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Extraído do livro:

FREIRE, Madalena. Educador, educa a dor. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

ESTUDAR A PRÓPRIA PRÁTICA, potencial de desenvolvimento se a escola está em sintonia com


a realidade social e cultural daquela criança, que tem toda a ca-
UMA COMPETÊNCIA A SER pacidade de ler e escrever aos 6 anos.
DESENVOLVIDA Como o trabalho cresceu muito, tive que formar pessoas pa-
ra trabalhar comigo, e essa experiência acabou levando à forma-
ção do Espaço Pedagógico, cujo projeto levava em conta alguns
Entrevista concedida por Madalena Freire à pilares centrais para a formação do educador.
revista Aprender Juntos, edição maio-junho de 2007.

Que Pilares são esses?


Madalena Freire tornou-se, ao longo dos últimos vinte anos,
uma das educadoras mais conhecidas do Brasil. o primeiro pilar, sem dúvida, é a importância do professor,
Numa trajetória diferenciada, construiu sua história ria prá- do coordenador, do orientador, do diretor. É, enfim, construir a
tica diária. Pedagoga graduada pela USP e uma das fundadoras reflexão desses profissionais por meio de um resgate da prática.
da Escola da Vila e do centro de formação Espaço Pedagógico, Muitas vezes, os professores ouvem pesquisadores estrangeiros,
Madalena Freire vem levando a professores de escolas de todo o
como espanhóis e portugueses, falar sobre a importância do re-
Brasil a mensagem de que a educação se faz no diálogo perma-
gistro escrito como exercício básico de estudo da teoria e da pró-
nente e criterioso entre prática e teoria, que se constroem a par-
pria prática, mas não se dão conta de como isso é difícil. Estudar
tir do cotidiano vivido.
a própria prática é uma competência a ser desenvolvida. Então,
Em meados de março, entre viagens que costuma fazer por
proponho uma realfabetização do educador, no sentido amplo
diversos estados brasileiros, Madalena recebeu a revista Aprender
de torná-lo um leitor, decifrador da realidade pedagógica. O edu-
Juntos para a entrevista que se segue.
cador precisa buscar o que está por trás daquilo que está vendo
na prática: o que o menino que bate em outro está dizendo com
Como você começou a trabalhar com educação popular e alfabetização?
isso, que sentido, que significado se pode dar a esse comporta-
Depois que publiquei A paixão de conhecer o mundo, em 1980, mento. O professor torna-se, então, um leitor do mundo, que es-
recebi críticas de que aquilo que eu propunha só era possível com cuta, dá novos significados ao que ouve e, por isso, está em per-
a classe média, com filhos de pais liberais. Isso me deixou indig- manente processo de estudo reflexivo da realidade.
nada e fui desenvolver um projeto de pesquisa ligado a classes
populares. Com bolsa de pesquisa da Fundação Vitae, fiquei dez
Que outro alicerce você propõe para a formação do professor?
anos em uma experiência com crianças de Educação Infantil em
uma favela da Vila Helena, em Carapicuíba, para provar que uma Um outro pilar é obviamente o estudo teórico. Tudo aquilo
criança pobre, tanto como uma de classe média, tem o mesmo que não damos conta na prática pedagógica, tudo aquilo em que

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derrapamos, nossa dificuldade de entrar em sintonia com o gru- com a ignorância. É um confronto com a falta, com o limite, com
po ou com o aluno, tudo o que não flui na relação entre ensinan- o desejo. Muita gente imagina, nos desvios do construtivismo,
te e aprendente é o que falta de luz teórica. É o que não sabe- que aprender tem de ser gostoso, prazeroso, lúdico ... Não é nada
mos. Mas não é um estudo descolado do real. Ele será o próprio disso: dói. Não é a dor eterna, mas a dor do início da construção
registro. O estudo da prática pedagógica será a ferramenta da da disciplina intelectual. O prazer só vem depois, como em um
consciência político-pedagógica desse educador. A linha quem parto.
deve dar é a prática. O conhecimento, as informações vêm pelos
poros, de todas as direções, e é o corpo dele, educador, que pro-
Como você entende a autoria do professor?
cessará todas as informações.
Autoria é o professor implicar-se no que faz, tornar-se dono
de sua impressão digital. É preciso que o professor compreenda:
Como transformar o estudo da prática em ferramenta da comciênoopoít-
ninguém fará por ele, ninguém mais, senão ele mesmo autor de
tico-pedagógica do educador?
sua própria história. Isso significa, por exemplo, criar tempo para
Uma das propostas inclui, por exemplo, o resgate de sua pró- o registro de sua ação, para a observação, para a leitura da sua
pria alfabetização: convidamos o professor a trabalhar as lem- prática. Ora, o tempo não cai do céu, não é uma doação. Preci-
branças desde sua infância, coisas que reavivam seu processo de samos criar o tempo para tê-lo. seja em âmbito interno, seja em
alfabetização. Será que ele se lembra se começou a tomar conta- âmbito externo. Importa nossa decisão de parar, fazer pausas.
to com a leitura por uma cartílha. pelas histórias que o pai con- Atualmente não há coisa mais difícil do que parar, do que por
tava' pelo anúncio de coca-cola? Ao tomar consciência da lem- limite ao bombardeio de informação, dizer "fim", dizer "nunca",
brança, ela se transformará em memória. A lembrança está no não cair na mediocridade. É preciso assumir o seu desejo de edu-
reino das coisas que se esvaem; a memória é registro, um ato de cador, para isso é necessário desestabilizar-se, tirar-se da aneste-
comunicação, que os animais não possuem, é o diálogo mesmo sia da desmotivação, começar. Não interessa se o tempo conse-
que travamos, solitários, com os mil outros que vivem dentro de guido é de dez minutos: se parou, escreva uma frase. E, a partir
nós. Ao reayivar lembranças, o professor percorrerá um cami- daí, começam os passos seguintes.
nho de busca de coerência e de essência. Ao registrar, fará uma
Iapídação. um questionamento, uma checagem das memórias.
Que passos são esses?
Esse caminho nem sempre é fácil.
Dar tempo a si mesmo para construir o registro reflexivo é
decisivo, mas o educador que está diante de seus alunos, em um
Trata-se de um aprendizado sempre prazeroso?
grupo, tem certas vigas mestras. Em qualquer concepção teóri-
Não, simplesmente porque aprender não é espontâneo, nem ca, toda aula se baseia (1) no conteúdo a ser ensinado; (2) no mo-
natural. Em certo sentido, aprender dói, pois se dá no trabalho do próprio de ensinar (como ensina, se intervém ou não, se bus-

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ca um ensino centralizado ou descentralizado ... ), e (3) em pla- deve estar consciente de que a questão não é pessoal, não é com
nejamento (constituído por objetivos, atividades, propostas). Pa- ele, mas entre as histórias deles. Para isso, precisa estudar (inclu-
ra tudo aquilo que ensina, o educador precisa se perguntar sobre sive autores que falam sobre grupo) e acompanhar o processo de
quais atividades vai propor, como vai avaliar e que resultados aprendizagem individual, sejam doze, sejam 25, sejam 40 alunos.
espera alcançar. Todo educador também tem um grupo e, nesse Se forem muitos, a cada aula o professor deve se propor a obser-
grupo, acompanha os processos de aprendizagem individuais. var, a partir de uma questão muito precisa, o desenvolvimento de
Ninguém está fora dessas vigas. Então, a reflexão exige do edu- alguns alunos. Como reagiu diante do colega que o vem agredin-
cador dar-se conta do que aconteceu. Consegui ter clareza em do, se chegou mais tranqüilo ou não, se conseguiu dividir o mate-
relação aos conteúdos? Em qual deles bobeei? São questões que rial, se conseguiu se expor. É preciso construir uma pauta focada
se colocam em relação ao ensinar (a reflexão crítica que eu mes- de observação, com uma questão predefinida. Se o fizer de cinco
mo me faço: «: Tô perdida, não entendi nada do que aconteceu em cinco alunos, por aula, no final de um mês terá uma radiogra-
hoje"), em relação ao grupo ("- Estava disperso, não tive a me- fia do processo de acompanhamento dos percursos individuais.
nor sintonia.") e em relação aos indivíduos.

Em suas conferências, você tem reiterado a convicção de que ensinar é a


o grupo é decisivo para a construção da autoria? função principal do professor. Trata-se de uma resposta a alguma moda
ou tendência?
Para a construção da autoria do sujeito afetivo, criador, autor,
cognitivo, o grupo é decisivo, e não existe nada mais vital do que Digo sempre que não jogo essa palavra fora. Dentro de uma
aprender a viver em grupo. Construir-se junto com os outros, sala de aula, todo educador ensina. Como ele ensina, como ele
concebe o ensinar, o processo de construção do conhecimento,
exercitando sua tolerância, sua humildade. Paulo Freire dizia que
tudo isso é outra coisa, mas todos ensinam. Isso quer dizer que
não existe mais ética pontual, mas uma ética universal ou como
ele tem uma concepção sobre ensinar e aprender e, na maior par-
diz Edgar Morin, uma ética planetária. Cada vez mais, no mundo
te do seu tempo, faz intervenções, mediações, encaminhamen-
contemporâneo, educar-se no grupo é fundamental. É uma teia
tos, devoluções. Mas a essência da atividade do educador é ensi-
de fios descobertos, que vira-e-mexe dá curto-circuito, incêndio,
nar. Eu ensino fazendo intervenções, questionando, mediando.
choque. Por isso, na formação do professor, é essencial o tempo da
Por si só, o ato de ensinar é diretivo: ninguém ensina sem dire-
reunião pedagógica. O que segura a formação é o grupo-escola, tividade. O que não significa ser autoritário. O educador sempre
assim como o que nos segura na vida privada é a família. sabe mais que seu aluno: mas, na visão autoritária, é aquele que
sabe tudo. O avesso da relação autoritária é a atitude esponta-
o mesmo vale para o trabalho em sala de aula? neísta: o educador achar que aprender é natural e que ele está
em pé de igualdade com aluno. Sem dúvida, aprendemos com
Claro. Cada um de nós carrega a sua própria história, mas é os alunos, mas nunca como um igual. No avesso, a autoridade
no grupo que ela é apresentada ao outro. Por isso, o professor está centralizada no aluno.

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