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RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar a construção de uma Cultura Visionária a partir
das supostas aparições marianas em Portugal durante os eventos de Nossa Senhora de
Fátima (1917) e no Brasil, mais precisamente em Pesqueira, Pernambuco, com Nossa
Senhora da Graça (1936). O estudo visa oferecer novas perspectivas para a análise das
religiões sob uma abordagem histórica, com foco na influência das aparições em
Portugal na formação do culto mariano no Brasil ao longo do século XX. Para alcançar
esse objetivo, nossa pesquisa se baseia na abordagem da Escola Italiana da História das
Religiões, que direciona seus estudos utilizando as contribuições da História Cultural.
Isso nos permite examinar as religiões considerando sua historicidade e compreendê-las
como representações de uma cultura entrelaçada com questões políticas, sociais e
econômicas. Ao analisar os periódicos da época, disponíveis na base de dados da
Biblioteca Nacional que foram o Jornal Pequeno e o Diario de Pernambuco, pudemos
investigar as dimensões políticas e sociais que moldaram as aparições no contexto luso-
brasileiro entre 1917 e 1936. Também utilizamos alguns documentos eclesiásticos,
como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Carta Pastoral da
Diocese de Pesqueira, publicada em outubro de 2021, para compreendermos como quais
eram os discursos políticos dos religiosos sobre o evento naquele contexto, como
também na atualidade. Assim, conseguimos identificar semelhanças e diferenças entre
os eventos ocorridos nos dois países, observando que, embora tenham origens em
contextos locais distintos, ambos utilizaram o contexto político e social como meio para
promover o culto mariano.
Palavras chaves: Aparições marianas; Portugal – Brasil; Nossa Senhora de Fátima;
Nossa Senhora da Graça.
Introdução
Acredita-se que um dos fatores que contribuíram para o aumento das aparições
marianas em todo o mundo foram os acontecimentos que ocorreram na Europa nos
séculos XIX e XX, exemplificados por Lourdes (1858) na França e Fátima (1917) em
Portugal. Essas aparições tinham uma perspectiva voltada para uma rede internacional
de devoção e suas mensagens abordavam as agitações políticas da época, incluindo as
grandes guerras, a secularização e o comunismo (STEIL, 2003, p. 29).
Fatima primeiro surgiu para restaurar o “país cristão” fragmentado - que nessa
altura já era laico - e depois para salvar o mundo do comunismo, se tornando um
símbolo internacional de combate a estas doutrinas de esquerda. Ainda na matéria do
Diario de Pernambuco, pudemos encontrar a narrativa das curas e prodígios que
ocorriam na Cova da Iria, local onde as crianças supostamente viram a Santa, afirmando
que anualmente milhões de pessoas vão ao local em busca de graças e favores. No texto,
é destacado que as curas de doenças incuráveis tão pedidas pelos devotos fez que com
que o santuário de Fátima se tonasse uma nova Lourdes, “[...] crescendo a sua Fama
cada vez mais através do mundo catholico” (A IGREJA..., 1935, p. 10). Essas questões
são de suma importância para o imaginário dos fiéis e para a crença católica, que
passam a legitimar os eventos antes mesmo de um posicionamento das autoridades
eclesiásticas.
Carlos Steil (2003) nos oferece uma perspectiva valiosa sobre como a
peregrinação a esses lugares considerados sagrados desempenha um papel significativo
para os devotos. Esses santuários servem como locais terapêuticos, onde os fiéis buscam
encontrar curas miraculosas para suas enfermidades. Isso nos ajuda a compreender por
que os eventos ocorridos na Cova da Iria foram tão bem recebidos pela população e a
entender o amplo crescimento das aparições marianas de forma transnacional, incluindo
sua chegada ao Brasil.
Além disso, a popularidade e difusão das aparições marianas também podem ser
relacionadas à crescente busca por experiências espirituais e transcendentes em um
mundo cada vez mais secularizado e tecnológico. A fé desempenha um papel crucial na
vida de muitas pessoas, oferecendo conforto, significado e esperança em meio às
incertezas da vida moderna.
“Parece que lá está Ela, para já nos proteger!”: uma análise sobre as presumíveis
aparições de Nossa Senhora em Cimbres - PE
Em relação aos relatos do evento, Ana Lígia (2018) afirma que no dia 06 de
agosto de 1936 a mãe de Maria de Luz, de 13 anos, pede a sua filha e a Maria da
Conceição que tinha entre 15 para 16 anos e vivia na casa da família, ir quebrar
mamona no sítio da Guarda. Preocupadas com as notícias de ataques de cangaceiros na
região, Maria da Luz questiona a Maria da Conceição o que ela faria se o cangaceiro
aparecesse novamente na Serra e a menina responde que faria a mesma coisa que fez da
outra vez, levaria numa cuia uma estampa de N. Senhora, enfeitada com flores, e o livro
de orações, fazendo a devoção ao ar livre, escondida dentre os rochedos, e assim Nossa
Senhora as protegeria (LIRA, 2018)..
Múcio Aguiar Neto, que também analisou os eventos em Cimbres, afirma que
durante esse momento “[...] Maria da Luz levantou a cabeça para o alto e viu diante de
si uma parede formada de um rochedo e nela uma figura luminosa vestida de branco,
dizendo à menina “parece que lá está Ela, para já nos proteger!” (AGUIAR NETO,
2016, p. 40).
O autor continua a narração afirmando que nesse mesmo instante começa a cair
chuva fina, onde de repente um relâmpago rasga o céu com um enorme clarão em
direção ao monte. Maria da Conceição fica assustada pois parece ver no alto da serra
uma mulher com uma criança no braço que fazia sinais com a mão (AGUIAR NETO,
2016). É nesse momento em que as meninas supostamente veem a representação de
Maria, em que, segundo Ana Lígia, ao longo das 40 aparições da virgem na Vila de
Cimbres, a santa faz uma alerta sobre os tempos sombrios que haveria de vir, se
referindo ao comunismo e pedindo que os devotos fizessem rezas e penitências para
evitar os castigos (LIRA, 2018).
Segundo Ana Lígia (2018), após as primeiras supostas aparições, não demorou
para se espalhar as notícias sobre o evento pelos moradores da Serra, fazendo com que
várias pessoas fossem para o lugar onde supostamente a "Santa" apareceu (LIRA,
2018). Ademais, encontramos nos jornais do período, sobretudo o Jornal Pequeno,
algumas matérias sobre o acontecimento, na qual é destacado acerca da circulação dos
devotos para o local onde presumidamente Nossa Senhora da Graça surgiu.
Ainda em relação ao medo dos cangaceiros, Ana Lígia destaca algo curioso que
antecede as supostas aparições em Cimbres. A autora afirma que em junho, Lidio, irmão
de Maria da Luz, que tinha três meses de vida, foi morto. Devido ao sofrimento do
filho, D. Auta estava muito triste e no dia 06 de junho reza junto com os vizinhos
“Lídio, nós que estamos vendo que não escapas, morreras, mas quando chegares lá em
cima, disse a Jesus e a Maria quanto nós (isto é, nossa família e outras) estamos
sofrendo aqui na Serra por causa do perigo dos cangaceiros!” (LIRA, 2018, p. 24, grifo
nosso). Tais questões são importantes ao analisar os eventos, pois, além de percebermos
como os cangaceiros influenciavam na logística da região, destacamos também que as
possíveis aparições que vem ocorrer meses depois desse acontecimento podem ser
interpretadas como uma interferência divina, tendo em vista que se acredita que a
Virgem apareceu devido aos clamores da população.
Todo esse contexto de crise fez com que a década de 1930 fosse marcada por um
apego religioso e uma forte devoção a Maria, no qual as mensagens facilmente se
espalharam na população atraindo curiosos e devotos, que encontraram nos eventos uma
resposta aos problemas enfrentados. Deste feito, “Com uma população essencialmente
católica, as devoções a Maria se intensificaram, com notícias de visões, aparições e
manifestações divinas locais em diferentes” (MOURA, 2021, p. 155).
Sobre o lugar onde apareceu a imagem, Severino Silva (2003, p. 69) afirma que
o Sítio da Guarda, lugar onde supostamente as meninas viram a representação de Maria,
pertencia a Arthur Teixeira, e Auta pais de Maria de Luz. O autor narra o
acontecimento:
Carlos Moura (2021, p. 159) aponta também que as marcas mais claras
existentes na pedra são utilizadas para comprovar a veracidade do evento, sendo vista
como um lugar sagrado. Além disso, o jornal continua a descrição, pontuando que as
notícias das aparições de Nossa Senhora da Graça no Sertão chegaram à capital, levando
mais de três mil pessoas ao local para verificar o milagre. O número de romeiros
aumentava a cada dia, com expectativa de “ver a Santa ou ouvir das meninas, que têm
esse privilégio, palavras de conforto” (NO LOGAR..., 1936, p. 01).
O jornal segue narrando sobre as aparições, no qual foi se espalhando pelo
município até chegar ao conhecimento do vigário de Pesqueira. O local em poucas horas
se tornou um arraial de romaria, no qual se reunia família e muitos levavam doentes em
busca da cura. De tal maneira, “o local onde tinha apenas uma pedra fosca estava em
pouco tempo rodeado de barracas. Comerciantes improvisados negociam alimentação
própria aos movimentos festivos” (NO LOGAR..., 1936, p. 01).
Sobre as supostas águas milagrosas que jorravam da pedra com sinal das
aparições de Nossa Senhora, há relatos de muitas curas em torno desse acontecimento.
É importante destacarmos as palavras de Nossa Senhora dita as videntes era de “A água
é para curar qualquer doença, mas só de pessoas que tiverem fé” (LIRA, 2018, p. 109).
Desse modo, a Carta Pastoral da Diocese de Pesqueira, escrita por Dom José Luiz
Ferreira Salles, bispo da Diocese6 e publicada em 2021 (SALLES, 2021), coloca que na
localidade que ocorre o evento há vários relatos de curas, graças e conversões, sendo
considerado, segundo o documento, como a demonstração da presença da Santa.
Letícia Querétte afirma que houve também pressões da diocese e da polícia para
controlar a presença de fiéis no local, temendo que o espaço tornasse um ponto de
fanatismo religioso (QUERÉTTE, 2006). Nesse ensejo, a Igreja procura impor limites
em relação ao acesso no território, colocando-se como mediadora das manifestações,
visando manter o controle social e a hegemonia (AGUIAR NETO, 2016), pois não era
interessante para a hierarquia eclesiástica que um grupo de leigos tivesse contato direto
com o sagrado, pois temia que isso pudesse colocar em risco o “arcabouço social”
(SILVA, 2003).
Deste feito, para atestar a veracidade das aparições, o bispo Dom Adalberto
Accioli Sobral designou o monsenhor José Kehrle para investigar acerca do evento em
Cimbres (SILVA, 2003). Nesse viés, no dia 20 de agosto de 1936 o padre Kehrle vai ao
Sítio Guarda onde encontrou a família das meninas. Quando ele chega ao local, Ana
Lígia pontua que Maria da Luz afirma que a imagem aparece novamente, e ela diz “[...]
eu então disse à Imagem: ‘lá vem o padre’ – e ela sorriu – se” (LIRA, 2018, p. 33), e as
meninas juntamente com o padre sobe à serra. A 50 metros de distância do local as
meninas dizem “Olhe, a Santa está na porta e nos abençoa”. De acordo com a autora, o
padre faz referência a uma água que saia do pé da laranjeira, no qual pergunta às
meninas o que significa aquela água e elas respondem que a água era uma resposta para
acreditar nas aparições (LIRA, 2018).
Posteriormente, Ana Lígia descreve que o padre pediu para que levasse a menina
Maria da Conceição longe para fazer o interrogatório individual para que ninguém
pudesse ouvir e interferir. O padre Kehrle pede para que a menina descreva a imagem.
Maria da Luz descreve: “Ela é como a imagem de Nossa Senhora do Carmo na Catedral
de Pesqueira, porém o manto é azul e o vestido de cor branca creme (amarelado) e tem
uma faixa. Tem um Menino braço esquerdo e ambos têm uma coroa muito bonita na
cabeça [...]” (LIRA, 2018, p. 35).
Quando termina o interrogatório com Maria da Luz, o padre pede ao pai que
trouxesse Maria da Conceição. Ele tenta “enganar” a menina mostrando um lugar
diferente, sugerindo que sua amiga viu a aparição ali, mas Maria da Conceição diz que
viu a aparição em outro lugar - o lugar supostamente verdadeiro (LIRA, 2018). Logo
depois pede para que o pai trouxesse novamente Maria da Luz e solicita para que ela
pergunte à “Santa” quem ela era, e a imagem responde “Sou a Graça” (LIRA, 2018, p.
36, grifo nosso). Ao continuar o interrogatório, é perguntado se poderia fazer as
perguntas em outro idioma e é autorizado. As perguntas seguem com indagações sobre o
ocorrido e o contexto político da época (LIRA, 2018).
A partir disso, visualizamos que grande parte das perguntas são voltadas para as
questões políticas do período, além da religiosa. Os questionamentos são ligados ao
comunismo, a aliança dos religiosos com a Ação Integralista, como também as rezas e
penitências sendo utilizadas como solução para as questões.
Considerações finais
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