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FREIRE, Madalena. Educador, educa a dor. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
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derrapamos, nossa dificuldade de entrar em sintonia com o gru- com a ignorância. É um confronto com a falta, com o limite, com
po ou com o aluno, tudo o que não flui na relação entre ensinan- o desejo. Muita gente imagina, nos desvios do construtivismo,
te e aprendente é o que falta de luz teórica. É o que não sabe- que aprender tem de ser gostoso, prazeroso, lúdico ... Não é nada
mos. Mas não é um estudo descolado do real. Ele será o próprio disso: dói. Não é a dor eterna, mas a dor do início da construção
registro. O estudo da prática pedagógica será a ferramenta da da disciplina intelectual. O prazer só vem depois, como em um
consciência político-pedagógica desse educador. A linha quem parto.
deve dar é a prática. O conhecimento, as informações vêm pelos
poros, de todas as direções, e é o corpo dele, educador, que pro-
Como você entende a autoria do professor?
cessará todas as informações.
Autoria é o professor implicar-se no que faz, tornar-se dono
de sua impressão digital. É preciso que o professor compreenda:
Como transformar o estudo da prática em ferramenta da comciênoopoít-
ninguém fará por ele, ninguém mais, senão ele mesmo autor de
tico-pedagógica do educador?
sua própria história. Isso significa, por exemplo, criar tempo para
Uma das propostas inclui, por exemplo, o resgate de sua pró- o registro de sua ação, para a observação, para a leitura da sua
pria alfabetização: convidamos o professor a trabalhar as lem- prática. Ora, o tempo não cai do céu, não é uma doação. Preci-
branças desde sua infância, coisas que reavivam seu processo de samos criar o tempo para tê-lo. seja em âmbito interno, seja em
alfabetização. Será que ele se lembra se começou a tomar conta- âmbito externo. Importa nossa decisão de parar, fazer pausas.
to com a leitura por uma cartílha. pelas histórias que o pai con- Atualmente não há coisa mais difícil do que parar, do que por
tava' pelo anúncio de coca-cola? Ao tomar consciência da lem- limite ao bombardeio de informação, dizer "fim", dizer "nunca",
brança, ela se transformará em memória. A lembrança está no não cair na mediocridade. É preciso assumir o seu desejo de edu-
reino das coisas que se esvaem; a memória é registro, um ato de cador, para isso é necessário desestabilizar-se, tirar-se da aneste-
comunicação, que os animais não possuem, é o diálogo mesmo sia da desmotivação, começar. Não interessa se o tempo conse-
que travamos, solitários, com os mil outros que vivem dentro de guido é de dez minutos: se parou, escreva uma frase. E, a partir
nós. Ao reayivar lembranças, o professor percorrerá um cami- daí, começam os passos seguintes.
nho de busca de coerência e de essência. Ao registrar, fará uma
Iapídação. um questionamento, uma checagem das memórias.
Que passos são esses?
Esse caminho nem sempre é fácil.
Dar tempo a si mesmo para construir o registro reflexivo é
decisivo, mas o educador que está diante de seus alunos, em um
Trata-se de um aprendizado sempre prazeroso?
grupo, tem certas vigas mestras. Em qualquer concepção teóri-
Não, simplesmente porque aprender não é espontâneo, nem ca, toda aula se baseia (1) no conteúdo a ser ensinado; (2) no mo-
natural. Em certo sentido, aprender dói, pois se dá no trabalho do próprio de ensinar (como ensina, se intervém ou não, se bus-
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ca um ensino centralizado ou descentralizado ... ), e (3) em pla- deve estar consciente de que a questão não é pessoal, não é com
nejamento (constituído por objetivos, atividades, propostas). Pa- ele, mas entre as histórias deles. Para isso, precisa estudar (inclu-
ra tudo aquilo que ensina, o educador precisa se perguntar sobre sive autores que falam sobre grupo) e acompanhar o processo de
quais atividades vai propor, como vai avaliar e que resultados aprendizagem individual, sejam doze, sejam 25, sejam 40 alunos.
espera alcançar. Todo educador também tem um grupo e, nesse Se forem muitos, a cada aula o professor deve se propor a obser-
grupo, acompanha os processos de aprendizagem individuais. var, a partir de uma questão muito precisa, o desenvolvimento de
Ninguém está fora dessas vigas. Então, a reflexão exige do edu- alguns alunos. Como reagiu diante do colega que o vem agredin-
cador dar-se conta do que aconteceu. Consegui ter clareza em do, se chegou mais tranqüilo ou não, se conseguiu dividir o mate-
relação aos conteúdos? Em qual deles bobeei? São questões que rial, se conseguiu se expor. É preciso construir uma pauta focada
se colocam em relação ao ensinar (a reflexão crítica que eu mes- de observação, com uma questão predefinida. Se o fizer de cinco
mo me faço: «: Tô perdida, não entendi nada do que aconteceu em cinco alunos, por aula, no final de um mês terá uma radiogra-
hoje"), em relação ao grupo ("- Estava disperso, não tive a me- fia do processo de acompanhamento dos percursos individuais.
nor sintonia.") e em relação aos indivíduos.
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