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Inácia Santana
ilusão das turmas homogéneas comece final- dos ao mesmo tempo – mas é sobretudo uma
mente a desvanecer-se no discurso racional maneira de pôr em funcionamento uma orga-
dos professores, a verdade é que, muitas vezes nização de trabalho que integre dispositivos
na prática, inconscientemente, continua a ten- didácticos, de forma a colocar cada aluno pe-
tar-se homogeneizar, quer através da consti- rante a situação mais favorável».
tuição de turmas por níveis supostamente A congruência máxima com esta perspec-
idênticos de aprendizagem, quer dentro da tiva implica a construção de uma outra escola:
própria turma, pela divisão em sub-grupos, uma «escola das diferenças» (1995), de acordo
também supostamente homogéneos para faci- com uma expressão do mesmo autor. Não falo
litar o ensino do professor. É disto que se trata só da escola enquanto instituição educativa,
quando se fala, muitas vezes, em diferencia- que ainda está muito longe de o ser, mas so-
ção. Mas esta é uma perversão do sentido pe- bretudo do micro-sistema da sala de aula. É aí
dagógico da diferenciação porque mantém a que o sucesso e o insucesso se geram, é aí que
lógica do ensino simultâneo. tudo se joga.
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É essa escola das diferenças, em que todos 1. Cenário Pedagógico
sejam aceites, respeitados, desenvolvam a sua
autoestima, onde tenham espaço de participa- O cenário consiste na organização do ma-
ção activa e onde seja possível a todos a reali- terial pedagógico em áreas de trabalho, de ma-
zação de aprendizagens, que persigo desde o neira a que tudo o que se relaciona com cada
início da minha actividade profissional. uma das áreas esteja ao alcance de todos num
É essa prática, que corresponde à procura determinado espaço, devidamente identifi-
incessante de congruência entre o que de- cado.
fendo, o que tenho vindo a integrar ao longo Claro que os recursos vão sendo adequados
do meu percurso de formação e o que faço, ao percurso de aprendizagem dos alunos ou às
que me proponho partilhar convosco. necessidades sentidas e discutidas em grupo.
O trabalho de que vos vou falar enquadra-
se num modelo sociocêntrico de organização 2. Organização Cooperada
cooperativa que vem sendo construído ao
longo de mais de 30 anos pelo Movimento da É neste contexto educativo que as aprendiza-
Escola Moderna Portuguesa, através de uma gens se vão construindo, através das interacções
interacção permanente entre a prática desen- de um grupo organizado cooperativamente se-
volvida pelos seus sócios e a partilha e refle- gundo regras de convivência democrática.
xão sistemáticas no seio de grupos de apro- Porque a aprendizagem é um acto intencio-
fundamento teórico prático. nal, é fundamental que os alunos tenham co-
Trata-se de uma gestão cooperada do tra- nhecimento do que a escola exige que eles
balho pedagógico suportada por um cenário aprendam, para que possam direccionar o seu
que procura ser estruturante e facilitar o trabalho nesse sentido.
acesso dos alunos a todos os recursos de Assim, a apresentação dos programas curri-
aprendizagem bem como aos instrumentos re- culares aos alunos é um dos primeiros actos
guladores dos processos de trabalho. no início de cada ano escolar. É evidente que
Procura-se envolver os alunos no seu per- esta primeira abordagem não implica uma
curso de aprendizagem, no sentido da aquisi- imediata tomada de consciência do que tem
ção de uma gradual tomada de consciência do de se trabalhar.
ponto em que se encontram e do que precisam A integração dos programas pelo grupo vai
de fazer para poderem avançar no currículo. sendo feita em conjunto através dos balanços
O envolvimento dos alunos decorre também periódicos do que trabalhámos, do que nos
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As discussões geradas periodicamente so- um poder realizar as actividades que livremente
bre o desenvolvimento do trabalho são funda- escolheu e que decorrem de uma gradual to-
mentais para ajudar a tomada de consciência mada de consciência das suas necessidades
do que realmente cada um é capaz e do que através da regulação do grupo, permitindo a
ainda precisa de trabalhar mais. cada um traçar o seu próprio percurso, possi-
A planificação diária e semanal operaciona- bilita ao professor o acompanhamento dos
liza a organização cooperada do trabalho do alunos que mais precisam ou que o solicitam.
dia-a-dia, em função das metas estabelecidas e A produção individual, a meias ou em pe-
da caminhada do grupo, corresponsabilizando queno grupo, posteriormente colectivizada,
todos os elementos pelo desenvolvimento do garante o sentido social da construção das
trabalho. aprendizagens.
O grande organizador da diferenciação do Numa dinâmica desta natureza, a diversi-
trabalho (para os alunos e para o professor) é dade não é um obstáculo, mas um recurso e
o Plano Individual de Trabalho. Da responsa- uma riqueza.
bilidade de cada aluno, é planificado indivi-
dualmente no início da semana e avaliado in- 3. Sistema de regulação
dividual e colectivamente no final da semana.
É o registo contínuo e sistemático que per- Paralelamente, existe um conjunto de ins-
mite a cada aluno a condução do seu próprio
trumentos de registo da produção dos alunos
processo, através de uma permanente regula-
que permite a pilotagem colectiva do trabalho.
ção no grupo.
Trata-se de tabelas de dupla entrada expostas
Como registo divide-se em várias partes.
para registo e consulta e que constituem impor-
Uma parte correspondente a um conjunto de
tantes instrumentos de regulação e avaliação da
actividades que podem ser realizadas durante
actividade dos alunos.
um tempo a combinar (cerca de uma hora
O grande desencadeador da análise da vida
por dia) e que faz parte do estudo autónomo.
do grupo é o Diário de Turma. Constituído por
Uma dessas actividades pode ser o trabalho
4 colunas, é onde os alunos podem, livremente
com a professora, de acordo com o que ficou
combinado entre todos. Noutra parte registam- e em qualquer altura do dia, escrever aquilo de
-se os projectos nos quais os alunos estão envol- que gostaram ou não gostaram, as suas suges-
vidos, os quais têm também um tempo próprio tões e as realizações que consideraram mais
de realização (a combinar no grupo) e que serão relevantes.
A análise semanal deste instrumento é feita
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crescimento de cada um e do grupo, através da uma turma. Mas é a gestão cooperada de to-
interacção na resolução de conflitos. dos os componentes do ecossistema de inter-
Este modo de funcionamento vai permi- venção educativa, que melhor assegura a con-
tindo aos alunos uma gradual apropriação dos gruência pedagógica e que mais reforça o valor
instrumentos de pilotagem e de regulação do metacognitivo da organização».
trabalho e das aprendizagens, que passam a É esta utopia que continuo a perseguir e é
integrar na sua vida quotidiana, com crescente esse movimento incessante que dá sentido e
autonomia e capacidade crítica, caminhando encanto à minha profissão.
no sentido da construção de «um sistema interno
de pilotagem, indispensável ao bom desenvolvi-
mento de todas as fases de acção» (Bonniol Bibliografia
citado por Nunziati, 1988).
Numa dinâmica desta natureza, a diferença NIZA, Sérgio (1998), «A organização social do tra-
é um aspecto inerente ao próprio grupo. O co- balho de aprendizagem no 1º Ciclo do Ensino
Básico»
nhecimento e a aceitação dos outros que cada
NUNZIATI, Georgette (1988), «Pour construire un
um vai adquirindo permite-lhe a potencializa- dispositif d’évaluation formatrice», Cahiers pe-
ção e a valorização dos saberes mútuos e a dagogiques, n º 280, Janeiro 1990, p.47-56.
ajuda nas suas dificuldades. PERRENOUD, Philippe (1992), «Não mexam na mi-
Ainda citando Sérgio Niza, «é certo que a nha avaliação! Para uma abordagem sistémica
dimensão ecológica do espaço de trabalho, o da mudança pedagógica», ESTRELA, Albano e
NÓVOA, António (org.), Avaliações em Educação:
desenvolvimento da acção educativa, o estilo
Novas Perspectivas, Lisboa: Educa, p.155-173.
profissional dos docentes ou o clima sócio- PERRENOUD, Philippe (1997), «Concevoir et faire
afectivo do trabalho escolar são condicionan- progresser des dispositifs de différenciation»,
tes e agentes da história da aprendizagem de Educateur magazine, Genève, n º 13/97, p.20-25.
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