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Aprender a Ler

Júlia Soares

«Se ler é compreender, sultado de operações mentais complexas e


então, aprender a ler é aprender a compreender!» múltiplas, que o aprendente elabora em coo-
Éveline Charmeux peração, mobilizando sobre o próprio objecto
de aprendizagem os seus afectos e os seus co-

E m princípio, todos concordam que ler é com-


preender, mas, muitas vezes, no ensino da
leitura, utilizam-se métodos que, contrariando
nhecimentos intelectuais e sociais.
Trata-se de um processo interactivo, feito
de avanços e de recuos, de relações e de rup-
o que se afirma, dão prioridade à aquisição pe- turas com conhecimentos anteriores, as quais
los alunos dos chamados «mecanismos de funcionam como factores que, provocando a
base», como se a compreensão fosse o produto sua reestruturação, actualizam conhecimen-
de um processo do qual está ausente. tos, isto é, produzem compreensão.
A descodificação fonema grafema é, nestes Concebe-se o ensino-aprendizagem como
casos, a primeira etapa de uma longa, rigorosa uma construção do sujeito que aprende a par-
e hierarquizada sequência de procedimentos tir do que já sabe, da análise dos obstáculos
que as crianças têm de dominar treinando a si- que encontra e dos contributos das hipóteses
labação, primeiro em palavras, depois em fra- levantadas, experimentadas e reformuladas
ses especialmente construídas para esse efeito para os ultrapassar.
e compostas apenas por vocábulos já conheci- Como sublinha Éveline Charmeux, dizer
dos, para finalmente poderem começar a ler que a criança constrói o seu saber, não signi-
pequenos escritos que, muitas vezes, não são fica que o faça sozinha.

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mais do que a justaposição das mesmas frases Segundo a mesma autora, se é certo que já
simples. não cabe ao professor o papel de transmissor de
Este entendimento e estas práticas, classi- conhecimentos, cabem-lhe, no entanto, seis ta-
camente representada pelas metáforas do reci- refas bem mais estimulantes profissionalmente
piente vazio que é preciso encher ou da cons- e que marcam a deslocação do ensino centrado
trução de um muro cuja solidez dependeria da na lição do professor para a aprendizagem cen-
firmeza das bases e do correcto ajustamento trada nos processos e na dinâmica do grupo que
das sucessivas camadas, concebem o ensino- aprende em interacção cooperada:
aprendizagem como a simples transmissão-re- • Assumir-se com um recurso, fornecendo
cepção e acumulação de conhecimentos. documentação, completando informações. (di-
Espera dos alunos, passividade, atenção à dáctica a posteriori).
palavra do professor e aplicação daquilo que, • Favorecer, em situações de verdadeiros
supostamente, lhes foi transmitido. projectos, a identificação pelas crianças dos
Pensa-se, hoje, que a compreensão é o re- obstáculos encontrados.

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• Provocar e orientar a análise dos obstácu- processo que põe em evidência estratégias de
los identificados porque é a análise que pro- aprendizagem idênticas às que já utilizaram e
duz compreensão e não a acção em si mesma. outras que, posteriormente, podem experimen-
É por isso que a tomada de consciência pelos tar para melhor se poderem apropriar delas.
alunos das operações mentais que realizaram, «O conhecimento constrói-se pela consciên-
a sua aplicação a situações desconhecidas, a cia do percurso da própria construção: os alu-
descoberta de que nem sempre a elas se ajus- nos caminham dos processos de produção
tam, operam a ruptura propícia para que o pro- integrados nos projectos de estudo, de investi-
fessor possa ajudar os seus alunos a «aprender gação ou de intervenção, para a compreensão
a compreender». Considera-se o erro como a dos conceitos e das suas relações.
parte visível daquelas rupturas, sem as quais A necessidade de comunicar o processo e os
não há nada a aprender, e ao mesmo tempo resultados de um projecto de trabalho dá sen-
como um ponto de apoio de novas aprendi- tido social imediato às aprendizagens e con-
zagens. fere-lhes uma tensão organizadora que ajuda a
• Facilitar a formulação de leis e de regras estruturar o conhecimento.» (NIZA, S., 98)
construídas pelas crianças porque comunicar o Quando chegam à escola, muitas crianças
que se compreendeu é o meio mais seguro de não compreendem que a escrita representa a
compreender. fala e que, tal como esta, serve para comunicar.
• Favorecer actividades de treino que per- Um dos maiores problemas cognitivos que
mitam às crianças integrar o que compreende- têm de resolver reside no desconhecimento
ram. que manifestam quanto à escrita, às suas fun-
• Observar as estratégias das crianças e ções e estrutura.
avaliar as suas aquisições. Entrar na escrita pela leitura não permite que
as crianças compreendam que a linguagem es-
As práticas do MEM privilegiam crita representa a linguagem oral como referem
a compreensão Sérgio Niza, Fijalkow e outros autores.

Quando os nossos alunos contam aos cole- No MEM a iniciação na leitura faz-se
gas como resolveram um problema, quando a partir da produção de escrita.
revelam as suas descobertas, quando ajudam
um companheiro a elaborar ou a responder a Na presença dos alunos, e enquanto estes
um questionário ou a uma entrevista, a escre- não têm competências para o fazer, o profes-
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ver ou a melhorar um escrito, quando questio- sor regista por escrito as suas produções orais.
nam o autor (ou autores) acerca de um texto, Lê esses textos, não só para lhes fazer com-
de uma experiência, de um desenho ou de preender que a escrita tem uma função comu-
uma construção, quando apresentam e discu- nicativa, mas também para que o autor e os
tem um livro que leram, institui-se com eles, ouvintes possam verificar se o que foi dito cor-
de forma cooperada, um verdadeiro trabalho responde ao que foi registado e, se necessário,
de ensino e de aprendizagem que privilegia a reformular o escrito para que este corresponda
compreensão. efectivamente àquilo que o seu autor queria
Quem comunica, compreende melhor, por- comunicar.
que, para se fazer entender pelos ouvintes, é É a primeira reescrita do texto.
obrigado a descrever o trabalho que realizou, Esta «abordagem de aproximação/oposição
como o fez e os instrumentos utilizados. aos códigos da fala e da escrita pela prática di-
Os ouvintes compreendem melhor, porque recta dos alunos» (NIZA, S.) faz que eles com-
se vêem confrontados com o desenrolar de um preendam que a escrita é outra forma de codi-

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ficar a fala (literalidade da escrita); se aperce- cos, isto é, inerentes ao objecto de aprendiza-
bam de que as palavras são separadas por es- gem» (CHARMEUX, E., p. 99).
paços (linearidade da escrita); descubram que Por isso, no MEM se recorre tanto a instru-
a palavra não é «o desenho das coisas» (função mentos de apoio dado que estes permitem que
referencial da escrita); tomem, progressiva- cada aluno, ao seu ritmo e segundo as suas ne-
mente, conhecimento de que não se escreve cessidades, realize na aula, durante o Trabalho
exactamente como se fala e de que há marcas de Estudo Autónomo, aquele treino pessoal
e sinais próprios da escrita que correspondem indispensável.
aos ritmos e à expressão de quem comunica e O professor fica assim mais disponível para
àquilo que quer comunicar. realizar com eles verdadeiros actos de escrita e
O questionamento dos alunos ao autor do de leitura e os alunos tornam-se mais autóno-
texto e as suas sugestões para clarificar ideias, mos na aprendizagem.
evitar repetições desnecessárias, substituir vo- Utilizam-se suportes idênticos de escrita e
cábulos por outros mais adequados, tornar ex- não manuais de leitura, pois, na perspectiva
plícitas circunstâncias espaciais, temporais e do MEM, ler é compreender o sentido dos es-
relações entre as personagens e as acções, isto critos sociais que nos envolvem.
é, a reescrita do texto, aprofunda a compreen- Trabalham-se todos os tipos e todas as fun-
são da leitura. ções da escrita e da leitura:
Escreve-se e lê-se para comunicar
A participação das crianças ultrapassa a
• quando na turma se produzem, lêem e
simples compreensão literal da mensagem pe-
trabalham todos os géneros de textos;
las «inferências lógicas e pragmáticas» que a
• quando, no momento de trabalho colec-
reescrita provoca, desoculta e clarifica.
tivo a que chamamos «Os Livros e a Leitura»,
Estas situações de diálogo permitem que os
as crianças apresentam aos companheiros li-
alunos tomem consciência e resolvam, interac-
vros que leram, e uma delas (ou a professora)
tivamente, problemas e assumam tomadas de
lê uma história, um capítulo dessa história, um
decisão quando produzem individualmente
poema ou uma peça de teatro;
um texto escrito. Problemas e tomadas de de-
• quando praticam a correspondência;
cisão relativos ao destinatário, ao conteúdo, à • quando fazem o jornal escolar;
adequação da linguagem, à ortografia e à dis- • quando apresentam o produto e o processo
posição gráfica. de um estudo, de um projecto ou de uma ex-
Talvez nem sempre tenhamos consciência periência.
de que o verdadeiro trabalho de leitura – «ler é

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Lê-se e escreve-se para recolher informações e
compreender» – se situa na escrita, no vaivém aprender
que se estabelece entre o texto inicial e o texto • quando as crianças consultam livros, ma-
que resulta da resolução dos problemas levan- pas, gráficos, ficheiros temáticos ou outros do-
tados. cumentos necessários para a realização de um
Durante a iniciação, cruzam-se com este projecto em curso, para responder a questões
trabalho a recomposição do texto recortado levantadas na turma, pelos correspondentes,
em palavras, a combinatória de sílabas, a subs- ou por uma rubrica do programa.
tituição e a comutação de letras, isto é, activi- Lê-se para fazer um bolo ou uma experiên-
dades destinadas a desenvolver outras compe- cia segundo uma receita ou um guião.
tências necessárias à leitura. Lê-se para se distrair, sonhar e imaginar na bi-
Assumem-se como momentos de treino blioteca da sala de aula ou da escola.
que têm como finalidade essencial «ajudar os Escreve-se e lê-se quando se inventam e re-
alunos a ultrapassar obstáculos epistemológi- solvem problemas de matemática.

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Escreve-se e lê-se para organizar a vida da nero de textos que produzem, fazer projectos,
turma. experimentar e praticar diferentes tipos de es-
A compreensão decorre, portanto, da pro- crita. Ajudam o professor a direccionar o seu
dução e do trabalho que se realiza em actos de trabalho de modo a encontrar finalidades e
escrita e de leitura funcionais. estratégias que dêem sentido à produção de
Não se separam a fala, a escrita e a leitura. tipos de escrita e de leitura pouco praticados
Consideram-se, desde o início, como activida- pelos alunos: por exemplo, teatro, poesia, tex-
des simultâneas, através das quais os alunos tos informativos…
criam e desenvolvem «comportamentos acti- As crianças gostam tanto de teatro e de
vos de construção inteligente de significados» poesia e escreve-se e trabalha-se tão pouco na
(CHARMEUX, E., p. 99). escola estes géneros de escrita!
Produzindo e trabalhando textos diversifi- Uma festa, um encontro com os correspon-
cados, comparando-os com outros mais elabo- dentes, os convívios interturmas, as reuniões
rados e, posteriormente, tomando-os como de pais, podem ser motivos para escrever, ler e
modelos, os alunos compreendem, progressi- representar peças de teatro, organizar exposi-
vamente, que uma história não tem a mesma ções de trabalhos, elaborar folhetos ou outros
estrutura de um relatório de uma experiência, textos informativos, convites, cartazes…
de uma carta ou de uma acta; que o tipo de A elaboração de cartazes pelas crianças e o
texto, o conteúdo, a forma e o nível de lingua- trabalho sobre essas produções ajuda-as a com-
gem têm de adequar-se ao destinatário. preender que um cartaz é redundante na infor-
Isto confronta-os com problemas de coe- mação, tem uma sintaxe própria, que as pala-
rência do conteúdo e de coesão gramatical en- vras têm ali (muitas vezes) um sentido diferente
tre as sequências do texto e entre os elementos daquele que vulgarmente lhes é atribuído e re-
das frases, com a escolha de conectores que li- metem por isso para outros significados.
gam dois factos entre si, de referentes que Tudo isto, que também as ajuda a com-
substituem repetições desnecessárias, com a preender e a defender-se melhor do mundo
pontuação, com a adequação dos tempos e que as rodeia, nem sempre é objecto de
das formas verbais à situação comunicativa, grande tratamento por parte dos professores
com as concordâncias de género, número e embora esteja em jogo a compreensão de es-
pessoa e também com a ortografia. critos sociais que as envolvem profusamente.
Institui-se assim um trabalho de análise e «Ler é estar dentro do fluxo de significados
reflexão para uma maior compreensão do fun- que o outro organizou» como afirma Ivone
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cionamento da linguagem escrita. Niza perspectivando a formação de um leitor


Os alunos apropriam-se da gramática do que não recebe passivamente a mensagem do
texto, resolvendo os problemas que a constru- texto, mas que interage com ela, mobilizando
ção do texto reclama. os seus próprios conhecimentos da língua
Não precisam de saber toda a terminologia (semânticos, sintácticos e fonológicos) e do
gramatical. Precisam de aprender a utilizar a mundo que o rodeia, os seus afectos e a sua in-
gramática, o que é bem diferente. tenção de leitura para descobrir e construir sig-
A tomada de consciência pelo professor e nificados.
pelos alunos da diversidade de textos produzi- Cabe ao professor proporcionar aos alunos
dos e lidos na turma é facilitada por registos, práticas de escrita e de leitura, instrumentos e
que incluem, em colunas diferentes, várias ca- estratégias que dinamizem, alarguem e opti-
tegorias de textos. mizem os recursos de que os alunos já dis-
A leitura e a análise daqueles registos per- põem e aqueles que, progressivamente, vão
mitem aos alunos tomar consciência do gé- construindo.

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O momento a que chamamos «Os Livros e a enunciado diferente do habitual, vocábulos
Leitura» e o encontro com os autores de livros desconhecidos das crianças ou utilizados num
já lidos oferecem imensas possibilidades para sentido diferente do uso comum, treino insu-
fazer interagir o leitor, o texto e o contexto da ficiente ou incompreensão de instruções.
leitura como factores de compreensão. Precisa de ter em linha de conta tudo isto,
A leitura oral encontra, naquele espaço e porque não se considera o erro como uma fa-
naquele tempo, o seu verdadeiro sentido. talidade, uma deficiência dos alunos ou uma
O professor, como leitor experiente, deve falha do Programa; porque não se criam artifí-
funcionar como modelo, tornando claras aos cios destinados a evitá-lo, não se penaliza
alunos as estratégias que utiliza para fazer quem erra, nem se faz do erro motivo de com-
uma boa leitura para o grupo. petição.
Nada mais enfadonho do que ouvir ler Encara-se como «um obstáculo identificá-
quem lê mal e os professores nem sempre são vel», como o resultado de uma acção que os
bons modelos de leitura. alunos precisam de analisar com o professor
Porém, aprender a ler não se limita às acti- para que o compreendam e, em interacção
vidades consideradas do âmbito do Programa cooperada, mobilizem conhecimentos e infor-
de Língua Portuguesa. mação, experimentem, comparem, encontrem
Aprende-se a ler quando se inventam, es- estratégias para o ultrapassar, organizem e in-
crevem e trabalham enunciados de problemas tegrem esquemas mentais facilitadores e eco-
de matemática, quando se elaboram relatórios nómicos.
de experiências, quando se tomam notas, Esta análise permite ao professor direccio-
quando se sublinha informação num livro, nar o seu trabalho e escolher estratégias de en-
quando se organizam ficheiros temáticos, sino adequadas, isto é, que vão ao encontro da
quando se resolvem fichas. natureza dos obstáculos identificados e às
Frequentemente, os alunos não são capazes estratégias de aprendizagens que os alunos
de as resolver apenas porque não compreen- preferem de modo a fazer deles factores dinâ-
dem aquilo que lhes é pedido. micos de compreensão, consciente de que
Paradoxalmente, muitas vezes, contorna-se «aprender a ler, isto é, aprender a compreen-
o obstáculo sem sequer o identificar. Ajuda-se, der» é tarefa de uma vida inteira.
desnecessariamente, a fazer o exercício, inten-
sifica-se o treino e não se ajuda a compreender
Referências Bibliográficas
a instrução, lendo-a com os alunos, analisando
com eles o que lhes foi pedido que fizessem, A STOLFI , J.-P., L’école pour apprendre, Paris: ESF,

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procurando com eles analogias e diferenças 1998.
em outras instruções. CHARMEUX, E. Apprendre à lire: Échec à l’échec, Édi-
tions Milan, 1999.
Para poder ajudar os alunos a compreender,
FIJALKOW, J., Entrer dans l’écrit, Belgique: Éditions
o professor precisa de conhecer e de tornar Magnard, 1993.
consciente às crianças aquilo que elas já sabem GIASSON, J., A compreensão na leitura, Edições ASA,
e aquilo que precisam de saber acerca de um 1993.
assunto levantado na aula, de um projecto que NIZA, I., Criar o gosto pela escrita, Ministério da Edu-
se propõem realizar, ou de uma rubrica do cação, Departamento da Educação Básica, 1998.
NIZA, S., «Alfabetização e Desenvolvimento da Es-
programa e também as fontes de informação
crita», Escola Moderna, Jan. 89.
que podem mobilizar. NIZA, S., «A Organização Social do Trabalho de
Precisa também de estar atento às especifi- Aprendizagem no 1º Ciclo do Ensino Básico»,
cidades dos obstáculos que encontram: um Inovação, nº 11, 1999.

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