensões que eles, nessas condições, elaboravam acerca dessa
atividade. Também me indagava sobre as atividades de que poderia lançar mão para
apreender os efeitos suscitados pelo trabalho pedagógico desenvolvido junto às crianças.
Na busca de soluções, em contato com outras professoras e outras leituras, encontrei
Bakhtin e, em seu texto, a noção de alteridade constitutiva, segundo a qual o outro é
presença constitutiva em todas as instâncias vivas da linguagem.

Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto


pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige
para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor
e do ouvinte (Bakhtin, 2002:113).

6
Apud: Nóvoa, António. Vidas de Professores. Portugal: Porto Editora, 1992:13.
23

Ao realizar, ainda que de forma solitária, a leitura de Bakhtin, pude perceber que nas
práticas de textualização por mim propostas eu não explorava a dimensão interlocutiva
da linguagem.
Para que e para quem meus alunos escreviam? Escreviam redações que eram lidas
somente por mim, professora, que as corrigia destacando problemas formais (relacionados
à ortografia e às normas gramaticais) e aspectos discursivos (como paragrafação, pontuação,
repetição de palavras, relações sintáticas) relacionados à produção de sentidos no texto. O
texto corrigido era passado a limpo e aí se encerrava seu ciclo de produção e de circulação.
Com esse procedimento, passei a perceber, eu deixava de explorar a linguagem em
funcionamento na relação social professora/aluno/texto. Ou seja, como professora, eu lia
os textos produzidos por meus alunos, mais preocupada em corrigi-los do que em tomá-los
como um espaço de produção de sentidos – uma relação interlocutiva, no fluxo da qual
aquele que escreve percebe-se escrevendo para dizer algo a alguém, de quem espera, por
sua vez, uma réplica. O que equivale a dizer que aquele que escreve percebe-se escrevendo
para ser lido.
Ao ser lido, um texto instaura uma relação muito mais complexa do que a relação de
correção, centrada nos ajustes gramaticais, lexicais ou semânticos, ainda que a comporte.
O texto, na qualidade de relação interlocutiva, instaura um espaço de produção de
sentidos que articula o leitor ao autor em uma relação de compreensão responsiva. Ou
seja, o leitor responde ao texto: o que me diz o autor neste texto? Como diz o que pretendeu?
Concordo ou não com seus dizeres, com seu estilo? Aceito ou recuso suas intenções, acolho
ou rejeito as entonações que configuram seus modos de dizer, ponho em dúvida os
significados ou a versão dos fatos por ele veiculados?
Nessa relação, o leitor afeta o autor, apontando possibilidades de sentido em seu texto,
lacunas, ambigüidades e a necessidade de ajustes para garantir a função comunicativa da
linguagem (ou seja, o ajuste do discurso às necessidades características do leitor e dos
propósitos da interação).
A relação do autor com as impressões e comentários daquele que leu seu texto, se
explorada, extrapola, em muito, o gesto de passar o texto a limpo. Ela instaura uma
relação de compreensão ativa e responsiva do próprio autor em relação àquilo que ele
escreveu. Respondendo ativamente a seu leitor, ele re-encontra-se com o texto que
produziu, avalia-o em relação aos comentários, considera os ajustes a serem feitos. Ao
voltar-se para seu próprio texto, re-considera suas elaborações, instaurando uma relação
reflexiva com seus dizeres.
24

Reduzido em sua dimensão interlocutiva, o texto produzido por meus alunos empobrecia-
se enquanto modo de dizer e de dizer-se pela escrita, enquanto modo de ler e de ser lido,
enquanto possibilidade de reflexão sobre a própria linguagem.
Procurei então mais leituras e retomei Vygotsky (1989, 2003), teórico que já havia lido
na graduação. A partir dessa leitura reafirmei a importância da dimensão discursiva da
produção textual, problematizei a questão da reflexividade e tomei consciência do papel
do interlocutor no seu desenvolvimento. As diferenças entre os interlocutores, em termos de
suas experiências com a leitura e a escrita, são significativas para a emergência e
desenvolvimento da reflexividade.
Ancorado na tese de que a natureza do psiquismo humano é social, Vygotsky considera
que toda função psicológica desenvolve-se em dois planos: primeiro no da relação entre
indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. Nesse sentido, o domínio das atividades
complexas como a escrita e a reflexividade, como relação consigo mesmo, nasce das/nas
relações com o outro.
Em suas relações sociais, a criança vai se apropriando, mediada pelo outro, das formas
culturais de perceber e estruturar a realidade, de perceber a si mesma e de situar-se nessa
realidade, e as reconstrói internamente. A esse processo de reconstrução interna de uma
atividade externa, Vygotsky dá o nome de internalização. Na internalização, a atividade
interpessoal transforma-se para constituir o funcionamento interno (intrapessoal) (Góes, 1991).
Embora aponte diferenças entre o aprendizado e o desenvolvimento, Vygotsky considera
que os processos de aprendizado – atividades mediadas pelo outro (interpessoal) – suscitam
e impulsionam os processos de desenvolvimento – atividades auto-reguladas (intrapessoal).
O aprendizado humano, destaca ele, “pressupõe uma natureza social específica e um
processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que a cercam”
(Vygotsky, 1989:99), podendo imitar uma variedade de ações que vão muito além dos
limites de suas próprias capacidades. A imitação, tomada como ponto de partida, não só
precede o desenvolvimento como o suscita, criando o que o autor denomina de
desenvolvimento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada, que requerem
a ajuda, a intervenção do outro para se efetivarem.
Vygotsky atribuía grande importância ao desenvolvimento proximal por considerar que
nas atividades compartilhadas divisa-se o futuro do sujeito: “aquilo que a criança é capaz
de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (Idem:98). Porém, o
próprio Vygotsky advertia que para que pudesse haver uma compreensão plena do conceito
de zona de desenvolvimento proximal era necessário que se fizesse uma reavaliação do
papel da imitação no aprendizado:
25

As crianças podem imitar uma variedade de ações que vão muito além
dos limites de suas próprias capacidades. Numa atividade coletiva ou
sob a orientação de adultos, usando a imitação, as crianças são capazes
de fazer muito mais coisas (Vygotsky, 1989:99).

Nessa perspectiva, a educação escolarizada e o professor são constitutivos do


desenvolvimento dos indivíduos (e dentro dele a atividade da escrita e a reflexividade), na
medida que podem interferir deliberadamente no desenvolvimento proximal de seus alunos,
contribuindo para a emergência de processos de elaboração e de desenvolvimento que
não ocorreriam espontaneamente7.
Ao final do ano de 2002, as questões formuladas e os primeiros estudos impulsionaram-
me a buscar novamente o mestrado, por perceber que as perguntas nascidas na sala de
aula remetiam a problemas de ordem teórica e epistemológica, cuja discussão implicava
um maior adensamento dos estudos até então feitos.
Assim, entre leituras e inquietações, a professora que eu já era foi-se entrelaçando à
pesquisadora que em mim se anunciava, assumindo, ambas, uma outra compreensão do
trabalho docente no que tange à produção textual. Compreensão essa, mediada pelos
conhecimentos produzidos a respeito do desenvolvimento da leitura e da escrita na criança
como processos discursivos.
Tal compreensão punha em questão, especialmente, o papel mediador da professora e
os objetivos de sua intervenção junto aos alunos: como a professora participa do processo
de produção textual da criança? Como compartilha com seus alunos - e com quais objetivos
- a leitura e a correção que faz de seus textos?
Interessada em possibilitar a meus alunos uma relação com sua própria escrita, no sentido
de tomarem seus próprios enunciados como objeto de análise, em termos de adequação,
consistência, lógica etc., eu continuava a me perguntar: como intervir nos textos produzidos
de modo a dirigir a atenção dos alunos para os enunciados por eles elaborados? Como
mediar sua atenção de modo a que percebessem, no texto, não só o tema desenvolvido,
mas os modos de uso da linguagem de que se valeram, suas apropriações e elaborações
da escrita em curso? Como convidá-los a se voltarem para seus próprios textos, tendo em
conta as dificuldades e os comentários apontados pelo leitor?
As inquietações, convertidas em perguntas, sintetizaram-se na seguinte questão de
investigação: como a professora mediatiza os processos de elaboração e re-
elaboração da escrita pela criança, tendo em vista o desenvolvimento da
dimensão reflexiva do ato de escrever?

7
Estarei retomando e aprofundando essas questões no decorrer deste trabalho.
26

Assumindo os pressupostos da perspectiva histórico-cultural, elaborados por Vygotsky,


procurei me aproximar dos processos em que o sujeito toma sua própria atividade como
objeto de atenção e de explicitação. A esse processo de dobrar-se sobre si mesmo, de
voltar ao próprio ato e à própria enunciação, à própria compreensão, Vygotsky dá o
nome de reflexividade.
Segundo Góes (1997:130) “a ação reflexiva pode ser entendida como aquela que é
tomada como objeto de atenção pelo próprio sujeito. Trata-se não só de saber fazer, mas
também de pensar sobre o que e como se faz”.
As pessoas fazem algumas coisas, tal como amarrar o tênis, porém, se perguntarmos a
elas como o fazem, isso requer do sujeito um outro modo de elaboração da própria
atividade que ele já domina, é uma atividade meta-cognitiva, é um conhecer do próprio
conhecimento que o sujeito já detém.
Então, como pensar a questão da reflexividade? A partir dos pressupostos da teoria,
ela não é inerente ao sujeito, mas sim aprendida nas relações sociais. O outro destaca, e
muitas vezes, enuncia, explicita, a relação do sujeito com a sua própria atividade. Outras
vezes o outro interpela o sujeito a respeito dos seus próprios modos de ação e de
elaboração. Nessas relações, das quais o outro participa, vamos nos apropriando dessa
possibilidade de tomar a própria atividade como objeto de atenção e de elaboração.
Segundo Góes (1997:115) “as operações reflexivas na escrita devem se constituir em
espaço privilegiado de investimento do trabalho pedagógico”, portanto, nas relações de
ensino o professor é o outro que participa, que explicita a relação do sujeito com sua
própria atividade de escrita negociando sentidos frente aos enunciados de seus alunos.
Nesse processo me interessava, também, me aproximar da minha própria mediação.
Nesse sentido, vem à tona a questão da reflexividade da professora. Diferentemente de
abordagens que não explicam a gênese da reflexão da professora, estou assumindo neste
trabalho este pressuposto vygotskyano de que a reflexão nasce da relação social. No caso
da professora a atenção sobre sua própria mediação nasce das demandas das crianças,
das necessidades criadas na relação de ensino.
III
me u s i n t e r l o c u t o r e s e
o modo de pesquisar
28

A procura de um método torna-se um dos problemas mais importantes


de todo empreendimento para a compreensão das formas caracteristicamente
humanas de atividade psicológica. Nesse caso, o método é, ao mesmo tempo, pré-
requisito e produto, o instrumento e o resultado do estudo.

Lev Semyonovich Vygotsky.


A formação social da mente (1989:74).
29

Meu trabalho de pesquisa ancora-se nas proposições teóricas de Vygotsky, Bakhtin e nos
trabalhos de Geraldi, Góes, Smolka e Fontana, igualmente fundamentados em uma
perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano.
A dimensão histórica, neste caso, refere-se não ao estudo de eventos passados, mas ao
estudo de “eventos no curso de suas transformações, o que engloba o presente, as condições
passadas e aquilo que se projeta para o futuro” (Góes, 2000:13), em suas condições
sociais específicas de produção. A dimensão cultural diz respeito à constituição social dos
modos especificamente humanos de significar e de agir sobre o mundo, sobre o outro e
sobre si mesmo, mediados pelos instrumentos e pelos signos criados em condições históricas
específicas.
Segundo Vygotsky, ao nascer, a criança dispõe de um funcionamento biológico que lhe
permite responder e adaptar-se ao mundo. Imersa em um dado contexto cultural e
participando de práticas sociais historicamente constituídas, mediada pelo outro e pela
linguagem, “a criança vai incorporando, ativamente, formas de ação já consolidadas na
experiência humana” (Góes e Smolka, 1997:10), hominizando-se. Nesse processo, todo o
seu equipamento biológico adaptativo, denominado por Vygotsky como funções elementares,
vai sendo reestruturado como modos culturais de comportamento, mediados e dirigidos
por signos e significados, consolidando-se como funções superiores.
Desde o nascimento, destaca Vygotsky, a criança tem com o mundo uma relação mediada
pelo outro e pela linguagem.

O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de


uma outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um
processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre
história individual e história social (1989:37).

Em suas relações sociais, com a linguagem e pela linguagem, a criança vai se apropriando,
mediada pelo outro, das formas culturais de perceber e estruturar a realidade e as internaliza
- reconstrói internamente – o que constitui o funcionamento intrapessoal.
Dessa perspectiva, a linguagem, em suas diversas formas de materialização, “situa-se
como o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos”
(Geraldi, 1997:41), seja no sentido da apropriação e da elaboração das práticas de
significação e da compreensão do mundo, seja no sentido do desenvolvimento da análise
e do julgamento de si mesmos e da reflexividade.
O conhecimento do mundo e de si mesmo no mundo - o pensar sobre si mesmo, sobre
o próprio fazer e sobre o próprio pensar – não são formas de atividade “inerentes” ao ser
humano. Elas demandam a mediação do outro e da linguagem para que se desenvolvam.
30

A auto-análise e a auto-avaliação, são moldados pelas condições de


existência social [...] os seres primeiro fazem julgamentos sobre os outros,
percebendo os julgamentos dos outros sobre si próprios, e então, sob
influência desses julgamentos, são capazes de formular julgamentos sobre
si próprios (Luria, 1990:194-195).

Nesse sentido, o desenvolvimento envolve aprendizado, compondo com ele uma unidade,
ainda que não uma identidade:

embora o aprendizado esteja diretamente relacionado ao curso do


desenvolvimento da criança, os dois nunca são realizados em igual medida
ou em paralelo. O desenvolvimento nas crianças nunca acompanha o
aprendizado escolar da mesma maneira como uma sombra acompanha
o objeto que o projeta. Na realidade, existem relações dinâmicas altamente
complexas entre os processos de desenvolvimento e de aprendizado, as
quais não podem ser englobadas por uma formulação hipotética imutável
(Vygotsky, 1989:102).

Os processos de aprendizado transformam-se em processos de desenvolvimento à medida


que modificam os mecanismos biológicos da espécie e à medida que, sendo internalizados,
passam a ser regulados pelo próprio sujeito, configurando a atividade voluntária, deliberada.
Como processos inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança (Vygotsky,
1989), aprendizado e desenvolvimento tornam-se processos centrais no estudo do psiquismo.
Uma preocupação importante na pesquisa psicológica e educacional, segundo Vygotsky,
seria a de explicar “como se internalizam o conhecimento externo e as capacidades nas
crianças” (Vygotsky, 1989: 102).
Considerando-se que o aprendizado se realiza na vida dos seres humanos através de
processos educativos, e que os processos educativos acontecem nas várias instituições sociais
pelas quais os indivíduos passam ao longo de sua vida, Vygotsky considerou, com especial
atenção, as relações escolares. Confrontando-as com as situações educativas cotidianas,
em que o aprendizado e o desenvolvimento nem sempre se explicitam para as crianças e os
adultos envolvidos, o autor considerava a escola como uma instituição em que as
possibilidades de atenção ao próprio processo de conhecimento experienciado pelos sujeitos
envolvidos e de desenvolvimento da reflexividade poderiam ser maiores, por serem as
atividades de aprendizado ali desenvolvidas, planejadas, deliberadas e explícitas.
Dessa ótica, o aprendizado escolar configura um importante campo de investigação do
desenvolvimento. Segundo Vygotsky (1989:102):
31

Toda pesquisa tem por objetivo explorar alguma esfera da realidade. Um


objetivo da análise psicológica do desenvolvimento é descrever as relações
internas dos processos intelectuais despertados pelo aprendizado escolar.
[...] Se bem sucedida, deve revelar ao professor como os processos de
desenvolvimento estimulados pelo aprendizado escolar são “embutidos
na cabeça” de cada criança. A revelação dessa rede interna e subterrânea
de desenvolvimento de escolares é uma tarefa de importância primordial
para a análise psicológica e educacional.

No sentido de adensar a compreensão do caráter constitutivo da linguagem, aproximei-


me da Teoria da Enunciação de Bakhtin, que em uma abordagem epistemológica
próxima da de Vygotsky, pode ser a ela articulada. Para ambos, a linguagem é constitutiva
do ser humano.
Nas relações instauradas e mediadas pela linguagem, os interlocutores buscam
significar ativamente os enunciados postos em circulação, num jogo de palavras e
contra-palavras, que polemizam entre si, completam-se ou respondem umas às outras.
A esse movimento, Bakhtin denomina processo dialógico. A dialogia é o princípio
constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso porque resulta do encontro
e confronto de muitas vozes sociais.
A idéia de subjetividade que está subjacente a essas concepções de linguagem e de
desenvolvimento é a de intersubjetividade, ou seja, uma subjetividade que vai se constituindo
com/pelo outro, na dinâmica das relações sociais.
Sua tese fundamental é a de que nós nos constituímos e somos constituídos pelos outros,
nossos discursos não são nossos, vamos produzindo nossos dizeres a partir dos dizeres dos
outros, vamos nos apropriando daquilo que nos vem do outro.
Bakhtin, assim como Vygotsky, considera o signo verbal como prioridade. Para ele o
signo mais importante é a palavra, não há ato de compreensão sem a palavra – o
signo verbal. “A língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a
realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”
(Bakhtin, 2003:265).
No trabalho com a linguagem e pela linguagem, em sala de aula, assumi a possibilidade
de investigação destacada por Vygotsky e Bakhtin. Voltei-me para as interlocuções professora-
alunos, professora-alunos-texto, alunos-alunos, alunos-alunos-texto, vividas na sala de aula,
procurando nelas compreender como os processos de apropriação e de elaboração da
escrita desenvolvem-se na criança e como a mediação pedagógica atua nesses processos.
Mobilizava-me também o interesse em analisar e compreender a dinâmica interativa da
qual eu própria participava, como uma forma de avaliar o quanto minhas intervenções
junto às crianças, na e pela linguagem, contribuíam (ou não) - e como - para o
desenvolvimento da dimensão reflexiva no ato de escrever.
32

Esse interesse imediato como professora na própria pesquisa levou-me à decisão de


realizar a pesquisa em minha sala de aula, privilegiando como fontes de indícios do processo
de desenvolvimento da escrita e dos efeitos da mediação pedagógica sobre ele, os
enunciados produzidos nas relações de ensino instauradas e mediadas por mim, como
professora, em interlocução com meus alunos e com os textos por eles produzidos.
Focalizadas como relações de ensino8, as práticas de produção textual, nesse processo,
foram sendo por mim ressignificadas em favor da dimensão interlocutiva da linguagem.
Nelas, passei a me relacionar com os alunos como sujeitos que ao escrever produzem
textos com propósitos interativos efetivos, assumindo, como professora, o papel de
‘representante leitor’ - “um interlocutor imediato que aponta para o sujeito as exigências de
compreensão do leitor [...] um interlocutor imediato que negocia sentidos, analisando e
operando com a criança sobre o texto” (Góes, 1997:104).
Explorando a dimensão interlocutiva da linguagem que emerge no contexto das práticas
de sala de aula, professora e alunos, segundo Geraldi (1997e:16), aproximam-se de uma
das “características essenciais da linguagem: a reflexividade, isto é, o poder de remeter a si
mesma”. Essa possibilidade de a linguagem remeter a si mesma, por sua vez, aproxima o
sujeito dos próprios processos de apreensão e de elaboração da escrita, tomando suas
escolhas e decisões como objeto de atenção.

8
O conceito de relações de ensino, formulado por Smolka (1993), destaca a dimensão relacional dos processos de ensinar/aprender.
33

Um modo de atuar

Tendo optado por realizar a pesquisa nas relações de ensino vividas por mim e por meus
alunos, passei a documentar, de modo sistemático, todo o meu trabalho como professora,
relativo às práticas de produção textual - das atividades propostas às intervenções que
registrava nos textos dos alunos, dos comentários e pedidos de ajuda dos alunos à
reestruturação de seus textos, da organização e circulação das várias versões de cada texto
ao planejamento e às avaliações do processo em curso. Reuni, também, todos os textos
produzidos pelos alunos em suas variadas versões.
Nesse modo de atuar, o conjunto de fazeres pedagógicos, próprios do trabalho docente,
foi também meu conjunto de procedimentos de investigação e de levantamento de
indicadores sobre os processos de produção textual das crianças. Da mesma forma, os
procedimentos de avaliação e de replanejamento das atividades de ensino vividas pautaram
as análises dos indicadores reunidos e a reflexão interessada sobre os efeitos da mediação
docente.
Tal encaminhamento metodológico, que articula as atividades de ensino e de pesquisa,
ancora-se em Vygotsky, que insistia no fato de que a pesquisa em Psicologia não deveria
divorciar-se do mundo real. Os problemas centrais da existência humana, tais como sentidos
na escola, no trabalho, na clínica, segundo ele, deveriam ser investigados nas suas condições
reais de produção.
Fontana (2000: 31) explana com muita clareza o pensamento de Vygotsky relativo à
situação da pesquisa: “mais do que a criação de situações ostensivamente experimentais, a
tônica de sua proposta é a de viver experimentalmente as situações, jogando com as
atividades do próprio contexto em estudo”.
Ao atuar na situação real de sala de aula, como professora e pesquisadora, fui
modificando, deliberadamente, as condições de produção da mediação docente em
interlocução com a produção textual das crianças, com suas demandas e intervenções. Ou
seja, da mesma forma que meus encaminhamentos como professora configuravam as
condições de produção das relações de ensino, os efeitos por eles suscitados, devolvidos a
mim pelas crianças, afetavam minhas decisões e a continuidade do meu trabalho docente.
Os conhecimentos que fui construindo nesse meu pequeno percurso enquanto pesquisadora,
mediaram os fazeres e saberes da professora e foram, por sua vez, por eles mediados.
A professora, entrelaçada à pesquisadora, não esperou que todas as leituras se
realizassem, que todas as elaborações se concretizassem, que todos os achados fossem
analisados para redimensionar seu fazer. A sala de aula tem urgências e a professora que
pesquisa questões que a instigam, no próprio acontecer da docência, estuda e ensina,
observa, registra e intervém sobre seu próprio atuar do dia-a-dia.
34

Segundo Fontana (2003) é exatamente essa postura, interessada na sustentação e no


desenvolvimento das relações de ensino, o que caracteriza a especificidade da pesquisa
feita por professores em sala de aula. Os dados produzidos nas atividades compartilhadas
entre crianças e professores não são coletados para serem posteriormente analisados. Os
dados que vão sendo registrados também vão sendo analisados, problematizados e
incorporados à prática docente e à pesquisa. Eles instrumentalizam as decisões referentes
ao encaminhamento das etapas seguintes do trabalho pedagógico.

A vivência experimental da mediação pedagógica é o espaço próprio


do professor na relação de ensino. Em suas atividades didático-
pedagógicas, ele está a todo momento, embora não se dê conta,
jogando com a configuração dos contornos da relação de ensino, com
sua direção, com parte de suas condições de produção. Ele está a
todo momento sendo sobressaltado pelos dizeres, gestos e olhares
dos alunos (Fontana, 2003:09-10).

Frente à imediaticidade das relações de ensino, os achados como pesquisador e as


modificações que eles produzem no modo de compreender o trabalho docente e de nele
atuar alcançam de imediato um grupo numeroso de pessoas – os alunos – que, respondendo
ativamente às condições de ensino por ele instauradas, voltam a afetá-las, também de
modo imediato.
Por sua vez, a pesquisadora entrelaçada à professora ensinou a esta última como observar
e documentar o processo de desenvolvimento de seus alunos e de seu próprio trabalho,
enquanto lhes ensinava a escrever e a analisar sua escrita.
Nesse sentido foi fundamental a proposta metodológica de Bakhtin para o estudo da
linguagem. Segundo ela:

1. As formas e os tipos de interação verbal [devem ser estudados] em


ligação com as condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é,
as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se
prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística
habitual” (Bakhtin, 2002:124).
35

A partir desses princípios, pude analisar minha prática docente anterior, no que se
refere à produção textual, e perceber que, embora já levasse em conta o texto enquanto
espaço de interlocução, minha preocupação maior ainda centrava-se nas formas da
língua e não no funcionamento da linguagem. Ou seja, eu cindia em dois o caminho
articulado, proposto por Bakhtin.
Com relação ao momento de escritura, eu valorizava a linguagem em funcionamento,
reconhecendo o texto em sua “função social” para as crianças. Minha participação como
professora era a de uma interlocutora interessada, que compartilhava pistas, sugeria
possibilidades de encaminhamento do texto quando as crianças me pediam ajuda.
No momento da leitura do texto produzido, eu privilegiava as formas da língua, perdendo
de vista a compreensão das distintas enunciações em ligação estreita com a interação,
produzida em condições concretas e específicas. Eu não me preocupava com o
desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever, ou seja, em ajudar os pequenos
escritores a analisarem seu próprio texto, a tomá-lo como objeto de atenção. Assim, o texto
corrigido, ao ser devolvido para que o aluno o passasse a limpo, explicitava para ele que
a escrita na escola era mais um exercício de utilização e treino das formas padrão da
língua, do que uma possibilidade interlocutiva, empobrecendo a sua condição de autor e a
minha condição de leitora.
Ao realizar esta pesquisa, a professora, que sou, passou a compreender de uma forma
mais complexa a trama interlocutiva instaurada pelo texto, privilegiando não só o resultado
da produção, mas todo o processo de elaboração e de re-elaboração pelo qual ele vai
passando, entendendo esse conjunto de re-elaborações como momentos de interlocução
do jovem escrevinhador com seus leitores.
Eu mudei a compreensão que tinha sobre o ato da produção do texto: passei a encarar
as crianças como pequenos escrevinhadores que no momento da produção textual vivem
uma prática de interação verbal. Passei a privilegiar os momentos da interação que não
eram, anteriormente, objeto de minha atenção. Antes, mesmo propiciando a interação
entre as crianças, mesmo mediando seus pedidos de ajuda, eu ouvia pouco o que elas
diziam, não prestava atenção à coreografia das relações que estabeleciam entre si, com o
texto e comigo, feita de palavras, gestos, olhares, movimentos. Eu privilegiava o produto
final – o texto – e o considerava como minha única fonte de indicadores sobre o processo
de produção da escrita pelas crianças.
Ao tomar consciência de que a ordem metodológica proposta por Bakhtin para o estudo
da linguagem indicava um caminho muito mais complexo do que aquele que eu fazia,
passei a participar mais intensamente dos momentos de produção e re-elaboração textual
em sala de aula.
Isso modificou a minha relação com o tempo da produção. O texto deixou de ser algo que
acontecia em duas aulas: a aula em que era produzido e a aula em que era passado a limpo,
estendendo-se por todos os momentos de leitura, releituras, revisões e re-elaborações.
36

Mudou também a minha relação com os textos já produzidos. Se antes eles eram o
produto final da atividade de redação, passaram a ser um ato de fala concreto que só se
configura em sua relação estreita com o próprio momento e com a própria condição de
produção. Isso redimensionou a leitura e os comentários que eu passei a fazer nos textos
que os alunos escreviam, porque mudou o meu lugar na interlocução.
Com essa outra forma de compreensão da própria linguagem eu deixei de ser a professora
que corrigia o texto e passei a ser uma leitora, uma interlocutora interessada nas várias
versões dos textos que os jovens escrevinhadores compartilhavam comigo.
Mas nem por isso as formas da língua foram esquecidas por mim. O domínio delas era
necessário, tanto para que o jovem escrevinhador conseguisse dizer o que queria por escrito,
quanto para que ele refinasse os usos que já fazia da língua escrita. O domínio das formas
da língua também me era necessário para que, como professora, pudesse mediar a
apropriação da escrita por meus alunos. O que modificou nessa nova condição de
organização das relações de ensino foi o fato de que a produção de textos passou a ser o
eixo central do ensino da língua. O uso real da escrita passou a pautar o processo de
formalização da língua, necessário na hora de escrever.
A passagem da professora que corrigia para a interlocutora e a passagem do aluno à
condição de ‘pequeno escrevinhador’ foram se dando ao longo do percurso, mediadas
pela apropriação e elaboração, pela professora, de conhecimentos sobre a linguagem.
A professora foi se transformando enquanto estudava e enquanto pesquisava a sua
própria atividade mediadora junto às crianças e, nesse processo, foi modificando as
condições de produção das relações de ensino, possibilitando aos seus alunos a experiência
de escreverem para serem lidos e a si mesma a experiência de outros modos de viver e de
organizar seu trabalho pedagógico.
Hoje, re-encontrando-me com todos os registros, visualizo o processo passo a passo,
com seus equívocos e acertos, com seus desvios e desvãos.
37

Os sujeitos da pesquisa

As crianças de duas turmas de terceira série do ensino fundamental, no ano de 2003, de


uma escola particular situada na cidade de Piracicaba, com 26 alunos cada uma, tornaram-
se minhas companheiras de percurso nesta pesquisa.
Muitos desses alunos já eram conhecidos, tantas foram as vezes em que passaram pelos
corredores, em 2002, e disseram: “No ano que vem você vai ser minha professora!”
Quanta expectativa! De ambos os lados.
Oriundos de famílias com um elevado capital cultural, nenhum dos 52 alunos era
repetente, todos encontravam-se na faixa etária de 9 anos de idade e apenas um deles
viera de outra escola.
As classes eram heterogêneas quanto ao domínio da escrita, mas os alunos tinham
vivido experiências escolares bastante semelhantes com relação à apropriação da escrita,
já que nessa escola o projeto pedagógico prevê um intenso trabalho nesse sentido, que na
segunda série assenta-se, basicamente, em dois projetos semestrais: “Leitura e Escrita de
Contos” (no 1º semestre), e o projeto “Autobiografia” (no 2º semestre).
Os dados relativos ao desenvolvimento desses dois projetos, tal qual relatados pelas
professoras da segunda série, foram os elementos sobre os quais planejei meu trabalho inicial.
O projeto “Leitura e Escrita de Contos”, centrado na reescrita de textos e na produção
de contos de autoria, privilegiava os contos e a narrativa como gêneros discursivos9.
Para desencadear as atividades desse projeto, as professoras realizaram a leitura
compartilhada da obra “O Fantástico Mistério de Feiurinha” (1999), do autor Pedro Bandeira.
Essa obra foi escolhida por reunir como personagens centrais as princesas dos contos
de fada clássicos e por abordar a importância da escrita como memória: passando-se
vinte e cinco anos depois do “e viveram felizes para sempre”, a narrativa apresenta
como conflito o desaparecimento de uma das princesas, fato que coloca em perigo a
sobrevivência de todas as outras, uma vez que a promessa final de suas histórias era a
de que viveriam felizes para sempre. Ao final da narrativa, descobre-se que essa princesa,
“Feiurinha”, desaparecera porque sua história não havia sido escrita, ela apenas existia
na memória dos antigos contadores de histórias. Depois de muita procura, as princesas
conseguem encontrar uma contadora que conhecia a história da “Feiurinha” e contratam
um escritor, Pedro Bandeira, para escrevê-la, a fim de que pudesse ser lida sem o risco
de perder-se na fragilidade da memória das pessoas.

9
“Gêneros discursivos” é o termo que eu utilizo ao elaborar este texto, mediada pelas leituras de Bakhtin. Segundo esse autor, os
gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados que se produzem e se estabilizam nas condições específicas e nas
finalidades das diferentes esferas de utilização da língua (2003). No entanto, as professoras, ao descrever seus procedimentos,
utilizaram os termos “tipos de textos” ou “tipologia textual” para caracterizar o trabalho feito com contos e narrativas.
38

Depois de lida a obra, as professoras passaram a trabalhar com os contos de fada


tradicionais nos quais se encontravam as princesas que haviam aparecido como personagens
de “O Fantástico Mistério de Feiurinha”, e outros além daqueles. Após cada conto tradicional,
eram apresentadas às crianças outras versões desses mesmos contos, narradas através de
outro foco narrativo.
De leitura em leitura, guiadas pelas professoras, as crianças apreenderam, através da
análise e da comparação entre os contos lidos, suas características em termos do conteúdo
temático, do estilo e da construção composicional, e experimentaram-se nesse modo
específico de utilização da língua, re-escrevendo os contos lidos e produzindo o que se
convencionou denominar de “Contos de Autoria”.
Em suas produções as crianças poderiam reproduzir partes dos textos trabalhados, criar
novos personagens ou ambientes, dar diferentes características aos já existentes, misturar
partes dos contos, inserir um personagem de um conto em outro, enfim, tomando os contos
de fada como referência, as crianças poderiam criar a partir deles.
Após a produção, as professoras trocavam os textos entre os próprios alunos, para que,
em uma folha à parte, os leitores deixassem mensagens ao autor. A intenção desse
procedimento era explicitar para as crianças que seus textos seriam lidos por outros e,
portanto, sua elaboração deveria ser cuidada em termos de clareza, coerência e coesão.
Com isso, as professoras, talvez mesmo sem terem a clareza do que faziam, exploravam a
dimensão comunicativa da linguagem em um processo de interlocução entre as crianças.
As professoras também liam e faziam anotações a respeito dos textos produzidos pelos
alunos, procurando indicar-lhes as reformulações e re-organizações necessárias à clareza,
corência e coesão.
Após a leitura e comentários das professoras, os textos eram passados a limpo e finalmente,
digitados, para comporem uma coletânea, que era apresentada aos pais.
O projeto “Autobiografia” privilegiava o gênero discursivo biográfico. Para desencadear
o trabalho as professoras selecionaram alguns textos, nos quais apareceram alguns
personagens de Monteiro Lobato, tais como a Cuca, Emília e Visconde de Sabugosa, dentre
outros. Com isto, despertaram o interesse das crianças em conhecer o autor de tais
personagens. A biografia de Monteiro Lobato foi, então, levada para sala de aula, bem
como a história de alguns de seus personagens mais conhecidos.
Também foi trabalhada a obra literária “Minhas memórias de Lobato – contadas por
Emília, Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa” (1999), de Luciana Sandroni,
na qual as personagens de Monteiro Lobato escrevem a biografia de seu autor, explorando
as características composicionais desse gênero.
Outras biografias foram apresentadas às crianças e analisadas com elas, em termos dos
recursos lexicais e fraseológicos, e do tipo de informações privilegiada nesse gênero (local
e data de nascimento, nomes dos pais, fatos importantes que ocorreram na vida da pessoa
que estava sendo apresentada ao leitor etc.).
39

Depois de conhecidas algumas biografias, um trabalho semelhante passou a ser realizado


com algumas autobiografias. Em seguida, biografias e autobiografias foram comparadas,
visando destacar as especificidades dos usos da língua nos dois gêneros.
Um trabalho minucioso de composição passo a passo de uma autobiografia, possibilitou
às crianças a experiência de elaboração desse gênero.
Os textos produzidos pelas crianças, ao longo desse projeto, não passaram por processos
de revisão espontânea. As questões elaboradas como diretrizes foram corrigidas pelas
professoras e, no momento da primeira produção – o rascunho – os aspectos discursivos
já estavam organizados.
Este rascunho foi então novamente corrigido pelas professoras e entregue às crianças,
que passaram a limpo agora nas folhas que seriam organizadas em forma de livro. Quando
o texto já estava em forma de livro, as professoras chamaram criança por criança para
apurar as questões ortográficas e as lacunas que ficaram ao passarem a limpo. Pronto, o
livro foi entregue aos pais, após a exposição na mostra escolar.
Com base nesses antecedentes, nas indagações que me inquietavam como professora e
nos estudos que vinha fazendo, projetei as direções de trabalho para o ano.
As crianças a quem eu estaria ensinando estavam familiarizadas com a prática de
produção textual – em especial com o reconto – e já vinham elaborando uma certa
compreensão da importância da revisão da escrita, já que na série anterior houvera uma
certa explicitação da dimensão comunicativa da escrita. Que atividades seriam significativas
para essas crianças, na terceira série, de forma a contribuir para a consolidação de suas
elaborações acerca da escrita? Como fazer as intervenções nos textos por eles produzidos
no sentido de que avançassem em relação a práticas que já haviam vivenciado antes?
Considerando que a dimensão comunicativa da linguagem é condição para a elaboração
da reflexividade, propus-me a possibilitar a meus alunos essa dimensão do ato de escrever,
ainda que não soubesse como fazê-lo. O projeto que nortearia o trabalho no ano teria
como foco a mediação pela professora da relação da criança com seu próprio texto, no
sentido não só de compreender as sugestões de seus leitores e desenvolvê-las, mas de
relacionar seus propósitos discursivos com essas sugestões, podendo aceitá-las ou não, o
que seria mais complexo do que o que havia sido realizado na série anterior.
IV
a trajetória
percorrida
C aminhante, não há caminho,
Faz-se o caminho ao andar,
São teus passos, o caminho.
Antonio Machado
42

Primeiros Passos
Para descrever o processo vivido e o modo como os dados foram produzidos, apresento
a seguir uma síntese do trabalho desenvolvido em sala de aula.
Organizei o processo de ensino da língua centrando-o em três práticas - a leitura de
textos, a produção textual e a análise lingüística – de acordo com a proposta desenvolvida
por Geraldi no livro “O texto na sala de aula” (1997c). Segundo o autor, a proposta assenta-
se em uma concepção que “situa a linguagem como o lugar de constituição de relações
sociais, onde os falantes se tornam sujeitos” (Idem:41).
Nessa perspectiva, a leitura de textos é entendida como um “processo de interlocução
entre leitor/texto/autor. O aluno-leitor não é passivo, mas o agente que busca significações”
(Geraldi e Fonseca, 1997:107). A produção textual, por sua vez, considera os alunos como
produtores de textos, e não como produtores de redação, porque não é apenas uma pessoa
na função “professor-escola” que os lê. Geraldi e Fonseca, recorrendo a Roventa-Frumusani,
destacam que “é preciso que se entenda que um texto (ou discurso) não é apenas sobre
alguma coisa, mas também que é produzido por alguém, para alguém” (Idem:106).
A análise lingüística, tal qual proposta por Geraldi,

inclui tanto o trabalho sobre questões tradicionais da gramática quanto


questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena citar:
coesão e coerência internas do texto; adequação do texto aos objetivos
pretendidos; análise dos recursos expressivos utilizados (metáforas,
metonímias, paráfrases, citações, discursos direto e indireto, etc.);
organização e inclusão de informações; etc. Essencialmente, a prática
da análise lingüística não poderá limitar-se à higienização do texto do
aluno em seus aspectos gramaticais e ortográficos, limitando-se a
‘correções’. Trata-se de trabalhar com o aluno o seu texto para que ele
atinja seus objetivos junto aos leitores a que se destina. O objetivo
essencial da análise lingüística é a reescrita do texto do aluno. Isso não
exclui, obviamente, a possibilidade de nestas aulas o professor organizar
atividades sobre o tema escolhido, mostrando com essas atividades os
aspectos sistemáticos da língua portuguesa. Chamo a atenção aqui para
os aspectos sistemáticos da língua e não para a terminologia gramatical
com que a denominamos. O objetivo não é o aluno dominar a
terminologia (embora possa usá-la), mas compreender o fenômeno
lingüístico em estudo (Geraldi, 1997b:74).

A análise lingüística refere-se portanto aos aspectos estruturais da língua escrita que
devem ser apropriados pela criança. Como assinala Geraldi, o essencial nessa prática é “a
substituição do trabalho com metalinguagem pelo trabalho produtivo de correção e
autocorreção de textos produzidos pelos próprios alunos (Idem:79).
43

A possibilidade da autocorreção interessava-me sobremaneira. Nela eu vislumbrava um


caminho para o desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever.
Em meio às tentativas de compreender mais aprofundadamente aspectos relativos ao
processo de desenvolvimento da reflexividade, a proposta da análise lingüística, direcionada
pelo professor parecia-me interessante em seu caráter relacional, pois é na dimensão
relacional, como destaca Vygotsky, (1989, 2000), que os sujeitos tomam consciência de si
mesmos, desenvolvendo a autoconsciência e a reflexividade.
Luria, colaborador de Vygotsky, explica esse processo reportando-se a Marx:

a autoconsciência é um fenômeno secundário e socialmente moldado.


[...] Primeiro o homem olhou a si próprio como se fosse num espelho, só
que olhando uma outra pessoa. Apenas ao relacionar-se com Paul como
uma pessoa semelhante a ele próprio, é que Peter pôde começar a
relacionar-se consigo mesmo como uma pessoa (Luria, 1990:194).

Os estados subjetivos (percepção de si próprio, experiências emocionais), como todas


as funções psíquicas, nascem na intersubjetividade, conforme o princípio do duplo
desenvolvimento.

Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em


cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no psicológico,
primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois – dentro
da criança. [...] Por trás de todas as funções superiores e suas relações
estão relações geneticamente sociais, relações reais das pessoas
(Vygotsky, 2000:26).

No terreno da linguagem, Bakhtin (2002) também faz uma análise semelhante:

a consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo


ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de
interação social. [...] Os signos só podem aparecer em um terreno
interindividual. [...] A consciência adquire forma e existência nos signos
criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os
signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento (2002: 34-35).

A participação ativa do outro em nossa constituição nos remete novamente a Vygotsky.


Para esse autor, é através da mediação dos outros, da estimulação autogerada, da criação
de estímulos artificiais, pelo uso de signos - e a linguagem é um signo - que a criança “cria
novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura” (Vygotsky, 1989:45) podendo
desenvolver-se através do aprendizado escolar.
44

No decorrer do ano letivo no qual este trabalho foi realizado, foram elaboradas cinco
propostas de produção textual. Cada uma delas instaurou um processo de interlocução
entre o autor do texto, a professora, e seus pares, que resultou na escrita de várias versões
de um mesmo texto.
O conjunto de versões de cada texto, juntamente com as distintas intervenções feitas
por mim, professora, e por outros alunos da classe, compuseram uma coletânea que
possibilitava, a cada aluno, reencontrar-se com os diferentes momentos de sua produção
e avaliar-se diante deles.
À medida em que fui organizando os textos das crianças nessas coletâneas, fui organizando
também meu trabalho docente e o processo da pesquisa. O conjunto de versões de cada
aluno, tomado como espaço de produção de sentidos, além de ter documentado meus
modos de intervenção sobre os textos, os efeitos de minhas intervenções sobre esses textos
e os efeitos desses textos sobre mim, tornou-se a principal referência para minhas decisões
na organização do processo de ensino e de pesquisa.
Organizei uma coletânea reunindo toda a produção de cada uma das classes e escrevi
uma introdução, dirigida aos pais, na qual eu explicava o que fiz, como fiz e porque fiz o
que fiz. Estas coletâneas foram apresentadas a eles nas reuniões trimestrais. A produção
desses textos de apresentação foi importante para o andamento da pesquisa porque exigiram-
me sínteses parciais do processo vivido.
45

De colchas e retalhos...

A primeira produção textual do ano, realizada em duplas


Considerando que o reconto foi uma das principais estratégias para a produção textual
vivida pelas crianças na série anterior, recorri a ela para a primeira produção que realizamos
nos meses de fevereiro e março.
Além da familiaridade das crianças com essa prática, foi importante para sua
escolha, o argumento de Geraldi (1997b), segundo o qual ao propormos o reconto
evitamos o acúmulo de dificuldades que se colocam para a criança frente às exigências
de criar e de escrever.
Conforme Lajolo, o argumento apresentado por Geraldi em favor do reconto é um
aspecto sedutor da produção de um texto a partir de outro, mas é importante que não se
abandone “a perspectiva de que é o processo de significação atualizado no texto escrito,
tomado como ponto de partida, que pode deflagrar o processo de significação do texto a
ser criado” (Lajolo,1988: 59-60).
O processo de significação que deflagra um novo texto nasce do encontro com outras
produções escritas e da própria leitura que a criança faz da vida. Essas experiências
alimentam o conjunto de idéias e de possibilidades temáticas para ela. É nessa interlocução
que ela amplia as possibilidades do que tem a dizer e dos modos de fazê-lo.
Como a própria Ana Maria Machado destaca em sua experiência pessoal, como
vimos, é no encontro com outras obras, na nossa aproximação com elas, que vamos nos
nutrindo de possibilidades e de diferentes formas de dizer o que temos a dizer. É na
interlocução, na leitura de diferentes e diversos textos e na experiência de vida que nos
alimentamos para o processo de produção textual.
Concordando com Lajolo (Idem), acredito que é nessa condição que a leitura propicia o
escrever bem. Pois como afirma ela, não é o fato de ler um bom texto o que habilita o aluno
a produzir um bom texto. “A relação entre o ler e escrever talvez seja mais forte do que o
julgam os adeptos da teoria da criatividade e mais tênue do que o acreditavam os discípulos
da formação do estilo pela imitação dos bons autores” (Destaques da autora).
Nesta mesma perspectiva, Bakhtin (2003:279), afirma que

as obras [...] dos diferentes gêneros [...] a despeito de toda a diferença


entre elas e as réplicas do diálogo, também são, pela própria natureza,
unidades da comunicação discursiva: também estão nitidamente
delimitadas pela alternância dos sujeitos do discurso, cabendo observar
que essas fronteiras, ao conservarem a sua precisão externa, adquirem
um caráter interno graças ao fato de que o sujeito do discurso – neste
caso o autor de uma obra – ai revela a sua individualidade no estilo, na
visão de mundo, em todos os elementos da idéia de sua obra. Essa marca
da individualidade, jacente na obra, é o que cria princípios interiores
específicos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo
46

de comunicação discursiva de um dado campo cultural: das obras dos


predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras da mesma
corrente, das obras das correntes hostis combatidas pelo autor, etc.

O argumento de Lajolo no que diz respeito à intertextualidade contribuiu também para a


escolha do reconto, na medida que me interessava, como professora, mediar a apreensão
das relações de significação entre textos, como condição do processo de revisão pelas crianças.
Assim, foi lido pela classe toda o texto “A colcha de retalhos” (1995), dos autores
Conceil Corrêa da Silva e Nye Ribeiro Silva, que em seguida foi recontado em duplas.
47

N os finais de semana, Felipe vai para a casa da vovó. É uma delícia! Vovó sabe fazer bolo de
chocolate, brigadeiro, bala de côco, pão de queijo... enfim, sabe fazer tudo que Felipe gosta. E lá não
tem esse negócio de “hora de comer isso, hora de comer aquilo... hora de brincar, hora de dormir...”
Vovó sabe contar histórias como ninguém.
- Conta mais uma, vovó. Só mais uma!
Vovó coloca os óculos bem na ponta do nariz, faz uma cara engraçada e fala bem fininho e
fraquinho, imitando a voz da Chapeuzinho Vermelho, e bem grosso e forte, imitando a voz do lobo
mau. Ah! Quem é que não gosta de uma vovozinha assim?
Um dia, quando Felipe chegou à casa da vovó, entontrou uma porção de pedaços de tecidos
espalhados pelo chão, perto da máquina de costura onde ela estava trabalhando.
- O que é isso, vovó?
- São retalhos, Felipe. Fui juntando os pedaços de pano que sobravam das minhas costuras e,
agora, já dá para fazer uma colcha de retalhos. Vou começar a emendá-los hoje mesmo.
- Posso ajudar, vovó?
- Está bem. Então vá separando os retalhos para mim. Primeiro só os de bolinhas, depois os de
listrinhas...
Felipe esparramou tudo pelo chão e foi separando-os um a um. Tinha pano de florzinha, de lua
e estrela, de bolinha grande e bolinha pequena, listrado, xadrez...
- Olha esse pano listrado, é daquele pijama que você fez para mim quando a gente passou aqueles
dias no sítio, lembra?
- É mesmo, Felipe, estou me lembrando. Que férias gostosas! Andamos a cavalo, chupamos
jabuticaba... As jabuticabeiras estavam carregadinhas!
- E olha esse pano xadrez, que bonito vovó!
- É daquela camisa que eu fiz para você dar ao seu pai, no dia do aniversário dele. Sua mãe
fez um jantar gostoso e convidou todo mundo.
- Ah! Eu me lembro! Veio o tio Paulo, o tio João, a tia Josefina, veio a Cecília e até o Rex,
para brincar com o meu cachorro, Apolo. Parece que um deles fez xixi na cozinha e o outro fez
cocô no quintal, né?
- Seu pai ficou tão bonito! E assoprou as velinhas, todo vaidoso, de camisa nova.
- É mesmo! Mas ficou muito bravo com os cachorros.
- Olha, Felipe, esse retalho aqui. Não é daquele vestido que eu fiz para a sua mãe ir a uma festa de
casamento? Sabe, quando a sua mãe era pequena eu fazia uma porção de vestidos para ela. E gostava
também de bordá-los. Uma vez eu fiz um vestido cor-de-rosa, inteirinho bordado com a branca de
neve e os sete anões. Quando o vestido ficou pronto, ela falou assim::
- Ué, mamãe, está faltando a bruxa!
- Vovó, esse pano azul-marinho está com cara de Vó Maria.
- Era dela mesmo!
- Vovó Maria mora lá no céu, né? Junto com o vovô Luiz e o meu cachorrinho Apolo... Ué, vovó,
você está chorando? O que aconteceu?
48

- Não, - disse a vovó fungando e limpando o nariz com o lenço – não estou chorando, não.
- Ah, vovó! Você não disse que nós somos amigos? Então, me conta o que está acontecendo.
Você está triste?
- É a saudade, Felipe. É a saudade...
- Saudade dói, vovó?
- Às vezes dói. Quando é saudade de alguém que já foi embora para nunca mais voltar...
- Ah!
- Mas existem outras saudades: de um passeio gostoso, de uma viagem, de uma festa, de um
amigo, de uma amiga, de um parente que mora longe...
- Vovó, acho que eu ainda não entendo nada de saudade.
- Eu sei. A gente só entende bem das coisas que já experimentou. Talvez ainda seja muito cedo
para você entender dessas coisas... Felipe, me ajuda aqui. Vamos ver como é que está ficando a nossa
colcha de retalhos!
- Que bonita, vovó! Um dia você faz uma para mim também?
Depois de algum tempo, Felipe nem se lembrava mais da colcha de retalhos. Um dia, ao voltar da
escola...
- Felipe! A vovó mandou uma surpresa para você!
- Uma surpresa para mim? Onde?
- Está lá em cima da sua cama.
Felipe entrou no quarto correndo. A colcha estava esticada sobre a sua cama. Que linda! Mas não
era uma colcha como essas que se vendem nas lojas. Cada retalho tinha uma história.
Ali, deitado sobre a colcha, Felipe passou algum tempo lembrando-se de uma porção de histórias.
Observou um retalho de brim azul...
- Foi quando o papai e a mamãe viajaram de férias e eu fiquei lá na casa da vovó. Um dia, fui subir
na jabuticabeira e levei o maior tombo. Ralei o joelho, fiquei com o bumbum dolorido e o short
rasgado... que vergonha! Vovó veio correndo lá de dentro. Me pegou no colo com carinho e, depois,
nesse mesmo dia, resolveu fazer um short novo para mim. E fez um short deste pano aqui, de brim
azul.
De repente, Felipe começou a sentir uma coisa estranha dentro do peito. E aquilo foi aumentando,
aumentando... Felipe foi atrás de sua mãe:
- Me leva na casa da vovó?
Não demorou nada e os dois já estavam chegando lá na casa da vovó. Tocaram a campainha e ela
veio lá de dentro.
- Parece que eu estava adivinhando que você vinha. Fiz um bolo de chocolate, do jeito que você
gosta!
- Vovó, vem aqui pertinho. Agora, me dá um abraço bem gostoso!
- Aconteceu alguma coisa, Felipe?
- Sabe, vovó... – cochichou Felipe, bem baixinho, no seu ouvido – preciso te contar um segredo:
eu acho que já entendi... agora eu já sei o que é saudade!
Imagens de fundo: Capa da obra e página 17. Silva, Conceil Corrêa da e Silva, Nye Ribeiro. A colcha de retalhos, Ed. Do Brasil, 1995.
49

Como professora, considerei, naquele momento, que a leitura, vivida em diferentes


condições de produção, poderia ser o eixo condutor de minhas mediações junto às crianças.
Em um primeiro momento, ao lerem a obra por mim escolhida para iniciarmos o processo
de produção textual, as crianças estariam, no papel de leitoras, construindo, com os autores,
a significação dos textos por eles escritos. Em seguida, ao recontarem esse mesmo texto,
estariam vivenciando com ele uma outra dimensão da leitura, uma vez que, como destacado
por Lajolo (op. cit.), o processo de significação atualizado no texto escrito estaria mediando
o processo de significação do texto a ser criado.
Posteriormente, ao ser lido por outra dupla de alunos, o texto criado tornar-se-ia
objeto de leitura e de produção ativa de sua significação. A leitura dessa versão seria
mediada, por sua vez, pela leitura do original, que deflagrou sua produção. Nesse
jogo, não só o encontro entre textos estaria sendo possibilitado aos alunos, como
também a explicitação de relações entre eles, que poderiam pautar os comentários e as
sugestões de possíveis revisões.
Nessa condição de leitura, diferentemente do autor da obra lida, que estava distante -
não era conhecido por seus leitores e já era portador de toda uma legitimidade conferida
pela publicação - os alunos estariam em contato com um texto produzido por alguém
próximo, inclusive em termos das posições sociais ocupadas, a quem poderiam se manifestar
de modo mais direto e informal, com a certeza de que seus comentários chegariam, de
fato, até o autor.
Ao voltar para as mãos de seus autores, os textos comentados instaurariam uma
outra condição de leitura. Os autores estariam re-encontrando seus próprios textos na
condição de leitores e essa leitura estaria sendo mediada pelo original lido, pelos
comentários e sugestões registrados por seus colegas na condição de seus leitores e por
suas intenções discursivas.
No encontro com os comentários dos próprios colegas, as crianças estariam
experimentando o sentimento de autoria, uma vez que no comentário do leitor sobre o texto
produzido, a relação entre aquele que escreve e aquele que lê se materializa, instaurando
o sujeito de autoria. Nesse sentido, estamos de acordo com Vygotsky e com Bakhtin, quando
dizem que o outro instaura o lugar de autoria na medida em que propicia àquele que
escreve a experiência de se reconhecer como autor.
Como autores, os alunos também seriam convidados a revisar seus textos, tendo em
conta as muitas referências de leitura acima destacadas. Mais do que solicitar que a criança
olhasse para o próprio texto na intenção de melhorá-lo, como fora a orientação dada na
segunda série, minha intenção era a de caracterizar o momento da revisão como um espaço
de interlocução entre o autor e o leitor de seu texto, em que se explicitassem as diferentes
compreensões, sempre possíveis, de um mesmo enunciado.
50

Assim, no decorrer da produção textual, cada criança experimentaria a dimensão


comunicativa da linguagem através do desdobramento de suas relações com os textos –
leitor, autor, comentarista e autor revisando o próprio texto.
Parece simples dizer que no processo de produção de nosso primeiro texto trabalhei com
a leitura, com a produção e com a análise da produção textual das crianças, o que implicou
leitura e produção novamente. Isso tudo de fato aconteceu, porém, somente no percurso
fui percebendo toda a complexidade das relações envolvidas no processo de construção de
textos, entendendo, com Lajolo (1988), que o texto apenas existe quando há o encontro
entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê.

Do ideado ao acontecido: o desenvolvimento do trabalho


Segundo Vygotsky, quando alguém aprende uma palavra nova, o desenvolvimento
dessa palavra, nesse alguém, está apenas começando, porque aprendizado e
desenvolvimento não coincidem, como já se disse, como um objeto e sua sombra. Esse
princípio explica algo que às vezes nos escapa: o desenvolvimento é um processo que
envolve tempo, elaborações, transformações.
Entre a apropriação de conhecimentos por uma professora, a elaboração dos sentidos
por ela apreendidos e sua materialização em atos na dinâmica das relações de ensino,
vive-se todo um processo ativo de compreensões, que leva tempo e envolve encontros e re-
encontros, em contextos diversos, com aquilo que se está elaborando, e tentativas de ação,
que a aproximam, e também a distanciam, dos sentidos que deseja ver materializados.
Há, portanto, todo um percurso entre o compreendido e idealizado e o trabalho
pedagógico efetivamente produzido. Vamos a ele.
Após a leitura, as crianças relataram o que haviam entendido sobre o texto e como
poderiam contá-lo por escrito. Em seguida, em duplas, iniciamos o trabalho de escritura,
durante o qual as crianças solicitavam-me orientações quanto às dúvidas que surgiam: “Tia,
precisa contar todos os detalhes da história na hora de escrever?”, “Tia Cláudia, como eu
escrevo a palavra lembranças?”, “O texto precisa ser bem comprido ou pode ser mais curto?”.
Mais do que privilegiar as formas da língua, procurei vivenciar com as crianças, através
de minhas mediações, aquele momento de interação verbal em ligação com as condições
concretas de realização daquela produção textual.
Como destaca Lajolo (1988:60):

de um texto escrito, o que talvez possa ativar a produção de outro texto


igualmente escrito é exatamente sua condição de ser escrito. Explico
melhor: da mesma forma que as atividades que envolvem um texto a ser
trabalhado por seus leitores precisam decorrer de uma concepção que
veja o texto como globalmente significativo, é igualmente importante que
as atividades que visem à produção do texto sejam também fundadas
numa concepção que privilegia, não o texto redigido, mas o ato de redigir.
51

Primeira versão do texto produzido por Le e Fe.


52

Passados alguns dias, depois de prontos os textos em sua primeira versão, problematizei
com as crianças, a idéia de revisão: será que na primeira escritura nosso texto já fica bom?
Para que a gente escreve, não é para que alguém leia o nosso texto?
As crianças consideraram minhas indagações: “Os textos sempre podem ser melhorados
(Rê).” “Sempre tem o que melhorar no texto, mesmo que ele já esteja bom, a gente pode
até mudar as idéias (Má).”
Assim, entreguei os textos de volta, para cada uma das duplas de crianças, sem nenhuma
observação, comentário ou apontamento feito por mim e pedi que olhassem para aspectos
que pudessem ser melhorados.
Apesar de ter deixado na mão das crianças os critérios para melhorar os textos, eu tinha
claro que a revisão poderia ser especialmente difícil para elas.
Góes (1997:102) destaca que

a revisão parece especialmente difícil para a criança pequena porque


envolve um julgamento sobre o processo de criação do texto, o que
implica assumir um ponto de vista objetivo sobre os próprios
pensamentos e sentenças

e diz que o grau de reflexividade em crianças desta faixa etária ainda não se encontra tão
refinado. Os alunos preocupam-se mais com o que vão dizer do que com o modo de o dizer.
Tendo em conta essas dificuldades, minha intervenção se fez presente antes que as
crianças entrassem nos próprios textos. Assim sendo, fiz comentários sobre diversos textos
dos próprios alunos. Para tanto, selecionei alguns deles, dos quais li vários trechos,
apontando elementos que poderiam ser modificados de modo a facilitar sua leitura e a
compreensão das possíveis intenções de seu autor. Nos destaques feitos por mim, procurei
dirigir-lhes a atenção para os modos de dizer presentes nos textos.
Na seqüência organizei uma atividade para que a classe fosse realizando enquanto eu chamava
dupla por dupla para ensinar-lhes alguns procedimentos de revisão de texto, tais como riscar trechos,
fazer marcas sinalizadoras, incluir palavras etc. Orientei-os também para que não apagassem nada,
para que não perdêssemos a escrita inicial. Procurei direcionar o olhar das crianças, através de
“pistas”, para os modos de dizer escolhidos por elas ao escreverem e como substitui-los por outros.
Em alguns textos eu destaquei a paragrafação, em outros a seqüência em que foram
desenvolvidos os episódios da narrativa. Houve duplas que omitiram fatos importantes
na seqüência narrativa, o que fez com que determinadas informações parecessem “saídas
do nada”. A esses alunos, solicitei que relessem o parágrafo e que procurassem as
informações no livro para verificarem se realmente não faltava nada.
Depois de minhas orientações as crianças voltaram aos seus lugares, trabalharam sobre
os textos, discutiram as idéias que eu havia sugerido, levando-as em conta ou não, e
passaram a limpo a nova versão obtida.
53

Primeira revisão realizada pela dupla de autores: Le e Fe.


54

Primeira refeitura do texto, ou seja, a segunda versão realizada pelos próprios autores,
Le e Fe.
55

Com esta atividade, mesmo sem ter clareza disso naquele momento, possibilitei que
meus alunos voltassem sua atenção para a forma escrita da língua. Sobre este aspecto,
Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997:23) consideram que a

contemplação da forma escrita da língua faz com que o sujeito passe a


refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas vezes, a manipulá-
la conscientemente, de uma maneira diferente da maneira pela qual
manipula a própria fala.

Ao me reencontrar com a nova versão dos textos das crianças, pude notar que algumas
delas encaminharam parte das minhas sugestões. Outras não modificaram quase nada,
justificando que encontraram poucos problemas a serem resolvidos nos seus textos.
Góes (1997), em estudo realizado na década de 90, sobre o desenvolvimento na criança
da capacidade de fazer propostas de compreensão e de ações sobre a linguagem na
produção da escrita, pesquisando junto a crianças de 2ª, 3ª e 4ª séries, na faixa etária de
oito a 13 anos, identificou um modo de atuação das crianças em relação aos seus próprios
textos bastante semelhante a esse que eu identifiquei em meus alunos. Em seu estudo, Góes
analisa que no procedimento de explicitação em duplas as crianças acabavam concluindo
que tudo estava claro porque a ambigüidade se desfazia no diálogo entre os pares.
De fato, pude observar que entre si, as crianças se justificavam oralmente e muitas vezes
nem mexiam no texto.
No caso das minhas sugestões, enquanto voz de professora, as crianças, embora
negociassem sentidos oralmente comigo, procuravam corresponder em parte às solicitações
e sugestões que recebiam. Atribuo essa diferença no tratamento dado às sugestões feitas
por seus pares e àquelas feitas por mim, à relação de poder que pauta os lugares sociais de
professora e alunos. Essa relação é marcada pela autoridade que o professor representa
para o aluno: a autoridade de adulto experiente, de adulto leitor, de adulto que escreve, a
autoridade de conhecimento perante os olhos das crianças.
Para a criança o adulto é a autoridade que tem o domínio das práticas culturais, da
tradição. Como analisa Cristofoleti, recorrendo a Hannah Arendt, é o saber do professor
que lhe dá autoridade (Cristofoleti, 2003).
Após esta primeira re-estruturação dos textos, decidi trocá-los entre as duas classes, de forma a
que os alunos da 3ª série A fossem os leitores e comentadores dos textos da 3ª série B e vice-versa.
O que pensei naquele momento, como professora, intuitivamente, foi que a troca de textos entre
as classes possibilitaria uma relação mais distanciada do leitor em relação ao autor, obrigando as
crianças a apresentarem por escrito as suas sugestões.
Para iniciar a atividade, sugeri às crianças a importância de se proceder a mais de uma
revisão e perguntei-lhes se os olhos de outra pessoa poderiam ajudar a encontrar outros
aspectos do texto a serem revistos.
56

As crianças disseram que, sem dúvida, o outro que vai ler é que vai saber se dá para
entender o texto.
Assim, em duplas, as crianças das duas classes leram os textos dos colegas com olhos de
quem vai ajudar a melhorar, buscando reconhecer neles, como destaca Lajolo (1988) ao
definir leitura, “o tipo de leitura que seu autor pretendia...”.
Ao final da leitura realizada, cada dupla deixaria uma mensagem dizendo: “O que está
bom” e “O que pode ser melhorado”, procurando “dar pistas” para os autores do que
poderia ser revisto no sentido de que o leitor entendesse o texto com mais facilidade.
57

Sugestões deixadas aos autores Le e Fe, pelos colegas leitores do texto.


58

Analisando as primeiras sugestões de revisão e comentários feitos pelos alunos ao texto


de seus colegas, em nossas primeiras experiências de re-estruturação, percebi que o olhar
das crianças voltava-se para algumas das convenções de registro da língua, em especial a
norma ortográfica, e para o traçado das letras.
Na atividade proposta todas as duplas de leitores elencaram palavras escritas com
ortografia incorreta e sugeriram a forma padrão aos colegas produtores dos textos. Percebi
também, que através dos comentários realizados as crianças encontravam algumas
dificuldades em ler o que os colegas haviam escrito, e se referiram à categorização gráfica10
das letras (Massini-Cagliari e Cagliari, 1999), conforme os comentários apresentados a
seguir, feitos pelas duplas leitoras dos textos produzidos.

“O que pode ser melhorado:


1- a letra
2- os acentos
3- não tem vírgulas”.

“O que pode ser melhorado:


1) feche a letra a
2) melhore o S”.

“O que pode ser melhorado:


Sua letra, você pode melhorar um pouco mais as suas frases, você precisa colocar
as suas letras na linha porque suas letras estão ‘com asas”.

“O que está bom:


Está bom o terceiro parágrafo achei que você foi bem claro, mas algumas
palavras você poderia ter prestado um pouco mais de atenção. Todos os
parágrafos não estão muito grandes e sua letra está legível”.

“O que está bom:


A letra está pequena mas dá para entender”.

“O que está bom:


Deu para entender a letra e vocês prestaram atenção”.

10
Segundo esses autores, as letras envolvem duas categorizações: a categorização gráfica, que pode ser observada a partir das
muitas maneiras de se traçar uma letra e dos aspectos comuns que a respectiva letra apresenta ao ser traçada das mais diferentes
maneiras, e a categorização funcional, que se refere ao valor que cada uma das letras tem dentro do sistema de escrita, ou seja, com
a posição que uma mesma letra ocupa em diferentes palavras e o som que representa. Nesse sentido, dizem os autores que se a letra
não é identificada, não se pode ler, ou se produzirá uma leitura errada.
59

“O que deve ser melhorado:


Abrir o F e escrever o S direito porque parece um R e fechar o P. Escrever um
pouco mais forte”.

“O que está bom:


Nós não encontramos quase nenhum erro, só 1 erro ortográfico”.

Essa recorrência chamou-me a atenção. Por um lado, indiciou-me que a atenção das
crianças a essa dimensão da escrita já estava consolidada. Por outro, levou-me a perguntar
por que as crianças detinham-se tanto nessas questões.
Embora em meus comentários e indicações de re-estruturação para as crianças eu não
descuidasse dos aspectos ortográficos e gramaticais presentes nos textos, eles me pareciam
mais pontuais, a exigirem um trabalho de sistematização muito mais fácil de conduzir do
que as questões de ordem discursiva.
Assim, mesmo tendo clareza, desde o início, de que a ortografia seria tematizada na re-
estruturação textual, voltei-me com mais atenção a ela. Procedi a um levantamento minucioso
dos padrões de ortografia das duas turmas, tendo em vista uma programação, para o ano,
com essa dimensão da língua escrita em sua relação com a reflexividade, foco de meus
objetivos junto às crianças.

No jogo das letras e palavras


Estudando sobre essa questão, fui me dando conta de que a ortografia é importante
elemento de reflexão sobre a própria escrita, sobretudo na fase inicial de sua utilização
como linguagem.
Se para nós, adultos habituados ao uso da escrita, as questões ortográficas automatizam-
se, o mesmo não é verdadeiro para seus usuários iniciantes. As crianças apresentam
várias dúvidas em relação aos modos de grafar as palavras, dado que nossa escrita não
é, como muitas vezes ainda insistimos em sugerir a elas, a representação gráfica da fala
(transcrição fonética).
Segundo Cagliari (1999:64)

para se compreender devidamente o que é a ortografia, é preciso saber


o que é a escrita e como funciona, porque a ortografia é apenas um dos
usos de um tipo de escrita chamado ‘alfabético’. E esse é apenas um dos
tipos de escrita que usamos na sociedade.
60

Tendo em vista a leitura, em decorrência de fatores histórico-socias, tais como a divulgação


da imprensa, a escolarização universal e os meios de comunicação de massa, configurou-
se a idéia de ortografia como normativa imutável. De acordo com Morais (1996), se no
caso do castelhano a fixação de uma ortografia ocorreu no século XVIII, em outras línguas,
como o português, essa fixação só ocorreu no século XX, sem que até o momento se tenha
adotado uma normativa ortográfica única para todos os países em que se fala português.
E ainda segundo Morais (1996:67), se

o estabelecimento da norma única facilitou a leitura [...] As vantagens


para a leitura complicaram a escrita da língua. Quando a norma escrita
está estabelecida, a única possibilidade para os usuários é aprender a
reproduzi-la.

No “jogo” de letras e palavras, implicado na escrita alfabética, muitas vezes as crianças


que já compreenderam esse sistema de escrita - reconhecendo a variedade interna nas
grafias que usamos nas palavras; as letras permitidas em nossa língua e a seqüência em
que podem ocorrer; a representação entre letras e partes sonoras das palavras; os valores
sonoros que as letras podem assumir em nossa escrita (Morais,1999) – ainda assim
desconhecem as normas ortográficas.
Assim sendo, a criança em sua relação de usuário iniciante tem uma série de dúvidas em
relação à grafia de algumas palavras, e essas dúvidas a atrapalham no curso do próprio
processo de dizer o que deseja por escrito.

Para o escritor novato, a tarefa de redação de um texto implica uma


sobrecarga cognitiva: selecionar e articular idéias, selecionar a forma
retórica para expressá-las e representá-las sob a forma ortograficamente
correta. Assim, torna-se compreensível que freqüentemente encontremos
mais erros nas produções espontâneas das crianças do que em seus
ditados. Além disso, [...] a possibilidade de corrigir erros é também
influenciada pela autoria do texto: tal possibilidade torna-se mais evidente
quando se trata de um texto alheio do que quando temos de reconhecer
os erros em nossos próprios escritos (Morais, 1996:68).

Nesse sentido, destaca Cagliari (1999-82), “primeiro, a criança precisa aprender a lidar
com a escrita e, depois, preocupar-se em escrever ortograficamente”. Ou seja, ela pode
“escrever alfabeticamente sem levar em conta a ortografia, mas depois será preciso fazer
com que essa escrita passe para a forma ortográfica” (Cagliari, 1999:79).
Como conduzir a criança nesse processo? Mais do que um treino mnemônico das
regras – aprender a norma não é só uma questão de memória (Morais, 1999) – os
lingüistas consideram que a apropriação das normas ortográficas envolve um exercício de
atenção, consulta e sistematização que vai permitindo ao usuário da língua escrita formular
alternativas e antecipar soluções diante das dúvidas que surgem durante o próprio processo
da escrita, assim como daquelas que aparecem quando nos voltamos para o texto já
concluído e nos dispomos a revisá-lo.
61

Para tanto, destaca Cagliari (1999:83), “o professor precisa ficar à disposição dos alunos
para esclarecer todas as dúvidas”.
Assim, durante os processos de re-estruturação do texto procurei colocar-me como fonte
de consulta para meus alunos, que ao se depararem com as listas de erros ortográficos
encontrados pelos colegas, solicitavam-me esclarecimentos constantemente.
Ao entrarem em contato com as sugestões ortográficas que os colegas haviam feito, as
crianças grifavam as palavras erradas no texto (pedi que não as apagassem para que não
perdêssemos o registro) e logo acima as escreviam de modo ortograficamente correto, não
sem antes me consultarem.
Ao ser questionada pelas crianças, em alguns momentos eu escrevia as palavras em que
havia dúvida na lousa ou na própria folha em que as crianças estavam escrevendo. Em
outros momentos a própria criança escrevia a palavra na lousa e perguntava se aquela
forma era a correta. Quando não estava correta, eu ou outro colega de sala dizíamos
como deveria ser e a criança corrigia a palavra, deixando-a escrita ali. Em outros momentos
ainda eu consultava o dicionário, mostrava à criança e pedia que ela a escrevesse na
lousa. Minha intenção ao fazê-lo, era a de que percebessem que o dicionário é uma
importante fonte de consulta.
Quanto ao ato de escrever as palavras na lousa, utilizei este procedimento, tanto porque
muitas das dúvidas eram recorrentes entre as crianças, quanto para disponibilizar a elas um
material para consulta, sem a necessidade de parar a atividade para perguntar, caso algum
colega já o tivesse feito.
Assumindo, ainda, com Cagliari (1999:84), que “a simples produção de textos
espontâneos não leva ninguém a escrever ortograficamente e é preciso trabalhar os textos
espontâneos em versões subseqüentes, até chegar à forma final” e que “a ortografia é um
objetivo a ser conseguido no decorrer das oito séries do Primeiro Grau” (Idem: 93.
Destaques meus), com o qual o professor deve tomar cuidado, eu procurei documentar, a
partir das produções dos alunos, como eles estavam lidando com a dimensão ortográfica
da escrita, quais as dificuldades maiores que estavam enfrentando, o que acertavam ou
erravam com menos freqüência para, desse modo, programar melhor minhas mediações.
Procurei acompanhar também os efeitos de minhas mediações na produção das crianças.
Que efeitos da correção, da análise e da sistematização das questões ortográficas apareciam
nos textos das crianças?
O registro sistemático dos erros apresentados pelos alunos nas diferentes versões de um
mesmo texto tornou-se parte do próprio processo de ensino, na medida em que possibilitou
à professora levantar indícios, nas produções das crianças, da mediação de seu trabalho
junto a elas. Até que ponto e como, aquilo que se planejou e implementou durante as aulas
afetava os alunos em suas práticas de escrita? Diante desses efeitos, como continuar esse
trabalho? Como avançar na consolidação das normas ortográficas ou como retomar e
propor atividades que conduzissem a ela?
62

O procedimento de registro configurou-se da seguinte forma: a cada etapa da produção


do texto eu fazia um levantamento dos erros ortográficos em que as crianças haviam incorrido.
De posse dessas palavras, elaborava uma tabela, enumerando, por versões, os erros feitos.
Esse levantamento possibilitava-me uma visão geral dos erros ortográficos que meus
alunos vinham apresentando e de suas reincidências, contribuindo decisivamente para a
tomada de decisões quanto às mediações e sistematizações necessárias às próximas
produções que realizaríamos.
Na tabela seguinte apresento exemplos de erros encontrados em nossa primeira produção,
em suas três versões.

Ao estudar os erros ortográficos feitos pelas crianças eu passei a “verificar em que medida
o rendimento ortográfico observável – que aparece externamente na folha de papel, traduzido
em erros e acertos – tem [tinha] a ver com o nível de conhecimentos que o aluno elaborou
internamente sobre a norma ortográfica” (Morais, 1999:38), uma vez que várias crianças
que cometeram alguns erros semelhantes aos de seus colegas eram capazes de corrigi-los
no texto alheio.
Frente a esse indicador formulei a suposição de que muitos dos erros de meus alunos
seriam ocasionais, isso se justificava devido ao fato de que esses erros foram desaparecendo
nas versões finais.
63

Mas percebi também que alguns dos erros permaneciam de forma mais recorrente,
como por exemplo, nas palavras “colcha” (“concha”, “conconcha”, “coucha”); “disse” (“dice”,
“dise”); “em cima” (“emcima”, “encima”, “ensima”); “férias” (“ferias”); “pediu” (“pedio”);
“saudade” (“saldade”, “saldades”, “saudade”, “saudade”, “saudades”); “separando/
separavam” (“ceparando”, “separavão”).
Possenti (2002:44) nos ensina que “há duas maneiras de contar erros: uma é contar os
erros individualmente, sem classificá-los; outra é contar tipos de erros, isto é, contar erros
classificando-os”. Era preciso analisá-los e classificá-los, pois frente a erros distintos seriam
feitas distintas formas de mediação.
Recorrendo aos estudos de Morais (1996, 1999) e aos estudos de Cagliari (1999) sobre
ortografia, elenquei algumas categorias que me orientaram na classificação dos erros.
Destaquei como focos de minha atenção, aquilo que Morais (1996:72) denomina como
“as tradicionais categorias de substituição, omissão, adição e deslocamento de letras,
acentuação e segmentação de palavras” e também erros relativos às categorias gráfica e
funcional das letras (ver nota nº 10 à p. 58). As categorias de substituição, omissão,
adição e deslocamento de letras, como a própria nomenclatura indica, dizem respeito ao
posicionamento das letras dentro da palavra. A categoria da segmentação entre palavras
refere-se à separação convencional entre elas.
Inicialmente minha atenção voltou-se para as questões de segmentação, substituição,
omissões e acréscimo de letras.
Como exemplos de segmentação de palavras, pude elencar as seguintes:
64

Ao observar o quadro, pude perceber que, mesmo no que se refere a segmentação das
palavras, é possível identificar diferenças entre os seus usos. O que me chamou a atenção
foi que as incidências maiores em termos da segmentação ocorreram nos casos de adjuntos
adverbiais de tempo e lugar, expressões compostas por duas palavras de uso corriqueiro na
língua, bem como no uso dos verbos seguidos de pronomes - os casos de ênclise.
Quanto aos adjuntos adverbiais, compostos por duas palavras, tais como: em cima, às vezes, de
novo, de repente, algum tempo, cuja grafia é objeto de equívoco mesmo entre adultos usuários
habituais da escrita, procurei destacar para meus alunos a forma correta de grafá-las.
Evidenciou-se que o uso do pronome após o verbo gerava confusão. As crianças estavam
em fase de elaboração do uso dessas expressões, e nesse caso, fui mostrando, gradativamente,
a lógica dessa forma de utilização da língua, sem esperar, nesse momento, que sua
compreensão fosse mais apurada ou mesmo que fosse consolidada pelas crianças, o que se
indiciaria na superação definitiva da aglutinação verbo-pronome, por entender tratar-se de
um aspecto da língua a ser trabalhado ao longo das oito séries do ensino fundamental.
Chamaram-me a atenção também dois outros fatos. O primeiro é de que em uma
terceira série as incidências de aglutinação dos artigos com os substantivos são pouco
recorrentes, tornando-se praticamente insignificantes, o que indicia que o processo de
elaboração dessa relação artigo-substantivo já está mais consolidado para as crianças.
O segundo fato que me chamou a atenção, ainda que sua freqüência tenha sido baixa,
foi que algumas crianças juntaram palavras, em expressões compostas, por exemplo:
“tambémse”, “foipegando”, “subicorrendo”. Dada a sua baixa incidência eu destaquei
que se escreviam separadamente, por considerar, com Góes e Smolka, que ao escrever,
muitas crianças tendem a fazer “ligações a partir de blocos significativos, geralmente
relacionados ao ritmo e entonação da fala (“erumavez”, pufavor”, “porcaso”, derepente”,
quepassarinho bonito”)” (Góes e Smolka, 1993:55).
Embora na imediaticidade das relações de ensino eu não soubesse explicar
lingüisticamente essas ocorrências, como professora foi de fundamental importância enxergá-
las, e nelas reconhecer uma especificidade para, a partir delas, chamar a atenção das
crianças nos momentos de re-estruturação do texto. Por serem expressões muito utilizadas,
tive várias oportunidades de voltar a elas em nossos trabalhos de revisão textual.
Mesmo não recorrendo a regras gramaticais ou ortográficas, foi possível, no decorrer
do trabalho com a re-estruturação de textos, destacar para as crianças a forma de grafar
tais palavras e expressões.
Segundo Possenti (2002),

saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se
aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e
sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento
(intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua.
(...) Resumidamente, pode-se dizer que saber uma gramática é saber
dizer e saber entender frases (Possenti, 2002:30-31).
65

Com relação aos casos de substituição encontrados, apresento o quadro a seguir:

Ao olhar para o quadro, o que se destaca são as substituições marcadas pela oralidade.
Com essa observação, pude considerar que crianças de terceira série, que já dominam o
sistema alfabético, estão, ainda, em fase de elaboração das normas ortográficas. É, portanto,
possível supor que tendam, conforme indicam Góes e Smolka, a “registrar os enunciados
com inúmeras marcas da fala: [a criança] não só registra palavras como fala (“muinto”,
“mulé”, “bassora”), como também liga e segmenta em função do significado e do ritmo da
fala” (Góes e Smolka, 1993: 55).
A maioria das substituições encontradas nas produções de meus alunos justifica-se por
grafarem as palavras da forma como as pronunciam. Fontana e Cruz (1997), referindo-se
a trabalhos de Smolka, explanam com clareza que

fala-se “ovu” e escreve-se ovo, fala-se “carru” e escreve-se carro, fala-


se “ratu” e escreve-se rato. Diante disso, a criança conclui: o que se
fala com u, escreve-se com o. Daí, “molhe”, em vez de mulher, como
também “ boraco”, em vez de buraco. A criança erra devido à
preocupação em acertar (supercorreção). Esse erro revela as
elaborações que ela faz acerca da relação entre a oralidade e a escrita
(Fontana e Cruz, 1997:216).

A criança se apóia na oralidade e como não há uma correspondência estrita entre


aquilo que dizemos e a forma como escrevemos, ela se vale dessa relação entre
oralidade e escrita. A escrita ortográfica é exatamente essa separação, essa
diferenciação, entre o registro da escrita e a oralidade, ou seja, a escrita não é a
mera transcrição fonética de letras que representam sons independentemente das
palavras (ortografia) (Cagliari, 1999).
66

Pude considerar que, no caso específico da palavra “respondeo”, até como contrapartida
ao apoio na oralidade, revela-se um possível caso de hipercorreção (Possenti, 2002) no
sentido de que, acostumada a ser corrigida pelo apoio na fala, quando se defronta com
situações em que as palavras são grafadas tal qual pronunciadas, a criança começa a
generalizar e duvidar do seu próprio conhecimento, usando, embora equivocadamente, a
regra já internalizada anteriormente.
Os casos de omissões que apareceram apresentam uma pequena incidência, e foram
omissões do tipo:

Considerei que as omissões de “chamava” por “camava”, “quarto” por “quato”, “quado”
por “quando” e “ninguém” por “niguém” foram ocasionais, pois não percebi nelas indícios
de que a criança estivesse em processo de elaboração.
No caso de “brigadero” e “jabuticabera”, indiciava-se, novamente, um apoio na
oralidade, conforme já explanado anteriormente e no caso da palavra “istórias”, cabe
destacar a análise de Cagliari (1999c:103) quando nos esclarece que

letras como o agá estão fora do princípio acrofônico e funcionam, na


verdade, como coringas. Por exemplo, em Português, o H em início de
palavras serve apenas como uma lembrança etimológica. (...) No meio
de palavras é o coringa que serve para modificar o som da letra anterior.

Vale destacar, também, que para Morais (1999), o emprego da letra H inicial é
considerado um caso de correspondência letra-som irregular, ou seja, não há regra que
ajude o aprendiz, ele precisará memorizar tais palavras.
Os casos de adição de letras que apareceram nos textos foram poucos, porém, foram
interessantes para nos ajudar a pensar no processo de elaboração das crianças.
67

Considerei esses casos como elaborações em processo porque, recorrendo a explicação


fornecida por Cagliari (1999c) sobre o fato de a letra agá no meio da palavra modificar o
som da letra anterior, supus que no caso das palavras “bolinhas” e “risquinhos”, as crianças
já tivessem percebido essa lógica de raciocínio, porém, ainda experimentavam qual letra
anterior formaria o som de [lh] e qual letra anterior formaria o som de [nh].
Abaurre (1996) destaca que é importante observar dados episódicos e assistemáticos da
relação da criança com a linguagem. Ao “flagrar o instante em que a criança demonstra
oralmente ou por escrito, sua preocupação com determinado aspecto formal ou semântico
da linguagem” (Idem:130), vamos nos dando conta da complexidade da elaboração da
escrita, experiência já apagada da nossa memória de aprendizes.
Mais evidente é o caso da palavra “cochichou”, que, mesmo sendo um caso de
irregularidade, (o som da letra X), que a criança precisaria memorizar como se escreve,
demonstra-nos, de uma maneira episódica e assistemática, que algumas crianças estavam
realizando tentativas de elaboração da ortografia desta palavra.
No caso de “quaiu”, por “caiu”, existe toda uma elaboração do uso da própria letra
que (Q), que, na escrita, sempre vem seguida da letra U. Neste caso, a criança está se
experimentando nas diversas formas de grafar um mesmo fonema, fazendo uso da letra
C ou do dígrafo QU, notando, ainda, o som de K em algumas palavras. Ao utilizar QU
para grafar a palavra “caiu”, a criança evidencia toda uma elaboração em torno do
fonema K em nossa língua.
Trago, ainda, alguns casos de acentuação de palavras que encontrei nas produções
das crianças.
68

É importante ressaltar que em relação à acentuação de palavras, as maiores incidências


foram de casos de omissão de acentos,

como se estes não fizessem parte dos critérios ortográficos dos alunos.
Esses resultados coincidem com os de López (1992), que também
constatou entre alunos espanhóis de oitava série de educação básica a
alta propensão a omitir acentos (Morais, 1996:73).

No entanto, Luh, um aluno que gosta muito das atividades de produção de texto, chamou-
me a atenção pela maneira como foi distribuindo acentos nas palavras. As correspondências
letra-som, para ele, eram muito marcantes, a ponto de acentuar quase todas as sílabas
tônicas das palavras, mesmo que tais sílabas não fossem acentuadas.
Este comportamento de Luh parece um indício da elaboração da tonicidade em sua
relação com a acentuação. As palavras excessivamente acentuadas sugeriam seus esforços
em desvendar os mistérios da acentuação.
Abaurre (1996), ao assinalar seu interesse pelo singular, o variável, o idiossincrático, o
cambiante, destaca que não se trata de deixar de lado o regular, o sistemático, o geral, mas
de reafirmar o interesse teórico pela

compreensão da relação de sujeitos singulares com uma linguagem cuja


singularidade, por muito tempo, foi colocada em plano secundário.
Recuperar, ‘teoricamente’ tais questões, implica necessariamente a
recuperação do lado ‘misterioso’ da linguagem, de seus sujeitos, e de
seus comportamentos idiossincráticos (Abaurre, 1996:137).

Tendo feito essas observações, frente a esses indícios manifestados por meus alunos, era
necessário compreender melhor como está organizada a norma ortográfica de nossa língua
no que diz respeito à notação gráfica das palavras, ou seja, que algumas correspondências
letra-som são regulares e, portanto, podem ser incorporadas pela compreensão, e outras
são irregulares, exigindo que o aprendiz as memorize. Ainda, segundo Morais (1999:27)
“erros semelhantes em sua aparência [...] têm naturezas diferentes”.
Com Morais (1999) aprendemos que existem três tipos de correspondências letra-som
regulares: regulares “diretas”, regulares “contextuais” e regulares “morfológico-gramaticais”.
Para esse autor os casos de regulares “diretas” são aqueles em que existe uma relação
biunívoca entre letra e som, os sons em questão são muito parecidos, como nas grafias de
P, B, T, D, F e V, os chamados “pares mínimos” (diferença em um traço da produção sonora).
Cagliari (1999) as denomina de letras “surdas/sonoras” e explicita que para aprendê-las
pode-se observar a fala, na maioria dos casos.
69

Nas produções textuais das crianças encontrei poucos erros referentes a esse tipo de
regularidade. Mais especificamente, duas crianças faziam esse tipo de troca de letras.

Os casos encontrados evidenciavam que os “pares mínimos” P e B, T e D já estavam


consolidados, uma vez que as trocas se efetuavam no par F e V.
Os casos de regulares “contextuais”, segundo Morais, são aqueles em que as relações
letra-som são explicitadas segundo o contexto, ou seja, o texto gráfico, onde um mesmo
som é notado com alternativas únicas, de acordo com sua posição na palavra (Morais,
1996,1999). Neste mesmo sentido, Cagliari (1999) explicita que algumas letras apresentam
dificuldades que dependem do contexto lingüístico e que, de modo geral esses casos podem
ser ensinados através de regrinhas.
Porém, observa o autor, “essas regrinhas valem como um todo e não diria, por exemplo,
que elas podem ser hierarquizadas numa seqüência de dificuldades progressivas, porque
isto não tem nenhum fundamento científico” (Cagliari, 1999:77). Fazem parte destes casos,
dentre outros, o uso de R ou RR, G ou GU, C ou QU, o uso do E ou do I no final das
palavras etc.11
Os casos de regularidades contextuais que apareceram foram:

11
Morais, Artur Gomes. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática, 1999. Nesta obra o autor apresenta quadros com casos de
regularidades “contextuais” e regularidades “morfológico-gramaticais”. Massini-Cagliri, Gladis & Cagliari, Luiz Carlos. Diante
das Letras: a escrita na alfabetização. Campinas, SP: Mercado de Letras & Associação de Leitura do Brasil – ALB, SP: Fapesp, 1999.
Nesta obra os autores apresentam casos ortográficos possíveis de se trabalharem com regrinhas.
70

Observando o quadro acima, foi possível perceber que, apesar da pequena incidência,
o uso das letras M e N marcando nasalidade nos finais de sílabas, ainda era um objeto de
elaboração entre as crianças. Sobre este aspecto, nota Morais:

A escrita das vogais nasais e dos ditongos nasais constitui uma grande
fonte de dificuldade para os aprendizes. Isso é compreensível se levarmos
em conta que na escrita do português existem cinco modos de ‘marcar’
a nasalidade [e o uso das letras M e N nos finais de sílabas marcam
apenas uma dessas maneiras] [...] Essa variedade de alternativas (no
sistema alfabético) explica por que, a princípio, as crianças têm tanta
dificuldade de adotar as formas corretas (Morais, 1999:30-31).

Com relação às palavras “agudar” (“ajudar”) e “agudou” (“ajudou”) novamente nos


defrontamos com a elaboração de grafias distintas para um mesmo som. Em meio à confusão
aparente, as crianças evidenciam-nos o quanto raciocinam sobre a escrita, comparando,
estabelecendo regularidades. Raciocínio encantador, que muitas vezes nos escapa como
professoras, ao corrigirmos suas produções.
O mesmo ocorre com a palavra correndo, quando “o som do /R/ ocorre entre duas
vogais como na palavra ‘guerra’. Neste contexto, o uso de um único ‘r’ corresponderá um
outro fonema da língua, o /r/, como na palavra ‘fera’” (Rego e Buarque, 2002:23).
A partir dessas análises, fui percebendo que meus alunos, crianças de terceira série,
estão manifestando em suas tentativas processos de elaboração da diferenciação entre o
que se fala (fonema, sons) e o que se escreve (grafema). As variações da fala, como nos
ensinam os foneticistas, são bastante grandes. Elas inclusive estão na raiz da criação de
uma ortografia homogeneizadora.

Os alunos que vão aprendendo a escrever, sabendo dessas coisas,


aceitarão com muito mais facilidade a explicação, segundo a qual se tem
que escrever de certo modo e não de outro, porque todos escrevem
ortograficamente. Vão aprendendo que há pronúncias diferentes para
uma mesma palavra na fala das pessoas, mas que todos escrevem essas
palavras com uma única forma gráfica, dentro do sistema ortográfico.
Os alunos que não recebem esse tipo de explicação não entendem direito
porque não podem escrever ‘do jeito que eles falam’ e, provavelmente
ficarão o resto da vida ‘chutando’ as letras nas palavras, para acertar a
ortografia (Cagliari, 1999:80).

O último grupo de correspondências letra-som regulares são os casos de regularidades


“morfológico-gramaticais”, casos que envolvem morfemas – partes “internas” que compõem
as palavras – ou seja, são “os casos em que a notação é única para aquelas palavras que
utilizam os mesmos elementos morfológicos na sua formação (prefixos, sufixos, partículas
de flexão verbal ou nominal)” (Morais, 1996:81). Para esses casos também é possível
estabelecer regras que ajudem os alunos a compreenderem “os princípios gerativos
vinculados à categoria gramatical das palavras” (Morais, 1999:34).
71

Encontrei como regularidades morfológico-gramaticais as seguintes grafias de palavras:

Com relação às regularidades morfológico-gramaticais, apareceram problemas de grafia,


sobretudo com relação às terminações verbais, o passado terminado em U e em AM.
Nesses casos há que se considerar que “para saber como se grafa uma palavra [...] a
criança precisaria perceber as conexões entre ortografia e gramática estabelecendo alguma
forma de diferenciar a função gramatical dessas palavras na frase, uma vez que todas essas
palavras [aparecem] [...] no contexto de uma frase” (Rego e Buarque, 2002:32).
Nesse sentido, destaco, mais uma vez, a necessidade de se trabalhar sistematicamente
com a ortografia durante as oito séries do ensino fundamental, visto que aspectos gramaticais
da língua vão se consolidando no decorrer desse período.
Em todos os casos analisados, é necessário lembrar que

os padrões ortográficos são úteis para quem já domina relativamente


bem a ortografia. Para o aluno que está no início de seu aprendizado da
escrita. [...] as regras valem pouco. Os alunos aprendem a escrever mais
facilmente encarando as palavras como um todo e não com relação à
estrutura do sistema ortográfico (Cagliari, 1999:77).

Além das regularidades, Morais (1999) nos esclarece que ainda temos um grupo de
palavras que não possui regras a serem entendidas. É o grupo de palavras com
correspondências letra-som irregulares. Nele, encontram-se, dentre outros, os sons da letra
S, o som do G, do Z, do X. O emprego do H inicial, a disputa do L com o LH etc. “Em todos
esses casos realmente não há regra que ajude o aprendiz. É preciso, na dúvida, consultar
modelos autorizados (como o dicionário) e memorizar!!” (Morais, 1999:35).
72

Apresento a seguir algumas correspondências letra som irregulares encontradas nos


textos das crianças.

Ao deparar-me com as palavras acima, fui percebendo que palavras como: “abraço”,
“começo”, “trouxe”, “lembrança” e “xadrez” evidenciavam as tentativas de elaboração das
crianças. “É necessário que conheçamos o que os ‘erros’ das crianças podem estar
representando nessa dura jornada de compreensão da língua escrita” (Monteiro, 2002:48).
73

Ao grafar os fonemas S/Z as crianças confundiam os diferentes grafemas correspondentes,


o que levou-me ao mesmo questionamento de Monteiro (2002): existe alguma diferença
em lidar com a regra na leitura e na escrita, uma vez que, ao lerem, as crianças eram
capazes de, por exemplo, fonetizar camisa com som de Z?
Para a grafia do fonema S, especificamente, existem regras contextuais às quais os alunos
podem recorrer,

entretanto, ao que parece, lidar com as identidades complexas ou com


padrões de regras contextuais tem sido algo bastante difícil não só para
quem aprende, mas também para quem ensina. [...] Alguns estudos
realizaram uma análise detalhada das relações entre grafemas e
fonemas e demonstram que estas são, por um lado, muito mais
complexas do que aparentam e, por outro, mais previsíveis do que se
espera (Monteiro, 2002:46).

Este tipo de regularidade, mais complexo que os anteriores, seriam as regularidades


que apresentam “relações cruzadas: a uma unidade sonora (/S/) corresponde mais de uma
unidade gráfica (‘S’, ‘Ç’), e uma unidade gráfica (‘S’) representa mais de uma unidade
sonora (/s/, /z/)” (Monteiro, 2002:48).
Encontrei-me novamente diante de casos episódicos, de sujeitos singulares, para os quais,
em suas relações com a linguagem, com o conteúdo e o contexto de produção de textos,
forma e conteúdo adquiriam uma saliência determinante dessas ocorrências, que por sua
vez, sinalizavam a singularidade dos próprios sujeitos (Abaurre, 1996).

Inúmeros estudos vêm demonstrando que os erros ortográficos não são


aleatórios e podem ser a expressão de um momento de busca na
compreensão das relativizações impostas pelo sistema (Monteiro, 2002:51).

Ao deparar-me com todas essas tentativas de elaborações - “erros” - de meus alunos, de


naturezas diferentes, fui propiciando a eles algumas atividades, paralelas ao processo de
produção de textos, nas quais pudessem refletir sobre as regularidades do sistema ortográfico,
ou seja, sobre as normas ortográficas.
Porém, na produção das crianças fui encontrando indícios de que eles se valiam pouco
das regras durante a produção do texto, uma vez que alguns dos erros que possuem regras
permaneceram nas produções subseqüentes das crianças. Ou seja, durante o trabalho
paralelo ao texto, nos momentos em que nos debruçávamos sobre as regras desse “jogo”
ortográfico, sobre a discussão deste conjunto de leis e articulações possíveis, impossíveis,
prováveis ou pouco prováveis, as crianças escreviam corretamente as palavras que estavam
sendo trabalhadas, mas durante a produção do texto, demonstravam que realmente se
prendiam à escrita não com relação à estrutura do sistema ortográfico, mas sim encarando
as palavras como um todo, confirmando o que nos aponta Cagliari (1999).
74

Considero que essas dificuldades só serão ultrapassadas e compreendidas pelas


crianças, gradativamente, se retomadas e trabalhadas pelos professores ao longo
das oito séries do ensino fundamental, pois

à medida que os alunos vão aprendendo a escrever mais e mais palavras


ortograficamente, vão percebendo que as relações entre letras e sons
podem deixá-los na dúvida diante da escrita de certas palavras, justamente
porque a pronúncia das palavras por si só não é suficiente para se chegar
às formas ortográficas (Cagliari, 1999:73).

Acredito, também, que será através do trabalho constante de leitura e escrita, na escola,
bem como das re-estruturações textuais, que o professor das séries iniciais poderá propiciar
momentos significativos para que os alunos se apropriem das regras ortográficas da escrita.
Sobre essa função docente, diz Possenti:

Na vida, na rua, nas casas, o que se faz é falar e ouvir. Na escola, as


práticas mais relevantes serão, portanto, escrever e ler. [...] Como
aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e
reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes,
com uma freqüência semelhante à freqüência da fala e das correções
da fala. É claro que o aprendizado não será muito eficiente se tais
atividades forem apenas excepcionais. Mas, se forem constantes, [...]
certamente seremos leitores e “escrevinhadores” sem traumas e mesmo
com prazer, em pouco tempo. [...] Ler e escrever são trabalhos. A escola
é um lugar de trabalho. Ler e escrever são trabalhos essenciais no
processo de aprendizagem. [...] A escola pode muito bem agir dessa
forma (Possenti, 2002:48-49).

Morais (1999), em estudo realizado com crianças de 2ª, 3ª e 4ª séries de escolas


pública e particular, considerou que as diferenças de desempenho ortográfico
estariam relacionadas a diferenças no nível de explicitação com o qual eles teriam
conseguido elaborar mentalmente seus conhecimentos ortográficos.
Ao constatar o rendimento ortográfico de meus alunos, crianças de uma escola
particular de classe média-alta, pude perceber uma semelhança com a pesquisa de
Morais, no sentido de sua constatação de que “os erros dos alunos da escola
particular se concentravam mais nas correspondências letra-som irregulares [...].
Os erros de correspondência letra-som foram, em sua maioria, uma conseqüência
de substituições de uma letra (ou dígrafo) por outra(o)” (Idem:42-43). Em minha
sala de aula pude perceber que na escrita das crianças foram freqüentes trocas ou
omissões que também correspondem a omissões freqüentes na oralidade.
75

Assim, com relação aos aspectos ortográficos dos textos produzidos, meu objetivo, ao
longo de todo o ano, foi o de contribuir para que, além da constatação dos equívocos
ortográficos, os alunos passassem a considerar as questões ortográficas como um momento
de aprendizado da língua escrita.
Nesse sentido, observo com Morais que

a revisão dos escritos foi uma oportunidade para duvidar das soluções
ortográficas que tinham adotado. Ainda que nem sempre a atividade de
autocorreção tenha produzido resultados bem-sucedidos, possibilitou a
introdução de um maior número de mudanças corretas que incorretas.
Parece mais importante, no entanto, reconhecer que as práticas de revisão
são um ingrediente para a formação, no aprendiz, de uma atitude mais
rigorosa para com a norma socialmente exigida no ato de escrever: levar
em consideração o leitor que lerá o texto; a consciência do papel da
norma enquanto convenção facilitadora da comunicação; e a consciência
da legitimação que a norma estabelece, assim como a consciência da
discriminação que a violação da norma acarreta (Morais, 1996:80).

Neste texto da dissertação, com o intuito de evitar repetições, optei por apresentar uma
análise mais detalhada do conhecimento e domínio da norma ortográfica apenas
relativamente ao primeiro conjunto de textos produzidos no ano.
Ao fazer uma análise mais detalhada das produções textuais que se seguiram pude
perceber que, os tipos de erros mantiveram-se, mas a quantidade de manifestações diminuiu.
Fui percebendo, ao longo do ano, que as crianças passaram a perguntar mais. Os
questionamentos giravam, principalmente, em torno de acentuação e da categorização
funcional das letras, isto é, das relações entre as letras e sons e do lugar que cada uma delas
ocupa nas palavras. “Tem acento nessa palavra? Onde é o acento, no primeiro ou no
segundo a?”, “Que letra eu uso pra escrever a palavra ‘tal’?”, “Tal’ palavra escreve com S
ou Ç?”, “O quê escreve junto ou separado?”, “Essa palavra escreve com um ou dois erres?”.
Essas enunciações e questionamentos, bem como tantas outras que ocorreram durante
os processos de produção e re-estruturação dos textos, indiciavam-me todo um processo
de elaboração das crianças referente às questões ortográficas da língua.
Ao longo do ano muitos desses erros continuaram se manifestando, mas também consegui
perceber, através das produções das crianças, os indícios dessas elaborações, tanto no
sentido de incorporação das informações que eu levava, quanto no sentido de que as
crianças passaram a perguntar mais, passaram a se preocupar mais em escrever corretamente
e a utilizar o dicionário, demonstrando perceber que essa era uma importante fonte de
consulta que poderiam utilizar de forma autônoma, sem precisarem depender sempre de
outra pessoa para a resolução de seus problemas ortográficos.
76

Embora a ocorrência de alguns erros tenha permanecido ao longo do ano, durante os


processos de produção dos textos pude perceber que as incidências foram menores. Isso
confirma que o tempo de instrução formal produz resultados positivos globais sobre o
conhecimento da norma ortográfica, como observa Morais, (1996).
Através do trabalho desenvolvido, como professora que pesquisa na sala de aula,
acredito que o dado mais relevante não foi tanto o quanto esses erros diminuíram, mas o
fato de a professora, juntamente com seus alunos, ir também desenvolvendo sua
reflexividade. Nesse processo fui percebendo que as crianças produzem reflexões muito
mais amplas do que os nossos olhos de professores conseguem enxergar. Elas acertam
mais do que erram, como destaca Possenti (2002), o que evidencia regularidades nas suas
formas de elaboração da escrita.
O fato de ter aprendido a classificar os erros encontrados nas produções dos alunos
possibilitou a mim mesma um novo olhar para esses erros e evidenciou a necessidade de
diferentes formas de mediação para os diferentes tipos de erros encontrados.
Nesse processo, a gramática passou a ser uma necessidade para mim -enquanto
professora - em minha formação isso não fora destacado. Fui estudando e percebendo os
vários conhecimentos, específicos e não específicos, do ensino de língua portuguesa, aos
quais foi preciso atentar para poder entender os processos de elaboração de meus alunos
e descobrir diferentes formas de mediar suas relações com a linguagem. Para isso, parti dos
indícios que os alunos me apresentavam, ou seja, das elaborações que estavam realizando.
Assim, os conhecimentos dos estudos da Lingüística se tornaram fundamentais para que
eu pudesse perceber que os indícios que apareciam no texto gráfico estavam para além do
texto em si; eles se encontravam nos questionamentos que as crianças faziam - não só para
a professora, mas também para os colegas de classe - bem como nas suas atitudes, que
guardavam uma relação com o além do que era dito e indiciavam formas de elaboração.
Comungando com Abaurre (1996), posso dizer que quando consegui enxergar o lado
misterioso da linguagem de meus alunos e seus comportamentos idiossincráticos consegui
perceber que apesar de a ortografia ser arbitrária e socialmente instituída, os alunos revelam
suas singularidades nas escolhas que fazem, nos percursos, nos modos de apropriação
dessas regras. Nessas escolhas a singularidade desses sujeitos se manifesta.
Nesse sentido, como destaca Morais (1999)

aprender ortografia não é um processo passivo, não é um simples


“armazenamento” de formas corretas na memória. Ainda que a norma
ortográfica seja uma convenção social, o sujeito que aprende a processa
ativamente (Idem:37).

As regras ortográficas, a professora – aquela que ensina a regra – o livro que a


legitima, a comunidade que a institui são os muitos “outros” que constituem a
singularidade desses aprendizes.
77

Com Barthes (1984) aprendi que nossas análises devem conduzir a ver menos o que
se encaixa nos modelos do que aquilo que os desmantela, devemos escutar o sutil
rumor da linguagem.
O que foi me deixando maravilhada foi o fato de conseguir ver no texto gráfico o “rumor”
da linguagem através das escolhas que meus alunos faziam. Passei a olhar mais para o que
não se encaixava nos modelos dessa nossa língua institucionalizada.
Através do “alvoroço” das letras grafadas nos textos, fui percebendo que as escolhas das
crianças indicavam possibilidades da língua, bem como elaborações em curso de seus
aspectos ortográficos.
Nesse processo passei a conceber que quando nos propomos aos estudos da linguagem
selecionamos os detalhes e indícios aos quais atribuímos particular significação, mas que
também precisamos estar abertos ao maravilhamento, à perplexidade que a singularidade
das escritas das crianças nos oferecem, para que possamos, como professores, mediar,
cada vez mais, a sua relação com essa linguagem.

Retomando o processo de revisão dos textos


Tendo assim configurado em suas grandes linhas o trabalho a desenvolver com relação
à ortografia, indaguei-me como iniciar e sistematizar com as crianças outros modos de
analisar lingüisticamente os textos, como conduzir essas análises em conjunto com as crianças,
destacando para elas, nas atividades de leitura que fizéssemos, detalhes relativos ao estilo
e à construção composicional. Havia que compartilhar com elas critérios de análise que
orientassem sua atenção para certas dimensões dos textos durante a leitura, de modo a
possibilitar-lhes “as implicações do caráter dialógico do ato de escrever, tomando, ao mesmo
tempo o dizer do texto como objeto de atenção e o leitor como um sujeito que constrói
sentidos a partir de pistas do texto” (Góes, 1997:104).
Nessa perspectiva, “a escrita envolve um momento que pode ser considerado de
pós escritura: a revisão”, e que, “as mudanças efetuadas [...] são uma resposta a
alguma observação feita pelo leitor (professor ou colega) ao texto ou parte dele”
(Fiad e Sabinson, 2001:55-59).
Iniciei a mediação do processo de revisão já no re-encontro das crianças com seus
textos após a leitura feita por seus colegas da outra classe. As duplas de autores fizeram,
então, uma releitura do texto e a leitura das sugestões dos colegas, analisando como
incorporá-las a uma nova versão de seu texto.
Durante a atividade circulei pela classe ajudando-os na seleção das sugestões e também
me colocando como o que Góes (1997) denomina de “representante leitor”, aquele
interlocutor imediato que aponta para os sujeitos as exigências de compreensão do leitor.
Propus que, tal qual haviam feito na primeira revisão, não apagassem nada do que havia
sido escrito anteriormente e que utilizassem o lápis para marcar as alterações que incorporariam
ao texto. Feito isto, as crianças passaram novamente o texto a limpo. Esta seria sua versão
final, a despeito de conter, ainda, alguns problemas textuais e também de ortografia.
78

Revisão do texto realizada pelos autores Le e Fe a partir das sugestões feitas pelos
leitores.
79

Revisão do texto realizada pelos autores Le e Fe a partir das sugestões feitas


pelos leitores.
80

Cabe aqui destacar que ao longo de todo o trabalho procurei ter claro, para mim mesma,
que meu foco de análise deveria ser o processo de produção, análise e reescritura do texto.
Assim, cada atividade de produção textual reuniria diferentes versões de um mesmo texto e
somente a comparação entre essas diferentes versões daria parâmetros do desenvolvimento
da atividade de escrita em cada aluno. Portanto, não se tratava de esgotar todos os aspectos
da escrita que requeriam revisão em apenas uma das produções. Eles estariam sendo
elaborados ao longo do ano. O que se fazia necessário era documentar quais os aspectos
da escrita que se iam consolidando e quais deles ainda necessitavam de novas intervenções.
Após a produção da versão final, cada dupla de trabalho avaliou tanto o texto por elas
produzido quanto seu desempenho ao longo da atividade de produção e revisão. Estas
foram feitas individualmente, visto que cada participante da dupla poderia ter opiniões
diversas das do companheiro, pois todo o processo envolvendo a tríade leitura/produção de
textos e análise sobre a escrita se constitui como um processo no qual o sujeito não passivo
busca “significações [...] que ele produz em situações dialógicas ilimitadas que constituem
suas leituras possíveis” (Authier-Revuz, J., Apud: Geraldi, 1997d:91). Assim sendo, cada
sujeito atribuiu sentidos singulares ao trabalho desenvolvido, sentidos esses que se enraizavam
na história das suas experiências com a leitura, com a escrita, enfim, com a vida.
81

Continuando a caminhada

Quem é esse menino?

A segunda produção textual do ano, realizada individualmente


A coletânea “A colcha de retalhos”, reunindo o processo de produção textual das
duplas – do texto inicial ao final, passando por suas re-elaborações – motivou
profundamente as crianças, que se sentiam produzindo um livro de verdade. Percebendo
que suas produções estavam tendo propósitos interativos efetivos, pois elas vinham
escrevendo para serem lidas por um público diverso – professora, colegas, pais –,
mostravam-se ansiosas para produzirem um novo livro.
Iniciei a nova proposta de produção textual, que nos acompanhou nos meses de
março, abril e maio, com a leitura do livro “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”
(1995), de Mem Fox.
82

E ra uma vez um menino chamado


Guilherme Augusto Araújo Fernandes
e ele nem era tão velho assim.
Sua casa era ao lado de um asilo de velhos
e ele conhecia todo mundo que vivia lá.
Ele gostava da Sra. Silvano que tocava piano.
Ele ouvia as histórias arrepiantes que lhe contava o Sr. Cervantes.
Ele brincava com o Sr. Valdemar que adorava remar.
Ajudava a Sra. Mandala que andava com uma bengala.
E admirava o Sr. Possante que tinha voz de gigante.
Mas a pessoa de quem ele mais gostava era a Sra. Antônia Maria Diniz
Cordeiro, porque ela também tinha quatro nomes, como ele.
Ele a chamava de Dona Antônia e contava-lhe todos os seus segredos.
Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe e seu pai
conversando sobre Dona Antônia.
- Coitada da velhinha – disse sua mãe.
- Por que ela é coitada? – perguntou Guilherme Augusto.
- Porque ela perdeu a memória – respondeu seu pai.
- Também, não é para menos – disse sua mãe – Afinal,
ela já tem noventa e seis anos.
- O que é uma memória? – perguntou Guilherme Augusto.
Ele vivia fazendo perguntas.
- É algo de que você se lembre – respondeu o pai.
Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então, ele procurou
a Sra. Silvano que tocava piano.
- O que é uma memória? – perguntou.
- Algo quente, meu filho, algo quente.
Ele procurou o Sr. Cervantes que lhe contava histórias arrepiantes.
- O que é uma memória? – perguntou.
- Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo.
Ele procurou o Sr. Valdemar que adorava remar.
- O que é uma memória? – perguntou.
- Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar.
Ele procurou a Sra. Mandala que andava com uma bengala.
- O que é uma memória? – perguntou.
- Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir.
Ele procurou o Sr. Possante que tinha voz de gigante.
- O que é uma memória? – perguntou.
83

- Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.
Então, Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar
memórias para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas,
guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera
todo mundo rir, e colocou-a na cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô
lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro;
por fim, entrou no galinheiro e pegou um ovo fresquinho,
ainda quente, debaixo da galinha.
Ai, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia
e deu à ela, uma por uma, cada coisa de sua cesta.
“Que criança adorável que me traz essas
coisas maravilhosas”, pensou Dona Antônia.
E então ela começou a se lembrar.
Ela segurou o ovo ainda quente e contou a
Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado,
que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho,
no jardim da casa de sua tia.
Ela encostou uma das conchas no ouvido e lembrou
da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo,
e como sentira calor com suas botas de amarrar.
Ela pegou a medalha e lembrou,
com tristeza, de seu irmão mais velho,
que havia ido para a guerra e que nunca voltou.
Ela sorriu para a marionete e lembrou
da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha,
que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau.
Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto
e lembrou do dia em que se conheceram
e de todos os segredos que haviam compartilhado.
E os dois sorriram e sorriram, pois toda
a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada,
por um menino que nem era tão velho asssim.

Imagens de fundo: Capa e contracapa da obra. Fox, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes, Ed. Brinque-book, 1995.
84

Escolhi essa história porque ela apresenta marcas lingüísticas específicas da narrativa,
tal como destaca Perroni (1992): um verbo no imperfeito introduzindo a abertura da história;
o uso de expressões como “daí, então, depois, um belo dia”, introduzindo a ação
propriamente dita, seção essencialmente narrativa; e fórmulas de fechamento da história.
Além dessas marcas lingüísticas, o texto apresenta uma expectativa, um conflito e um
encadeamento de ações, em um jogo de causa/efeito, próprio da narrativa, conforme
Siqueira (1992).
A produção escrita das crianças seria novamente um reconto. No processo de produção
e de revisão do primeiro texto delas, chamara minha atenção o fato de que as crianças se
prendiam excessivamente a inúmeros detalhes referentes à história lida, produzindo textos
bastante longos e, não conseguiam concluí-los, muitas vezes. Estudando, na busca de
encaminhamentos para essa questão, fui percebendo que a capacidade de síntese articula-
se à leitura. Rojo (2004), destaca que o processo de síntese de um texto está profundamente
articulado às capacidades da comparação e de generalização das informações do texto
lido. Segundo a autora, durante o processo de compreensão do texto, o leitor vai construindo
os sentido do que está lendo a partir de comparação de informações advindas de várias
ordens: de outros textos, de seu conhecimento de mundo etc., o que propicia ao sujeito
avaliar a relevância das informações, facilitando o processo de síntese (Rojo, 2004).
A generalização, por sua vez, se dá quando o sujeito seleciona as informações pertinentes
a serem retidas, excluindo redundâncias, repetições ou, até mesmo, explicações. “Podemos
guardar alguns [dos] trechos [do texto] ou citações que mais nos impressionaram, mas em
geral armazenamos informações na forma de generalizações responsáveis, em grande parte,
pela síntese”, diz a autora (Idem:06).
Nesse sentido, a comparação e a generalização, como duas habilidades que nos
ajudariam no processo de síntese do texto, deveriam ser trabalhadas.
Como é que eu iria intervir junto às crianças? Desenvolvi o trabalho com elas de forma
a possibilitar deliberadamente a comparação de informações e a generalização dessas
informações.
Assim, após a realização da leitura, discutimos as idéias apresentadas no livro, o assunto
tratado e como ele se relacionava com o livro lido anteriormente, “A colcha de retalhos”.
Logo de início, as crianças perceberam que os temas eram semelhantes. A nova história
também tratava das relações entre crianças e idosos. Conversamos sobre a vivência delas
com pessoas idosas. Muitas, em idade de catequese, (3ª série – 9 anos), relataram ter
refletido sobre o tema da Campanha da Fraternidade: “Vida, dignidade e esperança”, que
tratava da questão dos idosos.
A relação entre os textos e os relatos de experiências das crianças possibilitaram maior
qualidade de leitura. Segundo Geraldi (1997c:112) “a qualidade (profundidade) do
mergulho de um leitor num texto depende de seus mergulhos anteriores. Mergulho não só
nas obras que leu, mas também na leitura que faz de sua vida”.
85

Depois de termos conversado sobre a relação da nova leitura com as leituras anteriores,
discutimos como poderíamos recontar a nova narrativa.
Durante o relato, os alunos extraíram as idéias principais e a partir delas destaquei o
conceito de síntese.
O que viria a ser uma síntese? Para as crianças síntese era o mesmo que resumo. “Bom,
não precisa contar todos os detalhes (Ja)”, “Você pode contar sem precisar contar todas as
lembranças que apareceram escritas no livro (Ni)”.
Em interlocução com as crianças destaquei que para escrevermos a síntese de um livro
era necessário direcionar o olhar para alguns dos aspectos do texto, pois havia uma intenção
pautando o processo daquela leitura: o reconto do texto lido. Assim, ainda que não fosse
necessário ater-se a todos os detalhes como os alunos haviam destacado, era preciso
garantir que os elementos essenciais da narrativa estivessem expostos, de modo a garantir
a compreensão da síntese por um outro leitor.
Nesse processo trabalhamos tanto a compreensão leitora, como também uma das funções
de escrita, se considerarmos que a síntese configura um gênero de discurso, ligado a algumas
atividades específicas, envolvendo certas intenções discursivas, que implicam um tipo de
leitura e o domínio de certas marcas estilísticas de escrita.
A síntese, como gênero, é utilizada em várias atividades: para apresentar um trabalho,
para elaborar comentários ou pareceres sobre um texto, para organizar uma exposição ou
uma aula. E, pelo fato de a síntese configurar um gênero, julguei importante que as crianças
se apropriassem dele.
Apesar de todo o meu interesse pelo exercício da síntese, procurei não perder de vista as
críticas que as cercam nas práticas escolares. Segundo Barthes

existe em nossas escolas um exercício que se chama “redução do texto”;


essa expressão dá bem a ideologia do resumo: há de um lado o
“pensamento”, objeto da mensagem, elemento da ação, da ciência, força
transitiva ou crítica, e, do outro, o “estilo”, ornato que está relacionado
com o luxo, com o ócio e, portanto, com o fútil; separar o pensamento do
estilo é de algum modo desvencilhar o discurso de seus hábitos
sacerdotais, é laicizar a mensagem [...]; a “forma”, assim se pensa, é
comprimível, e essa compressão não é julgada essencialmente prejudicial
(Barthes, 1984:315).

Considerando os senões destacados por Barthes, procurei desenvolver com as crianças


um trabalho de linguagem que apreendesse as idéias principais, mas não as esquematizasse,
não apagasse a especificidade do gênero que estava sendo sintetizado, não apagasse
plenamente as marcas estilísticas do autor do texto e nem tampouco se convertesse num
conjunto de apontamentos esquematizados que apagassem o próprio estilo de dizer do
autor da síntese. A síntese produzida deveria preservar o estilo do autor sintetizado, do
gênero do texto que estava sendo sintetizado e o estilo do autor da síntese.
86

Para tanto, destaquei especificidades estilísticas do texto lido, como a musicalidade,


que as muitas rimas nele contidas lhe conferem.
Ao fazer esse destaque e essa pequena problematização, eu procurava explicitar para as
crianças um recurso estilístico do texto, do qual elas eventualmente poderiam lançar mão
naquele momento, ou em tentativas posteriores: a musicalidade (rimas).
Outro destaque relativo aos modos de escrever envolveu a discussão acerca de como
“colocar as falas na boca da personagem” ou “na boca do narrador”. Denominamos,
naquele momento, o discurso direto como “na boca da personagem”, o que também
chamamos de diálogo no texto, e o discurso indireto, como “na boca do narrador”.
Solicitei que nesta produção as crianças escrevessem, no mínimo três e, no máximo, seis
diálogos. E com seus devidos marcadores textuais. Com isso, minha intenção era trabalhar
exatamente esses marcadores e seus efeitos no texto. Como representar na escrita um
diálogo? Que sinais indicam que é a personagem quem está falando ou não?
Discutimos, então, como os diálogos são representados no papel. Para isso, as crianças
foram simulando alguns diálogos e eu os fui transcrevendo na lousa, utilizando dois pontos,
parágrafo e travessão.
Pude perceber que a grande maioria já havia se apropriado deste tipo de pontuação, e
que na segunda série o assunto havia sido abordado. Após esta discussão as crianças
iniciaram a produção do texto solicitado.

Do texto ao texto: aprendizados possibilitados pela mediação


A princípio, pelo fato de eu já dominar a idéia de síntese, achei que seria fácil
desenvolver esse trabalho com as crianças, mas ao me defrontar com o efeito daquilo que
eu dizia para elas como sendo a síntese, com o cuidado a se ter no processo de escritura,
fui surpreendida ao perceber que esse processo não era tão simples como parecia aos
olhos da professora.
O primeiro efeito dessa mediação foi uma redução drástica dos textos, com apagamento
de algumas das características do próprio gênero narrativo, tais como a explicitação da
expectativa, o conflito das personagens ou o encaminhamento da resolução do problema
para o leitor. É interessante observar esse efeito na primeira versão apresentada por Gu e Di.
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Ao observar os textos produzidos, destacou-se para mim que embora o encadeamento


das ações estivesse adequado, ambos privavam o leitor do processo de resolução do
problema da narrativa, na medida em que não explicitavam elementos importantes, tais
como: quais foram as definições dos idosos, como Guilherme Augusto articulou os objetos
com as falas desses idosos e como a Dona Antônia significou os objetos.
Assim, embora tivessem respeitado a seqüência da narrativa, apresentando o conflito e
dando a entender que ele fora solucionado, os autores não deram visibilidade ao processo
pelo qual o conflito fora sendo resolvido, ou seja, quais eram as nuances da narrativa, o
que as personagens disseram e sentiram no decorrer do enredo. Esses elementos mostravam-
se essenciais no texto, porque essa narrativa estava centrada muito mais no jogo das
significações produzidas.
Esse era o elemento essencial que precisaria ter sido preservado, ou seja, era o que
permitiria a um leitor que não tivesse lido a narrativa “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”,
compreender a especificidade desse texto.
Ao me defrontar com produções que traziam características muito semelhantes aos textos
de Gu e de Di, supus que, no esforço para atender às demandas da professora, ao
sintetizarem o texto as crianças preocuparam-se em reproduzir a seqüência da narrativa,
empobrecendo-a.
Naquele momento, como professora, me questionava: como encaminhar com as crianças
o trabalho de síntese?
Com essas preocupações, no momento da primeira revisão do texto produzido,
diferentemente da revisão realizada na primeira produção textual do ano, indiquei alguns
critérios a serem observados pelas crianças. Para realizar a atividade, elegi os problemas
de estrutura textual da narrativa e, baseando-me em Geraldi (1997b:75), destaquei as
seguintes questões:

· A narrativa contém respostas às questões: quem? o quê? quando? onde?


como? por quê?
· A seqüenciação dos acontecimentos corresponde à história narrada?
· O que está faltando é importante? Torna o texto (história) viável?

Na produção textual anterior, eu apenas lera alguns dos textos produzidos para as crianças
e juntos fomos refazendo os parágrafos na lousa. Desta vez utilizei uma outra forma de
mediar a relação delas com os textos produzidos. Para desenvolver a atividade, escolhi
algumas produções que apresentavam os problemas que eu elegera como foco e outras
em que tais problemas não se encontravam.
Reproduzi os textos selecionados em transparências, omitindo os nomes dos autores.
Ao iniciar a aula, solicitei que as crianças observassem as produções que eu estaria
apresentando e que tentassem, nelas, encontrar as respostas para aquelas questões que eu
havia selecionado como critério para a análise e que haviam sido registradas na lousa.
Iniciamos então o trabalho com o retroprojetor. A princípio projetei na tela um texto que
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eu considerei como exemplar de uma síntese produzida adequadamente. Juntos fomos


lendo e observando se na leitura realizada era possível responder às questões que eu havia
elencado. Posteriormente, projetei um texto que não realizava adequadamente a síntese,
também observando se respondia às questões. Na seqüência, nos próprios textos lidos
anteriormente, selecionei um parágrafo (de cada texto) que tratasse do mesmo assunto. Um
deles com um parágrafo bem estruturado e o outro não. E fizemos uma comparação.
Depois dessa comparação apresentei ainda outros textos. As crianças foram percebendo
os trechos que não se encontravam muito claros nem bem organizados, e, juntos, os fomos
reconstruindo na lousa.
Nessa retomada de textos produzidos eles se envolveram bastante, opinando sobre os
mesmos e atuando sobre possíveis problemas de compreensão neles apreendidos no
processo de leitura.
Durante a apresentação das transparências fui fazendo com as crianças um exercício de
comparação para que elas pudessem recompor a narrativa e ao mesmo tempo perceber
que algumas das informações poderiam ser suprimidas mantendo o texto viável, porém,
outras não.
Que informações poderiam ser deixadas de lado sem que tornassem o texto não viável?
Quais informações eram fundamentais para tornar o texto viável? Eram as perguntas que
nos orientavam durante o trabalho.
Junto com elas fui tentando explicitar qual era o foco, qual era a especificidade dessa
narrativa. E à medida em que fomos conversando, fui registrando na lousa algumas
informações que se mostravam relevantes para o reconto.
Nesse sentido, as perguntas “como?” e “por quê?” mostraram-se de grande importância,
pois foram elas que possibilitaram às crianças a percepção do que faltava em seus textos e
de como o personagem Guilherme Augusto foi significando as respostas dos velhinhos.
Nesse processo as crianças foram percebendo porque ele escolheu determinados objetos
e não outros quaisquer. Perceberam que o menino precisou se remeter às respostas dos
velhinhos para escolher os objetos e que Dona Antônia recuperou a memória porque viu
aqueles objetos e atribuiu-lhe significados e sentidos. Portanto, o ponto central dessa narrativa
estava no “como” e no “por quê”, tanto das ações e significações de Guilherme Augusto
quanto nas significações atribuídas por Dona Antônia. Assim sendo, essas informações não
poderiam ser deixadas de lado.
No quadro negro foram registrados, em forma de tópicos, todos os nomes dos idosos,
as respostas que deram a Guilherme Augusto sobre o que era memória, os objetos que o
menino colocou na cesta e as lembranças que Dona Antônia foi tendo ao pegar cada um
dos objetos.
Essas informações ficaram disponíveis para as crianças como fonte de consulta na
hora da revisão textual, possibilitando um planejamento do que iriam escrever.
Cumprida esta etapa do estudo, as crianças iniciaram a revisão de seus próprios textos,
buscando respostas às questões elencadas e reestruturando-os quando necessário. Em
seguida, passaram a limpo a nova versão.
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Enquanto todos trabalhavam, eu atendia individualmente nas carteiras. Nesse movimento


de circulação pela classe percebi que algumas das crianças, ao receberem o texto,
imediatamente faziam marcas sinalizadoras externas, como aquelas que eu tinha
compartilhado com a classe em outros momentos. Essas marcas indiciavam-me que algumas
crianças elaboravam os procedimentos de revisão compartilhados. Este é o caso de Luh.
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Também percebi muitas crianças voltando-se para lousa para se utilizarem do que estava
escrito. Algumas delas chegavam a perguntar algumas informações e, imediatamente após
realizarem a pergunta, já se lembravam que as informações estavam disponíveis no quadro,
chegando a comentar: “Ah! Está lá na lousa!”.
Porém, outras crianças apresentavam bastante dificuldade em saber o que precisaria ser
modificado em seu texto. Nesses momentos eu, como professora, ia mediando a sua relação
com o texto e apontando quais as possibilidades de mudanças a serem feitas, fazendo, com
elas, as marcas sinalizadoras, para que percebessem tais possibilidades. Foi o que aconteceu
na revisão de Leb.
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Essas nuances na forma de conduzir a revisão dos próprios textos evidenciaram que a
mediação e seus efeitos são sempre diversos, porque os sujeitos estão em processos de
elaboração distintos, e se apropriam de forma distinta daquilo que se compartilha com eles.
A compreensão dos processos singulares em que meus alunos experimentavam-se
naquele momento particular da escrita, através da observação da forma como utilizavam
as marcações externas, dirigiu minhas intervenções no sentido de possibilitar-lhes uma
maior autonomia na utilização desses sinalizadores, seja utilizando-os com a criança,
mostrando a ela como fazê-lo; seja disponibilizando elementos para consulta.
Segundo Vygotsky (1989:62), a função reguladora dos signos nasce das/nas atividades
interpessoais e internaliza-se como forma de controle do próprio indivíduo, tornando-o
independente da situação imediata. Os signos externos constituem “um meio da atividade
interna dirigido para o controle do próprio indivíduo”, e ao operar com signos, as crianças
dependem crucialmente dos signos externos. Nesse sentido a importância da atividade
interpessoal mostrou-se relevante no processo de internalização do uso de signos.
Em estudo voltado especificamente para a produção textual, Cardoso (2003) retomando
esse conceito – de internalização – de Vygotsky, nos explica que

o sujeito pode passar de um controle imediato, dado pela situação, para


um controle exterior, ao criar sistemas de autocontrole (notas, esquemas,
rascunhos) e, finalmente, para um controle interior, por meio de modelos
de linguagem mais complexos (Cardoso, 2003:86).

E realmente foi interessante observar como o fato de ter compartilhado com as crianças
essas anotações e apontamentos feitos conjuntamente, repercutiu nos textos revistos. Em
sua maioria o mecanismo utilizado na revisão foi a inclusão de informações, evidenciando
que muitos dos alunos recorreram às anotações da lousa nos momentos de indecisão sobre
o que precisariam escrever. Um exemplo desse recurso pode ser ilustrado pela segunda
versão dos textos de Gu e Di.
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Na elaboração da primeira e da segunda versões, dois textos, especificamente, chamaram


minha atenção.
O primeiro deles foi produzido por Fab, uma criança que trazia das séries anteriores
dificuldades em seu processo de aprendizagem da língua escrita. Desde a primeira série,
vinha defasada em relação ao grupo. O processo de escritura para ela era muito sofrido. Ela
escrevia pouco e sempre reclamava dizendo: “Eu não consigo mesmo!”. A primeira versão de
seu texto apresentava, basicamente, o início da narrativa e em seguida um desenho. Minha
primeira interpretação foi a de que ao se deparar com a primeira dificuldade Fab desistiu da
escritura e resolveu utilizar uma outra forma de linguagem: o desenho. Mesmo assim, seu
desenho, naquele momento, não representava a história que havia sido lida anteriormente.
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Ao deparar-me com este texto fiquei pensando em como poderia mediar a relação dessa
criança com o próprio texto. Naquele momento fui acometida de uma forte sensação de
impotência, mas pensava que algo deveria ser feito pela professora.
Assim, após todo o trabalho com as transparências e os registros feitos na lousa, conforme
já relatei anteriormente, ao circular pela classe, eu sempre procurava passar por sua carteira
dispondo-me a ajudá-la, caso ela julgasse necessitar. Fab recorreu muito pouco a mim.
Ansiosa, procurei pela segunda versão de seu texto.
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Essa versão surpreendeu-me. Para realizá-la Fab utilizara, basicamente, as informações


contidas na lousa, apropriando-se daquele recurso sinalizador externo para dar conta da
atividade solicitada.
Com os apontamentos disponíveis para consulta, em interlocução com a professora e
com os colegas de classe, Fab conseguiu sair da condição de não produção de um texto
para a produção de um texto. O que ela não conseguira inicialmente fazer, tornou-se
possível através dessa mediação.
Considerando com Vygotsky (1989: 73) que: “precisamos concentrar-nos não no produto
do desenvolvimento, mas no próprio processo de estabelecimento das formas superiores” e
que essas formas ou processos psicológicos superiores somente são passiveis de serem
compreendidos se determinarmos sua origem e traçarmos sua história, avaliei a segunda
versão de Fab como significativa em termos de aprendizado.
Foi preciso um deslocamento de meu olhar para que eu pudesse observar como Fab se
utilizava dos recursos mediadores possibilitados a ela.
Nesse processo fui percebendo que a mediação tanto modifica os modos de significar o
trabalho da criança, por parte da professora, como também propicia à criança a
ressignificação de seu processo de aprendizagem. Era necessário dar fio a ela, mostrar-lhe
o avesso – porque no direito nunca alcançaria carreira de pontos; portanto: o outro lado,
o outro olhar, outro o caminho: minha proposta e meu remédio (Lacerda, 2001).
Outro texto que chamou minha atenção a essa altura foi o de Cha, uma criança que
apresentava um bom domínio da linguagem, porém havia apresentado um texto bastante
incompleto, deixando de colocar informações essenciais para que o leitor pudesse entendê-lo.
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Como professora, perguntava-me qual teria sido o mobilizador de Cha ao produzir a


primeira versão do texto. Teria ele tentado “dar conta do recado”, ou seja, cumprir apenas
e rapidamente uma tarefa escolar solicitada pela professora.
Ao devolver esta sua primeira versão para a revisão textual, conversei com o aluno
dizendo-lhe que eu sabia que ele era capaz de escrever a história de uma forma mais
completa e mais organizada. Disse-lhe, ainda, que os textos seriam organizados para serem
apresentados para outras pessoas e não apenas aos colegas da classe.
Ao explicitar-lhe esse aspecto, eu estava procurando mostrar como a atividade realizada
era parte de uma proposta maior, a de circulação dos textos produzidos, agora em um
estatuto diferenciado ao de redação escolar.
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Ao me reencontrar com a segunda versão do texto de Cha, reafirmei para mim mesma
a importância da revisão, também como um momento de produção do texto (Fiad e
Sabinson, 2001).
A mediação da professora, possibilitando que o aluno compreendesse os motivos de se
escrever o texto de forma mais completa e coerente, resultou em um outro texto.
Foi ao centrar minha atenção muito mais no processo do que no produto final que pude
compreender o quanto a mediação da professora possibilitando a volta da criança ao texto
mostrava-se relevante à relação pedagógica, sustentando os aprendizados e elaborações
por ela suscitados.
Vivendo essas situações, compreendi também o quanto minha mediação, enquanto
professora, é modulada pelos saberes de meus alunos, pelas propostas de atividades feitas
por mim e pelas elaborações diferenciadas entre as crianças.
Um outro aspecto a considerar é que ainda que o foco central de minha atenção fosse
com a estrutura da narrativa, nos textos de algumas crianças tive preocupação com a
paragrafação e com a pontuação do diálogo, como organizadores textuais. O texto de
Ama chamou-me a atenção pelo uso abusivo do travessão.
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Considerei a presença abusiva do travessão como um indicador de que a aluna estava


em pleno processo de elaboração dos modos de utilização desse marcador textual. Ela o
usava muito porque estava aprendendo a usar.
Cardoso (2003), ao explanar sobre diferentes atos discursivos (narrativas e diálogos),
confirma que entre as primeiras produções textuais da criança e a elaboração do texto em
um formato gráfico convencional costuma ocorrer uma superpontuação. Segundo essa
autora, a superpontuação é bastante freqüente no que se refere à pontuação adequada
nos diálogos, sobretudo ao uso do travessão.
Situações como essa chamaram minha atenção para aquilo que Vygotsky (1989)
destaca ao se referir à relação entre aprendizado e desenvolvimento: como vimos,
quando se ensina alguma coisa a alguém, não se impede o desenvolvimento daquilo
que se ensina, pois os processos de aprendizado e de desenvolvimento não coincidem.
“O processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de
aprendizado” (Idem.102).
Da mesma forma que os significados das palavras vão sendo elaborados ativamente
pelos sujeitos nas muitas relações em que eles se confrontam com palavras novas e com
situações em que os sentidos dessas palavras são explicitados, também uma série de
convenções relativas à escrita vão sendo elaboradas pelas crianças em suas relações com
elas. Nós, professoras, destacamos os marcadores textuais para as crianças, informamo-
las acerca das formas de utilização e de sua função na organização e na formatação
gráfica convencional do texto, sugerimos que elas se utilizem, desses marcadores, utilizando-
os, mediadas por nossas intervenções, as crianças ativamente elaboram esses usos.
A exemplo de Ama, outras crianças também revelavam usos diferenciados das normas
de pontuação. Tanto traziam um uso mais consolidado do ponto final, quanto revelavam a
elaboração em curso do uso dos dois pontos, da vírgula e do travessão.
Segundo Cardoso (2003), esses resultados também foram encontrados entre as
crianças estudadas em sua pesquisa longitudinal sobre a ontogênese dos usos
canônicos da pontuação.
Durante a revisão, fui portanto destacando os usos desses marcadores textuais, visando
contribuir para a sua consolidação.
O mais intrigante de todos os textos com os quais me deparei, foi o texto de Thi. Esse
aluno apresentava um domínio de linguagem muito bom, utilizando, inclusive, formas
mais complexas para expressar o que queria dizer, tais como a expressão “ou melhor”.
No entanto, o final de seu texto pareceu-me confuso e eu tive certa dificuldade para
entendê-lo. Vamos a ele!
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Surpresa, perguntava-me o que Thi quisera dizer com: “...então ele perguntou a galinha,
como procurar para voltar a memória de Dona Antônia não sei se a galinha respondeu. Só
que o menino ele achou a memória de Dona Antônia em uma cesta de brinquedos? (sic)”.
Parece tão fácil para a professora ler os textos de seus alunos...
Somente ao reler o livro, formulei uma hipótese para aquilo que Thi havia escrito –
talvez ele tivesse lido as imagens do livro –, lançando mão de um recurso que, como
professora, eu não esperava que pudesse acontecer.
Ao se deparar com a tarefa do reconto, pareceu-me que o aluno foi juntando fragmentos
do texto que havia sido lido, e que ele ainda se lembrava, com as imagens da ilustração.

Então, Guilherme Augusto voltou para casa,


para procurar memórias para Dona Antônia,
já que ela havia perdido as suas.

Se a princípio intrigara-me o fato de Thi ter estabelecido um diálogo entre o menino e a


galinha, considerei depois essa possibilidade levando em conta que no mundo das fábulas
contadas na escola, os animais falam e antropomorfizados participam de interlocuções.
Por que então a galinha não poderia conversar com o menino?
Quanto ao trecho em que Thi diz que as memórias foram encontradas dentro da cesta,
ao me deparar com as ilustrações, fortaleceu-se a minha suposição de que a leitura das
imagens fora mais relevante para ele. Na ilustração, reproduzida a seguir, o menino parece
procurar algo na cesta e a galinha parece também curiosa para ver o que há lá dentro.

Depois achou sua bola de futebol,


que para ele valia ouro; por fim,
entrou no galinheiro e pegou um
ovo fresquinho, ainda quente,
debaixo da galinha.
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Se para nós, leitores adultos, não há ambigüidade nas imagens, pois as vamos significando
a partir do texto lido, para as crianças, nem sempre isso é verdadeiro. Com Thi pude
aprender que, muitas vezes, nossos alunos já alfabetizados fazem o movimento em sentido
inverso, primeiro lêem as imagens.
Outro aspecto bastante interessante neste texto foi a forma como o aluno deixou
transparecer sua voz no decorrer do texto. Seus enunciados misturaram-se aos enunciados
do narrador.
Ao escrever “que coitada nada”, Thi desvela para o leitor o seu ponto de vista com
relação ao problema de Dona Antônia. Ele assume a sua voz, coloca-se como mediador
entre o texto lido por ele e seus leitores, deixando transparecer a forma como ele próprio
significou a situação vivida pela personagem.
Em continuidade ao processo de revisão, submetemos o texto a um novo interlocutor.
Novamente optei pela troca de textos entre a 3ª série A e a 3ª série B.
Neste momento de revisão solicitei que os leitores buscassem respostas às mesmas
questões elencadas no dia da revisão feita pelo próprio autor. Assim, as crianças estariam,
em uma folha a parte, registrando suas dúvidas quanto ao entendimento do texto, bem
como suas sugestões para uma nova revisão.
Passados mais alguns dias os produtores dos textos puderam entrar em contato com as
sugestões feitas pelos leitores da outra classe. Assim, realizaram uma nova leitura de seus
textos e uma posterior leitura das sugestões, analisando-as.
Alguns alunos mostraram dificuldade em aceitar as sugestões dos colegas, porém
encontraram “falhas” em seus textos que ainda poderiam ser melhoradas. Outros aceitaram
com bastante naturalidade a opinião do leitor, demonstrando, tanto em um caso quanto no
outro que estavam assumindo o papel de interlocutores que falam, escrevem, lêem, seja
para concordar, seja para discordar. A concordância e a discordância com os leitores
mediatizam o re-encontro do autor com o seu próprio texto.
Como destaca Antunes (2002:41), “o trabalho do professor é, como se percebe, essencial
mas, de forma alguma, permite que se ignore a importância também extraordinária da
interação aluno/aluno no avanço progressivo e significativo” do processo educativo.
Na tríade leitura/produção de textos e análise lingüística, além de apontar alguns caminhos
possíveis de serem seguidos, procurei assumir o papel de representante leitor do aluno.
Creio que esta postura fica esclarecida com o que dizem Fonseca e Geraldi (1997c:107):

a posição do professor não é a do mediador do processo que dá ao


aluno sua leitura do texto. Tampouco, é a da testemunha, que, alheia ao
processo, apenas o vê realizar-se e dele pode dar testemunho. Se, em
alguns momentos, o professor passa a testemunhar, isso se deve ao fato
de que, como sujeito, já se colocou como interlocutor de seus alunos,
possibilitando as condições [...] para que o processo se desencadeasse
(Grifo nosso).
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Portanto, o professor é um dos interlocutores possíveis no processo de desenvolvimento


da capacidade da criança em tomar a própria escrita como objeto de análise (Góes,1997).
No decorrer deste trabalho, minha atenção centrou-se em minhas formas de mediação
e nos efeitos por elas produzidos no sentido de que as crianças voltassem a olhar para o
próprio texto, de forma orientada, buscando refletir sobre o seu próprio fazer.
Durante o primeiro trimestre, enquanto trabalhávamos com a produção de texto a partir
de uma leitura, as crianças verbalizaram em diversos momentos o interesse em produzir
textos inventados por elas. “Tia, quando a gente vai criar um texto inventando da própria
cabeça? (Vi)”, “A gente não vai inventar histórias, Tia Cláudia? (Rô)”.
O pedido das crianças levou-me a buscar outras formas de propor a criação de textos.
Encontrei Gianni Rodari e sua “Gramática da Fantasia” (1982), conforme exponho adiante.
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Novos passos: o binômio-fantástico

“No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que de


bicicleta. A gente brincava de palavras descomparadas...”
Manoel de Barros

Aprendi com Gianni Rodari outras formas de instaurar a produção de textos. Optei pelo
“binômio-fantástico”.
A proposta do binômio-fantástico consiste no seguinte: uma criança escreve em um lado
visível da lousa uma palavra, e outra criança escreve outra palavra em uma parte coberta
da lousa, criando expectativa em relação aos pares de palavras encontradas, para posterior
realização da atividade.
Rodari argumenta que quanto mais inusitado o encontro das palavras, mais interessante
será a atividade a ser desenvolvida, na medida em que

no ‘binômio fantástico’ as palavras não estão presas a seu significado


cotidiano, mas libertas da cadeia verbal da qual fazem parte
cotidianamente. São ‘estranhas’, ‘desambientadas’, jogadas uma contra
a outra em mares nunca dantes navegados. Só então encontram-se em
condições ideais para gerar uma estória (1982:22).

A palavra a ser escrita sempre deverá ser um substantivo e depois de “encontrado”


esse binômio fantástico, o professor deve conduzir a atividade articulando as duas
palavras com uma preposição. Segundo o autor, as crianças conseguem aplicar
muito bem esta técnica, com divertimento. Encontrado o binômio, surge então uma
idéia ou um título de história que a criança irá desenvolver, acrescenta ele,
lembrando-nos que “a criatividade é uma característica do homem e não um dom
concedido a poucos” (op. cit.:10).
114

Preparando as crianças para a produção textual, dois dias antes eu disse a elas que
iríamos começar a produção de um novo “livro” e que, para tanto, iríamos produzir um
tipo de texto diferente daqueles produzidos anteriormente. Percebi que a maioria das crianças
entusiasmou-se, pois perguntaram qual seria a leitura que iria nos ajudar na escrita.
Respondi a elas que este texto não seria trabalhado a partir de uma leitura, que este
seria o texto que elas haviam me pedido, o texto inventado, criativo... Disse também que
antes de iniciarmos a produção iríamos brincar um pouco com as palavras.
As crianças ficaram muito curiosas, perguntaram qual seria a brincadeira, que palavras
usaríamos etc.. Propositadamente, não desfiz a curiosidade, e a provocação fez efeito.
Várias crianças procuraram-me no corredor para saber qual seria a brincadeira. “Tia, conta
o que é que nós vamos fazer! (Ca)”, “Ah! Porque você não fala só pra nós como vamos
escrever o texto? (Era um grupo de quatro meninas: Ca, Na, Ju e Já)”.
Enquanto isso, em sobressaltos, eu também aguardava o grande dia.
“Professora, que proposta é essa que ousa adentrar sua classe, quebrando os padrões
de produção textual desta escola? Você tem certeza que sabe o que está fazendo com
essas crianças?”
Esse era o pensamento que me perseguia nos dias que antecederam ao trabalho.
Afinal,

os espelhos estão apostos em todas as salas, refletindo a regra, a norma:


pra ninguém esquecer. A uniformidade anula as diferenças e todos são
iguais perante a lei, perante a grei, perante o rei (Lacerda, 2001:119).

As práticas dominantes entre as professoras de 1ª à 4ª séries, com relação à produção


de textos, eram freqüentemente pautadas no reconto. Procurava-se garantir a diversidade
através dos gêneros textuais, dos encontros da criança com uma mesma narrativa sob
diferentes versões, mas o modo de chegar à produção ancorava-se no reconto.
Ao me defrontar com a solicitação das crianças de um outro tipo de produção, decidi
que valeria a pena acatar a demanda que elas me apresentavam.
No decorrer da trajetória, ouvi e senti algumas restrições quanto à decisão que eu
havia tomado. O conteúdo de minhas inquietações iniciais estava se materializando. Para
algumas colegas, o tipo de trabalho que eu decidira realizar representava uma armadilha
para os alunos, no sentido de expô-los em seus limites e dificuldades.
De fato, através desta produção foi possível perceber as inúmeras dificuldades que as
crianças demonstraram para organizar por escrito o que pensam e falam. Pois “o escritor
iniciante tende a assumir uma abordagem que pode ser denominada de ‘expressão do
pensamento’, pela qual escrever é expressar o que se sabe sobre um tópico ou o que se
quer dizer a respeito de algo” (Scardamalia e Bereites, apud Góes, 1990:127).
115

Góes e Smolka destacam que é comum aparecer na produção inicial de textos a


dificuldade em lidar com a oralidade, com a escrita e com seu registro, pois “esta é
uma decorrência típica das exigências de coordenação do fluxo de pensamento,
enquanto discurso interior, com a organização do discurso comunicativo e com as
operações de registro deste” (Góes e Smolka, 1993:58).
O discurso interior, ou interno, é aquele orientado para o próprio sujeito e, por
ser um discurso orientado para si próprio, sua estrutura e sua morfologia são
modificados, assumindo características diferenciadas. É um discurso aglutinado,
predicativo e condensado, pois não é preciso explicitar tudo para o outro, não é
necessário negociar sentidos. Vygotsky (2003) sinaliza que é justamente na fase da
escolarização inicial que as crianças estão em pleno desenvolvimento desse tipo de
discurso, ou seja, da fala interna.
Tais considerações mediaram minha compreensão das dificuldades consideráveis
que surgem para a criança na organização por escrito do fluxo do pensamento,
quando ela não só não domina a escrita plenamente como ainda necessita, muitas
vezes, dizer para si mesma internamente aquilo que quer escrever antes de fazê-lo.
A essas dificuldades, acresce-se aquela derivada das características do discurso interno
e da escrita. Enquanto na fala interior o discurso é muito mais predicativo, nele
predominando o sentido sobre o significado, a frase sobre a palavra e o contexto sobre a
frase (Vygotsky, 2003), o registro escrito é muito mais analítico. Assim, surge uma dificuldade
para a criança porque ela precisa se desligar dessa fala interna, condensada, e passar
para uma organização analítica, que também difere da oralidade, a que ela ainda
recorre para organizar para si mesma o que pretende dizer.
Na oralidade, a criança dispõe de recursos extra-verbais como gestos, entonação,
mímica etc. para garantir a comunicação com um interlocutor presente. Na escrita,
por não poder apoiar-se em recursos extra-verbais ao dirigir-se a um locutor ausente,
a criança se vê obrigada a explicitar seus enunciados em um grau em que não é
ainda hábil e a recrutar recursos verbais que dêem conta da mímica, da entoação e
da ênfase, próprios do discurso oral (Geraldi, 1997). Observa-se, assim, que a
escrita é uma atividade bastante complexa para a criança, envolvendo funções
psicológicas em desenvolvimento. Tudo isso implica muitos aprendizados.
Assim sendo, foi necessário que eu compartilhasse com meus alunos, de modo
deliberado, recursos próprios da escrita.
Nesse processo, foi necessário que minha intervenção se realizasse durante a
produção e na revisão, muitas vezes, de forma individual, permitindo que o aluno
percebesse as exigências próprias da escrita perante o leitor de seu texto.
116

Viajando no imaginário

A terceira e a quarta produções textuais do ano, realizada em


duplas e individualmente
Enfim chegou o dia! Era o mês de maio. Ao entrar na sala de aula, as crianças me
esperavam sentadas ao lado de minha mesa, o que sempre faziam, porém de forma não
tão organizada. Estavam bastante ansiosas. Organizei as carteiras em duplas e fui chamando-
as aos pares.
Neste momento privilegiei o trabalho em pares, por considerar que

a produção em pares ou grupos oportuniza inúmeras aprendizagens que


não transcorrem, porém, de modo fácil, dada a exigência de se negociar
idéias e lidar com as posições ocupadas pelos indivíduos na interação. A
presença de seus pares é sempre muito significativa para a criança.
Mesmo quando escreve individualmente, busca chances de comentar,
indagar e pedir confirmações do outro (Góes e Smolka, 1993:63-64).

Considerando a idéia de binômio-fantástico, eu me perguntava o quanto as crianças


entenderiam que o fantástico também pressupõe coerência interna ao texto, ou seja, uma
articulação entre as idéias de modo a conferir unidade e sentido ao texto produzido.
Preocupada com isso, já que era uma das discussões em pauta nos encontros entre as
professoras das séries iniciais e as professoras de 5ª e 6ª séries da escola, resolvi ter uma
conversa com as crianças antes de iniciar a brincadeira propriamente dita.
Conversamos sobre alguns filmes que elas já haviam assistido, tais como: “Edward mãos
de tesoura”, “Harry Potter”, “O pai que vira boneco de neve”, “De volta para o futuro”,
“Jumanji”, entre outros. Nessa conversa discutimos se as situações apresentadas nos filmes
poderiam acontecer na realidade. As crianças foram bastante eloqüentes ao afirmar que
era impossível. Partindo disso, perguntei a elas se as histórias eram coerentes, se as idéias
que apareciam nelas estavam ligadas umas às outras, dentro da história e se as idéias
apresentadas se relacionavam entre si. Argumentaram que sim.
Com esta discussão eu queria destacar para as crianças o que Koch e Travaglia (1991)
explicitam muito bem ao tratar de coerência textual.

O juízo de incoerência não depende apenas do modo como se combinam


elementos lingüísticos no texto, mas também de conhecimentos prévios
sobre o mundo e do tipo de mundo em que o texto se insere, bem como
do tipo de texto (Koch e Travaglia, 1991:11-12).

Para esses autores, uma frase como: “a galinha estava grávida [...] seria responsável por
incoerência por contrariar o conhecimento geral, embora isto só represente incoerência, se
o mundo representado pelo texto for o mundo ‘real’ e não, por exemplo, o mundo fantástico,
mágico, de fantasia” (op.cit.:11).
117

Assim, com alguns exemplos que extraí do próprio texto de Gianni Rodari, propus que
imaginássemos um “homem-vidro” e perguntei às crianças se esse meu homem de vidro
poderia ter maus pensamentos e por quê.
As crianças se deliciaram em apontar diversas respostas. Até o ponto de que... “Todos
veriam o pensamento dele!”
Então, disse a elas que o meu homem de vidro havia descoberto uma maneira de esconder
os pensamentos. Qual seria essa maneira? Oportunamente apareceram duas respostas
bastante coerentes: “Ele passou a usar boné!”, “Ele deixou o cabelo crescer!”
Antes de iniciar a atividade, persisti no homem vidro: ele pode lutar judô ou fazer capoeira?
Por quê?
Quem passasse por minha sala de aula, naquele momento, pensaria que as crianças
estavam sozinhas, querendo todas falar ao mesmo tempo. Foi preciso parar a atividade por
alguns minutos para reorganizar a sala e poder ouvir a todos. Até concluir-se que: “o
homem de vidro não tem flexibilidade, por isso não consegue lutar judô. Não pode porque
senão quebra!”
Caracterizada assim uma das exigências do tipo de texto com o qual iríamos trabalhar,
qual seja: a criação de um texto recorrendo a elementos do imaginário, passamos para a
produção dos diversos binômios de palavras.
Adaptei a atividade proposta por Rodari para a realidade de minha sala de aula. Entreguei
a cada dupla dois pedaços de papel e pedi que em cada um deles escrevessem um
substantivo comum. Recolhi-os dobrados como se fosse usá-los para um sorteio. Fui até a
lousa e enumerei de um a doze de um dos lados e de um a doze em outro lado.
Sorteados, os doze primeiros substantivos foram escritos ao lado esquerdo da lousa.
Posteriormente, sorteei as outras doze palavras e as escrevi ao lado direito da lousa. Assim,
formamos doze binômios.

1 – raio –chuva
2 – homem – magia
3 - mistério – nascente
4 – escada - fênix (viram-na no filme Harry Potter)
5 - dentadura – relógio
6 – ariranha – nascente
7 – raio – chuva
8 – escola - trasgo (viram-no no filme Harry Potter)
9 – mata – cachorro
10 – cachorro – cachorro
11 – cavalo - princesa
12 – cemitério – machado
118

Tendo em vista que o binômio-fantástico não garante nada em si mesmo, pois os criamos
a partir de referências já elaboradas e de sentidos experimentados nas interlocuções, meu
papel, enquanto professora, foi o de explorar esta característica humana da criatividade
nos sujeitos com os quais trabalhava. Segundo Rodari, o papel do professor é o de promotor
da criatividade, não como amestrador de focas ou potros, transmitindo saberes prontos em
bocados diários, mas como “um adulto em meio a crianças, pronto a exprimir o melhor de
si mesmo, a desenvolver em si mesmo os hábitos da criação, da imaginação” (Rodari,
1982:142).
Assim, após formados os binômios-fantásticos, propus que conversássemos sobre como
poderiam ser desenvolvidas as diversas narrativas, utilizando os binômios encontrados.
A exploração da própria proposta entre os sujeitos que iriam desenvolvê-la possibilitou
ao grupo compartilhar idéias e comentários, oriundos de seus conhecimentos e da diversidade
de experiências vividas por eles. Como destaca o próprio Rodari, a riqueza do binômio-
fantástico encontra-se na provocação entre as palavras. Palavras que se desdobram em
possibilidades de sentidos porque remetem à riqueza e variedade da experiência cultural,
como destacam Fontana e Cruz:

a criatividade envolve a apropriação pela criança da experiência


cultural. Quanto mais ricas essas experiências, quanto mais variados
os modelos a que tiver acesso, quanto mais incentivos, auxílios,
técnicas e materiais lhe forem proporcionados, maior será a sua
capacidade criativa (Fontana e Cruz, 1997:158-159).

O binômio-fantástico como condição de produção traz, em si, portanto, referências das


quais a criança pode partir. Não se trata de criar a partir do nada, mas a partir da exploração
e das provocações possíveis escondidas na palavra. E, nesse sentido, a proposta em si
mesma já possibilita o jogo exploratório da linguagem.
Em relação à brincadeira, ao jogo e à própria imaginação destaca Rodari:

A brincadeira, o jogo, não é uma simples recordação de impressões


vividas, mas uma reelaboração criativa delas, um processo através do
qual a criança combina entre si os dados da experiência no sentido de
construir uma nova realidade, correspondente às suas curiosidades e
necessidades. Todavia, exatamente porque a imaginação trabalha
apenas com materiais colhidos na realidade (e por isso pode
ser maior no adulto), é preciso que a criança, para nutrir sua
imaginação e aplicá-la em atividades adequadas que lhe
reforçam as estruturas e alongam os horizontes, possa crescer
em um ambiente rico de impulsos e estímulos, em todas as
direções. [...] O livre uso de todas as possibilidades da língua
não representa senão uma das direções em que a criatividade
pode expandir-se (Rodari, 1982: 139. Destaques meus).
119

A partir das interlocuções, as crianças puseram-se então a produzir a primeira versão do


texto baseado em um binômio-fantástico. A experiência com binômios-fantásticos prolongou-
se até setembro.
Prontos os textos, indaguei-me sobre como iria mediar a volta dos autores a eles. Revi os
modos de mediação de que lançara mão nas atividades anteriores e decidi que nessa
produção eu estaria comentando os textos com seus autores. Realizei a leitura de cada
texto, fazendo, em uma folha a parte, anotações parágrafo a parágrafo. A finalidade de
tais anotações era dar indícios às crianças de problemas sobre os quais poderiam debruçar-
se na busca de uma melhoria do próprio texto produzido.
Também recorri à leitura do texto com seus autores e à negociação, com eles, de modos
outros de enunciação conforme as exigências da escrita.
Foram, portanto, os aspectos discursivos, diretamente relacionados à produção de efeitos
de sentidos no texto, que procurei enfatizar durante o processo de re-elaboração textual,
tais como: repetições ou ausências de informações, repetições de expressões, questões
relacionadas à ambiguidade referencial e à incompletude de enunciados, recursos da
pontuação e da paragrafação, como elementos auxiliares da expressividade da escrita.
Segundo Góes e Smolka (1993:58), a incompletude de enunciados é bastante comum
entre as produções das crianças:

Esta é uma decorrência típica das exigências de coordenação do fluxo de


pensamento, enquanto discurso interior, com a organização de discurso
comunicativo e com as operações de registro deste. A incompletude de
enunciados pode advir de referentes omitidos ou relações não marcadas.
Também pode resultar da condensação de várias relações percebidas.

Os problemas de ambigüidade referencial são também destacados pelas autoras como


freqüentes na produção inicial. Uma ocorrência típica de ambigüidade referencial, afirmam,
“está no uso de pronomes, quando não se pode concluir, dentro de duas ou mais
possibilidades, a quem se refere o ‘ele’. Outras instâncias de ambiguidade advêm da
referência a um contexto não partilhado pelo leitor” (Góes e Smolka, 1993:58).
Ao explicitar para as crianças tais aspectos de sua escrita, o mediador, ainda de acordo
com Góes e Smolka (Idem:67-68), contribui para a elaboração da função comunicativa da
linguagem, processo esse que se consolida quando a criança começa a escrever, assumindo
o destinatário de seu texto. Ou seja, quando ela começa a se preocupar em ajustar o
discurso às necessidades características do leitor e dos propósitos da interação.
Assumida a função comunicativa, “essas mudanças são necessárias, não apenas
porque o aluno está aprendendo, mas porque estratégias de ajustamento fazem
parte do próprio processo e são típicas da própria produção adulta” (Idem:63).
120

Após a revisão realizada pelos próprios autores, os textos circularam em sala de aula
para que os colegas os lessem. As crianças se mostraram muito interessadas, uma vez que
esses textos eram inéditos, ou seja, não haviam sido produzidos a partir de uma leitura
realizada anteriormente pelo grupo.
Como minha intenção era de que a atividade de linguagem escrita da/na criança se
aprimorasse, tendo impacto significativo sobre seu desenvolvimento, a atenção às condições
de produção dessa atividade na sala de aula mostrou-se fundamental no sentido de avaliar
o quanto estavam possibilitando (ou não), às crianças, a apreensão e a diferenciação entre
as funções comunicativa e individual da escrita.
Se a função comunicativa enfatiza a importância do outro na produção da escrita, a
função individual, segundo Góes e Smolka (op.cit.), aprimora-se quando através da produção
do discurso o sujeito desenvolve uma atitude de análise sobre o texto que produz, organizando
e regulando o próprio pensamento.
Em meu encontro com os textos produzidos, minha atenção voltou-se para os modos de
mediar um processo de produção textual em que a criança produziu os elementos da
narrativa, bem como o seu desenvolvimento, sem as referências que estariam asseguradas
de antemão por um texto conhecido.
Como eu sempre trabalhara com o reconto, não me havia indagado ainda sobre
os recursos que as crianças mobilizam no momento em que produzem um texto de
autoria própria.
Os elementos a que as crianças recorreram, remeteram-me à questão da intertextualidade.
Barthes (1984:75) define o texto como “o entretexto de outro texto” e diz que “as citações
de que é feito um texto são anônimas, irreconhecíveis e, no entanto, já lidas: são citações
sem aspas”.
Koch (1998) ao explanar sobre a construção dos sentidos nos textos tece uma reflexão
sobre intertextualidade e polifonia, recorrendo a Barthes e a Bakhtin.

O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de


permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou existem ao redor
do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um
intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob
formas mais ou menos reconhecíveis (Barthes, apud: Koch, 1998:46).

E ainda:

A palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte,


emissor e receptor. Cada palavra expressa o ‘um’ em relação com o
outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade
a que pertenço. O Eu se constrói constituindo o eu do Outro e por ele
é constituído (Bakhtin, apud: Koch, 1998:50).
121

Dessa perspectiva, é possível afirmar que um texto não existe sozinho, ele faz
parte de uma cadeia de enunciados. Como um enunciado está sempre em relação
com outros enunciados, todo enunciado é pleno de vozes, é polifônico. São os
vários enunciados que falam em mim, portanto, “todo caso de intertextualidade é
um caso de polifonia” (Koch, 1998:57).
De modo geral, como assinala Smolka (1993), a escola não tem considerado o
trabalho com a produção de textos nas séries iniciais como um processo de interação,
um processo discursivo, dialógico. “Com isso, a escola reduz a dimensão da
linguagem, limita as possibilidades da escritura, restringe os espaços de elaboração
e interlocução pela imposição de um só modo de fazer e de dizer as coisas” (p. 76).
Em meu reencontro com os textos das crianças, fui identificando a dimensão inter-
discursiva da elaboração textual, através da presença de personagens de histórias
e narrativas já conhecidas pelos alunos, de padrões de linguagem e de
comportamento típicos dessas narrativas, de modos de compor o cenário, as cenas
e seu desenvolvimento, que são nesse caso bastante próximos dos estilos explorados
nas novelas de TV, nos filmes, nos vídeo-games. E, também, em meio à presença de
outros tantos textos, fui identificando as experiências de vida das crianças, seus
valores, conhecimentos e conceitos.
Diante da diversidade de caminhos percorridos pelas crianças, considerei, na
análise de seus textos, os modos como elas ocuparam o espaço de interlocução
instaurado pela proposta de produção textual, e que posições assumiram ao escrever
o que escreveram. Considerando o texto como unidade de análise, procurei
possibilitar aos meus alunos que retomassem o texto e que, através de seus dizeres,
lidassem com os dilemas da linguagem e com os dilemas da cultura humana, pois o
que é o texto senão uma reflexão sobre a experiência e a experiência da reflexão
(Chiappinni Leite e Marques, 1988)?

A forte presença da Indústria Cultural:


dos jogos de vídeo-game, aos filmes e novelas

No contexto da Indústria Cultural, conforme destaca Smolka (1993), as funções


e os usos da leitura e da escrita modificam-se.

Nesse processo de transformação, a linguagem verbal, linear, escrita,


literária, se encontra e se confronta com a “linguagem global” do corpo,
com a simultaneidade de informações, com a multiplicidade de formas
de dizer. [...] A dimensão funcional, pragmática, fragmentada e lúdica da
escrita (pensemos na propaganda) é experienciada no cotidiano e
transparece no trabalho de escritura das crianças (Idem:79-80).
122

Ou seja, as marcas da Indústria Cultural, afetando os modos de dizer das crianças


e jovens, adentram a escola, interferindo nos processos escolarizados de elaboração
da escrita. As crianças com as quais trabalhamos, neste início do século XXI, trazem
para a escola experiências pautadas pela Indústria Cultural. Nesse sentido é possível
afirmar que a Indústria Cultural é parte da condição social de produção imediata e
mais ampla da produção do texto. Imediata porque a criança chama as experiências
e as vivências desses espaços e momentos de interlocução para sua produção textual,
e mais ampla porque a recorrência da indústria cultural vem pautada por valores e
práticas hegemônicas que produzem um efeito, ou uma ilusão de homogeneidade em
relação à própria sociedade.
Os usos, funções e modos de organização da linguagem pela Indústria Cultural, como
variedade do discurso social, questionam pressuposições vigentes na escola, com relação
às características das narrativas e sua escrita e à aceitabilidade de suas novas condições e
possibilidades de organização.
Esses questionamentos me ocorreram, ao me encontrar com as marcas dessas outras
formas de organização do dizer e do narrar. Surpreendi-me com o texto de Hen, que
explicitamente mencionava e incorporava um jogo de vídeo-game bastante conhecido entre
as crianças. Vejamos:
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Já no título Hen explicitava o objeto cultural que mediatizou sua produção: “TOMB
RAIDER III – A nova aventura de Lara Croft”. Lara Croft é a personagem principal de um
jogo de vídeo-game e de um filme baseado nesse jogo eletrônico.
Em minha primeira leitura desse texto, considerei-o truncado. A personagem deslocava-
se, de repente, de um cenário para outro sem muitas explicações, tirava armas do nada...
Em minhas primeiras mediações, solicitei que Hen preenchesse aquilo que eu lia como
“lacunas”, como falta de informações na superfície de seu texto. No momento da revisão,
ele atendeu às minhas solicitações.
Posteriormente, retomei seu texto inicial para uma análise mais detida, tendo em vista a
dissertação, e fui me dando conta das marcas da linguagem do vídeo-game, presentes na
organização daquela narrativa. Mediado pelo jogo e pelo filme, Hen fora bastante fiel ao
estilo do “gênero” vídeo-game.
Em um vídeo-game, mais do que o enredo - que ao mesmo tempo existe e não existe,
uma vez que serve apenas para situar o cenário e caracterizar o personagem e seus modos
de ação -, o que interessa é a sucessão das ações. Sucessão que se explica como etapas do
jogo, reduzindo a relação causa/efeito existente entre as ações, à relação ganhar/perder.
Ao ganhar passa-se para a etapa seguinte, e ao perder reinicia-se a etapa em que se
estava. Dentro dessa lógica, o tempo narrativo e os efeitos das ações dos personagens
desfazem-se a cada re-início, que apaga o vivido. O efeito é de que a história não tem
conseqüências, nem tem fim, basta reiniciá-la.
Embora esse estilo estivesse presente nos enunciados do texto de Hen desde o início,
somente o percebi em uma outra leitura de sua produção inicial, depois de ter-lhe sugerido
alterações em seu texto.
Na re-leitura que fiz da primeira versão do texto de Hen, vi-me sobressaltada por uma
série de indagações: o que os objetos criados pela indústria cultural têm feito com a escrita,
com a leitura, com os modos de narrar? O que têm feito com as crianças? O que têm feito
com a escrita e a leitura escolares? E ainda, o que fazer, como escola, com a escrita
marcada pelas experiências de que as crianças são portadoras? Em outras palavras, como
intervir em um texto como o de Hen?
Essas dúvidas aumentaram ainda mais diante do texto de Felm. Ele também escreveu um
texto tendo como mediador o jogo eletrônico Tomb Raider.
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Tal como no texto de Hen, a personagem mudava continuamente de cenário, seus


sucessivos maridos eram assassinados, ela sempre estava correndo e lutando. Mas,
diferentemente do texto de seu colega, encontrei passagens que não consegui compreender
no texto de Felm.
Do ponto de vista da legibilidade, pareceu-me importante que ele trabalhasse com mais
cuidado as formas de dizer por escrito, procurando assegurar uma certa continuidade/
unidade de sentido (Koch e Travaglia, 1991) naquilo que vinha sendo dito. Mas como
indicar isso para o aluno?
De início me perguntava: como fazer a mediação da volta da criança ao seu texto? Que
indicações deixar para ela se seu texto parecia-me tão confuso?
Entre as dúvidas, anotei algumas perguntas que indicavam, a meu ver, informações que
faltavam ao texto.
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Mesmo tendo feito essas anotações, decidi realizar uma leitura juntamente com Felm. Ao
me colocar como leitora de seu texto, instaurei a condição de escritor no aluno, possibilitando-
lhe perceber, através das perguntas que lhe dirigia, que algumas passagens não estavam
suficientemente esclarecidas para mim.
Durante a leitura o aluno foi explicitando o que queria ter dito quando escreveu suas
idéias e eu o ajudei a reorganizar seu texto.
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Nesse processo de revisão, mediada pela leitura conjunta professora/autor, percebi


que a intervenção da professora, como representante-leitor, é fundamental para a criança
que escreveu o texto e também para a própria professora, ajudando-a a perceber que a
leitura que ela realiza é apenas uma das possíveis leituras do texto produzido, como
sugere Barthes (1984:74):

o texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos,
mas que realiza o próprio plural no sentido: um plural irredutível (e
não apenas aceitável). O Texto não é coexistência de sentidos, mas
passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação,
[...] o texto é um tecido.

Cabe, então, considerar que, mediados pelo uso dos jogos eletrônicos, produtos da
Indústria Cultural, como é o caso da Tomb Raider, e expostos a filmes baseados nesses
jogos, Hen e Felm produziram narrativas bastante fiéis ao estilo no qual se apoiaram para
a escritura e, nesse sentido, foram coerentes em seus enunciados.
Reconhecer, como professora, essa coerência, levanta, como assinala Smolka (1993:67),
indagações:

[...] será mesmo que a linguagem escrita “tem que explicar


completamente a situação para ser inteligível?” [...] É importante,
então, levar em conta, numa análise da linguagem escrita, suas
condições e funções: a escrita De quem? Para quem? Para quê? Como?
Quando? Onde? Ser ‘explicativa’ não é uma característica, uma
propriedade específica da escrita. É um efeito do seu uso em
determinadas circunstâncias.

Somente fazendo a leitura do texto produzido com seu autor – um jovem escrevinhador
em processo de apropriação e de elaboração da escrita – apreendi os limites de minha
mediação como professora, não para descartá-la e assumir a intocabilidade da produção
da criança, mas para compreendê-la em sua dimensão relacional, discursiva. Ou seja, a
leitura do texto produzido pelo aluno é relevante enquanto uma forma de mediação que
explicita tanto para a professora, quanto para o aluno, a compreensão que ambos elaboram
do texto, possibilitando, a um e outro, a negociação dos sentidos em jogo e a reflexividade
sobre os dilemas e possibilidades da escrita.
Conforme destaca Smolka (1993:111):

Um “outro” tenta ler. É justamente da leitura do outro, da leitura que o


outro faz (ou não consegue fazer) do meu texto (não esquecer o “outro”
que eu sou como leitor do meu próprio texto), do distanciamento que eu
tomo da minha escrita, que eu me organizo e apuro esta possibilidade de
linguagem, esta forma de dizer pela escritura.
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Dessa perspectiva, os efeitos da Indústria Cultural, mais do que exorcizados, devem, a


meu ver, ser compreendidos, explorados, confrontados com outros modos de dizer, para
que deles, alunos e professora possam apropriar-se e decidir como, quando, para quê e
com quem utilizá-los. Ainda conforme Smolka,

É a questão da condição – momento e espaço – da interlocução, lugar de


um jogo de representações onde a criança, na sua intenção, na sua
imaginação, na sua atividade como leitora e/ou escritora, organiza os traços,
ocupa os espaços... É a ocupação desses espaços pela atividade da criança
que dá a ela estatuto de leitora e escritora (Smolka, 1993:92-93).

Mediadas pelos filmes e pelos livros de Harry Poter, por livros lidos em sala, por uma
novela de TV, em exibição na época deste estudo, e influenciadas também, acredito, pela
força da palavra fantástico, presente no nome da proposta de produção que estávamos
desenvolvendo e que havia sido destacada por mim logo que a iniciamos, muitas crianças
recorreram a bruxos e bruxas, vampiros e outros seres imagináveis e ao estilo de narrativa
de que eles fazem parte.
A interlocução com esses outros textos, marca a construção das personagens, dotando
a criança de modos de caracterizá-las, de certas ambiências por onde elas circulam, de
marcas temporais, de modos de ação e de valores que as constituem. Também alimentam
o imaginário dos jovens autores que se apropriam de suas fontes inspiradoras de modos
diversos. As crianças reproduzem passagens das mesmas, imitam-nas, combinam alguns
de seus elementos com outras narrativas, transformam, em parte, personagens, cenários
e ações. Enfim, praticam a leitura e a escrita nos seus contextos de utilização, elaborando
significados e sentidos do/no texto, fazendo-se leitores e escrevinhadores, pois estes,
como assinala Nilma Lacerda (2003:228), “não nascem feitos [...] mas se formam com
trabalho e determinação”.
No jogo composicional da escritura, Car apropriou-se da personagem central do livro –
“A menina que queria ser bruxa” (1992), de Giselda Laporta Nicolelis - que havia sido lido
em sala de aula - entrelaçando-o à leitura de Harry Poter, ao livro “O fantástico mistério de
Feiurinha” e a experiências cotidianas vivenciadas por seres não fantásticos.
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Assumindo modos de caracterização próprios dos contos de fada, Car descreve sua
personagem como sendo “bonita, linda, tinha olhos azuis, cabelo loirinho, pele clara e
lábios vermelhos [...] todos falavam que ela era uma menina horrível”.
Possivelmente inspirada no filme de Harry Potter, em seu texto ela se reporta ao século
XIX. “Lá pelo século XIX nasceu uma bruxinha ra(sic) uma bruxinha, chamada Lina”.
A literatura, como assinala Smolka (1993:80):

como discurso escrito, revela, registra e trabalha formas e normas do


discurso social; ao mesmo tempo, instaura e amplia o espaço
interdiscursivo, na medida em que inclui outros interlocutores – de outros
lugares, de outros tempos – criando novas condições e novas possibilidades
de troca de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como
protagonistas no diálogo que se estabelece.

Apesar de ser possível reconhecer a presença desses outros textos na produção de Car,
é como interlocutora que ela os entretece, produzindo uma narrativa singular.
Como Car, nas produções individuais do binômio fantástico, Yna também se apropria
de trechos do livro, “A Moura Torta”, de Pedro Bandeira, lido em sala de aula, para
descrever características físicas e psicológicas das personagens.
Mo também produz um texto em interlocução com a história da “Feiurinha”.
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Neste texto, Mo, inspirada pela história de Pedro Bandeira, reúne as princesas dos contos
“A Bela e a Fera”, “Branca de Neve”, “Cinderela” e “Chapeuzinho Vermelho”. Essas princesas,
como na história de Bandeira, fazem uma reunião depois de muitos anos que não se viam.
Diferentemente daquele autor, Mo elege a perda de um dos sapatinhos de cristal como o
elemento desencadeador de sua narrativa, singularizando-a.
No texto em grupo, as alunas Mo, Car e Bi se reportam ao filme “Jumanji”, descrevendo,
nitidamente, seqüências de cenas daquela produção. “Certo dia resolveram investigar esse
barulho esquisito. Procuraram pela casa inteira, quando estavam desistindo resolveram ir
até sótão (sic). [...] Abriram o jogo e pensaram em jogar derrepente sem mais nem menos
as peças adaram sozinhas, agora não tinha jeito tinham que continuar a jogar (sic)”.
Mas foi Harry Potter o personagem que mais marcou os textos produzidos. O jogo de
quadribol, a assombração de trasgo, a fênix e outros elementos dessa narrativa foram
reproduzidos pelos alunos ou inseridos, como parte de um outro enredo, em seus textos.
Nessas apropriações, elementos do Harry Potter original apareciam re-elaborados,
nuançados pelas compreensões das crianças ou pelo contexto do enredo em que era inserido.
Meu gosto pessoal por esse gênero de textos e de filmes aproximou-me mais de meus
alunos. Embora meu interesse pelo tipo de fantasia presente nesse gênero não decorra de
minha condição de professora, contribuiu grandemente para ela, permitindo-me identificar
sua presença nos diversos textos produzidos e também os modos como as crianças os
utilizavam. O texto de Felf ilustra um desses modos de utilização.
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A produção cultural que mediatizou a produção do texto de Felf foi “Harry Potter e a
Pedra Filosofal”.
“No dia seguinte ele começou a jornada e depois de 10 km apareceu um cachorro de
10 metros de altura e com 7 cabeças e 10 patas e 4 rabos...”

Harry se virou – e viu, muito claramente, o que foi. Por um instante teve
a certeza de que entrara num pesadelo – era demais depois de tudo o
que já acontecera.
Não estavam numa sala, conforme ele supusera. Achavam-se num
corredor. O corredor proibido do terceiro andar. E agora sabiam por que
era proibido.
Estavam encarando os olhos de um cachorro monstruoso, um cachorro
que ocupava todo o espaço entre o teto e o piso. Tinha três cabeças. Três
pares de olhos que giravam enlouquecidos; três narizes, que franziam e
estremeciam farejando-os; três bocas babosas, a saliva escorrendo em
cordões viscosos das presas amarelas... (Rowling, J. K. “Harry Potter e a
Pedra Filosofal”, 2000:140-141).

Felf criou uma personagem fantástica combinando elementos extraídos de Harry Potter e
também incorporou ao seu discurso o clima e a ambiência presentes naquele texto. Porém,
fez modificações na imagem da qual se apropriou, criando um outro cão gigante apoiado
em uma criação já existente anteriormente.
O processo criativo humano, como afirma Vygotsky, apóia-se em nossa faculdade de
combinar o antigo com o novo a partir de elementos da sua própria experiência. Nesse
sentido, a interlocução com Harry Potter deu a Felf a possibilidade de pensar para além
daquilo que já havia sido pensado pela autora, Rowling, J. K. (2000).
Tal qual o texto de Felf, a inspiração para a criação da produção a seguir também se deu
a partir de Harry Potter. Nesta obra, “Harry Potter e a Câmara Secreta” (2000), a própria
autora, Rowling, J. K., apropria-se de uma personagem da mitologia grega, a ave Fênix.
Conta a lenda que essa ave fabulosa, cuja plumagem era uma combinação de vermelho,
azul-claro, púrpura e ouro, de porte imponente como a águia, era a única ave existente de
sua espécie, não podendo, assim, reproduzir-se como as demais. O mito, por isso, centrou-
se em sua morte e renascimento.
Quando sentia avizinhar-se a morte, Fênix reunia plantas aromáticas, incenso, amomo e
formava uma espécie de ninho. A partir desse ponto, há duas versões para sua morte e
renascimento: ela mesma põe fogo em sua pira perfumada ou a incendeia com seu próprio
calor, renascendo das cinzas uma nova Fênix12.

12
www.filonet.pro.br/mitologia/fenix.htm
www.cultodavida.online.pt/story. Disponível em 12/10/2004.
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Nota-se que os alunos apropriaram-se das idéias desenvolvidas pela autora, que por
sua vez havia criado uma personagem se apropriando das idéias de uma lenda da mitologia
grega, e criaram um pássaro com poderes de cura e de ressurreição: “A Fênix ficou triste ao
queimar a folha, mas ficou feliz ao sustentar a árvore. Então Fênix foi fazer uma magia com
um animal morto, ela viu o animal morto e começou a chorar e, quando as lágrimas da
Fênix caiu (sic) sobre o animal começou a se mexer e a Fênix descobriu que suas lágrimas
tinham poder de dar vida em animais mortos”.
Se observarmos o trecho abaixo perceberemos que os enunciados dos alunos se apoiavam
em um enunciado já existente, conferindo-lhe, porém, um caráter próprio, demonstrando
novamente que mesmo recorrendo a outros enunciados já existentes, cada um dos enunciados
produzidos traz características próprias de seu criador.

Uma nesga de vermelho passou por ele, e Harry ouviu unhas baterem
ao seu lado suavemente.
– Fawkes – disse com voz engrolada. – Você foi fantástico, Fawkes... – Ele
sentiu o pássaro deitar a bela cabeça no lugar em que a presa da serpente
o furara. [...].
– Você está morto, Harry Potter – disse a voz de Riddle do alto. – Morto.
Até o pássaro de Dumbledore sabe disso. Você está vendo o que ele está
fazendo, Potter? Está chorando. [...]
– Afaste-se dele, pássaro – disse a voz de Riddle inesperadamente. –
Afaste-se dele, eu falei, afaste-se...
Harry levantou a cabeça. Riddle estava apontando a varinha de Harry
para Fawkes; ouviu-se um estampido como o de um revólver e Fawkes
levantou vôo outra vez num redemoinho dourado e vermelho.
– Lágrimas de fênix... – disse Riddle baixinho, olhando o braço de Harry.
– É claro... poderes curativos... me esqueci... (Rowling, J. K. “Harry Potter
e a Câmara Secreta”, 2000:270-271).

Em função do conhecimento que eu tinha dos filmes vistos por meus alunos e de
muitos dos textos lidos por eles, pude perceber como as crianças os utilizavam e também
estabelecer uma certa cumplicidade com elas nos comentários que registrava em seus
trabalhos, após minha leitura.
Sempre que eu revelava conhecer os textos e filmes que apareciam em suas produções,
as crianças entusiasmavam-se e vinham perguntar: “você assistiu esse filme, tia?”, “você
também leu?”.
Todavia, para compreender seus modos de criação textual, não foi suficiente conhecer
suas leituras. No próprio movimento de tecer o trabalho docente, vivenciando o conflito e a
tensão do dia-a-dia, esbarrei em minha insuficiência de conhecimentos no campo da
textualidade, um campo que normalmente não faz parte da formação docente.
144

À medida que fui estudando e me apropriando desses conhecimentos, mediada por


Koch (1991, 1998), Barthes (1984) e Bakhtin (2002, 2003), minha relação com os textos
das crianças foi se modificando. Expandir o conhecimento teórico possibilitou-me
compreender melhor o próprio trabalho realizado, levando-me a apurar e diversificar os
modos de mediação da produção e revisão dos textos por meus alunos.
Acredito que esta é a beleza e a magia da vivência diária da docência. A professora que
ensina também aprende com seus alunos, aprende inclusive a buscar novos estudos, e tudo
isso revigora a história de seu fazer docente. Essa busca por outros saberes, conforme
assinala Smolka (1993), é concomitante à prática cotidiana, que é urgente, não pode parar
e esperar pelas “teorias”, mas se transforma e precisa ser pensada enquanto se realiza.
Surge uma outra história, tecida a pontos miúdos, pontos de sombra, mil vezes tecido
(Lacerda, 2001), que dão lugar a novos sentidos e a outros modos de interação no espaço
da sala de aula.
Um texto que me ensinou muito foi o de Gus.
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No caso de Gus, a mediadora de sua produção foi uma novela cujo enredo era a história
de vampiros. A novela “O Beijo do Vampiro” (Antônio Calmon, 2002), exibida pela Rede
Globo de Televisão, girava em torno de um garoto, filho de um vampiro e uma mulher normal.
Ao completar 13 anos ele tornou-se vampiro também, porém era um vampiro do bem.
Gus escreve um texto que gira em torno de um vampiro e um cachorro. Em minha
primeira leitura de seu texto, percebi claramente que Gus baseara-se na novela, porém eu
não havia notado que, ao criar um novo texto a partir dela, o menino abordara um dilema
da cultura humana – a luta entre o bem e o mal – que vinha sendo tratado, inclusive de
forma cômica, na novela.
A princípio eu considerei que ao fazer o vampiro comer o cachorro Gus liquidava com
sua narrativa. “Morte significa[va] ‘fim’, ‘término’, ‘ponto final’, ‘acabou a história’ (Smolka,
1993:96)”. Minhas intervenções então apontavam na direção de uma revisão dessa
passagem da narrativa.
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Ao reescrever o texto em sua segunda versão Gus procurou atender às solicitações que
fiz, mas manteve o foco do que queria contar: o vampiro come o cachorro.
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A persistência de Gus levou-me a fazer uma análise mais detida de seu texto. Foi quando
percebi que nele havia uma dinâmica, marcada pela passagem do tempo. Gus escrevia:
“passa um tempão, o vampiro ressuscita como vampiro, os vampiros continuam; passa
outro tempão e tudo começa de novo”.
Ele utilizava, desde sua primeira versão, expressões como “passou dois cecolos (sic)”, “o
homem resusitou (sic)”, “morreu [...] e comessou (sic) tudo de novo, e viveram eternamente”.
Através desses usos da língua ele marcava uma circularidade em sua narrativa, elaborando
sentidos e valores relativos ao tempo e à finitude da vida.
Através dessa análise mais detida fui entendendo a dinâmica do enredo da narrativa de
Gus e compreendendo que a idéia que perpassava o seu texto era a da luta entre o bem e
o mal. E que entre o bem e o mal estava a morte, que punia a pessoa ruim. Em sua
produção emergiam crenças, rituais e valores, e sua voz adentrava ao texto de um modo
particular, na quarta versão, quando dizia que “coando moreu uma pessoa má, virou vampiro
e voltou tudo de novo de vampiro. Ai Deus tirrou todos os vanpiros do mundo iteiro (sic)”.
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Em seu texto o mal era punido sendo transformado em vampiro e o bem, representado
por Deus, acabava com os vampiros no mundo inteiro. Ficção e narrativa se confundem no
texto de Gus, como podemos entender através de Smolka:

o imaginário também ganha força. Fatos e crenças, ritos e mitos, medos e


desejos são explicitados. É o discurso cotidiano [...] marcado pelo trabalho
de escritura [...] e que traz, portanto, as marcas da realidade sócio-cultural
dos indivíduos e dos grupos em interação” (Smolka, 1993:100).

Fomos educados na dicotomia entre o bem e o mal. O bem está de um lado e o mal
de outro. E a novela, como um meio de comunicação de massa, que traz as marcas da
indústria cultural, marca também a prática escolar. Nesse sentido, “a linguagem escrita
faz parte do discurso social no contexto das sociedades letradas e da indústria cultural”
(Smolka, 1993:66). A criança chama esse embate para dentro da sua narrativa e vai
procurando elaborar os sentidos produzidos por essa forma de ver o mundo, que, de
resto, é uma forma consolidada no mundo ocidental.
A negociação de Gus, ajustando sua produção às demandas da professora, de modo a
preservar o foco narrativo que lhe interessava, redirecionou minha compreensão de seu
texto, levando-me a pensar o quanto nós, professores, muitas vezes trabalhamos em função
de um certo padrão de escrita e de nossas leituras, empobrecendo as possibilidades da
produção textual como espaço de trabalho e lugar de interação.
Olhando para o que os alunos produziam e procurando fazer intervenções que entrassem
em sintonia com o que eles queriam dizer, pude me experimentar em novos modos de
interação professor/alunos/textos.

Construindo um modo de participação


“É pau, é pedra,
É o fim do caminho [?]”
Tom Jobim

Novamente o trabalho de Fab, aluna cuja produção foi comentada no capítulo anterior,
chamou-me particularmente a atenção. O texto que ela e sua parceira de dupla produziram
entrelaçava-se a novela “O Beijo do Vampiro”, o modo como Fab lidou com a tarefa de escritura foi
o que atraiu minha atenção, como relato a seguir.
Ao circular pelas carteiras, durante o desenvolvimento da atividade, percebi que ela estava fazendo
alguns desenhos em sua agenda. Chegando perto da aluna, perguntei o que eram aqueles desenhos.
Imediatamente ela me respondeu que eram a história que estava criando.
Diante de sua dificuldade para escrever, e desejosa de participar da atividade proposta,
Fab não ficou parada: ela buscou um recurso que dominava bem e no qual poderia se
apoiar. Diferentemente de sua primeira versão do reconto de “Guilherme Augusto Araújo
Fernandes”, quando o desenho feito por ela não tinha relação com o texto lido, no momento
da produção do binômio-fantástico, ela e sua parceira produziram o texto em duas versões:
She registrava-o por escrito. Fab registrava-o através de desenhos.
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Situações como essa geram impasses para a professora. Como considerar a produção
de Fab? Eu poderia simplesmente desconsiderar os seus desenhos, por não atenderem à
atividade solicitada, não os reconhecendo como componentes do processo de produção
textual. Poderia, por outro lado, compreendê-los como um mediador externo do qual a
menina lançara mão para realizar a atividade e para chegar à escrita.
O que eu iria priorizar, o que ela não fazia ou o que ela ainda não fazia porque estava
elaborando algo? Fiz a opção pelo que ela ainda estava elaborando, por considerar que
essas elaborações não eram a afirmação da sua incapacidade, mas a afirmação das suas
possibilidades. Fab não se colocava como alguém que não se sentia capaz de fazer, mas
como alguém que, fazendo uso do que sabia, criava mecanismos, abria caminhos, mesmo
que sinuosos, para dar conta de responder ao que lhe era solicitado.
Smolka (1989:42) ajuda-me a aprofundar nessa reflexão.

Lembro, aqui, o início de um artigo de Leontiev (1978) dizendo que


“milhares e milhares de crianças de todos os países do mundo manifestam
um atraso no seu desenvolvimento intelectual quando sob todos os outros
pontos de vista nada as distingue essencialmente das outras crianças da
sua idade”. Aí eu pergunto qual é o tempo e a ordem deste
desenvolvimento? Existe atraso porque há um padrão, uma cronologia
baseada em faixas etárias, que por sua vez se baseiam em marcas ou
indicadores de desenvolvimento que passaram a ser absolutizados, mas
que não deixam de ser um modo arbitrário e convencional de mensuração.
Quais têm sido nossos pontos ou parâmetros de referência? Muitas vezes,
em nome do conhecimento científico, não estaremos falando de uma
criança ideal, justamente daquela que não existe?

Fab era real, ela existia e estava ali, sentada a minha frente. Era um sujeito em constituição
nas interações comigo, com os colegas, com o trabalho de escritura e vinha produzindo
novos sentidos e significados em seu processo de aprendizagem da língua escrita. Foi assim
que “olhei” para ela e para a sua produção, apostando com Vygotsky (1989) que as relações
de ensino, como condição de produção imediata de seu aprendizado, poderiam mediar a
sua apropriação e elaboração da escrita.

Do vivido ao sentido... As elaborações dos alunos


Como um modo de dizer, a escrita também foi um espaço de elaboração de experiências
vividas pelas crianças. Algumas delas transformaram-se em personagens de suas histórias,
revelando e elaborando, pela palavra, as relações e os sentimentos experimentados no
cotidiano das relações familiares e escolares.
Para adensar este tema, vamos considerar o texto de Luf.
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Em seu texto Luf “brinca de ser alguém”. Reportando-se ao filme “Gladiador”, Universal
Pictures, Direção de Ridley Scott (2000), ele cria um enredo no qual coloca-se como a
personagem central de sua história. Nessa circunstância, passa a ser um herói que
consegue ganhar a mão da princesa após enfrentar várias batalhas, tal qual a
personagem central do filme.
Segundo Góes e Lopes (2004), ao brincar de “ser alguém”, a criança assume um
personagem, um “eu fictício” experienciando o “eu do outro” (expressões que as autoras
emprestam, respectivamente, de Vygotsky, 1984 e Bakhtin, 1997). Esse faz-de-conta guiado
pela imaginação e pela linguagem permite à criança elaborar-se e elaborar o outro como
membros da cultura e como indivíduos singulares (Góes e Lopes, op. cit.).
Brincando, imaginando, Luf utiliza a linguagem como espaço interdiscursivo e
ocupa esse espaço experimentando-se, relacionando-se, imaginando-se, expressando-
se, compreendendo-se, confrontando-se, negociando, transformando-se, sendo
(Fontana e Cruz, 1997).
Luf assume-se como um lutador, um gladiador, que está sempre enfrentando os embates
e vai vencendo as dificuldades à medida em que lhe vão sendo impostas. Esse embate
parece não ter fim, tanto que Luf finaliza seu texto da seguinte forma: “se casaram e viveram
felises (sic.) mas com problemas”.
Outra característica que se ressalta em seu texto é o modo como ele compõe o final,
rompendo com a forma clássica dos contos de fadas: “e viveram felizes para sempre”.
Quem vive feliz para sempre? Luf parece de fato tomar o texto como espaço de elaboração
de sentidos. Como gladiador, Luf vence os embates e, ao final do texto, ele se volta para
a realidade, na qual existe a possibilidade da felicidade, ainda que com problemas.
Tal qual Luf, Lui entra no jogo imaginário e brinca de faz-de-conta ao elaborar seu texto.
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A personagem principal, sua melhor amiga, é transformada por ela em uma princesa
que se apaixona por um cupido, que na verdade é um colega de classe, e mais, é o
“paquera” da “personagem” na vida real. Tanto os nomes dos pais da princesa quanto as
situações descritas correspondem ao mundo real. No entanto, através do jogo de papéis,
ela recria a situação real como uma situação imaginária.
Compreendemos, com Smolka, que

São os colegas da classe que se transformam em personagens de uma


história – em que se revelam as relações e os sentimentos de um namoro,
de uma conquista, de um casamento [...]. A situação imediata (de sala
de aula) se integra num contexto mais abrangente (cotidiano das relações
familiares) e são articulados com outras realidades e outros dizeres (contos
de fadas) (Smolka, 1993: 102).

Como destaquei anteriormente, o desenvolvimento desta pesquisa deu-se com crianças


de uma terceira série, portanto, crianças com idade em torno de nove anos, para as quais
essa questão da afetividade é bastante relevante. Em minha experiência tenho percebido
que nesta faixa etária as crianças começam a despertar o interesse pelo outro do outro
sexo. Há, portanto, uma centralidade da relação afetiva em sala de aula, estabelecendo-se
um jogo de sedução entre meninos e meninas. Nesse sentido, as crianças vão buscar o que
contar nas experiências cotidianas, retiradas da própria vida (Benjamin, 1985). Pela escrita
a criança se envolve com uma brincadeira que possibilita a ela experimentar desejos não
realizáveis. Segundo Vygotsky (1989:106)

quando surgem os desejos que não podem ser [...] satisfeitos ou esquecidos
[...] o comportamento da criança muda. Para resolver essa tensão, a
criança [...] envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos
não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos
de brinquedo.

Encontrei um outro modo de abordar as próprias experiências, pela palavra, no texto de Ul.
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Ul escreve um texto cujas personagens principais são animais, fazendo referência às


suas próprias vivências cotidianas. Eu, como professora não tinha conhecimento sobre o
gosto que a família de Ul nutre por animais, mas tive a possibilidade de observar a relação
que seus pais têm com eles. Defronte à escola vários cães estavam abandonados e foram
“adotados” por algumas famílias, que ao trazerem seus filhos para a escola, paravam no
local para alimentá-los. Tanto o pai quanto a mãe de Ul se envolveram com esses animais
e quase todos os dias, ao chegar à escola, eu observava que eles, juntamente com a filha,
estavam ali, a acariciá-los.
São os bichos, gata e cachorra, as personagens centrais de seu texto. A cachorra, tal
qual os cães defronte à escola, enfrenta uma situação de abandono e é recolhida por uma
moça. Não seria essa a vontade de Ul com relação a esses animais?
No texto de Ul foi interessante notar que ela criou diálogos entre os animais escrevendo
“na língua deles” e depois explicitando para o leitor: “que na nossa língua quer dizer...” Em
uma primeira leitura de professora, este recurso chamou minha atenção como um recurso
criativo. Hoje, em meu reencontro com este texto para a análise dos dados, depois dos
diversos estudos que realizei, consigo perceber que para além dessa dimensão criativa de
seus enunciados Ul estava explorando, pela escrita, a própria dimensão comunicativa da
linguagem, ou seja, no interior do próprio texto escrito ela elabora a dimensão comunicativa
da própria escrita, na medida em que só podemos estabelecer relações com o outro quando
podemos partilhar do referencial desse outro, da língua desse outro.

Do vivido ao sentido... As elaborações da professora


Olhando para o passado, pergunto-me: com que preocupação lemos os textos que
nossos alunos produzem? Nós os lemos como avaliadores ou como leitores? No entanto,
avaliação e leitura não são excludentes. A primeira pressupõe a segunda. A segunda supera
os limites da primeira. Ou seja, nem toda leitura é avaliativa. Pode-se ler um texto com
desprendimento da preocupação com a avaliação e com real interesse em saber o que seu
autor ou autora quiseram contar, entendendo que é possível conhecê-los, é possível participar
da dinâmica interlocutiva com eles, mediados por seus textos.
Em uma relação pautada muito mais na avaliação - que foi o caso de minhas mediações
iniciais - a leitura fica submetida ao trabalho sobre a linguagem13, resultando, muitas
vezes, na imposição de uma interpretação – a da professora – sobre os sentidos elaborados
pelo aluno, em favor da coesão, da coerência, da adequação gramatical. A minha
relação de professora com os textos nesse caso era muito mais movida pela busca de
informações sobre os saberes e os não saberes de seus alunos do que exatamente pela
narração das suas experiências.

13
Geraldi (2001) distingue “trabalho sobre a linguagem” e “trabalho com a linguagem”. Segundo ele, o trabalho sobre a
linguagem contempla os aspectos formais da língua e o trabalho com a linguagem considera-a em sua dimensão discursiva. Nesse
sentido, o trabalho com a linguagem é mais amplo e abarca também o trabalho sobre a linguagem.
166

Parece-me então que no início da pesquisa, eu encaminhava as crianças para refazerem


seus textos em detrimento da própria narrativa, da própria narratividade. No entanto, como
aprendemos com Barthes (1984) o texto é plural, é passagem, travessia, não podendo
depender de uma única interpretação. Os limites da interpretação única foram se dando a
ver nas interlocuções com as crianças, que, embora atendessem a minhas sugestões, não
abriam mão das histórias que queriam contar.
Desse modo essas crianças também mediaram o olhar da professora ajudando-a a
perceber os efeitos que seus apontamentos produziam sobre as histórias que queriam
contar. Assim, fui percebendo que, muitas vezes, o que eu sugeria a elas acabava
distorcendo o texto inicial mais do que contribuia para uma elaboração mais cuidadosa.
Eu acabava conduzindo a criança para uma outra idéia ao invés de sustentá-la naquilo
que ela vinha dizendo, empobrecendo a dimensão discursiva do texto como espaço
de elaboração de sentidos.
À medida em que eu prosseguia no trabalho fui percebendo que os enunciados de meus
alunos apontavam-me pistas de que é na relação que o professor estabelece com o texto
de seus alunos que o trabalho pedagógico pode ser ressignificado, no sentido de tomar as
produções das crianças como relevantes em um “processo de construção do conhecimento
na interdiscursividade, isto é, numa prática dialógica, discursiva, num espaço de elaboração
inter (intra) subjetivo” (Smolka, 1993:71).
Nessa perspectiva, o papel que o professor ocupa é o de leitor que, expondo-se aos
efeitos de sentidos suscitados pelos textos de seus alunos, busca, com eles, outras formas
de enunciá-los. A avaliação desloca-se da imediaticidade do texto produzido para o processo
de desenvolvimento da escrita vivido pela criança.
A volta a meus apontamentos nos textos das crianças – olhar para os meus próprios
modos de mediação – instaurou em mim a reflexividade sobre o processo avaliativo que
vivia. Fui me modificando no processo e percebendo que o trabalho com a linguagem é
mais abrangente e contém o trabalho sobre a linguagem.
Nesse sentido, a reflexividade da professora também foi sendo mediada pela tarefa que
ela se impunha na relação com a criança: mediar a volta da criança ao próprio texto tendo
em vista o desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever.
Para conseguir ler os textos de meus alunos com outro olhar sustentando a interlocução
com eles, a mediação dos estudos da linguagem foi fundamental. Aprendi com Koch e
Travaglia (1991:24-25) que:

...a coerência [textual] aparece assim como uma organização reticulada,


tentacular e hierarquizada do texto. A continuidade [de sentidos entre os
conhecimentos ativados pelas expressões do texto] estabelece uma
coesão conceitual cognitiva entre os elementos do texto através de
processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor e receptor)
do texto e são não só de tipo lógico, mas também dependem de fatores
sócio-culturais diversos e de fatores interpessoais entre os quais podemos
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citar: a) as intenções comunicativas dos participantes da ocorrência


comunicativa de que o texto é o instrumento; b) as formas de influência
do falante na situação de fala; c) as regras sociais que regem o
relacionamento entre pessoas ocupando determinados ‘lugares sociais’
pais/filhos, professor/aluno, patrão/empregado, marido/mulher,
vendedor/comprador, etc.

Após ter vivenciado o processo, concordo inteiramente com os dizeres de Soares (2002),
que ao explanar sobre as pesquisas referentes à formação e à prática de professores, nos
ensina que

só estará habilitado para uma ação pedagógica pertinente e competente,


na área da aquisição da escrita, um professor cuja formação tenha sido
influenciada (ou, mais que isso, tinha sido marcada, determinada) pelas
pesquisas nessa área específica. É claro que essa afirmação traz implícito
o pressuposto de que uma “ação pedagógica pertinente e competente”
é aquela que se define não a priori, mas no próprio processo de ensino,
enquanto este ocorre, sempre a partir e em função da identificação e
compreensão dos processos de aprendizagem de um determinado objeto
de conhecimento, identificação e compreensão que só podem resultar
do convívio e da familiaridade com as pesquisas sobre esse objeto e sobre
o processo de sua aprendizagem (Soares, 2002:100).

Apresento a seguir uma seleção de falas e gestos de algumas das crianças que indiciaram-
me o sentimento de prazer experimentado diante de uma produção de texto na qual puderam
falar, e muito, socializar idéias, pensar, criar e, realmente, dar asas à imaginação...
“Que legal!... Eu adoro escrever... (Ca)”, “Hoje nós vamos fazer a revisão do texto, tia
Cláudia? (Thi)”, “Tia, eu preciso acabar o meu texto, hoje vamos escrever? (Ví)”, “Tia, eu
ainda não terminei meu texto, vai ser hoje que eu vou terminar? (Le)”, “Tia, posso fazer essa
letra diferente pra mostrar que ele fala enrolado? (Na)”, “Tia Cláudia, eu escrevi assim
porque ele está gritando. (Hel)”, “Tia, eu vou fazer uns desenhos diferentes no texto pra
representar um jeito diferente de escrever, tá? (Leo)”, “Tia, posso escrever outro texto? Eu
não achei que esse ficou bom! (Yna)”.
Esses enunciados dos alunos me reportam a Manoel de Barros “Memórias Inventadas -
A infância” (2003).
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T UDO O QUE NÃO INVENTO É FALSO.


Fraseador
VII
Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na
fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro.
Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de
fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador.
Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a
cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais
velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu:
Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar
uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe
baixou a cabeça um pouco. O pai continuou meio vago. Mas não
botou enxada.
169

“Não vou colocar enxadas nas mãos de “meus” alunos! Quero ser como o pai...”,
pensei. No exercício de viver o pai em mim, fui aprendendo a compartilhar modelos,
compartilhar as normas da língua, não para que meus alunos se fixassem nelas como
sendo as formas certas e únicas, mas para que se apropriassem delas para poderem dizer
suas histórias e dizer-se nelas, podendo até romper com as normas, não por desconhecê-
las, mas por discordar delas.
No percorrer desta etapa fui me sentindo mais segura, mais preparada como professora.
As disciplinas cursadas no Mestrado davam suporte para a pesquisadora que em mim se
desenvolvia, e esta por sua vez incutia, na professora, mais segurança na tomada de decisões.
Se fui percebendo que meu trabalho diferenciava-se das práticas dominantes no contexto
escolar, levando algumas pessoas, em certos momentos, a me questionarem, a colocarem
em dúvidas as minhas opções, fui me dando conta, também, que estava construindo um
conhecimento mais sólido com relação a minha ação docente.
No decorrer desta pesquisa, cheguei a ter a sensação de que as crianças passaram a
gostar mais de mim, e eu delas. Hoje eu também gosto mais da professora que se anuncia
em mim, embora respeite e acolha com carinho a professora que eu era, com seus erros e
acertos, pois foram suas inquietações que impulsionaram a busca de respostas que fazem
com que hoje eu tome o trabalho docente em minhas próprias mãos.
É como se partes isoladas de mim mesma começassem a adquirir unicidade e
passassem a fazer sentido. Eu tinha a percepção de que passava a compreender melhor
as especificidades do papel da professora. Era como se eu estivesse chegando a um
lugar de compreensão de meu próprio trabalho: de saber fazer, de sua função social,
política, histórica e técnica. Compreendi a arte de realmente ensinar meus alunos e de
aprender com eles novas formas de ensiná-los. Eu passava do simples desejo de fazê-lo
ao cumprimento do ato.
Bakhtin, na obra “Estética da Criação Verbal” (2003), nos remete aos três campos da
cultura humana – a ciência, a arte e a vida. Para ele, “a arte é de uma presunção
excessivamente atrevida, é patética demais, pois não lhe cabe responder pela vida que, é
claro, não lhe anda no encalço. ‘Sim, mas onde é que nós temos essa arte – diz a vida -,
nós temos a prosa do dia-a-dia’ (op. cit.:XXXIII).
Vivenciando minhas ações docentes do dia-a-dia, sujeita a acertos e erros, juntas,
eu e as crianças, passamos a compreender melhor o significado dessa arte de ensinar
– e de aprender – que agora revestia de sentido o fazer da professora e o estar ali
daqueles alunos.
Noto que minha responsabilidade aumentou através da pesquisa, dos conhecimentos
de que fui me apropriando – da ciência. Estudei questões que me inquietavam, trabalhei
nelas, com elas e por elas. Vivenciei novas experiências. “Pelo que vivenciei e compreendi
na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido
nela não permaneçam inativos” (Bakhtin, op. cit.: XXXIV).
170

Das perguntas iniciais que me trouxeram até aqui, referentes à produção textual nas
séries iniciais - por que fazer isso ou aquilo? Por que fazer isso e não aquilo? - posso dizer
que na realização deste trabalho sinto-me mais capaz na tomada de decisões. Se nelas
ainda erro aprendo também com os equívocos, porque vou em busca das suas origens e
das suposições que os alimentaram. Hoje sei, mais do que antes, fundamentar teoricamente
minhas ações e, mais que isso, me vejo capaz de fazer reflexões de cunho teórico-prático
sobre a prática da produção de textos nas séries iniciais do ensino fundamental, e isso tem
me permitido ousar no meu fazer docente do dia-a-dia. Ousadia que, se não me isenta de
erros, tampouco me isenta de culpas, pois

a culpa também está vinculada à responsabilidade. [...] O indivíduo deve


tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não
só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar
uns nos outros na unidade da culpa e da responsabilidade (Bakhtin, idem).

A cada passo materializado, minha responsabilidade perante as crianças, acima de tudo,


tornava-se cada vez maior, juntamente com minhas indagações quanto aos modos de dar
continuidade ao processo em curso. Que propostas de produção textual poderiam ser
incentivadoras e desafiadoras para elas? Como eu faria as mediações a partir de então?
Aproveitando uma oportunidade das coincidências inexplicáveis da roda viva em que
gira a escola, surgiu a necessidade da produção de um texto para uma mostra cultural.
Como desafio a mim mesma, propus-me a realizar com as crianças a produção de um
texto coletivo. Nesse processo de produção textual eu estaria me experimentando em uma
nova condição de produção: eu e as crianças seríamos um grupo produzindo, juntos, um
único e mesmo texto.
171

Escrevendo juntos

A quinta produção textual do ano, realizada coletivamente


Final de setembro, terceiro trimestre escolar, início de uma nova produção textual: uma
produção de texto coletivo, um texto científico com caráter informativo.
Esse texto foi o culminar de um projeto mais amplo, o projeto “Vento Verde”, desenvolvido
desde o início do ano na escola sob a supervisão de uma engenheira agrônoma. Nesse
projeto, em contatos quinzenais com a agrônoma, as crianças receberam uma série de
informações a respeito da origem do Sistema Solar, da posição da Terra nesse sistema,
das características da Terra, do surgimento da vida no planeta, e discutiram assuntos
relacionados à problemática ambiental.
Em outubro, surgiu a possibilidade de apresentar os estudos desenvolvidos no projeto
“Vento Verde” na mostra cultural da escola, que seria realizada no mês de novembro. A
proposta foi a de que escrevêssemos um texto que abriria o “Livro da Terra”.
Decidi que escreveríamos um texto coletivo. Essa produção textual foi se compondo aos
poucos com as palavras que fomos apanhando de uns e lançando a outros, que por sua
vez as lançavam a outros que as apanhavam e as lançavam ainda a outros, tecendo o
texto entre os protagonistas desse acontecimento.
Como o propósito discursivo deste texto (a mostra) estava claro para as crianças desde
o início, a figura do leitor, com a qual viéramos nos familiarizando ao longo do ano,
materializou-se na imagem do público numeroso e diverso que teria acesso à mostra.
Durante a elaboração do texto, as referências a esses leitores foram recorrentes e os
alunos sempre destacavam os cuidados que deveríamos ter ao escrever.
Ao privilegiar o texto coletivo como proposta, o fiz pensando em possibilitar às crianças
a participação em um processo de escritura em que elas, ocupando o lugar de co-
autoria, precisassem escutar seus pares, trabalhar com as idéias por eles sugeridas, negociar
com eles os sentidos, a escolha das palavras e as formas de compô-las. Minha aposta era
a de que a relação de co-autoria, instaurando um espaço de interlocução voltada para o
texto em produção, poderia explicitar-lhes as negociações envolvidas, mas nem sempre
percebidas, na produção de um texto: negociações entre as linguagens, os modos de
dizer e as formas de registro do que se quer dizer.
Modificadas as condições sociais de produção, nessa nova experiência de escrevermos
juntos, negociando sentidos, trocando idéias, realizando os ajustes necessários ao leitor,
modificaram-se também as possibilidades de mediação da professora. Esse momento
conjunto possibilitou-me dirigir a atenção das crianças para alguns processos envolvidos
na escrita, durante a própria escrita, destacando seus entrecruzamentos com a oralidade,
as escolhas lexicais e composicionais que vão sendo feitas ao longo do texto.
172

Colocando-me como escriba, eu direcionava não só o registro, mas as necessárias


voltas a ele, relendo com as crianças os trechos já registrados antes de prosseguirmos,
ensinando-lhes uma série de procedimentos que acompanham a escrita de um
“escrevinhador” experiente.
Nesses momentos de retomada, assumindo o papel de representante leitor, eu questionava
as formas de registro escolhidas. Será que nossos leitores entenderiam o que estávamos
tentando comunicar-lhes? Será que aquela era a melhor forma de organizar as idéias que
queríamos expressar? Considerando que as palavras nos remetem a diversos significados,
desencadeando inúmeros sentidos, indagava-lhes quais seriam as palavras mais adequadas
para usarmos nos enunciados que estávamos produzindo e se elas estariam sustentando a
comunicação com nossos leitores.
Visando garantir a função comunicativa da linguagem, muitas vezes apagávamos o que
já se encontrava “pronto” e reescrevíamos novamente as idéias, de outro modo, com outras
palavras... Eram os momentos de revisão acontecendo durante o processo de produção,
era o olhar se voltando para a atividade de conhecimento que estava sendo elaborada,
possibilitando a emergência da reflexividade nas crianças, através das mediações da
professora e dos próprios pares. Nesses momentos, eu ajudava as crianças a organizarem
verbalmente seus pensamentos; problematizava suas elaborações iniciais, levando-as a
retomá-las, a refletir sobre possibilidades não consideradas, a refletir sobre seus próprios
modos de pensar.
Outra particularidade dessa produção foi a exploração do gênero científico, que, como
assinala Bakhtin (2003), nascendo em condições de comunicação discursiva específicas de
um certo campo, implica o conhecimento do conteúdo temático, do estilo e dos recursos
composicionais nele estabilizados.

Dos fatos ao texto


Quando fomos solicitados a apresentar uma síntese do projeto “Vento Verde”, eu,
como professora de Português, e a professora de Ciências, retomamos com as crianças o
que elas haviam aprendido. Recorremos a algumas anotações de seus cadernos. A
professora de Ciências forneceu algumas informações complementares, indicou outras
fontes de consultas, ofereceu outros textos para que as crianças lessem.
Somente de posse de todo esse material iniciamos a elaboração do texto. Nesse sentido,
pode-se dizer que foi em interlocução com as aulas da engenheira agrônoma, com as
aulas de Ciências e com a leitura das anotações e textos complementares que realizamos o
processo de produção textual.
Os momentos da produção do texto configuraram uma volta a situações e leituras que o
antecederam e propiciaram, por sua vez, a elaboração de um novo dizer sobre eles e sobre os
conceitos neles trabalhados. Nesse processo, as crianças dialogaram com os conceitos e informações
aprendidos, articulando-os às vozes, saberes e experiências que as constituíam (Fontana, 2000).
173

Como nosso texto seria produzido durante várias aulas, sentimos a necessidade de
elaborar um roteiro com os temas que seriam abordados para que não nos perdêssemos
e para que pudéssemos articular as idéias que já haviam sido escritas com o que ainda
tínhamos por dizer.
Para iniciarmos a elaboração do roteiro – outro gênero discursivo - pedi às crianças que
me dissessem quais os assuntos que haviam sido trabalhados durante o desenvolvimento
do projeto. Inicialmente, elas enunciaram os assuntos que haviam sido trabalhados nos
últimos encontros, porém algumas delas recordavam-se de informações tratadas nos
encontros iniciais. Assim, sem uma determinada ordenação de idéias, as crianças
conseguiram recuperar tudo o que havia sido discutido no decorrer do ano.
Conforme foram enunciando os temas, eu os fui escrevendo na lousa. Porém, ao
terminarmos de recuperar o conjunto de informações que haviam sido trabalhadas desde o
início do ano, frente à grande quantidade de informações de que dispúnhamos, percebi
que seria necessário fazer uma mediação no sentido de chamar-lhes a atenção para o fato
de que precisaríamos ordenar esses temas.
Foi preciso explicitar às crianças que nosso texto trataria da história da origem do planeta,
bem como da origem dos seres humanos, e, que essa idéia de origem determina uma certa
lógica de ordenação, sem a qual nosso texto não produziria sentido para o leitor. Pois,
conforme Bakhtin,

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de


um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela
especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas) (Bakhtin, 2003:282).

A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um


determinado gênero do discurso, guia-nos no processo do nosso discurso.
[...] O gênero escolhido nos sugere os tipos e os seus vínculos
composicionais (Bakhtin, op. cit., 286).

Com a produção desse roteiro, compartilhei com as crianças a ordenação lógica de um


conjunto de informações, em interlocução com o nosso leitor projetado.
Na produção do roteiro, enfrentamos algumas dificuldades. Os vínculos composicionais
não estavam se mostrando lógicos para as crianças. Eram muitas informações detalhadas
e nós nos confundíamos na seqüenciação. Assim, foi necessário recorrer à agrônoma e à
professora de Ciências, para esclarecermos certos conceitos e informações.
174

Roteiro da 3ª série A:
Levantamento dos dados para a produção do texto sobre a evolução
da Terra.
1. Big Bang e início do universo;
2. Partículas;
3. Nuvens de partículas;
4. Estrelas – Sol;
5. Poeira cósmica;
6. Gases;
7. Planetas (Terra) localização na galáxia;
8. Meteoros;
9. Surgimento dos vulcões e das montanhas;
10. Chuva que enche os buracos causados pelos meteoros –
formação dos oceanos;
11. Surgimento da vida na água e vegetais (uma célula que depois
se reproduz);
12. Peixes;
13. As águas começam a diminuir;
14. Peixes se desenvolvem e surgem os répteis;
15. Surgem as aves;
16. Surgem pássaros enormes;
17. Surgem dinossauros;
18. Extinção dos dinossauros;
19. Origem e a evolução (Plesiadapis) (andam com quatro membros
e depois foram ficando eretos e passaram a usar só os pés);
20. Homens das cavernas (Lucy – Homo habilis);
21. Como descobriram o fogo;
22. Homo Sapiens Sapiens aprende a fazer e a utilizar armas para
caça e faz utensílios.
175

Roteiro da 3ª série B:
Levantamento dos dados para a produção do texto:
1. Big Bang – surgimento do Universo;
2. Partículas;
3. Nuvens;
4. Estrelas (Sol);
5. Poeira cósmica;
6. Gases;
7. Surgimento da Terra (Formação dos Planetas);
8. Meteoros;
9. Montanhas e vulcões;
10. Chuva;
11. Formação dos grandes oceanos;
12. Reprodução das bactérias;
13. Surgimento da vida na água (célula) e dos vegetais;
14. Peixes e animais aquáticos;
15. Diminuição das águas;
16. Répteis;
17. Surgimento das aves e dos grandes pássaros;
18. Dinossauros e o afastamento dos continentes;
19. Plesiadapis – o 1º mamífero;
20. Origem do homem;
21. Evolução do homem – apoiava-se nos quatro membros e foi
ficando ereto passando a andar com dois pés;
22. Homem das cavernas;
23. Lucy – homo sapiens (homem da pedra);
24. Descobrimento do fogo;
25. Homo Sapiens Sapiens;
26. Surgimento dos materiais feitos pelo homem – ferramentas.
176

Por serem duas turmas e a professora uma só, creio que isso tenha influenciado na
elaboração dos roteiros, pois é possível perceber que ambos ficaram bastante semelhantes,
o que não se repetiu entretanto no processo da produção do texto, tendo sido produzidos
dois textos bastante distintos.

Os textos produzidos

3ª série A
O PASSADO: BIG BANG. O PRESENTE: SERES HUMANOS.
O FUTURO: INCERTEZA!

Nosso planeta agregou-se há cinco bilhões de anos, a partir, provavelmente,


de detritos cósmicos resultantes da explosão de um sol anterior.
Edgar Morin (2002:50)
Há muitos bilhões de anos houve um ponto de luz carregado de muita energia, por este motivo, aconteceu
uma grande “explosão”, a qual nós chamamos de Big Bang. Essa “explosão” deu origem ao Universo.
Dela apareceram milhares de partículas de várias formas que se juntaram e formaram diversas
“nuvens”. Essas “nuvens” que se formaram ficaram vagando pelo Universo e se batiam entre si.
Dessas batidas formaram-se as estrelas. No nosso sistema solar, foi o Sol.
As estrelas que se formaram ficaram rodeadas de gases e de poeira cósmica. Esses gases foram
se juntando com a poeira e formando os planetas e seus satélites. Um desses planetas é a Terra e
seu satélite natural é a lua.
Além da Terra, também formaram-se mais oito planetas, que partindo do mais perto do Sol para
o mais distante são: Mercúrio, Vênus, Terra, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão.
Mercúrio é o planeta mais quente do sistema solar, nele chove ácido sulfúrico.
O planeta seguinte é Vênus. À noite, ele é o corpo celeste mais brilhante, depois da Lua, porque
sua atmosfera reflete muito a luz do Sol. Ele também é coberto de nuvens e de gases quentes e
venenosos. Vênus é o planeta mais próximo da Terra e suas crateras possuem nomes que
homenageiam pessoas importantes, como Beethoven. Sua superfície é coberta de vulcões antigos.
O terceiro planeta é a Terra, onde nós vivemos. Ele contém belezas naturais como: montanhas,
cachoeiras, praias, flores, animais, plantas etc.
Pena que as pessoas não estão sabendo cuidar dessas belezas, pois poluem o ar que respiramos
com queimadas, destroem árvores com centenas de anos, sujam os rios... É importante que as
pessoas saibam como cuidar de nosso planeta e de tudo o que nele existe. Ele é a nossa casa.
Marte é o quarto planeta. Ele tem um vulcão chamado Canhão Marciano, que é três vezes
maior do que a maior montanha existente no planeta Terra, o Monte Everest.
O maior planeta do sistema solar é chamado Júpiter. Este quinto planeta é gasoso e tem um
redemoinho de 26.000Km² que está em constante movimento.
177

Saturno, o sexto planeta, como Júpiter, também é gasoso. Ao seu redor giram alguns anéis
formados de gelo, de rochas e de gases, mais conhecidos como “Os anéis de Saturno”.
Urano, assim como Saturno, também contém anéis, que são nove e estão virados na vertical.
Sua cor azulada explica-se porque lá tem muito metano, hidrogênio e oxigênio. Este planeta possui
quinze luas e a maior chama-se Ariel. Geralmente não é visto a olho nu; foi descoberto em 1781
e é o sétimo planeta do Sistema Solar.
O quarto maior planeta gasoso e congelado é Netuno. Ele também é azul; lá, um dia tem
dezesseis horas. Este oitavo planeta tem uma lua chamada Tritão, sua temperatura chega a 400ºC.
Ele foi descoberto em 1846 por astrônomos alemães.
Finalmente, o último planeta, o mais distante do Sol, Plutão. Descoberto em 1930, é o menor planeta do
sistema solar. Ele é menor que o Brasil e leva quase 250 anos para dar uma volta ao redor do Sol.
Entre os planetas circulavam rochas congeladas, que ao entrarem em contato com a atmosfera da
Terra, se incendiavam, e, ao se chocarem com o planeta, formavam enormes buracos chamados crateras.
Os meteoros que caiam iam alterando a superfície do planeta e provocando a formação de
montanhas. O interior da Terra era, e ainda é, muito quente. Por isso, a lava se movimentava e
assim formaram-se os vulcões.
A lava que saía dos vulcões era tão quente que soltava uma grande quantidade de vapor. Esse
vapor, ao entrar em contato com a atmosfera que tinha uma temperatura menor, se condensava
formando as nuvens que provocavam as chuvas. A chuva que caía, em grande quantidade, provocou
o endurecimento da lava que havia saído dos vulcões, formando assim a crosta terrestre. Esta
chuva foi enchendo as crateras, formando os grandes oceanos.
Foi nas águas desses oceanos que surgiu a primeira espécie de vida em nosso planeta. Era uma única e
minúscula célula que depois se reproduziu e se desenvolveu dando origem a novas espécies de vida. Desta
única célula que se reproduziu, surgiram os primeiros animais marinhos, tais como: os caramujos, os
caranguejos, os peixes e as lulas. Surgiram também as algas, os vegetais dos quais estes animais se alimentavam.
Alguns milhões de anos depois, as águas dos oceanos começaram a diminuir, os animais e as
plantas que viviam nessas águas precisaram se adaptar ao novo ambiente. Desse modo, surgiram
os répteis, tais como: os lagartos, os crocodilos e os sapos.
Assim, as criaturas sobre a face da Terra foram evoluindo até o aparecimento das grandes aves
e dos dinossauros que reinaram sobre a Terra por, aproximadamente, 100.000.000 anos.
Os dinossauros entraram em extinção após a queda de um grande meteoro que atingiu nosso planeta
provocando uma gigantesca nuvem de poeira, que não permitia mais que a luz do sol penetrasse na
atmosfera. Assim, as plantas não conseguiam mais fazer fotossíntese e acabaram morrendo. Desta
forma, houve uma quebra na cadeia alimentar, o que provocou a extinção dos dinossauros.
Após a extinção dos dinossauros sobraram apenas alguns pequenos animais terrestres e aquáticos.
Com o passar do tempo a nuvem de poeira foi sumindo e o sol voltou a iluminar a Terra.
Como algumas formas de vida continuaram a existir foi possível que se desenvolvessem e dessem
origem a um pequeno animal chamado Plesiadapis. Esse pequeno animal vivia nas copas das árvores
e se alimentava de seus frutos e de insetos. Porém, desde a época dos dinossauros, o grande e único
continente conhecido como Pangéia já estava se separando em cinco grandes partes como conhecemos
178

hoje. Em busca de alimentos, os Plesiadapis precisaram sair das florestas e ir para as savanas,
abandonando as árvores. Esse pequeno animal deu origem aos primeiros primatas.
Esses primatas andavam arqueados, apoiados nos dois pés e nas duas mãos, seus braços eram
mais longos para poderem alcançar o chão. Seu cérebro era bem menor do que o do homem atual
e por este motivo não tinham bom raciocínio. Sua altura era bem inferior à nossa e seu corpo era
totalmente coberto de pêlos.
Durante a evolução da espécie humana, o cérebro foi crescendo, ele começou a raciocinar mais,
seus braços foram “encolhendo”, ele foi ficando em uma posição ereta, seus pêlos foram diminuindo
e ele passou a segurar coisas com as mãos.
Cientistas atuais vêm pesquisando sobre esses homens primitivos e descobriram um esqueleto
que teria sido o mais antigo já descoberto na Terra. A esse esqueleto, feminino, deram o nome de
Lucy (era um australopitecos).
Através dele foi possível descobrir que a face desses homens era alongada, pois o osso de sua
mandíbula era bem maior do que o nosso.
Esses homens primitivos já utilizavam as mãos, eles receberam o nome de Homo habilis e, para
facilitar suas vidas, o primeiro material que usaram foi a pedra.
Primeiro eles usavam a pedra da forma que a encontravam na natureza, depois aprenderam a
lascá-la para que ela ficasse afiada ou pontuda, e, com isso puderam fazer instrumentos como
machadinhas e lanças para caçar.
Esses homens primitivos, que se deslocavam constantemente, perceberam que ao chover, às
vezes, fazia um forte barulho e, logo em seguida, aparecia um clarão que, ao atingir a mata, provocava
incêndios. Com isso, descobriram o fogo. No início eles se assustaram, porém, com o passar do
tempo, aprenderam a dominar e utilizar o fogo em benefício próprio.
A partir deste momento os homens e as mulheres começaram a se organizar em comunidades,
morar em cavernas, utilizar peles de animais como roupas e construir utensílios para conseguir
passar a viver em melhores condições de vida.
Esses homens e mulheres passaram a criar novas formas de vestimentas e a aperfeiçoarem os
utensílios que criavam. Assim, foi surgindo a tecnologia, os seres humanos trocaram as cavernas
por casas de alvenaria e, cada vez mais, foram descobrindo sua capacidade de criatividade e de força
de trabalho, buscando mais conforto e bem estar.
Porém, é muito importante que estejamos atentos para o fato de que quanto mais o homem cria, mais
ele altera a natureza, e, conseqüentemente, prejudica a si mesmo. Assim, faz-se necessário que a nova
geração se conscientize de que todos nós precisamos colaborar para a preservação do nosso planeta.
É no encontro com seu passado que um grupo humano
encontra energia para enfrentar seu presente e preparar o seu futuro.
Edgar Morin (2002:77).

BIBLIOGRAFIA
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.
179

3ª série B

O SURGIMENTO DO UNIVERSO E A EVOLUÇÃO DA TERRA:


QUAL SERÁ O FUTURO DOS SERES HUMANOS?

Introdução
Este texto nos conta sobre a origem do Universo e dos planetas, a origem da vida na Terra e
sobre a evolução do homem.
Tudo começou há 13 bilhões de anos com um pontinho de luz carregado de partículas de energia.
Essa energia foi aumentando tanto que causou uma grande explosão chamada Big Bang.

Capítulo I – O surgimento do Universo e dos planetas


O surgimento do Universo e dos Planetas só aconteceu após ocorrer a grande explosão, o Big Bang.
No decorrer da explosão, as partículas de energia ficaram vagando pelo Universo. Quando
essas partículas se chocavam não se soltavam mais e formavam “nuvens”, que quando se batiam
formavam estrelas.
Enquanto esse processo foi acontecendo surgiram várias estrelas, e, dentre elas, surgiu o Sol, a
maior e mais importante estrela para os seres vivos.
Os planetas se originaram da junção da poeira cósmica com os gases que rodeavam as estrelas.
Formaram-se nove planetas, um deles é a Terra, que surgiu apenas nove bilhões de anos após o
surgimento do Universo.

Capítulo II – Onde estão e quais são os planetas que conhecemos?


Como se sabe, os planetas situam-se em galáxias. A nossa galáxia é a Via Láctea, onde estão os
planetas mais conhecidos por nós.
Estaremos comentando sobre cada um deles, partindo do mais perto para o mais distante do Sol.
Mercúrio, o primeiro planeta, é formado de rochas e tem cor alaranjada, por ser o mais próximo do Sol.
Em seguida temos Vênus, o segundo planeta, também conhecido como a “Estrela D’Alva”,
pois ao aparecerem os primeiros raios de Sol ele não é mais visível para nós; é o mais quente,
devido a sua atmosfera.
Azul e lindo, nosso planeta, Terra. É o terceiro planeta do Sistema Solar, o único que possui vida,
pois contém água na forma líquida. Seu satélite natural é a Lua. Aqui possuímos uma grande variedade
de vida animal e vegetal, compondo fauna e flora bastante diversificadas, e, além dessa diversidade,
a Terra possui muitas belezas naturais como: cachoeiras, serras, praias, ilhas e muito mais.
Um planeta fascinante, Marte, o “Planeta Vermelho”. Este nome lhe foi atribuído pelos romanos,
em homenagem ao deus da guerra, devido a sua cor avermelhada. Também há o fato de que se
180

trocarmos a letra “a” da palavra Marte pela letra “o” teremos a palavra morte. Os cientistas
acreditam que em Marte pode ter existido água no estado líquido, pois comprovadamente, sabe-se
que hoje este planeta contém água no estado sólido. Essas afirmações é que fazem com que
acreditemos que lá pode ter existido algum tipo de vida, o que chamamos de “vida extraterrestre”.
Este é o quarto planeta do Sistema Solar.
O maior planeta do Sistema Solar, Júpiter, o quinto planeta. É o primeiro planeta gasoso após o
cinturão de asteróides que separa os planetas rochosos dos planetas gasosos. Júpiter tem vinte e três
satélites naturais e uma de suas características mais conhecidas pelo homem é possuir um furacão
vermelho, que gira em sentido anti-horário e sua extensão é três vezes o tamanho da Terra.
Normalmente os planetas maiores definem o destino dos planetas menores do Sistema Solar,
pois seu tamanho pode barrar a chegada de meteoros até os pequenos.
Um dos planetas de anéis, o sexto planeta, Saturno. Seus anéis são constituídos de pedras de gelo
e estão na posição horizontal. É o segundo maior planeta conhecido.
Urano também contém anéis, só que na posição vertical. Sua cor é azulada devido à grande
quantidade de metano que possui. Partindo do Sol este é o sétimo planeta.
O oitavo planeta, Netuno, para os romanos “deus da água”. Sua cor é azul, porém em uma
tonalidade mais escura do que a de Urano.
Finalmente, o último planeta do Sistema Solar, Plutão. Um planeta composto de gelo, é o menor
e mais frio planeta conhecido. Por ser um planeta tão pequeno, para os cientistas, Plutão até poderia
ser considerado um asteróide. Para dar uma volta completa ao redor do Sol, Plutão demora em
torno de 240 anos.

Capítulo III – Como se originaram os nomes dos planetas?


Os romanos conquistaram grande parte da Europa e receberam muita influência dos povos
que haviam dominado. Dos gregos os romanos se influenciaram na religião, porém, deram novos
nomes aos deuses.
Mesmo tendo modificado os nomes dos deuses, os romanos conservaram os seus
significados e, como foram eles que atribuíram os nomes aos planetas do nosso Sistema Solar,
deram-lhes os nomes romanos dos deuses. Eles escolheram um deus que combinasse com a
aparência de cada planeta.
Através da tabela, abaixo estaremos apresentando os nomes dos planetas, tanto em romano
como seu equivalente em grego. Apresentaremos, também, seus significados e símbolos.
181

NOMES NOMES GREGOS SIGNIFICADOS SÍMBOLOS


ROMANOS

Mensageiro dos
MERCÚRIO Hermes deuses e protetor
dos viajantes.

Deusa do amor e da
VÊNUS Afrodite beleza.
O nome de nosso planeta, Terra, vem do latim ters que
significa seca, em oposição ao mar (mare). Com o passar do
TERRA tempo foi sendo usado para se referir a todo o planeta. A deusa
da Terra é Gaia, mãe de Cronos, deus do tempo para os gregos.

MARTE Ares Deus da guerra.

Deus dos deuses,


JÚPITER Zeus devido ao seu
tamanho.

Deus da agricultura
SATURNO Cronos e da fartura. É ele
quem comanda o
tempo.

Deus do céu e das


URANO (?) estrelas, deus do
cosmos.

Deus do mar e da
NETUNO Posseidôn água.

Deus do mundo
PLUTÃO Hades subterrâneo, do
inferno.
182

Capítulo IV – A história da Terra


Enquanto a Terra ainda estava em processo de formação, os meteoros que circulavam pelo
Universo “bombardeavam” a superfície dos planetas formando grandes crateras.
Ao atingirem a Terra, esses meteoros alteravam sua superfície formando, além das crateras, grandes
montanhas por onde saía a lava que se encontrava no interior do planeta. Essa lava que saía dos
vulcões “tomou conta” do planeta, e mais tarde, após resfriar-se, formou a crosta terrestre.
Os meteoros continuaram atingindo nosso planeta, um deles continha oxigênio e carbono. Quando
o hidrogênio que havia aqui reagiu com o oxigênio que veio com o meteoro, houve uma reação
química que deu origem à água (H2O). A vida na Terra só foi possível devido ao fato da existência
dessa água no estado líquido.
Foi de uma pequena bactéria que surgiu a vida. Ela foi se reproduzindo na água e deu origem às
plantas e aos primeiros seres aquáticos. Os seres terrestres só surgiram porque o nível das águas foi
diminuindo e os seres que ali viviam tiveram que se adaptar ao meio terrestre.
Os primeiros seres terrestres que surgiram foram os répteis, depois deles surgem os dinossauros
quadrúpedes, as grandes aves e os dinossauros aquáticos, bem como diversos outros animais menores.
Os primeiros dinossauros que surgiram eram herbívoros. Com o passar do tempo, junto com o
desenvolvimento de seu corpo, o paladar foi se modificando e grande parte desses animais passou
a ser carnívoro.
Nessa época houve a queda de um grande meteoro que provocou a formação de uma “camada”
de fumaça e de poeira ao redor da Terra. Essa fumaça impedia que os raios do Sol penetrassem e
chegassem até a superfície terrestre, assim, a maioria das plantas morreu provocando a desorganização
da cadeia alimentar e a extinção dos dinossauros.
Passado algum tempo a “camada” de fumaça e de poeira começou a sumir e os raios do Sol
novamente voltaram a iluminar e a aquecer a crosta terrestre. Assim, a vida animal e vegetal que
havia conseguido sobreviver começou a se reproduzir novamente, por exemplo, o sapo indiano, a
tartaruga, o crocodilo e a avestruz entre outros.
Foi aproximadamente nessa época que surgiu o Plesiadapis, um pequeno animal que vivia nas
árvores e precisou descer delas e ir para as savanas em busca de alimentos, pois, desde a era jurássica,
o grande continente chamado Pangéia já estava se separando em cinco partes, provocando o
surgimento de um novo tipo de ambiente (paisagem).

Capítulo V – A origem do homem e a evolução dos primatas


O Plesiadapis foi se desenvolvendo e deu origem aos primeiros primatas que andavam apoiados
nos quatro membros. Com o tempo eles foram se desenvolvendo, ficando na posição ereta e passando
a andar apenas com as duas pernas.
O corpo desses primatas era coberto de pêlos, seu crânio e seu cérebro eram pequenos, seu
maxilar era parecido com o dos macacos e eles eram presas fáceis para outros animais maiores. Esse
primata era o Australopithecos.
Pesquisadores atuais encontraram ossos de um primata dessa época e através deles foi possível
183

descobrir diversos aspectos referentes ao seu modo de vida. A essa ossada deram o nome de Lucy,
por descobrirem ser de uma Australopithecos do sexo feminino.
Esse primata continuou a sua evolução. Ele foi ficando mais alto, seus pêlos foram diminuindo,
seu crânio e seu cérebro foram aumentando, seu maxilar diminuiu e ele começou a utilizar as mãos
com mais habilidade. Com isso começou a produzir ferramentas para facilitar a sua vida. A esse
homem foi dado o nome de Homo habilis.
Foi mais ou menos nessa época que esse homem primitivo aprendeu a dominar o fogo e utilizá-
lo em benefício próprio. Também começou a utilizar peles de animais para se cobrir, se abrigar em
cavernas e se alimentar de forma diferente.
Continuando essa evolução, o Homo sapiens, que já raciocinava mais, começa a criar novos objetos
utilizando recursos naturais. Com isso, começa um processo de destruição do próprio ambiente
onde vive.
Dessa forma os homens e as mulheres tornam-se mais ambiciosos e, com isso, egoístas,
preocupando-se cada vez mais consigo mesmos e deixando de lado a preocupação com o bem estar
coletivo e com a natureza.

Conselho ao leitor
Ao percebermos o egoísmo dos seres humanos, sentimos o compromisso de aconselhar a você,
leitor, sobre a necessidade de modificar suas atitudes em busca de melhores condições de vida,
visando sempre o bem comum e a preservação do nosso grande lar, o nosso planeta!

“A educação deve contribuir não somente para a tomada


de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta
consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena”
Edgar Morin (2002:18)

Bibliografia
· Coleção de olho no mundo. A força da natureza. Recreio, nº 7, Ed. Abril, 2000.
· Grande enciclopédia do mundo da criança. Vol 1, Cia de Livros, 1994.
· MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez,
2002.
· PRIETO, Heloisa. Divinas Aventuras: Mitologia Grega. São Paulo, Ed. Companhia das letrinhas,
2000.
· ROCHA, Ruth. Odisséia. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2002.
· RODRIGUES, Rosicler M. A vida dos dinossauros. São Paulo, Ed. Moderna, 2002.
· Site: http://www.brasil.terravista.pt/Praia Brava/3715/planetas.html
· Site: www.recreionline.com.br
· Site: http://planeta.terra.com.br/educacao/astrociencia/sistemasolar19.htm
184

Tecendo textos...
Como professora, eu vivi a situação. Encantei-me com os dois textos, tive preferência
por um deles, porém naquele momento não me detive em compará-los.
Ao fazer a comparação, já no momento da dissertação, fui notando o modo como as
crianças produziram os textos, e percebi que a terceira série A desenvolveu um texto mais
presa ao roteiro do que a terceira série B.
No encaminhamento da produção da terceira série A íamos ao tópico que seria
desenvolvido, escrevíamos a parte do texto referente àquele tópico e voltávamos ao roteiro,
sempre mantendo a seqüência do que seria escrito.
Nesse sentido, o processo de produção textual foi transcorrendo na consulta aos
apontamentos e à retomada, pela memória, das informações compartilhadas nas aulas de
educação ambiental, o que resultou em um resumo daquilo que havia sido aprendido durante
o ano. No texto produzido, as informações foram sendo justapostas na seqüência do roteiro.
De forma bastante distinta ocorreu a produção do texto da terceira série B. Nesta turma
houve uma clara preocupação com a organização textual e não só com o desenvolvimento
do roteiro, o que imprimiu à produção um estilo bastante diferenciado do texto produzido
pela outra classe.
Essa distinção se deu a ver já com as preocupações sobre como deveríamos iniciar o texto.
Lu sugeriu que iniciássemos com: Era uma vez um ponto de luz.... Neste momento,
questionei a classe perguntando se “Era uma vez” seria a melhor forma de começar um
texto com informações científicas, visto que as crianças já haviam entrado em contato com
os dois gêneros textuais - contos e científicos - de forma assistemática.
Muitos disseram que não e Lê explicitou: “Era uma vez serve para começar contos de
fadas, mas nesse tipo de texto não dá certo”, e sugeriu algumas formas de início, tais
como: “Havia um ponto de luz...”, ou, “Há bilhões de anos atrás houve um ponto de luz...”
Através do enunciado de Lê foi possível notar quanto à discussão do gênero, que na
estabilidade dos modos de dizer, se por um lado a criança reconhecia ser um modo de
dizer mais apropriado a um gênero do que a outro, por outro lado, ao fazer as suas
propostas, tanto separou os dois gêneros quanto os articulou.
Sobre este aspecto dirá Bakhtin que “é possível uma reacentuação dos gêneros,
característica da comunicação discursiva em geral; assim, por exemplo, pode-se transferir
a forma de gênero [...] pode-se misturar deliberadamente os gêneros” (Bakhtin, 2003:284).
Colocando-me como mediadora, - pois a mediação do outro possibilita a emergência
de funções que, embora a criança não domine autonomamente, pode realizar em conjunto,
de forma compartilhada (Vygotsky 1989), - explicitei às crianças que escrever é diferente
de falar, e que escrever uma história é diferente de escrever um texto científico/informativo.
Aproveitando-me do enunciado de Lê, pedi que explicitassem como deveríamos escrever,
como deveríamos iniciar o parágrafo e desenvolver as idéias que ali estariam contidas.
185

Também dei a elas alguns exemplos de como poderia ser feito o que eu pedia, tais como:
“foi há muito tempo...”, “este texto nos conta sobre...”, ou, “as informações aqui contidas...”
Fiz esta intervenção considerando o pressuposto de que ninguém cria do nada, no processo
de aprendizagem a presença participativa do outro deve ser constante e efetiva.
Neste processo de negociações Mo sugeriu: “Por que não fazemos o primeiro parágrafo
falando sobre o que o texto vai contar? Assim, mais ou menos como em um jornal?” E
assim foi feito. Resumimos e adensamos em um primeiro parágrafo as informações que o
leitor encontraria em nosso texto.
Neste momento Bi sugeriu: “Por que não fazemos um texto em capítulos e esse parágrafo
fica sendo a introdução?”
Através de seus enunciados, Lê, Mo e Bi demonstram ter um conhecimento produzido em
condições de convívio cultural mais complexo desenvolvido e organizado predominantemente
pela escrita (Bakhtin, 2003).
Assim, a turma produziu um texto organizando os enunciados em partes, o que implicou,
que, mais do que uma retomada das informações do roteiro, fôssemos sintetizando e
organizando as idéias em uma linguagem muito mais apurada em termos de um texto de
gênero informativo.
A preocupação com os modos de dizer, instaurada por algumas das crianças do grupo
(Lê, Mo e Bi), imprimiu na produção da terceira série B um estilo distinto do texto da terceira A.
Outras crianças também trouxeram suas experiências como leitores para a sala de aula
e estabeleceram relações com o texto que estávamos produzindo. Isso ficou bastante claro
quando, no decorrer do processo, ao produzirmos o parágrafo sobre o nosso planeta, Na
sugeriu que se iniciasse o parágrafo escrevendo: “Azul e lindo, nosso planeta, Terra”,
reportando-se ao livro “Azul e lindo”, de Ruth Rocha e Otavio Roth (1990), que fora lido no
início do ano em sala.
186

“ESTE É O PLANETA TERRA.


DE LONGE ELE É ASSIM:
AZUL E LINDO”

“... E DESTAS REUNIÕES TÊM SAÍDO


(...) PLANOS DE AÇÃO
QUE TENTAM ESTABELECER O QUE PODE
SER FEITO PARA EVITAR QUE A TERRA
- A NOSSA TERRA –
- A NOSSA CASA –
VENHA A SE TRANSFORMAR NUM AMBIENTE
HOSTIL...”

“E NOSSO PLANETA
CONTINUARÁ A SER
O QUE AINDA HOJE É:
AZUL E LINDO!”

Através de seu enunciado, Na demonstrou ter se apropriado tanto do que dizer como do
modo de o fazer, trazendo sua experiência para o texto que estava sendo produzido. São os
atos de linguagem relacionados a outros atos de linguagem, são vozes que soam no
enunciado que está sendo produzido em resposta a enunciados que o antecederam.
Segundo Bakhtin,

todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:


porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno
silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua
que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus
alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações
(baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já
conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente
complexamente organizada de outros enunciados (2003:272).

Há que se considerar, também, que para a terceira série B, o próprio texto foi motivo de
curiosidade, de interesse, de continuação de investigações e de busca de informações pelo
grupo, o que permitiu incluir outros elementos que não haviam sido desenvolvidos nas
aulas de educação ambiental e que não se encontravam no roteiro que havíamos produzido
como norteador do texto que escreveríamos.
Quando estávamos produzindo o parágrafo com informações referentes ao planeta Marte,
Vi sugeriu que se acrescentássemos alguns detalhes sobre marcianos, que ele teria visto no
filme “Sinais”, Touchstone Pictures, Direção de M. Night Shyamalan (2002). Imediatamente,
Bi voltou-se para ele e disse: “Mas nesse tipo de texto não cabe esse tipo de informação”. Vi
insistiu e novamente Bi argumentou: “Esse texto é científico e o filme Sinais é ficção”.
Com seus enunciados, Bi indiciava-me ter compreendido – mesmo que de forma não
explícita para ela - que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
187

utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais


denominamos gêneros do discurso” (Bakhtin, 2003:262).
A discussão instaurada entre Vi e Bi acentuou a curiosidade dos alunos pelos nomes
dos planetas e levou-os a se lançarem na busca de informações para desenvolver mais
um capítulo do texto que vínhamos produzindo.
Somente no momento em que realizei a comparação entre as produções das crianças, por
necessidade da pesquisa, percebi indícios de que um grupo e outro se colocaram de modo
diferente frente à produção do texto, apesar do entusiasmo que pode ter existido, igualmente,
nos dois. Naquele momento eu não consegui perceber todas essas nuances do processo.
Terceira série B e terceira série A preocuparam-se de modos distintos com o interlocutor.
Enquanto que a terceira série A prendeu-se mais aos apontamentos do roteiro e às aulas do
projeto, procurando garantir o acesso do leitor àquele material de que dispunha, a terceira
série B procurou não só essa informatividade, mas também a partilha dos modos de dizer e
o encaminhamento mediados pelo próprio texto, de suas curiosidades.
Comparando agora os textos, pergunto-me: como uma professora pode participar de
um processo de produção coletiva.
Minha preocupação durante a produção foi garantir que os textos fossem produzidos
com uma certa lógica, com uma certa coerência. Porém, ao compará-los agora percebo
que haveria ainda uma outra dimensão na qual a professora poderia atuar. Em um grupo
no qual nenhuma criança ressalta a questão do estilo, seria papel da professora fazê-lo?
Quanto ao estilo pode também haver mediação? Essas eram perguntas que não se
apresentavam para mim antes ou durante o processo vivido, elas apenas se evidenciaram
quando analisei os dois textos, por exigência da pesquisa.
Destacadas as diferenças entre os processos das duas turmas, volto-me ao que foi comum
entre eles.
A preocupação com o processo de formulação e de construção de sentidos, bem como
com as atividades de negociação e com a condução da interação, mostram-se adequadas
quando desejamos explicitar a dimensão comunicativa da linguagem e a importância de
termos quem represente a figura do interlocutor potencial a quem nos dirigimos.
Desta forma, meus dizeres (enunciados) estavam em relação contínua com os dizeres
(enunciados) de meus alunos, que aos poucos foram assimilando, reproduzindo ou
transformando os seus dizeres (enunciados) (Biato e Góes, s/d:02).
No decorrer da produção textual, foi possível perceber que a atividade proposta
estava sendo significativa para o processo de apropriação e de elaboração da escrita em
desenvolvimento, uma vez que todo re-início do texto demandava uma releitura do que já
havia sido enunciado. Nesses momentos, voltávamos nosso olhar para a re-elaboração da
própria escrita, ou seja, para as formas de enunciação que vinham sendo elaboradas.
Assim, voltávamos a atenção para o próprio ato de escrever, em um exercício que nos
aproximava da reflexividade como uma das propriedades essenciais da língua.
188

Percebi que inicialmente as crianças demonstraram maior dificuldade em articular o


que queriam dizer com a forma de registro. Isso foi se tornando mais fácil no decorrer
do processo. Quando precisaram registrar que estariam explanando sobre os planetas
na seqüência do mais perto para o mais distante do Sol, não conseguiram. Neste
momento, vi-me em uma das encruzilhadas desse processo. Eu também não sabia
exatamente o que fazer. Achei melhor explicitar a eles como poderiam fazer e dei
novamente o modelo: “Estaremos comentando sobre cada um dos planetas, partindo
do mais perto para o mais distante do Sol”.
Com essa intervenção, eu compartilhei um modelo com as crianças, apostando na
possibilidade de que, apropriando-se dessa referência, elas pudessem produzir outros modos
de escrita, autonomamente, em outras ocasiões.
Embora eu soubesse que poderia dar pistas, no momento em que elaborei junto com as
crianças, indicando como poderiam fazer, tive dúvidas sobre minha atitude. Isso decorre de
uma formação em que se repetiram muitas vezes os alertas contra os modelos, contra a
imitação, como processos destruidores da autonomia e da criatividade infantil. Hoje, percebo
que se não tivesse feito o que fiz, teria deixado de ensinar aos meus alunos, pois o papel
social da escola é essencialmente definido pela possibilidade de apropriação e elaboração
do conhecimento culturalmente produzido.
Escrever não é um ato solitário e, no processo de escritura, a criança que ainda não
domina os usos sociais da língua “depende do auxílio, das pistas e instruções que recebe;
da partilha de informações, opiniões, preferências; sua relação com os modelos, os materiais
e as técnicas a que tem acesso” (Fontana e Cruz, 1997:158).
São as experiências acumuladas social e culturalmente que propiciam aos sujeitos a
oportunidade de articulação do que já sabem com o que estão aprendendo. A produção,
seja na arte, seja na ciência, como destaca Vygotsky, não é produto de descobertas, nem
aparece antes que sejam socialmente criadas as condições materiais e psicológicas para
seu surgimento (Fontana e Cruz, 1997). Também no processo de apropriação do patrimônio
cultural, mostra-se significativo compartilhar referências com as crianças, foi o que procurei
possibilitar a elas: o contato com formas de dizer já estabelecidas social e culturalmente.
Durante muito tempo, na educação, foram utilizados os modelos como pontos de
chegada, um processo conhecido como reprodução, e que tinha exatamente na reprodução
o seu cerne. Vygotsky nos leva a perceber exatamente um caminho inverso. Há que se
compartilhar modelos como ponto de partida das elaborações autônomas e criativas dos
sujeitos. Assim, parece possível afirmar que a imitação é um elo importante na relação de
aprendizado e desenvolvimento, e através de minha mediação foi possível orientar as crianças
no sentido de elaborarem modos de dizer culturalmente organizados, os quais algumas
delas ainda não dominavam autonomamente (Fontana, 2000).
No decorrer da produção fui observando os modos de participação das crianças, o que
foi me possibilitando diferentes modos de mediação na construção de um texto do gênero
189

científico. No próprio uso da escrita, fui explicitando às crianças as características de tal


gênero. Essa explicitação assentou-se na familiaridade que elas puderam desenvolver com
os textos científicos, ao longo do projeto “Vento Verde” e das aulas de Ciências.
As crianças foram se apropriando dessas características, e, dessa forma, mais do que
expor e explicar como deveríamos produzir o texto, fui percebendo as apropriações já em
elaboração, pelas crianças, que emergiam nos seus enunciados e nas negociações de
sentidos que se estabeleciam entre elas. Isso indiciava-me o quanto elas vinham se
apropriando do uso da linguagem.
Com ouvidos atentos, fui percebendo, dentre os diversos enunciados de meus alunos, a
emergência do domínio da linguagem, neste caso os usos da língua escrita que cada um já
havia consolidado (Góes, 1990).
Tendo claro que este domínio pode diferir entre os indivíduos de um mesmo grupo,
propiciei relações de ensino nas quais os sujeitos pudessem se apropriar dos modos de
dizer específicos do gênero textual em questão, bem como dos modos de organização
de seus enunciados.
Na seqüência, durante mais de três semanas, produzimos o texto, no qual o exercício da
linguagem foi desvelando as possibilidades de organização das idéias e dos arranjos
lingüísticos na construção do mesmo. “A luta com as palavras”, como diz João Cabral de
Melo Neto, é o modo de escrever. Este foi o aspecto que sustentou o espaço de nossas
aulas neste período.
Ao terminarmos a produção, Re sugeriu: “Vamos fazer um livro nosso para deixar na
biblioteca para quem quiser fazer pesquisa sobre esse assunto que nós estudamos?” Seu
enunciado indiciou-me que no decorrer do processo por ela vivenciado, através de todas
as negociações necessariamente envolvidas e mediadas pela professora e pelos colegas,
fora possível que percebesse os propósitos interativos reais que estavam marcando a
produção textual.

É através da linguagem enquanto ação sobre o outro (ou procedimento


comunicativo) e enquanto ação sobre o mundo (procedimento cognitivo)
que a criança constrói a linguagem enquanto objeto sobre o qual vai
poder operar (Lemos apud Brito, 1997:125).

E assim foi feito. Nos entregamos a essa penosa e feliz tarefa de escrever para nossos
leitores, e porque não, para nós mesmos também!
190

A exposição e o reencontro com o texto produzido

Em novembro, finalizando as atividades letivas, expusemos os textos produzidos na


Mostra Cultural da escola.
Muitos materiais compunham a exposição: painéis, fotos, esculturas, textos...
Uma mesa, dentre outras tantas, amparava nossos trabalhos. Cada criança tinha seu
próprio livro, que havia sido produzido durante o projeto, no decorrer do ano letivo. Em
cada um dos livros (que as crianças ainda não haviam visto montados) foi colocada uma
introdução, escrita pela agrônoma. Na seqüência, eu escrevi uma apresentação para o
texto que havíamos produzido, anexei o texto coletivo e ao final dele os nomes das crianças
de cada uma das classes, indicando-as como autores.
Ao chegarmos ao ginásio, onde a exposição estava montada, várias crianças foram
rapidamente procurar a mesa onde estavam os trabalhos das terceiras séries. Fiquei a
observar o modo como agiam: muitas delas pegaram seus próprios livros e se sentaram no
chão, ao redor da mesa, colocando-se a ler novamente o texto que havíamos produzido
como se o fizessem pela primeira vez e como se a leitura fosse de um texto desconhecido,
porém recomendado por alguém como algo mágico. Outras crianças pegaram os livros da
outra terceira série para lerem o que os colegas haviam produzido e puseram-se a comparar
com os próprios trabalhos.
Absortos, retomaram a própria produção. Pareceu-me que para aquelas crianças a
satisfação de ver em uma exposição o texto que havíamos produzido soava-lhes como
compreensão da dimensão do trabalho que haviam realizado.
Destaco a palavra trabalho, por considerar com Geraldi (1996: 18) que “a linguagem é
uma atividade constitutiva [...] é o trabalho lingüístico. [...] Se constitui marcada pela história
deste fazer contínuo que a está sempre constituindo”.
Era o texto produzindo efeitos sobre os sujeitos que o haviam escrito. Era a linguagem
como criação humana, inseparável de seu criador, seguindo-o em todos os seus atos.
A atitude das crianças indicava-me o quanto o trabalho realizado ao longo do ano,
propiciando-lhes a apropriação da linguagem na sua dimensão comunicativa, colocava-
os em uma situação diferenciada no mundo, constituindo-os na história deste fazer-se
enquanto sujeitos. Nessa nova situação de interação, através da linguagem, passavam a
ser também produtores da cultura na qual estavam inseridos.
V
c onsiderações finais
T enho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto...
Alberto Caeiro
193

Fevereiro de 2004.
“Oi Tia Cláudia, eu nem acredito que é você, é verdade?”, “Tia Cláudia, que bom
que você vai dar aula na quarta série!!”, “É verdade mesmo que você veio pra
quarta, tia Cláudia?”.
Havia emoção, acredito que de ambas as partes... O reencontro foi extremamente
significativo para mim. Novamente eu acompanhava meus alunos, desta vez da terceira
série para a quarta série.
Um (quase) recomeço: a continuidade do trabalho.
Primeiro dia da primeira semana: as professoras prepararam uma atividade de
recepção aos alunos, uma caça-ao-tesouro. As crianças encontraram pistas, receberam
um mapa e seguiram por um caminho cheio de mistérios. A cada etapa cumprida,
recebiam novas pistas.
Chegando ao tesouro, descobriram que nosso bem mais precioso é o planeta: nosso
“azul e lindo” planeta Terra. A retomada dos conteúdos desenvolvidos no ano anterior era
o mote para iniciarmos o novo ano escolar.
Ao se defrontarem com o tesouro, no mesmo instante Luh vira-se para mim e pergunta:
“Tia Cláudia, nós vamos continuar aquele texto do ano passado?”, referindo-se ao texto
sobre o “Livro da Terra”, nossa última produção textual do ano anterior.
Segundo dia da primeira semana de aulas: Ao entrar em sala de aula: “Tia Cláudia, por
que a gente não escreve uma história da caça-ao-tesouro que fizemos ontem?”, “Tia, esse
ano a gente não vai ler livros?”.
Impressiona-me hoje o fato de que antes desta pesquisa talvez eu não tivesse ouvidos
apurados para captar os enunciados de meus alunos nas relações cotidianas da dinâmica
da sala de aula. Não tenho lembranças de em anos anteriores as crianças pedirem para
produzir textos, nem tampouco questionarem sobre as leituras que faríamos no decorrer do
ano letivo. Essa escuta agora me emocionava.
Novamente as solicitações das crianças levaram-me a tomar a decisão de produzirmos
um texto a partir da experiência vivenciada no primeiro dia de aula. Iniciamos a discussão
sobre como escreveríamos o texto sobre a caça ao tesouro e, coletivamente decidimos que
não seria um relatório, mas sim uma narrativa, que poderia conter até alguns elementos
fantásticos, visto que para desencadear a atividade, fora sugerido que as crianças
desenhassem “uma máquina mais potente do que um avião, mais rápida do que um foguete,
mais forte do que um navio”. Ao final do texto, as crianças explicitariam ao leitor que
aquela história, na verdade havia acontecido com eles, mas não da forma fantástica narrada.
Ao iniciarem a escrita eu circulava pela sala de aula e não esperava que as crianças se
portassem da maneira como o fizeram.
Em duplas, de maneira bastante autônoma, as crianças desenvolviam as idéias, pedindo
sugestões sobre a melhor forma de escrever o que queriam dizer por escrito. Thi levantou-
se da carteira e se dirigiu a mim perguntando com entusiasmo: “quanto tempo nós temos,
194

tia?, Vai poder ficar até a hora do recreio?”. Ficar até a hora do recreio seria o
correspondente a debruçar-se sobre o texto durante três horas-aula. Prática que havíamos
construído no decorrer do ano anterior. No entusiasmo de Thi eu encontrava alguns dos
efeitos do trabalho de produção textual que havíamos produzido.
Durante o processo de produção textual meus ouvidos, mais atentos do que antes,
captavam diversos enunciados que circulavam pela sala de aula: “Ni, nós esquecemos de
escrever a parte do caçador”, “Faz um sinal aqui; a gente escreve no final da folha, depois
a gente arruma.”, Ou ainda: “Thi, você riscou essa palavra ao invés de apagar”, “E daí,
não tem problema, é rascunho!”.
Na aula seguinte, “perguntas mil” receberam-me, assim que entrei na sala de aula: “tia
Cláudia, hoje nós vamos acabar o texto?” “Tia Cláudia, nós não acabamos o nosso texto,
podemos terminar hoje?”, “Tia, nós já acabamos o texto, podemos começar a revisão?”.
Parei! Ainda não havia me referido aos processos de revisão textual. Quem falava deles
eram as crianças, “devolvendo-me” a professora que eu havia sido e os alunos que eles
haviam sido no ano anterior. Ouvindo seus comentários e olhando para o trabalho deles,
fui-me dando conta dos efeitos suscitados pelo meu trabalho, naquela atividade que eles
realizavam com tanto prazer. Éramos o avesso e o direito de uma mesma tecitura.
No ano anterior, os processos de revisão textual configuraram momentos importantes
para o desenvolvimento da reflexividade do ato de escrever, uma vez que era na volta ao
próprio texto que seus pequenos autores poderiam realizar alguns procedimentos de análise
sobre a própria escrita. No início do novo ano letivo, eu via e ouvia meus alunos lidarem
com a produção textual como processo, como um modo de interlocução em meio às muitas
possibilidade de dizer o que se quer e de participar das relações sociais. Ouvia deles a
demanda pela volta ao texto, pela revisão.
Meus alunos eram outros em sua relação com a escrita e a leitura. Eu também era outra
professora. Os procedimentos de produção, revisão e análise sobre a própria escrita,
compartilhados entre nós, constituíam-nos e haviam transformado, ao longo do ano, nossas
relações com a escrita e a docência.
Tal qual Teseu ao entrar no labirinto, mediado por frágeis fios, sustentados, na outra
extremidade, pelas mãos de Ariadne, meus alunos puderam se experimentar por caminhos
diversos, mediados pela leitura e pela escrita, sustentados, na outra extremidade, pela
professora que eu era. Puderam experimentar-se também na volta ao caminho percorrido,
vivendo, pela escrita, a experiência da reflexividade.
Se em um labirinto é preciso experimentar caminhos para encontrar a saída, também
na experiência do desenvolvimento da dimensão reflexiva do ato de escrever não existem
caminhos previamente definidos. É preciso experimentar novos percursos para desenvolvê-
la. E digo desenvolvê-la, pois não considero que a reflexividade dos sujeitos seja um
estado ou patamar a ser alcançado, mas sim um modo de funcionamento que se
aprende com o outro, pelo outro.
195

No entanto, reconhecer a mediação do professor em relação ao aluno não significa


desconsiderar as mediações dos alunos sobre o professor. Teseu, na extremidade dos frágeis
fios de Ariadne, afetava-a profundamente. Sustentando o fio que o guiava e impedida de
vê-lo deslocando-se pelo labirinto, Ariadne lia os passos de Teseu pelos indícios do fio que
se desenrolava, estremecia, estirava-se, entre os seus dedos. Os indícios desencadeavam
suposições, sobressaltos, expectativas, ansiedade.
Também eu fui sendo afetada na relação com meus alunos. Embora, diferentemente de
Ariadne, eu pudesse ver as crianças, pudesse conversar com elas, ouvir seus enunciados,
estar atenta à dinâmica interativa produzida nas relações de ensino, tal como ela, aproximava-
me, apenas pelos indícios, do labirinto das elaborações de meus alunos. O que os guiava
nas escolhas dos caminhos bifurcados do labirinto? Mais do que explicar essas escolhas,
eu conseguia aproximar-me delas e compreendê-las nas interlocuções que estabelecíamos.
Os indícios que encontrava em seus textos, traduzidos em suposições, guiavam minhas
mediações. Mediações que se mostravam adequadas ou não apenas em seu acontecer.
Assim sendo, embora muito do trabalho pedagógico desenvolvido tivesse sido planejado,
tal como o fora o plano de Teseu e Ariadne, foi no seu desenvolvimento, como acontecimento,
que suposições, possibilidades e aprendizados foram sendo consolidados, descartados,
articulados, transformados.
Diante do processo vivido, percebo que não cabem as perguntas “por que fiz o que fiz?
Por que fiz da forma que fiz?”, pois mesmo que intenções estivessem definidas, elas se
materializaram nas relações estabelecidas com as intenções de meus interlocutores, parceiros
na relação de ensino. Portanto, não há como responder sozinha a essas perguntas.
Professora e pesquisadora entrelaçadas, perguntando-se sobre o desenvolvimento da
reflexividade, lastreadas nos conhecimentos que vinham sendo produzidos na prática e no
domínio teórico que se ampliava, mediadas pelos alunos, pelos pais dos alunos, pelos
pares da escola e da pesquisa, teceram e experimentaram possíveis articulações da tríade
leitura, produção de textos e análise lingüística, e registraram o processo vivido em seus
sobressaltos e metamorfoses.
Nesse processo, a docência mediada pelas interrogações da pesquisa e pelo ritual de
iniciação a ela, possibilitou à professora, desdobrada em professora-pesquisadora, aprender
muitas coisa que ainda não sabia e desenvolver, em si, modos outros de ouvir, de ver, de ler
a relação de ensino, a escrita, as crianças e a si mesma.
Mediada por interlocutores que conheciam a referência teórica e a coreografia das
relações de ensino, a professora foi aprendendo a criar condições em sala de aula para
instaurar diferentes formas de produção textual, a analisar os textos das crianças e o que
poderia sugerir a elas, a mediar a volta das crianças ao texto produzido.
A aluna, que precisava produzir um texto – a dissertação – também foi uma grande
mediadora das compreensões da professora que assumia ter dificuldades para trabalhar
com a produção de texto, com seus alunos. A vivência da aluna que voltava ao texto
196

que havia produzido, mediada por sua orientadora, ensinou à professora que eu era,
modos de ler o texto, modos de conversar com ele e seu autor, modos de viver o papel
de representante-leitor, modos de sugerir o que dizer e como fazê-lo. Como professora
fui aprendendo, com a aluna que eu era e com a professora que me ensinava, a
desfazer as dificuldades encontradas no trabalho pedagógico com a produção de textos,
no exercício desse próprio trabalho.
O domínio do registro e da análise, que fui construindo enquanto pesquisadora, não
nasceram em mim. Eles foram aprendidos com um outro, foram mediando os fazeres da
professora e foram, por sua vez, por eles mediados. Se a reflexão sobre o feito foi uma das
modificações que o registro sistemático produziu em mim, evidenciando as possibilidades
da escrita como mediadora da reflexividade, algo que eu procurava e continuo procurando
trabalhar com as crianças, não cheguei a ela por mim mesma.
No processo vivido ao longo dos últimos dois anos, aprendi que a reflexividade da
professora, da pesquisadora, do aluno, do produtor de textos, não nascem de dentro do
sujeito, mas da sua relação com o outro. Fui desenvolvendo minha reflexividade no lugar
de aluna e de pesquisadora, com minha orientadora e no lugar de professora, com meus
alunos. Minha orientadora mediou a reflexividade da professora e da pesquisadora. A
pesquisadora mediou os fazeres da professora. A professora procurou instaurar a reflexividade
nos alunos enquanto produziam seus textos.
Aprendi que é nesse espaço intersubjetivo que o desenvolvimento da dimensão reflexiva
do ato de escrever vai se constituindo, quer no processo de formação da professora, quer
nos saberes dos alunos. Tanto a reflexividade da professora quanto a dos alunos demanda
tempo, demanda retomadas e reencontros com a produção realizada ao longo da trajetória.
Afetada, profundamente, em meu modo de ser professora, pelo processo de pesquisa e
aprendizado vivido, (entendendo por aprendizado a complexa articulação entre ensinar e
aprender), destaco como uma de suas implicações para os processos de formação de
professores, a centralidade da dimensão relacional da prática educativa, não só como
princípio a ser enunciado, mas vivido na formação inicial e continuada de professores.
O acesso à pesquisa acadêmica e aos cursos de “capacitação” oferecidos pelas
redes de ensino, ainda que sejam importantes, não bastam. Eles ajudam o professor a
perceber o que ainda não sabe, mas não o ajudam a suprir o não saber na dimensão
prática. A articulação teoria/prática passa pela mediação, pelo aprendizado com um
outro - seja ele professor, coordenador, supervisor, orientador – que, tendo conhecimentos
das referências teóricas e dos fazeres práticos, disponha-se como interlocutor do professor,
a mediar, no trabalho pedagógico por ele desenvolvido, os nós com que ele se defronta,
os significados de que se apropria, os sentidos que elabora. Um mediador que nos
possibilite vivenciar a reflexividade sobre os textos que produzimos, com nossos corpos
e dizeres, nas coreografias das relações de ensino.
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