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SEMINÁRIO DOS RATOS

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho


(Doutorando em Filosofia, UFRN)

Resumo

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção é a regra”, ensinou Walter
Benjamin numa das suas teses sobre o conceito de história. Uma “tradição”, aquém do seu
termo forte, usualmente esquecida por aqueles que engendram o debate sobre a história,
especialmente, e sobre a lei, de maneira geral. Tomando tal perspectiva proponho colocar em
debate a ideia de que a ligação do estado de exceção com a tradição dos oprimidos perpassa,
justamente, a noção de que essa “tradição” não entra, e não possui acesso, aos debates sobre a
legislação que, basicamente, determina sua existência. Tomando como desvio, num sentido
particular atribuído por Benjamin, gostaria de propor um atravessamento por um conto de
Lygia Fagundes Telles, do qual o texto é homônimo, para pensar a partir da perspectiva da
tradição dos oprimidos. Isso significa conceber tal conjunto como um aparato que não alcança
seu “objeto”, porque, de fato, ele escapa ao escopo de um texto, visto que o “desvio” também
se dá pela minha “fala” e não por aquele que integra a “tradição”. Lygia, por outro lado,
parecendo ter consciência disso, descreve o “VII Seminário” como ocorrendo num lugar
deslocado, longe do “centro”, no qual “especialistas” debaterão as possíveis soluções para o
problema dos ratos que infestam o mundo. Ratos, esses, ora comparados com o povo, mais
precisamente, com os pobres, ora convertidos em “unidade monetária”, como se dá no poema
de Zbigniew Herbert, “Crônica de uma cidade sitiada”, e ainda como alegoria de uma cidade
paralisada, como bem é apresentada no filme Cosmópolis de David Cronenberg. Tal
“tradição” aparece como um estorvo, ou mesmo algo a se esconder, “manter nas sombras”,
isto é, como o negativo social a ser desconsiderado. Nesse caminho, a pesquisa de Giorgio
Agamben sobre o Homo sacer, aquele que não pode ser sacrificado ao divino e é matável,
sem que isso se configure como crime, torna-se patente, para revelar aquilo que Benjamin
tornou evidente: todo documento de cultura é documento de barbárie. Se no final do conto de
Lygia F. Telles, são os ratos a reunirem-se no “seminário”, apossando-se de tudo, convertidos
numa alegoria de povo, o que lhes resta é, através de sua própria experiência, oferecer uma
saída. Tal saída, como mostra Kafka, em Josefina, a cantora, ou o povo dos ratos é a união
dos comuns, a própria comunidade que se agrupa para, numa espécie de momento de partilha,
conhecerem-se como indivíduos capazes de refletir, de pensar, de sentir, de alcançarem um
prazer de estarem juntos para enfrentar os perigos. Isto é, uma política revolucionária que
encerraria a exceção, rasgando-a.
Comunicação apresentada no III Colóquio Nacional de Ética e Filosofia Política.
UFRN, abril 2017

“olhamos para o rosto da fome o rosto do fogo o rosto da morte


e o pior de todos – o rosto da traição
e só os nossos sonhos nunca foram humilhados”
(Zbigniew Herbert, “crônica de uma cidade sitiada”)

Nenhum discurso é isento de uma posição. A sua respectiva “neutralidade” é ainda


pior, porque tenta obscurecer uma posição. O trabalho da crítica vincula-se a refletir sobre o
discurso e seus ordenamentos e enquadramentos possíveis. Como acontece com a obra de arte
na perspectiva institucionalista, a percepção do discurso também se modifica nesses
meandros. A pouco inocente apresentação que antecede um discurso, por si só já “enquadra”
o discurso, não apenas numa ordem, mas também num tipo de sujeito. Naquele que teria
legitimidade para falar, em detrimento de um qualquer que não o teria.
Tomando como paradigma - esta coisa que vem ao lado, enviesada, deslocada, que
pode ou não aparecer junta com aquilo que está no “caminho direto”, mas nunca deixa de
estar presente – o conto de Lygia Fagundes Telles, do qual esse texto é homônimo, O
seminário dos ratos, proporei a seguinte questão: há um não-lugar de uma fala silenciada e,
qualquer que seja a posição, um texto crítico só é digno de seu nome se souber operar com a
possibilidade de dar lugar a quem não pode, não quer, não consegue falar. Isto é, o texto é
aquilo que busca descobrir o vazio de um silêncio.
Qual a importância disso? Quero ser o menos obscuro possível: quando lidamos com
algo como o “estado de direito”, estamos colocando em questão o nosso próprio modo de
viver; estamos nos perguntando sobre as formas de vida que queremos, por um lado. Por
outro, admoestamo-nos sobre tais coisas porque o que temos hoje não nos serve mais, ou está
em crise. Se há algo que aprendemos com a experiência capitalista é que a “crise”, algo
passageiro e decisivo, tornou-se a regra, cuja manutenção, ao mesmo tempo, sustenta e
paralisa qualquer movimento de diferença. O estado de direito repentinamente se desvela
como estado de exceção.
Giorgio Agamben é muito claro a respeito dessa conexão: o estado de exceção é a
ordem jurídica originária, isto é, é ela que nos reúne no estado de direito. Ao contrário do que
se pensa, sobre a lei existir para nos garantir “os direitos”, ela existe na medida em que,
virtualmente, nos torna homines sacri, ou seja, insacrificáveis e matáveis, na mão de um
poder soberano, cuja existência depende da possibilidade de exclusão inclusiva, por meio de
uma lei-fora-da-lei.
Seguindo Walter Benjamin, aprendemos que “a tradição dos oprimidos nos ensina
que o estado de exceção é a regra”. Se para todos nós, homines sacri virtuais, descobrir essa

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UFRN, abril 2017

situação é um “choque”, para uma parcela da população, essa descoberta é uma marca no
corpo, é uma dor, é a morte de um filho, é a tortura de um vizinho, é a invasão de sua casa
pela polícia, é a condição precária de trabalho. Então, para um aprofundamento nas questões
que tais posições incutem, gostaria de passar à leitura do texto da autora que ora tomamos
como paradigma.
Está em vias de ocorrer o VII Seminário dos ratos, no qual especialistas do mundo
inteiro chegam para partilhar suas pesquisas sobre formas de acabar com a infestação, cuja
estatística mostra “cem ratos por habitante” (TELLES, 2009, p.154). Tais especialistas são
apresentados, com suas respectivas características e funções, a exemplo do secretário de bem-
estar público e privado que “[t]inha a voz branda, com um leve acento lamurioso” (idem,
p.151). Tal evento dá-se ainda no campo, num lugar isolado e longe do centro da cidade,
longe do centro dos principais acontecimentos. Isso me parece uma boa questão: aqueles que
devem decidir sobre o futuro da humanidade, nada menos, afastam-se e isolam-se. Procuram
fugir do problema que os originaram. Fica a dúvida sobre algum tipo de fuga, a tentativa de
um “fora”, possível apenas, notemos, a quem tem o poder soberano.
Encontramo-nos num seminário para eliminar um problema que, aparentemente,
veremos, não se localiza ali. Estamos diante de um espaço criado fora do lugar, porque o
próprio lugar que demanda o espaço não o torna possível. Isto é, a eliminação do lugar é a
possibilidade de um espaço para a atuação do poder. Pois, apesar das queixas contra a
imprensa, estamos diante de uma atuação. O chefe das relações públicas, nosso principal
interlocutor é claro: “Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos
estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio,
que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! [...] Onde os senhores
poderiam trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer?” (ibidem,
p.154). O campo, um exterior do lugar, mas que não está fora. Tanto não está fora que não
deixa de ser ocupado.
Desde o início, o secretário de bem-estar público e privado não deixa de sentir
calafrios, como se algo estivesse a ponto de acontecer, uma “anormalidade”: “[o] inimigo está
aqui com a gente” (ibidem, p.157), diz ao chefe das relações públicas sobre um
pressentimento que tivera. Porém, o interessante são as metáforas para dizer a percepção que
faz arder seu pressentimento: “Aumenta e diminui [...] como um mar”, “parece um vulcão
respirando”. Tal percepção, conectada com metáforas de força e, ao mesmo tempo, de massa,
mais a frente, pela canção entoada pelo chefe das relações públicas, lembra-o o “povo”. Para

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o secretário, o povo é uma “abstração”. Uma abstração que se realiza “quando os ratos
começam a expulsar os favelados de sua casa”, até tornar-se uma metáfora em relação àqueles
que partilhariam os interesses do povo: “aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses
bastardos que parecem ratos [...]”.
Esses “subversivos” são aqueles que falam demais, falam em excesso. Não há,
também, um lugar para eles. Além da recusa ao que se diz, o que se diz sobre eles opera no
campo da metáfora, pois, se muito, só se pode falar desses “ratos” num campo “vazio” da
linguagem: o das palavras que não remetem senão a outras palavras. Por isso, podemos pensar
no que escreveu Rancière (2014, p.82): “[a]o ressentimento infinito contra a ilusão dos
homônimos, podemos contrapor o reino geral da sinonímia, uma vez que damos às palavras
não seu referente, sempre arriscado, mas a voz pela qual elas têm um corpo”. O povo como
“povo” é uma palavra que mais do que possuir um “referente”, a essa “abstração”, podemos
remeter à “voz pela qual elas têm um corpo”: quando os ratos começam “a roer os pés das
crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir”. E, quando passa a existir, torna-se
um verdadeiro estorvo para aqueles que dominam, porque quando o povo fala, fala
“cegamente, ao rés do acontecimento” (idem, p.27).
Esse povo incomoda, porque quer dizer a verdade, sem ter direito a um lugar na
possibilidade de dizer qualquer coisa sobre a verdade; acaba sendo posto como aquele que,
quando fala, fala ilegitimamente, fala sobre sua emoção, desprende-se da razão (lógos no seu
sentido mais estrito), e deixa transparecer seus sentimentos. Vejamos o exemplo do
cozinheiro, responsável pela preparação do jantar de boas-vindas do Seminário, após o
primeiro ataque dos ratos: “vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto. Acho que a
gente está no mundo deles. Pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando entrou
aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea!”
(TELLES, 2009, p.161). Qual verdade, qual lógoi ele proclama? Nenhum. Seu discurso posto
não diz respeito a qualquer discurso que vise, a exemplo do que sucederia no Seminário,
procurar soluções racionais para um problema. O homem do povo quando fala, fala não de um
“referente”; mas apresenta diante de nós a si próprio no seu ato, falando de toda sorte de
experiências excessivas do sentir, do desejar, da lembrar, mas, “sem profundidade”
(RANCIÈRE, 2014, p.40). No meio disso tudo, a verdade não deixa de aparecer, uma verdade
“coberta” e “a-coberta-da” pela emoção: Acho que a gente está no mundo deles, deles que
chegam como nuvem, um “monte deles guinchando”, onde um, inclusive, “ficou de pé na pata
traseira e me enfrentou feito um homem. Pela alma de minha mãe, doutor, me representou um

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homem vestido de rato!” (TELLES, 2009, p.162) Não é caso de referência ou “alusão”, mas
da própria fala do acontecimento, porque falar já é o acontecimento.
“A gente está no mundo deles”, diz o cozinheiro. Esse dizer, que é acontecimento,
acaba por revelar a verdade do que acontece: estamos no mundo dele, porque somos eles. O
secretário de bem-estar já pressentia isso, pressentia que estavam entre eles, “aqui”. Mas, para
os “eles” resta-lhes serem, serem a nuvem que chega e arrasa tudo. Tal “arrasar” é, na
verdade, um substituir. Ao choque da nova onda que chega, o chefe das relações públicas
esconde-se na geladeira, e quando consegue sobreviver ao ataque, sem saber ao certo quanto
tempo durou a espera, sai e encontra a casa vazia e silenciosa. O único ruído que ouve, vem
da “sala de reuniões” onde os ratos, intuí ele, estavam todos reunidos ali, de portas fechadas.
Isto é, o que parecia uma ironia da autora, subitamente torna-se a “verdade” da história. Ao
fim, o seminário passa a ser dos ratos, para os ratos. Aqui, deparamo-nos com um
contraponto: a relação entre o “poder soberano” dos especialistas, incapazes de decidirem
sobre a melhor forma de eliminar os ratos, e a insurreição, na própria tomada, pelos ratos, do
lugar onde eles não tinham lugar. Ao invés de escrever por, em nome de, no lugar de, como
diz Deleuze no Abecedário, letra “A” de “animal”, temos o próprio sujeito, tomado como
impotente, apresentando-se.
Enquanto Lygia F. Telles apresenta os especialistas com base na “referência”,
referência a um “mundo real”, a suas “profissões”, aos objetivos pelos quais teriam se
reunido, aos ratos resta a “sinonímia”, uma constelação de metáforas que procuram configurar
o acontecimento de suas aparições: seja o “mar”, seja o “vulcão”, seja a nuvem” e seja o
“homem”. Todos, mais do que definirem a existência desses seres, multiplicam tais aparições
como acontecimentos. Se dessa passagem, à última pertence ao homem, não tomemos como
contingencial. Nem que tal “representação” tenha-se dado a um homem, único a reconhecer
estar no mundo que não é seu, que não é do “povo” é menor ainda. O cozinheiro é quem
desloca a posição de todos. Se pelo poder soberano, o lugar do seminário foi deslocado, é pela
apresentação de um não-lugar que o cozinheiro desloca tudo. Por sua fala, sua fala que é
acontecimento, é que nós nos deslocamos. De onde para onde?
Retomando a frase de Benjamin, é da “tradição dos vencedores” para a “tradição dos
oprimidos”. A tradição, é preciso dizer, pensada no sentido dos “oprimidos”, não corresponde
ao sentido comum que nós atribuímos, apesar dele, mais profundamente, dizer respeito a um
comum. Usualmente utilizamos essa apalavra em associação a termos como “costume”,
“normas instituídas”, “comportamento reconhecido”, ou mesmo “padrão normal”. Aqui todos

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esses termos podem, na verdade, adquirir um sentido negativo, mais enquadrando as


diferenças dessa “nossa” tradição do que as exemplificando para torná-las conhecidas. A
“tradição”, nesse caso, não se trata de uma continuidade. Benjamin ensina: a revolução até o
momento foi impedida de ser realizada. Ela está por vir. Nesse sentido, o estado de exceção é
a tradição dessa paralisia. Transmite-nos ainda outra lição: é preciso parar o “trem do
progresso”, puxando o freio. Ou seja, precisamos imobilizar.
Parece que ambas as palavras “paralisar” e “imobilizar” possuem o mesmo sentido.
São análogas. Não, não são. A paralisia está vinculada com um movimento estranho a nós
mesmos, capaz de impedir o prosseguimento, significando mais “fazer parar” ou, mais
específico ainda, “neutralizar”. Neutralizar as forças, neutralizar as potências. Imobilização,
no seu espectro, não guarda uma relação com a “neutralização”, isto é, com a noção de
“desmobilização”. Ela se liga muito mais à noção de “estacionar”, “não seguir adiante”. Aí
está o espaço da reflexão. A paralisia impede, principalmente, a reflexão. Essa “tradição” de
intermitências, de imobilizações, ensina que a exceção é regra. E ensina no próprio corpo, no
conhecimento (não reconhecimento) de que somos os “99%”, de que o sofrimento nos une, de
que nossos corpos são limiares para a lei, abandonados na lei, numa zona de
indiscernibilidade entre o dentro e o fora. Enfim, ensina-nos o pertencimento a um não-lugar.
É esse não-lugar que aparece, como um acontecimento, na fala do cozinheiro. E, apenas
depois disso, após esse acontecimento é que o rato se assemelha, que ele, melhor, representa o
homem vestido de rato.
E, não apenas o homem. Zbigniew Herbert, poeta polonês, descreve no seu “Crônica
de uma cidade sitiada”, que lhe foi incumbido o cargo de cronista durante o cerco de sua
cidade. Ele mal sabe quando o cerco, de fato, teve início. Depara-se apenas com uma ruína,
um lugar deixado a eles, ao qual se ligam, por nada terem exceto essas ruínas. Num momento,
na crônica de uma segunda-feira, escreve: “as lojas estão vazias o rato converteu-se em
unidade monetária”. Mais uma vez, o rato reaparece, dessa vez como a transmutação do
máximo valor existente: o dinheiro. Para Benjamin, gostaria de lembrar, o narrador moderno,
aquele que resiste ao tempo das vivências e é capaz de transmitir alguma coisa, sobrevive na
figura do cronista. Se o máximo valor é o rato, e o rato é um dos animais associados com o
povo, aquele que é capaz de realizar o povo, isto é, torná-lo realidade, temos ao mesmo
tempo, o velho tempo que morre e o novo que ainda não pode nascer, um tempo de paralisia
em tensão com um tempo de imobilização. Em Cosmopólis, filme de David Cronenberg,

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inspirado no livro homônimo de Don DeLillo, trabalha esse interregno, colocando o rato no
“centro” desse espaço.
O animal é a insígnia apropriada pelo povo nas ruas (uma insígnia já muito gasta por
Banksy); é o animal-representante dos manifestantes. É ele que invade o lugar daqueles que
possuem o poder; ele é, não enfim, a alegoria da imobilização num tempo paralisado. Dois
tempos, porque duas tradições. O da imobilização é o do poema, por exemplo, que permite a
Herbert apresentar a situação das crianças nessa cidade sitiada, crianças que vivem o tempo da
paralisia: “evito comentários mantenho sob controle as emoções descrevo fatos / parece que
só os fatos têm valor nos mercados estrangeiros / com uma espécie de orgulho quero dizer ao
mundo / que graças à guerra criamos uma nova raça de crianças / as nossas crianças não
gostam de contos de fadas brincam aos tiros / dia e noite sonham com sopa pão ossos / tal
como os cães e os gatos”. Na relação “ao rés do acontecimento” revela a verdade sobre o
“referente”: os fatos, aquilo que faz referência direta ao mundo real, torna-o verídico,
verificável, é o que “têm valor nos mercados”, aquilo que paralisa. O resto, o que se escreve
nessas crônicas, cujos personagens aparecem em seu não-acontecimental, apresentados ao
“rés” do “acontecimento”: as crianças que passam fome.
Esses sujeitos são postos em cena, não como um fato provável, mas como o não-
lugar no discurso que governa o mundo. O conto de Lygia é o nosso paradigma, o que nos
revela essa disposição do não-lugar de um sujeito que, por não estar nos quadros instituídos,
não pode falar, e quando fala, fala de um não-lugar discursivo, fala de sua emoção, aquilo que
não se remete a “nada”, mas multiplica a experiência. Tais sujeitos aparecem como o irrelato,
o que não pode ser relacionado, senão no excesso de palavras. E, paradoxalmente, tais sujeitos
emergem no momento em que o “poder soberano” torna-se incapaz de decidir, quando seu
poder revela-se simplesmente insignificante, tanto no sentido de “não ter importância, não ter
valor”, como no sentido de ser “sem significado”. Nesse lugar, o rato aparece como a
representação desse homem, vida nua, entregue à vontade do soberano, capaz,
repentinamente, de descobrir a sua potência de decidir e assumir uma posição, não
necessariamente um lugar. Mas, tal assunção não se dá como uma formação determinada,
senão como uma “nuvem”, um acontecimento que não deveria ter lugar, uma forma informe,
que não satisfaz nenhuma necessidade jurídica de ordenamento, mas é a ruptura de todo
ordenamento. Se acompanharmos Benjamin mais uma vez, entenderemos porque o estado de
exceção empreendido pelos oprimidos é o “estado de exceção efetivo”, isto é, a inoperância
desse não-lugar que se torna um lugar habitável pelo povo, que são os pobres, os oprimidos.

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Um caso emblemático desse caso, dessa abertura que se avizinha no conto de Lygia,
mas que se apresenta após a entrada pela porta, é o conto de Kafka, Josefina, a cantora, ou o
povo dos ratos. Josefina é introduzida como a grande cantora do povo dos ratos, aquela que
permite ao outro conhecer o “poder do canto” (KAFKA apud BORGES et al, 2013, p.222).
Como na narrativa do Seminário, temos a introdução da personagem de destaque, daquela que
se desprega do povo. Porém, como o próprio título indica, e como a escrita de Kafka opera, há
uma dissolução dessa figura no informe “povo”. Mais adiante, o narrador já desfaz essa
caracterização distintiva da cantora: “Se for mesmo verdade que Josefina não canta, mas
guincha, ou que não vai muito além de nosso guincho habitual (talvez sua força não alcance a
de qualquer trabalhador que assovia todo dia, além de trabalhar) [...]” (idem, p.223). Temos
aqui a “diluição” de Josefina ao seu povo. Abre-se a dúvida para se, verdadeiramente,
Josefina distingue-se dos demais, até o instante em que, o guincho de qualquer um não difere
do da cantora. Todavia, seu nome a marca em relação aos demais. Josefina está sempre em
contraposição aos demais.
Porém, Kafka inverte a relação: Josefina é como uma filha sendo protegida pelo
povo. O povo dos ratos torna-se a “força” que protege, ainda que Josefina pense “que é ela
que deve proteger o povo. E, poderia parecer, realmente, que seu canto nos salva de más
situações políticas ou econômicas; quando não espanta a desgraça, ele ao menos nos dá forças
para suportá-la”, escreve o narrador kafkaniano (ibidem, p.227), para em seguida esclarecer:
“Não nos salva nem nos dá força alguma, é claro, e é fácil arvorar-se em salvador a posteriori
deste povo tão acostumado com a desgraça, nem um pouco indulgente consigo mesmo, rápido
em tomar decisões, bom conhecedor da morte [...] é fácil fingir-se, a posteriori, salvador deste
povo, que sempre soube, bem ou mal, salvar-se a si mesmo [...]”. (ibidem, p.227-228). Ainda
que Josefina consiga reunir o povo, sua reunião se faz “menos um recital de canto e mais um
comício popular, um comício no qual todos permanecemos mudos; menos Josefina. A hora é
séria demais para perder tempo com conversas” (ibidem, p.228).
O canto de Josefina, que não se cala, pode ser, na verdade, apenas um jogar a cabeça
para trás e um preparar-se para cantar. Alguns, simplesmente, nem escutam, de modo que, no
fim, todos estariam calados, num momento sério demais para “perder tempo com conversas”,
perder tempo com as palavras que fazem referências, e preparar-se para o “combate”. Falar,
nesse caso, já seria o acontecimento. Josefina some, ao fim, some e logo será esquecida pelo
seu povo, “dado que a história não nos interessa” (ibidem, p.236), que seguirá seu caminho.

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A história de Josefina é a história da dissolução do indivíduo no povo. E esta


dissolução, ou melhor, a história do não-lugar que ocupa o lugar, é a história silenciosa do
próprio povo, da tradição dos oprimidos, uma história da inexistência. A “inexistência é a
coisa mais difícil no mundo de se ver” afirma Rancière (2014, p.59). Como, portanto, tornar
essa “história” possível? “Para tornar uma história não acontencimental da era das massas, é
preciso falar primeiro desse acontecimento de uma multidão reunida para celebrar o
aparecimento de uma abstração encarnada” (idem, p.67). E esse aparecimento é “a entrada dos
anônimos no universo dos seres falantes” (ibidem, p.68). Torná-los visíveis, portanto. Os ratos
do conto de Kafka tornam-se visíveis na medida em que silenciam, seja para o canto de
Josefina, seja para a espera do combate. O conto de Lygia apresenta os ratos guinchando, o
que seria nada mais do que um ruído distinto da fala. Eles também aparecem como uma
“nuvem”, uma “onda”, um “vulcão”. “A figura daquela que falaria – a instância legitimante
da narração – torna-se a testemunha muda – a instância legitimante do saber” (ibidem, p.85).
O aparecer da testemunha muda acontece porque cada palavra poderia ser-lhe difícil,
porque, na verdade, cada palavra é já o acontecimento de seu sentido; é uma dor, e é, ao
mesmo tempo, uma narrativa do lógos “segundo a etimologia romântica do legein grego,
recolher: devolver a todo filho sua mãe, a toda dor sua voz, a toda voz seu corpo; conduzir
toda palavra [...] na segurança da narração habitada por seu sentido, da narração que não deixa
espaço para o não sentido” (ibidem, p.87). Ouçamos bem: é um recolher e devolver. A
devolução é entrega a alguém. A quem de direito cabe os testemunhos dos anônimos, senão
ao próprio povo, aquele que “sabe salvar-se a si mesmo”. A sua relação não é com os
referentes possíveis, aqueles fatos que já são um “não lugar, que provoca o desvario da
palavra e a ilusão que faz acontecimento [...] Os atores históricos vivem na ilusão de criar o
futuro combatendo uma coisa que, na verdade, já é passado” (ibidem, p. 60). Essa ilusão
surge, justamente, como os especialistas desejam fazer com os ratos, da “vontade de liquidar
os nomes impróprios”, o que significa “liquidar a impropriedade e o anacronismo pelos quais
acontecimentos em geral acontecem com os sujeitos” (ibidem, p.54).
Isso pode significar uma recusa por parte da intelligentsia em compreender os
movimentos do povo em direções aos acontecimentos que já pareciam superados. A crítica
benjaminiana de que a “surpresa de que as coisas continuem assim” não seja “filosófica”,
significa essa recusa em atentar à “instância legitimante do saber”, a qual perpassa pelas
emoções e aparições, seduções e insurreição por parte dessa persona non grata na escrita da
história, cuja voz pode se fazer ressoar e abater-se sobre os especialistas como “vulcão”,

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como “uma nuvem” que cai sobre todos e arrasta tudo consigo. Espaço que é, sem dúvida, o
do comum, o da possibilidade de partilhar o comum, que nada é mais do que a forma radical
de democracia.

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