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L’ame-à-tiers e o vivo do corpo na sessão analítica

Nieves Soria

A era da tecnociência, impulsionada pelo mercado, nos


atravessa ao introduzir-nos em uma nova realidade, puramente virtual,
que subverte a relação da velha realidade com a verdade e o real. Ela
tem seu interesse em relação às anteriores, regidas fundamentalmente
pelo discurso religioso. O mundo já não nos aparece necessariamente
como uma criação de Deus, como um lugar que nos fala dele, mas é um
mundo matematizado, algorítmico. Um mundo ordenado por um saber
que opera no real, real captado pelos matemas da ciência.

Não vivemos naquele mundo habitado por diabos, espíritos,


anjos, monstros, bruxas e demônios. Estamos submersos na aletosfera,
rodeados de latusas, as que, cada vez mais, se incorporam a nós. Ou,
cada vez mais, nos incorporamos a elas, ficando submetidos a uma
ordem superior, não mais divina, mas regida pela inteligência artificial,
em cujas mãos ficam, quase sem darmos conta, cada vez mais decisões
que orientam nossas vidas [1], no vazio deixado pela evaporação do
pai [2].

A matematização do real se expande sem limites, nós todos


ficamos boquiabertos, mais ou menos capturados por seus efeitos. Nos
cativa, nos facilita a vida, nos seduz. Encurta distâncias e tempos, o
que nos possibilita continuar de algum modo com nossas vidas nesses
tempos de pandemia. Deve-se dizer que tem um lado milagroso, já que
não é necessária uma crença para que funcione. E, efetivamente,
estamos conectados.

Mas o falasser é profundamente religioso, e assim como, em


tempos que nós não chegamos a conhecer, o natural, o dado, o mundo
que rodeava o falasser (mas também o mundo que ele tentava cogitar)
era a criação divina, a famosa ordem natural emanada da vontade
divina, agora vivemos no mundo da ciência, respiramos com ele, nos
contaminamos com ele, nos movimentamos com ele, contamos com seu
funcionamento quase como com uma garantia divina, o incorporamos
e, sem saber, a ciência se tornou nossa nova religião.

A psicanálise surge junto com a ciência moderna, em um


movimento de ruptura com a lógica do conhecimento, ligado ao
paradigma religioso. Surge traçando um sulco no real, em uma tarefa
a-cosmológica, como assinala Lacan no Seminário 11 [3], quando
coloca em série o campo do inconsciente freudiano com aquele aberto
na física por Newton, Einstein ou Max Planck. No entanto, Lacan
situa a diferença com o campo científico no fato de que o campo
freudiano é um campo que se perde [4]. Com efeito, o sujeito da
psicanálise é aquele que a ciência forclui, tal como demonstra Lacan em
“A ciência e a verdade” [5]. Daí sua referência à alquimia, que não
alcança o estatuto de ciência, por ser nela central a pureza da alma do
operador. É essa presença do operador que Lacan vai articular com a
presença do analista, que se articula com o desejo do analista, e que
não pode ficar fora do campo de nossa práxis [6].

A presença do analista

Por isso Lacan indicava que a presença do analista é uma


formação do inconsciente [7], localizando nela o irredutível de uma
perda, enfatizando que se trata ali de uma perda completa, puramente
negativa, não um resto fecundo, mas um dejeto, caput mortum –
novamente em referência à alquimia. A presença do analista é o caput
mortum do descobrimento do inconsciente, já que o analista
testemunha uma perda que não se recupera [8]. Encarna na sessão a
causa do inconsciente como causa perdida. É um resto extinto, a partir
do qual se funda uma certeza baseada em um impossível [9]. É a
encarnação da pergunta pelo desejo [10]. É também o objeto a como
causa da divisão subjetiva, o que constitui o nó do ininterpretável
[11].

Tal como aponta Miller, se não existisse a presença do analista,


a operação analítica poderia equiparar-se àquela da ciência, tratar-se-ia
de uma abordagem puramente simbólica do real, sem resto [12]. E
não consideraríamos então o estatuto da prática analítica virtual ou
telefônica. A presença do analista é o analista sintoma, é a pedra no
sapato, é o que permanece como conflito na transferência [13],
também como ajuda-contra [14], posição necessária para a própria
existência da psicanálise.
Em “A direção da cura...” Lacan dirá que o analista não dá nada,
salvo sua presença [15]. Com efeito, não dá nada no plano da
demanda, mas está aí, de corpo presente. Nele se deposita o real da
experiência analítica, o que cai do dizer, como uma máscara. A
presença do seu corpo vivente na sessão é a metáfora do indizível, ali
se conjuga, ali se deposita, como letra, litura. Ele empresta seu corpo
para que se escreva esse sulco, que é uma precipitação que cai das
nuvens do semblante [16], deposição do gozo do analisante.
Transferência então, transferência de gozo, que se materializa nesse
“estar aí”, de corpo presente.

O desejo do analista e a ex-sistência

A chamada sessão presencial, que implica a presença material


do corpo é geralmente confundida com a presença do analista. A noção
de presença do analista não se confunde de nenhum modo com a
presença material do corpo. Entretanto, talvez a presença material do
corpo seja a melhor metáfora da presença do analista na sessão, essa
presença material inevitável, silenciosa, onde, como contra uma rocha,
vão colidir as embarcações linguajeiras, soçobrando de novo e de novo.
No final de seu ensino Lacan jogava com o equívoco entre “a matéria”
[la matière] e “a alma a três” [l’âme à tiers] [17], indicando que não há
outra materialidade do falasser além daquela que constitui sua maneira
particular de amarrar os registros. Cabe então indagar sobre os
diferentes estatutos dos registros – particularmente o imaginário -, tal
como se joga em uma sessão presencial, em uma telefônica ou online, e
suas conseqüências na possibilidade de localização do indizível na
sessão analítica.
Em certas sessões telefônicas a angústia tende a emergir: “o
analista está realmente ali?”, sinal que costuma revelar-se fecundo no
trabalho analítico. Também no divã costuma estar presente essa
suspeita, que o analista possa não estar realmente escutando. É uma
maneira na qual costuma-se fazer presente a dimensão angustiante do
desejo do Outro na sessão. Mais difícil é fazê-la presente na sessão
online, na qual a pessoa do analista fica à mercê do controle escópico
do analisante. Mas então inventamos alguns truques, como desligar
nossa câmera, seja de modo permanente, seja em certos momentos
privilegiados da sessão, para fazer emergir essa dimensão inquietante.

A sessão virtual ou telefônica é um caixa de ressonância da


transferência, portanto, quando a análise fica confinada a essa
modalidade pelas circunstâncias e não por escolha do analisante –
como ocorre no isolamento preventivo em tempos de pandemia -,
podem desestabilizar e inclusive desencadear certas estruturas
subjetivas que sustentam sua amarração no controle escópico. Isso nos
ilumina em relação a certa vertente disso que o analista dá com sua
presença, que na sessão presencial é sua presença corporal, um estar aí,
de corpo presente. Assim, verificamos que em tempos de isolamento
certos analisantes buscam provocar o analista, enfurecê-lo, fazê-lo
sangrar – por assim dizer -, para que dê provas de sua existência
material.

Sem dúvida há uma relação entre a presença e o real da ex-


sistência. Suporte de um dizer silencioso, o analista como ex-sistência
assegura uma alteridade encarnada, recebendo os restos do dizer da
análise como algo que se deposita ali, nessa exterioridade material que
resiste à linguagem. Trata-se efetivamente nessa operação de uma
transferência libidinal. Se na experiência analítica se trata de realizar
um luto, de efetivar uma perda, esta vai se encarnar na presença do
analista. É na sua presença corporal que o dizer se desfaz em pura
perda. E talvez se deva considerar a possibilidade de que, por algum
viés, o corpo do analista se presta como uma superfície de escritura na
análise. Que esse outro corpo presente no encontro analítico surge
como referente dessa perda puramente negativa, o analista encarnando
então esse dejeto no real.

Surge assim a pergunta acerca do que ocorre com esse dejeto


na sessão virtual ou telefônica. Sem dúvida, algo dessa operação
consegue realizar-se segundo as transferências. No entanto,
constatamos um efeito do lado do falasser que suporta o desejo do
analista nessas condições, que é o cansaço ligado a esse tipo de prática.
Talvez se trate aí de um efeito de presença do corpo material, que não
encontra outro modo de fazer-se presente na sessão. É um cansaço que
se sente no corpo. Talvez seja esse um indício de que há certa
dimensão de presença corporal, material, do analista nesse tipo de
sessão. Talvez seja assim o modo como que ele dá a sua presença: com
seu cansaço.

Nesse ponto se abre a questão do desejo do analista. Considero


que há algo das condições materiais da sessão (sua duração, a indicação
de passagem ao divã, o valor dos honorários, sua materialização
presencial, virtual ou telefônica) que está diretamente ligado ao desejo
do analista, que, embora não seja o desejo do sujeito que suporta a
função, é sustentada por ele, adquirindo assim um estilo, o que dará
também lugar a certas afinidades e aversões transferenciais. Lacan
indicava que não se trata aí de um desejo puro, mas de desejo de obter
a diferença absoluta entre o ideal e o objeto, o que cada analista poderá
operar da sua maneira [18]. Recordemos que no campo da tática na
direção da cura, Lacan propunha uma liberdade absoluta [19].

O vivo na sessão

A presença do analista também se articula com sua encarnação


da posição de objeto da pulsão na transferência, perspectiva que Lacan
mantém até o final do seu ensino, tal como postula, por exemplo, em
“A Terceira” [20], ao localizar o objeto no cerramento central do nó
do falasser, como núcleo elaborável de gozo. O analista como voz ou
olhar, objeto oral ou anal, pode muito bem encarnar-se em uma sessão
telefônica ou virtual, podendo inclusive chegar a recortar-se de modo
privilegiado na sessão telefônica, ali onde a imagem do corpo não faz
tela. Ou no momento no qual o analista desliga a câmera na
videochamada. Esta presença não costuma ter, no entanto, a mesma
ressonância que a sessão presencial no corpo do analisante, assim como
- podemos verificar isso em tempos de isolamento preventivo - não é a
mesma coisa ver teatro online do que assistir “em corpo” uma peça
teatral. Ou escutar música gravada do que escutar ao vivo. Com efeito,
se trata aí da dimensão do vivo do corpo. A materialidade dos corpos
se recorta nas margens da sessão presencial: o encontro e a despedida.
Margens que dão a possibilidade de certos gestos ou atos, de uma
modalidade particular ou singular de cumprimento: o que se transmite
na maneira de dar a mão, alguma vez algum abraço necessário, ou a
recusa de um cumprimento com beijo ou o contrário, um tapinha no
ombro, para dar alguns exemplos. É fundamentalmente um espaço no
qual costumam ocorrer certas contingências, espaço que desaparece na
sessão virtual ou telefônica. Também certas intervenções na própria
sessão são veiculadas pelo corpo material do analista, que introduz de
um modo mais radical o vivo na sessão. Alguns gestos são possíveis no
quadro fixo de uma câmera, outros não. Alguns movimentos de
aproximação dos corpos, de desvio súbito do olhar, eventualmente de
incidência direta sobre o corpo do analisante, podem se tornar
impossível nas sessões não presenciais. Há sem dúvida aí uma
limitação. Essa limitação pode tornar-se, no entanto, um recurso nas
experiências analíticas nas quais se alternam sessões presenciais com
sessões telefônicas ou virtuais. Em tais experiências a esperada sessão
presencial costuma precipitar acontecimentos de corpo de um modo
eficaz.

Uma saída do discurso capitalista

Outra questão fundamental é como o discurso analítico opera


uma saída do discurso capitalista, tal como propunha Lacan em
“Televisão [21]. Tomar o tempo de levar o corpo à sessão, a espera
antes da mesma, não somente cumprem uma função no tempo de
compreender da análise, mas também implicam um pagamento com a
libra de carne para sair um pouco do discurso capitalista, habitado pela
velocidade do express. Se abre aí outro espaço, um espaço de ruptura
com a multidão que marcha ao ritmo do discurso do mestre
contemporâneo. É interessante como alguns analisantes conseguem
abrir esse espaço nas condições limitadas que o isolamento impõe.
Alguns montam suas salas de forma a “deitarem no divã”, colocando
seus telefones no lugar de onde costuma chegar a voz do analista na
sessão presencial. Outros saem para passear um pouco antes da sessão,
como se estivessem viajando até o consultório do analista. Eles levam
seu tempo, introduzem seu corpo. Eles sabem que se trata de um corte
no espaço-tempo do circuito infernal ao qual nos empurra o supereu
atual, encontrando um saber-fazer com isso. Outros ainda não
conseguem, sofrendo com a passagem abrupta de uma videochamada a
outra, de uma conversa telefônica a outra, na qual, do outro lado, de
repente, se encontram com seu analista. Então será a voz do analista
que deverá introduzir uma pausa, convocando outro tom, outro tempo.

Não é por acaso que os atos simbólicos não possam ser


assinados sem a presença material do corpo: o casamento, a compra de
uma propriedade, o recebimento de um título, procedimentos pessoais,
testemunho jurídico, etc. Não basta carimbar a assinatura, deve-se
responder de corpo presente. Há uma relação estreita entre
responsabilidade e presença. É o que na linguagem corrente se diz “dar
a cara”. Dar a cara, responder com presença, em ato, é colocar em jogo
o nome próprio no real. É dizer “presente” quando somos nomeados.

Não é por acaso que essas dimensões da presença e do nome


estejam cada vez mais sendo apagadas na hipermodernidade. As redes
são o lugar por excelência do anonimato, e reinam em uma época na
qual o nome e a presença vão caindo em desuso, propiciando
subjetividades voláteis, espumosas, escorregadias, erráticas.
Geralmente são os sujeitos que se encontram nessa posição que
preferem as sessões virtuais às presenciais. Aí o analista como “ajuda-
contra” deverá encontrar a maneira de introduzir o vivo do corpo, que
é o vivo do nome. É por essa via que se operará uma saída do discurso
capitalista, servindo-se eventualmente das latusas para guiar o sujeito
na saída da aletosfera, até outra atmosfera, a atmosfera psicanalítica, na
qual se respira o ar das palavras sopradas pela “l’âme à tiers” do
falasser.

Texto extraído de: Letras Lacanianas: Revista de Psicoanálisis de la


comunidad de Madrid – ELP, nº 20, 2020, p. 8-14

Tradução livre: Arryson Zenith Jr.

Referências Bibliográficas

1. Sadin, E., La humanidad aumentada, Caja Negra, Buenos Aires, 2017.

2. Lacan, J., “Nota sobre el padre”, en Revista lacaniana de psicoanálisis, vol.


20. Buenos Aires, EOL, 2016.

3. Lacan, J., El seminario. Libro 11, Los cuatro conceptos fundamentales del
psicoanálisis, Paidós, Buenos Aires, 1987, p. 133.

4. Ibíd.

5. Lacan, J., “La ciencia y la verdad”, en Escritos 2, Siglo XXI, Buenos Aires,
2003.

6. Lacan, J., El seminario. Libro 11, Los cuatro conceptos fundamentales del
psicoanálisis, op. cit., pp. 129-141.

7. Ibíd., p. 136.

8. Ibíd., p. 133.

9. Ibíd., p. 135.

10. Lacan, J., (1961-62), Seminario 9, La identificación, Inédito, Clase del 9


de mayo de 1962.

11. Cf. Lacan, J., (1967-68), Seminario 15, El acto psicoanalítico, Inédito,
Clase del 21 de febrero de 1968 y Lacan, J., (1968-69), Seminario 16. De un
Otro al otro, Buenos Aires, Paidós, 2008, p. 317.
12. Miller, J.-A., (1985-86), Extimidad, Buenos Aires, Paidós, 2010,
p. 91.

13. Lacan, J., El seminario, Libro 11, Los cuatro conceptos fundamentales
del psicoanálisis, op. cit., p. 133.

14. Lacan, J., (1975-76), El seminario, Libro 23, El sinthome,


Buenos Aires, Paidós, 2006, p. 31.

15. Lacan, J., 1966, “La dirección de la cura y los principios de su poder”, en
Escritos 2, op. cit., p. 598.

16. Lacan, J., 1971, “Lituratierra”, en Otros escritos, Buenos Aires,


Paidós, 2012, pp. 24-25.

17. Lacan, J., (1976-77), Seminario 24, Inédito, Clase del 11 de enero de
1977.

18. Lacan, J., 1964, Seminario 11, op. cit., p. 284.

19. Lacan, J., 1966, “La dirección de la cura”, op. cit., pp. 567-568.

20. Lacan, J., 1974. “La tercera”, en Intervenciones y textos 2, Buenos Aires,
Manantial, 1988, p. 80.

21. Lacan, J., 1973, “Televisión”, en Otros escritos, op. cit., p. 546.

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