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Leitura Dramática

UM HOMEM É UM HOMEM
Bertold Brecht

Montagem para SESC Dramaturgia


 Personagens:

Misael Maia – estivador do porto - Juan


Mulher – esposa de Misael Maia - Lyzy
Uria Rambo – soldado - Nadja
Jesse Malone – soldado - Lara
Polly Baker – soldado - Luciana
John JIP – soldado - Clarisse
Sargento Fairchild – o cincão Sanguinário - Leo
Maria Boa – viúva e dona de cantina - jackson
Meninas da cantina – Lyzy, Clarisse, Alice
Vigário - Edineide
Beato – ajudante do vigário – Alice
CENA 1 – Casa de Misael Maia

“Uma casa pra la de Potiguar”

MISAEL:
Minha cara esposa, já que nossas finanças permitem, eu hoje decidi comprar um peixe. Af
inal, sou um carregador do porto de Natal que só bebe socialmente, quase não fuma e qu
e, pode-se dizer, não tem nenhum vício. Então, compro um peixe grande ou você prefere
um pequeno?

MULHER:
Um pequeno.

MISAEL:
De que tipo, esse peixe pequeno?

MULHER:
Um peixe tipo robalo, pequeno. Mas tome cuidado com as peixeiras do mercado. Gente, o
que que é isso? Elas não valem nada, gostam de provocar os homens e você Misael, não
sabe dizer não.

MISAEL:
Isso é verdade, mas elas não vão perder tempo com um pobre carregador do porto.

MULHER:
Misael, Misael! Não se fie tanto assim nos outros. E cuidado também com os soldados
que estão chegando aos milhares na rampa. Eles são a pior raça que existe, e devemos
nos dar por felizes se não assaltam ou matam alguém. Gente, são perigosos, você está
sozinho, e eles andam sempre em grupos de quatro.

MISAEL:
Eles também não vão perder tempo com um pobre carregador do porto.

MULHER:
Nunca se sabe gente, gente, gente!

MISAEL:
Pode botar a água no fogo para o peixe que eu já estou sentindo fome, Volto daqui a dez
minutos. Palavra de Misael Maia! (Sai.)
(Música para mudança de cena: “Marcha militar)

CENA 2 – “Diante da igreja Matriz da Apresentação”


(Entram quatro soldados)

JESSE:
Pelotão, alto! Capital Potiguar! Esta é a cidade onde estão se concentrando as tropas
americanas, para mais uma ação militar da Operacho Tocha.

URIA:
Chegamos aqui com mais de dez mil soldados, o sangue fervendo nas veias, impacientes
para atacar os nazistas na África ou Europa.

JIP:
E para isso é preciso uísque!
POLLY:
Qual é nosso estoque?

URIA:
Nem uma gota...

JESSE e POLLY:
Zero litro!

JIP:
Eu preciso beber!

POLLY:
Assim como nossas aeronaves, poderosas máquinas de guerra precisam de combustível
para voar caçando aviões nazistas, também os soldados precisam ser abastecidos com
uísque.

URIA:
Pois eu aposto que uma igreja como esta à nossa frente guarda dinheiro suficiente para d
ar um porre em todo o oitavo regimento.
POLLY:
A observação do nosso caro Uria merece ser examinada com atenão. Este templo eurasia
no, embora em mau estado e todo cagado de moscas* deve ter um cofre esmolas capaz
de matar nossa sede nas próximas semanas.

JIP :
Vocês não estão entendendo; eu preciso-beber!

POLLY :
Calma, coração, vamos todos beber. Mas para isso, vamos buscar os cobres que esta ig
reja guardou para nós.

Jip:
Já fui... (Todos começam andar na direção da igreja.)

URIA:
Alto! Evitar a porta principal. O caminho mais fácil é o caminho mais perigoso.

Polly:
Então vamos entrar por cima.

Jesse:
Caindo do céu!

OS TRÊS:
“Operação Condor!”

URIA:
Como é uma operação irregular, entreguem suas plaquetas de identificação. Se um de
vocês for apanhado, o Exército não poderá ser acusado. *Um homem sempre pode ser tr
ocado por outro, mas nada é mais sagrado do que a identidade militar. Polly Baker!

Polly:
Polly Baker.

URIA:
Jesse Malone!

Jesse;
Jesse Malone.

URIA:
John Jip! . . .

JIP:
John Jip-Jip-Hurra!

URIA:
Uria Rambo, eu!

OS TRÊS:
“Operação Condor!”

(Começam a escalada do templo.)

URIA:
Olhem lá. Estamos com sorte.

Polly:
Lá onde?

URIA:
Lá embaixo. A caixa das esmolas.

Jesse:
Vamos descer!

URIA:
Não, vamos pescar. Passem os cinturões.

POLLY:
Minha calça vai cair.

URIA:
Vai cair é dinheiro em nossas mãos. Ai!!!

POLLY:
Pegou alguma coisa?

URIA:
Não, meu capacete caiu lá embaixo.

JESSE:
Você não pode voltar para a base sem capacete.

URIA:
Nem sem o dinheiro das esmolas.

JESSE:
Esse cofre das esmolas eu vou pegar de qualquer jeito!
URIA:
Você alcança lá embaixo?

JESSE:
Não.

URIA:
E vê o meu capacete?

JESSE:
Ai! Ai! Ai!

POLLY:
O que aconteceu?

JESSE:
Minha mão ficou presa.

POLLY:
Mão presa!

POLLY:
Este lugar é uma arapuca. Vamos embora!

JESSE:
Eu não vou sem minha mão.

URIA:
Nem eu sem meu capacete.

JIP:
Acharam a grana? Eu preciso beber.

JESSE:
Ai! Minha mão. Nunca mais vou poder tocar piano!

POLLY:
E você toca piano?

JESSE:
Não, mas podia começar a aprender.

URIA:
Agora vamos até o fim. Vamos entrar nesta arapuca.
JIP: Qualquer coisa, não contem comigo! Só se for para beber.

(Na torre aparece o Vigário)

JIP:
Bom dia! O senhor é o proprietário? Bonito estabelecimento, vista definitiva...

URIA:
Me passe seu canivete, Jesse. O canivete, sua anta! Você me deu uma colher.

JIP:
(Cantando, tentando disfarçar) Tem um homem lá em cima!

URIA:
Presta atenção onde pisa! O que foi Jip?

JIP:
Um homem lá na torre!

URIA:
Um homem? Pra fora, rápido!

POLLY:
Meu pé ficou preso!

URIA:
Me solta!

POLLY:
A minha bota também ficou presa!

JESSE:
Você está pisando no meu pé!

URIA:
E você está pisando na minha mão!

POLLY:
Ei, esta perna é minha!

URIA: Minha túnica!

JESSE:
Ei, me larga!

JIP:
Acharam alguma coisa? Uísque, rum, gim? Conhaque, cerveja?

JESSE:
Uria rasgou a calça numa ponta de bambu, e o pé sadio do Polly ficou preso numas
ferragens.

POLLY:
E o Jesse ficou pendurado num fio elétrico.

JIP:
Mas por que vocês não entraram pela porta principal? Mania de complicar!

POLLY:
Isso não vai ficar assim.

URIA:
Este templo não luta honestamente!

POLLY:
Eu quero ver sangue!

URIA: Vamos metralhar tudo!

JIP:
(Já dentro do templo) Alô!...

(Os três montam e apontam a metralhadora para o altar)

JESSE:
Preparar...

URIA:
Apontar...

POLLY:
Fogo!

(Disparam)

JIP:
Ai! Não atirem! Eu estou aqui!

POLLY:
Onde?
JIP:
Aqui dentro, animal.

JESSE:
Mas que diabo você esta fazendo nessa ratoeira, seu imbecil?

JIP:
Vim pegar o dinheiro.

URIA:
O mais bêbado foi o mais esperto! Ei, aonde você vai agora?

JIP:
Buscar seu capacete, ô cacete!

URIA:
Ah, meu capacete...

(Jip dá um grito e reaparece com o capacete, mas está ferido na cabeça. Sangra. Tentam
levantá-lo. Em vão. Jip desmaia)

URIA:
Sangue no supercílio esquerdo.

POLLY:
Não tem condições de andar.

JESSE:
Vamos escondê-lo até a noite, quando será mais fácil carrega-lo sem chamar a atenção.

(Escondem Jip em um latão)

URIA:
Rápido rapazes! Camaradas, as plaquetas de identificação. Jesse Malone! Polly Baker!
John Jip... Esta fica comigo.

(Os três vãos embora com a caixa de esmolas. Logo aparecem o vigário e seu auxiliar.
Escondem o latão com Jip. O Vigário pega um telefone. Disca)

(Música – Lenine O ATIRADOR)


Atire a primeira
Atire a segunda, iaiá
Até descarregar o tambor
Até apagar a luz de ioiô
Até nunca mais,
já vingou.
CENA 3 – No meio do caminho

“Uma estrada entre Natal e Parnamirim Field"

(Surge o sargento Fairchild com um cartaz escrito à mão)

FAIRCHILD:
Há muito tempo não me acontecia uma coisa tão extraordinária. Eu, o Cincão
Sanguinário, o Tufão Humano, o Tigre de Natal, já estava sentindo, falta de um crime para
investigar, e de repente: “Procura-se: Assaltantes da Igreja Matriz da Apresentação. Cofre
das oferendas roubado: ladrões; portas arrombadas: desordeiros; paredes metralhadas:
grupo de metralhadoras. Vestígios de sangue indicam que um dos assaltantes deve estar
ferido.” Ah, se na hora da chamada houver algum ferido ou faltar alguém em um Grupo de
Metralhadoras, verão por que me chamam de Cincão Sanguinário.

(Sentindo a aproximação dos três soldados, esconde-se atrás do cenário. Uria, Polly e
Jesse aproximam-se do cartaz, começam a leitura)

URIA:
“Assaltantes da Igreja Matriz da Apresentação ...”

JESSE E POLLY:
Já??!!!

(O sargento aparece às suas costas e faz soar um apito)

FAIRCHILD:
Pelotão, seeeen-tido! Meia volta volver! Vocês são um Grupo de Metralhadoras?

(Fazendo uma inspeção nos três)

JESSE:
Yes, senhor!

OS TRÊS:
Primeiro Grupo de Metralhadoras, senhor!!!

FAIRCHILD:
Recém-chegados a Natal?

URIA:
Yes, senhor!
FAIRCHILD:
O regulamento determina que o grupo ande sempre junto. Onde está o vosso quarto
homem?

URIA:
Está... descarregando a bexiga, senhor.

FAIRCHILD:
Onde?

OS TRÊS:
Atrás da moita, senhor.

FAIRCHILD:
Os senhores estão com pressa?

OS TRÊS:
Não, senhor.

FAIRCHILD:
Então vamos esperar pelo vosso quarto homem. Pelotão, descansar!

(os três saem da posição de sentido. Tempo de espera)

FAIRCHILD:
Necessidades demoradas...

OS TRÊS:
Yes, senhor!

URIA:
Talvez esteja fazendo outras necessidades.

POLLY:
Ou pode ter tomado outro caminho.

FAIRCHILD:
Paga 150! Você aí, seu panaca, pique no lugar! Vou logo avisando que se me aparecerem
no acampamento sem o quarto homem, ou com o quarto homem ferido, seria preferível
que tivessem sido metralhados no ventre de suas mães. (Sai)

POLLY:
Tomara que não seja esse o nosso sargento. Se essa cascavel estiver presente à
chamada de hoje à noite, nós já podemos ir nos encostando no paredão de fuzilamento.

URIA: Precisamos de alguém para a chamada de hoje à noite, de qualquer maneira!


JESSE:
Aí vem alguém. Vamos nos esconder para que não nos vejam e observá-los,

(Escondem-se. A viúva Maria Boa vem descendo a estrada. A seu lado, Misael carrega
uma cesta com macaxeiras).

MISAEL:
Se eu soubesse que ia demorar tanto...

MARIA BOA:
De que é que o senhor está se queixando? O senhor vai ser pago por hora.

MISAEL:
Então já são três horas. E três horas atrás eu saí de casa para comprar um peixe e disse
à minha mulher que voltava logo.

MARIA BOA:
O senhor vai receber o seu dinheiro, não se preocupe. Eu preciso da sua companhia.
Este caminho é deserto, e uma mulher ficaria numa situação difícil se um homem
quisesse abusar dela.

MISAEL:
A senhora, sendo dona de cantina, sempre lidando com soldados, que são a pior raça que
existe, deve saber se defender.

MARIA BOA:
Mas o que pode fazer uma MULHER diante de um homem num lugar e numa hora
destas?

MISAEL:
Numa hora destas! Numa hora desta eu deveria estar no mercado para comprar o meu
peixe, isso sim é que eu deveria estar fazendo!

MARIA BOA:
Eu sei que comprar um peixe é bem melhor que ajudar uma dama, mas talvez a dama
possa demonstrar sua gratidão de uma forma que compense o prazer de comer um peixe.

MISAEL:
Sinceramente, minha senhora, eu preferia comprar um peixe.

MARIA BOA:
"O” senhor é assim tão materialista?!!!

MISAEL:
Eu sou um sujeito engraçado. As vezes, de manhã cedo, na cama, eu penso assim: “hoje
eu quero um peixe”, ou então: “hoje eu quero carne com arroz”! Aí então eu preciso comer
o peixe ou a carne com arroz, nem que o mundo venha abaixo. Eu sou assim, fazer o
quê?

MARIA BOA:
É... Mas há esta hora o mercado já deve estar fechado, e o peixe todo vendido.

MISAEL:
Mas eu prometi à minha mulher levar um peixe, a água já está no fogo.

MARIA BOA:
Como vejo que o senhor é esperto, eu lhe proponho um negócio: com o dinheiro que teria
para comprar o peixe o senhor me compra esta macaxeira que eu lhe vendo com um bom
desconto, porque o senhor me ajudou.

MISAEL:
Mas eu não preciso de nenhuma macaxeira.

MARIA BOA:
O senhor vai recusar minha oferta?!

MISAEL:
É porque a água para o peixe já está no fogo.

MARIA BOA:
Nunca pensei ser tão humilhada!...

MISAEL:
Eu teria um grande prazer em ser agradável, mas é que...

MARIA BOA:
Não, não diga mais nada. Quanto mais fala, mais piora as coisas!

MISAEL:
Eu não queria de forma alguma decepcioná-la...

MARIA BOA:
Mas já decepcionou.

MISAEL:
Bem, se a senhora ainda quiser me vender à macaxeira com desconto... aqui está o
dinheiro.

URIA: Aí está um homem quê não sabe dizer “não”.


MARIA BOA:
Aqui está a sua macaxeira. Me dê meu cesto. Não tem mais sentido eu perder meu tempo
conversando com o senhor. Mas eu terei prazer em recebê-lo como freguês na minha
cantina no acampamento militar. Eu sou a famosa viúva Maria Boa, e o minha cantina é
conhecido em todo estado, de Natal a Mossoró.

(A viúva pega suas coisas e vai embora)


URIA:
Esse é o nosso homem.

JESSE
Um homem que não sabe dizer “não”.

(Os três se adiantam)


nanda
POLLY:
Linda noite hoje!

MISAEL:
É verdade...

JESSE:
Olhe, eu não consigo tirar da cabeça a idéia de que o senhor deve ser de Natal.

MISAEL:
De fato, é lá que eu tenho o meu barraco.

JESSE:
Isso me deixa muito contente, senhor...

MISAEL:
Misael Maia.

JESSE:
É isso. E o senhor tem um barraco em Natal?

MISAEL:
Como é que o senhor sabe? O senhor me conhece? Talvez conheça a minha mulher?

POLLY:
O seu nome, um momento, o seu nome é... Misael Maia!

MISAEL:
Absolutamente certo. E assim que eu me chamo.
URIA: E sou capaz de apostar que o senhor é casado.

MISAEL:
Bingo!

JESSE:
Mas por que é que nós ainda estamos aqui, senhor Misael Maia? Vamos até a cantina
beber alguma coisa conosco.

MISAEL:
Muito obrigado, mas infelizmente a minha mulher está me esperando com a água no fogo.

URIA:
Mas é só por uns minutos. O senhor não vai nos fazer essa desfeita.

MISAEL:
Não quero que os senhores fiquem com má impressão de mim, mas...

JESSE:
Vamos ficar se o senhor não nos acompanhar.

URIA:
Vamos senhor Misael Maia. É só um brinde.

JESSE:
E a bebida é de graça.

POLLY:
E a tarde está tão linda!...

MISAEL:
É, sendo assim eu não posso dizer “não”.

URIA:
Assim é que se fala!

POLLY:
Bravo!

Misael é um bom companheiro


Misael é um bom companheiro,
Vai beber com o nosso dinheiro.
Tudo é permitido, nada é proibido! Huhhah!
CENA 4 - A cantina da viúva Maria Boa
MARIA BOA:
Boa noite, senhores soldados. Para os recém-chegados, eu sou a viúva Maria Boa, e este é minha
cantina, que acompanha o 8º Regimento em todas as campanhas. Aqui, os soldados se esquecem da
guerra e podem sonhar em paz, pois, como diz a canção, “tudo é permitido, nada é proibido”.

(URIA,JESSE e POLLY entram, com Misael Maia meio escondido por trás deles.)
URIA:
É aqui a cantina do 8º Regimento?

POLLY:
Estamos falando com sua proprietária, a Paraibana mais famosa do Nordeste "viúva Maria Boa”
Nós somos o Grupo de Metralhadoras do 8º Regimento.

MARIA BOA:
Ai, ai, ai...

JESSE:
Aqui entre nós, que espécie de homem é o sargento?

MARIA BOA:
Nada simpático.

POLLY:
E ele é durão como parece?

MARIA BOA:
Durão? O Cincão Sanguinário, o Tigre de Natal, o Tufão Humano mata por prazer e tem um olfato
único para farejar crimes. Meninas, este é o famoso grupo de metralhadoras, que arrasa creches,
escolas, hospitais, tudo o que vê pela frente...

URIA:
O inimigo ê traiçoeiro...

POLLY:
... E se disfarça de mulher...
JESSE:
velho, criança...

URIA:
Vai daí, fogo neles!

MARIA BOA:
Claro... E não querem afogar essa falta de escrúpulos em uns copos de cerveja? A primeira rodada é
por conta da casa!

URIA:
Sim, quatro copos de cerveja. Três para nós e um para o senhor Misael Maia, nosso convidado.
Senhor Misael Maia, depois do brinde o senhor poderia nos prestar um pequeno favor.

MISAEL MAIA:
Depois do brinde estou voltando para casa, levando esta macaxeira que comprei no lugar do peixe.
Minha mulher está me esperando com a água no fogo.

JESSE:
Sua mulher vai cozinhar a macaxeira?
MISAEL MAIA:
Sei lá. Confesso que cozinhar não é o meu forte.

POLLY:
E qual é o seu forte?

MISAEL MAIA:
Modéstia à parte... Sou muito bom nas palavras cruzadas. Por exemplo: terra de Abraão, na Caldéia,
como se chama?

URIA:
Não se chama mais. Sumiu do mapa depois que nós passamos por lá.

(Chega à viúva Maria Boa com as bebidas.)

JESSE:
Um brinde à Companhia de Metralhadoras.

1ª Companhia, vira, vira, vira,


vira, vira, vira, virou...
JESSE:
Senhor Misael Maia, agora sinto o senhor bem mais próximo da nossa Companhia...

URIA:
E antes de partir... Ê, meninas, fora! Fora!... Poderia nos prestar um pequeno favor?

POLLY:
Nosso quarto homem - nós somos em quatro sabe? – está dizendo adeus para sua namorada...

JESSE:
E se ele não voltar até a hora da chamada, nós vamos mofar o resto de nossas vidas vendo o sol
nascer quadrado em Natal!

URIA:
O favor seria apenas vestir um uniforme...

JESSE:
Ir conosco até a chamada dos recém-chegados...

POLLY:
E na hora certa gritar o nome de nosso companheiro.

JESSE:
Só isso.
POLLY:
E o senhor ainda pode ganhar um belo charuto cubano. Grátis.

MISAEL MAIA:
Eu gostaria muito de poder ajudar, mas preciso ir para casa. Comprei esta macaxeira para o jantar, e
é por isso que eu não posso fazer o que gostaria.

JESSE:
É isto: o senhor não pode fazer o que gostaria! Gostaria de voltar para casa, mas não pode. Gostaria
de levar a macaxeira para sua mulher, mas não pode. Muito obrigado, senhor Misael Maia, por
corresponder à nossa confiança.

POLLY:
O senhor é um grande homem. Muito obrigado.

JESSE:
Merece vestir o nosso uniforme, não é Uria?

URIA:
Merece. O Exército vai ficar muito honrado. Viúva Maria Boa, precisamos de um uniforme
completo.

(Maria Boa sai para buscar o uniforme.)

POLLY:
(Despindo Misael Maia) Como o senhor é forte, senhor Misael Maia.

URIA:
Que belas cores!

JESSE:
Permita que lhe coloquemos a valorosa farda do nosso glorioso Exército.

MARIA BOA:
(Entrando com as meninas que trazem o uniforme e começam a vestir Misael Maia.) No vagão –
rouparia da viúva Maria Boa sempre se pode fazer um soldado vestir-se. Ou despir-se.

POLLY:
Aí está o lindo...uniforme de gala que compramos para o senhor.

URIA:
Ele perdeu seu uniforme, a senhora compreende?

MARIA BOA:
Sei... Perdeu seu uniforme...
JESSE:
Trata-se de uma brincadeira.

MARIA BOA:
Ah, uma brincadeira...

POLLY:
Não é verdade, meu senhor, que tudo não passa de uma brincadeira?

MISAEL MAIA:
Uma brincadeira em troca de um charuto.

URIA:
Ah, claro! O charuto.

MARIA BOA:
Ah, como uma mulher frágil fica sem defesa diante de homens tão másculos. Pelo menos ninguém
dirá que a viúva Maria Boa algum dia impediu um homem de tirar sua calça.

(Misael Maia está vestido com o uniforme.)

POLLY:
Deixa eu ver se tá binitim...

MISAEL MAIA:
Essa chamada... tem certeza que não é perigosa?

POLLY:
Que nada! Ninguém nos conhece aqui.

MARIA BOA:
Sai tudo por cinco dólares... A hora!

POLLY:
Tá doida! Três no máximo.

MISAEL MAIA:
Está grande demais. Cabem dois aqui dentro.

MARIA BOA:
É uma vantagem. O senhor pode convidar uma de minhas meninas para passar a noite com o
senhor, aí dentro.

MISAEL MAIA:
E as botas estão muito folgadas.

POLLY:
Tudo grande demais. Dois dólares!

(Maria Boa aponta o cartaz de “procura-se”)


MARIA BOA:
...estar pendurado por todo o acampamento. Há uma recompensa para quem localizar os culpados
que ainda não se sabe quem são. Por isso cinco dólares é um ótimo preço para livrar a 1ª
Companhia de aborrecimentos futuros.

POLLY:
Quatro dólares já é muito.

URIA:
Fica quieto Polly, seis dólares.

MARIA BOA:
E não correram o risco fatal de caírem nas garras do Sargento Fairchild, o Cincão
Sanguinário.

URIA:
E mais quatro se a senhora puder nos manter longe dessa fera.

MARIA BOA:
No vagão – bar – cantina da viúva Maria Boa sempre se pode passar uma esponja sobre tudo o que
possa manchar a honra da Companhia.

POLLY:
O céu está ficando encoberto. Se chover, a lata de lixo onde está o Jip vai ser levada para dentro da
igreja. Se ela for levada para dentro da igreja, o Jip vai ser descoberto, e se o Jip for descoberto nós
estamos fritos.

JESSE:
A senhora acha que vai chover?

MARIA BOA:
Pode ser, mas aqui, nosso melhor boletim do tempo é o Sargento Fairchild. Quando chove, o Cincão
Sanguinário toma-se incapaz de fazer mal a uma mosca, possuído por uma volúpia incontrolável, e
só quer cantar e beber...

(Toque de corneta. Um soldado, do lado de fora, anuncia a chamada com megafone)

SOLDADO:
Atenção, Todos os recém-chegados devem responder à chamada que será feita na praça central.
URIA, JESSE E POLLY:
A chamada!

MISAEL MAIA:
Cada um deve cuidar bem de suas coisas.

URIA:
Aqui está sua plaqueta de identificação. A única coisa que precisa fazer é gritar, o mais alto possível
e com muita clareza.

MISAEL MAIA:
Gritar o quê?

POLLY:
O nome do nosso camarada perdido: John Jip. John Jip!

URIA:
Vamos lá!

MISAEL MAIA:
E qual é a minha comissão?

URIA:
Uma garrafa de uísque, tá bom demais!

MISAEL MAIA:
Um momento, senhores. Minha profissão de carregador comissionado me obriga a
calcular bem o valor de cada tarefa. Neste caso, eu pensei em duas caixas de charutos e quatro a
cinco garrafas de uísque!

JESSE:
Mas o senhor vem conosco à chamada?

MISAEL MAIA:
Precisamente.
POLLY:
Bem, duas caixas de charutos e três ou quatro garrafas de uísque.

MISAEL MAIA:
Três caixas e cinco garrafas.

JESSE:
Mas há pouco o senhor disse duas caixas.
MISAEL MAIA:
Ah, é? Pois agora são cinco caixas e oito garrafas.

(Toque de clarim.)

URIA:
Agora precisamos ir.

JESSE:
Está aceita a proposta final. O senhor vem com a gente?

MISAEL MAIA:
Sim, senhores.

URIA:
E qual é seu nome?

MISAEL MAIA:
Jip! John Jip!

JESSE:
Tomara que não chova.

POLLY:
Tomara que chova!...

(Trovoada)

URIA:
Mais vinte dólares para manter o sargento longe da gente...

(Saem os quatro)

MARIA BOA:
Aquele homem não se chama Jip. E o carregador Misael Maia, do porto* de Natal, que me ajudou
com a cesta de macaxeiras. (Agora vai ficar na fila da chamada um homem que nem soldado é,
debaixo dos olhos de lince do Sargento Fairchild.lSe o tempo firmar, eles estão perdidos. Vamos ver
se o Cincão cai na teia da viúva Maria Boa.

(Maria pega o trombone e começa a tocar uma música sensual (PERFÍDIA)-É o canto da sereia para
atrair o Sargento. Trovões e relâmpagos. Alterado pelo tempo de chuva e atraído pelo canto da
viúva, entra o Sargento Fairchild)

FAIRCHILD:
Não me coma com os olhos, Babilônia em escombros. As coisas não vão nada bem para mim. Há
três dias durmo numa cama de pregos e tomo banho gelado, tomado por essa volúpia desenfreada.
Justamente agora que mais preciso de meu autocontrole para desvendar um crime sem precedentes
em toda a história do exército.

MARIA BOA:
Cincão Sanguinário, vem. segue os impulsos de tua potente natureza! Se ninguém te vê... quem vai
saber? E nos pêlos e cheiros do meu corpo, no meu sovaco, entre minhas pernas, vem conhecer o
homem-bicho que tu és. Vem como o que te dá mais medo: como um homem! Como a natureza te
fez: selvagem, enredado em ti mesmo, escravo indefeso de tua própria força. O homem é isso! Vem!

FAIRCHILD:
Nunca! IA decadência da humanidade começou quando o primeiro bárbaro se esqueceu de fechar a
braguilha. O regulamento militar tem lá suas falhas, mas é o único ao qual podemos nos apegar
como seres humanos. Porque nos dá firmeza e assume a responsabilidade de nossos atos diante de
Deus. Hoje não vai chover! O Exército é bom, o homem é que não vale nada.

(Togue de clarim. Ao fundo ouve-se a chamada dos soldados.)

MARIA BOA:
Não vai acompanhar a chamada dos recém-chegados?

FAIRCHILD:
Daqui tenho um posto de observação mais reservado. Vamos ver se meu instinto de detetive está
funcionando.

(Toque de clarim.)
Voz:
1º Grupo de Metralhadoras!

POLLY:
POLLY Baker!

URIA:
URIA Rambo!

JESSE:
JESSE Malone!

FAIRCHILD:
Só três? Estão liquidados! (Inicia o movimento mas para quando ouve)

MISAEL MAIA:
Jip, John Jip!

FAIRCHILD:
Desta vez escaparam. Mas não perdem por esperar.
MARIA BOA:
Meu caro Furacão do Alabama, se vier me procurar esta noite só o recebo se puser seu traje de
amante latino.

FAIRCHILD:
Nunc a! Nunca mais me verá n esse estado anormal de um cidadão civil.

MARIA BOA:
Pois eu garanto que, quando as chuvas começarem a cair, você, o Cincão Sanguinário, será
benevolente com as fraquezas humanas, porque você queira ou não, é o homem mais obcecado por
sexo que existe na face da Terra.

FAIRCHILD:
Pois fique certa, minha senhora, que antes que isso aconteça, eu saberei cortar o mal pela raiz.
(Faz gesto de se castrar e sai.)

MISAEL MAIA:
(Entrando com os três soldados) Jip... John Jip. John Jip!!!...Jip? Um pequeno
favor entre amigos não faz mal a ninguém. Viver e deixar viver. Uma mão lava a outra.

(Fora, ouve-se o Sargento Fairchild.)

FAIRCHILD:
Por corte de cabelo não regulamentar, oito homens serão enterrados na areia escaldante até o
umbigo!

OS TRÊS:
O Cincão!!!...

URIA:
Sentimos muito, senhor, mas temos que sair. (Despedindo de Misael)

POLLY:
Estamos com pressa.

MISAEL MAIA:
Mas... não está faltando alguma coisa?

JESSE:
Sim, temos de recuperar nosso quarto homem.
MISAEL MAIA:
Não, eu estou falando de outra coisa.

POLLY:
Do quê?

MISAEL MAIA:
Do combinado pelo serviço!...

URIA:
Ah, claro! Viúva Maria Boa, cinco caixas de charutos oito garrafas de uísque para este senhor.
Vamos!

MISAEL MAIA:
Se esperarem um pouco eu posso ir junto.

URIA:
Para quê?

MISAEL MAIA:
Gostei de ser útil. Posso ser útil outra vez.

POLLY:
Não precisamos mais do senhor.

URIA:
Adeus. Esse é dos que gostam de levar vantagem em tudo... (Saem os três. Misael Maia fica
esperando que a viúva lhe traga o que ganhou)

MISAEL MAIA:
Daqui a pouco eu já posso ir embora. Mas devemos ir embora quando nos mandam embora? E se
depois de ir embora precisarem de você outra vez? Nunca se sabe ao certo o que nos espera.
Enquanto se puder ficar, não se deve ir embora.

(A viúva Maria Boa traz as caixas de charutos e as garrafas de uísque e as coloca no colo de Misael
Maia)

MARIA BOA:
Nós já não nos encontramos antes em algum lugar? (Misael Maia faz que não com a cabeça) O
senhor não carregou minha cesta de macaxeira? (Misael Maia faz que não com a cabeça) O senhor
não se chama Misael Maia?

MISAEL MAIA:
Não.
(Começa a chover. Ouve-se a voz de Maria cantando)

Canção do rio
Um homem nunca vai se banhar
duas vezes no mesmo rio.
(0 rio que se vê de um mesmo lugar
tem sempre o mesmo nome)
Nunca vai ser o mesmo rio.
Nunca é a mesma água que se vê passar
(Nunca dês um nome a um rio
Sempre é outro rio a passar.)
Sempre é outro rio a passar.

CENA 5 - Na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação

(Em cena o Vigário, a ajudante e John Jip, este ainda meio bêbado, dentro do tonel)

JIP:
Como é que eu vim parar aqui?

VIGÁRIO:
Voando, meu brigadeiro. Ou nadando em cerveja, meu almirante. Ou trocando as pernas, meu
general. Como achar melhor.

JIP:
Os meus camaradas, onde ê que estão? São três.

VIGÁRIO:
Os seus camaradas roubaram o cofre das esmolas. Quando forem capturados, terão suas ricas
mãozinhas decepadas e servidas para os cães.

JIP:
Pois eles virão me procurar e vão destruir esta espelunca.

VIGÁRIO:
Duvido. Sei muito bem como afastá-los daqui, senhor ministro da Guerra.

(URIA, JESSE e POLLY aparecem procurando o tonel onde haviam deixado Jip. Não o encontram
e vão até a igreja. Batem palmas. A ajudante espia por uma janela)

AJUDANTE:
Tem três soldados aí fora!

JIP:
Eu não disse? São eles. Vieram me buscar.

(Imediatamente o ajudante tampa o tonel, sentando-se em cima dele)

VIGÁRIO:
A que devo a honra de tão ilustre visita?

POLLY:
Estamos procurando um soldado que deve ter se perdido por aqui.

VIGÁRIO:
Eu compreendo a impaciência de vocês, porque eu também ando procurando algumas pessoas; na
verdade também soldados, exatamente três como os senhores, e não há jeito de encontrá-los.

URIA:
Vai ser muito difícil. Acho que o senhor deveria desistir. Mas talvez possa nos dar notícias do nosso
companheiro.

VIGÁRIO:
Difícil. Continuam chegando muitos soldados e Todos vestem o mesmo uniforme.

URIA:
Precisamos encontrar nosso quarto homem. Nem que tenhamos de vender a própria mãe.

VIGÁRIO:
Meus caros, sem querer ofendê-los, uma mãe não está valendo grande coisa nos dias que correm.
Além disso, o homem que vocês estão procurando não pode estar aqui. Para que entendam que o
homem que está aqui ou que estaria aqui, e que eu digo que não sei se está aqui - não é aquele que
vocês procuram, permitam que vosso humilde servidor desenhe quatro bandidos. Um deles tem um
rosto, sabe-se quem é, mas os outros três não. Não se pode reconhecê-los. Os quatro assaltaram o
igreja. Mas parece que um ficou perdido por aqui. Se os outros três vierem buscar seu quarto
homem, serão reconhecidos e poderão ser presos. E por isso que eu sei que os senhores não estão
procurando seu quarto homem. Pelo menos ele não poderia estar aqui, não é verdade?

(Os três soldados ameaçam o Vigário com suas armas)

VIGÁRIO:
Aceitam um chá?

JESSE:
Não queremos mais perturbá-lo.

POLLY:
E seu chá deve ser da pior qualidade.

URIA:
Mas seu desenho foi muito artístico.

(Ouve-se um barulho de trovão.)


VIGÁRIO:
Não tenham medo da chuva, é uma. dádiva dos céus!

URIA:
Quando se recuperar do porre, nosso quarto homem vai Voltar.

(Saem os três. A ajudante sai de cima do tonel. Ao mesmo tempo o Vigário vem até ele.)

VIGÁRIO:
Um soldado ocidental vale por vinte, não, duzentos soldados de Natal. Vamos ver o que se pode
ganhar com este.

(Vigário e ajudante cantam “Quanto vale um homem. Agarram John Jip desmaiado e o manipulam
como se fosse um boneco articulado, uma marionete, um mamulengo.)

(Música: Ei, você aí me dá um dinheiro aí... Me dá um dinheiro aí!)


CENA 6 - Cantina da viúva Maria Boa

(Misael Maia na cantina está dormindo sentado em uma cadeira. Entram os três
soldados.)

POLLY:
Estamos com sorte. Ele ainda não foi embora.

URIA:
E continuamos precisando dele. Pelo menos até amanhã.

JESSE:
Você acha que o Jip vai voltar?

URIA:
Tenho minhas dúvidas.

POIXY:
Jip vai voltar. Se estiver na igreja, ele foge.

JESSE:
Assim que passar o porre ele volta.

URIA:
Em todo caso, não vamos deixar que nosso quarto homem reserva vá embora. Viúva Maria Boa,
providencie um bom cobertor para nosso ilustre hóspede. Ele precisa dormir até amanhã de manhã.

(Maria Boa volta com um cobertor)


MARIA BOA:
Aqui está. São três dólares.

URIA:
É muito caro!

MARIA BOA:
A hora. E pegar ou largar.

POLLY:
Mercenária!

(Saem. Maria Boa cobre Misael Maia que segue dormindo. Sai. Entra um homem
cantando um bolero. Está de chapéu meio de banda, à la Gardel, terno de risca de giz, sapatos carrapeta bicolor. É o
Sargento Fairchild, que canta com emoção até chegar às lágrimas.)
(Música – Cocorico PALOMA)

(O Sargento é literalmente devorado pela Viúva Negra, que o faz desaparecer atrás das cortinas da cama)

CENA 7 - Na cantina

(Amanhece. Um galo canta. Tiro. Um soldado entra com uma bandeira. Toque de cometa. O
soldado hasteia a bandeira. O Sargento Fairchild sai do vagão da viúva Maria Boa semivestido,
capa, sapatos nas mãos.)

FAIRCHILD:
Ai, perdi a hora! Que vergonha! Perdi o toque da alvorada, um dos maiores momentos da vida
militar. Perdi a honra, perdi tudo! Eu, o Tigre de Natal, o guardião da disciplina, mais uma vez fui
cair nas armadilhas dessa filha de Sodoma.

MARIA BOA:
Carmelo de Guadalupe Fairchild!

FAIRCHILD:
Fairchild! Sargento Fairchild!

MARIA BOA:
Hasta pronto, Carmelo!

FAIRCHILD:
Até nunca mais, Babilônia embalsamada!

(Sai se esgueirando pelos cantos para não ser visto. A viúva sobe em seu terraço,
cantando.)

Canto da viúva
A todo mundo dou psiu, psiu, psiu, psiu
Perguntando por meu bem psiu, psiu, psiu

MARIA BOA:
Vivi sete anos no mesmo lugar, debaixo do mesmo teto. E eu não era sozinha. Mas aquele que me
sustentava, um belo dia, eu o vi deitado, irreconhecível, coberto por uma mortalha. Mas apesar
disso, nessa noite eu tive fome, e tomei minha sopa meio salgada de lágrimas. E nas noites
seguintes, as lágrimas foram secando, mas a fome continuava. Então eu aluguei para outros a cama
onde nós fazíamos amor. E agora que ele não me sustentava mais, a cama me dava de comer. E eu
continuei a viver a vida como podia. E é por isso que eu digo: Primeiro o estômago, depois a
moral...

(Entram novamente os três soldados)

URIA:
Nosso regra-três continua dormindo.

JESSE:
Não vamos mais precisar dele. Jip vai voltar.

POLLY:
Disso eu tenho certeza. Jip não vai nos trair.

JESSE:
Seus documentos ficaram com a gente. Ele volta.

URIA:
Não tenho tanta certeza. De qualquer forma, é indispensável guardar nosso homenzinho ao alcance
da mão, enquanto Jip não voltar.

(Entra o Vigário com seu assistente. Reconhece o trio e fáz uma mesura cheia de ironia. Os três
retribuem da mesma forma. O Vigário chama pela viúva Maria Boa, que reaparece)

VIGÁRIO:
Eu quero dez garrafas de uísque.

MARIA BOA:
Aqui não vendemos nada para negros, índios, mestiços, bolivianos etc.

VIGÁRIO:
É para um soldado branco que me visita no igreja.

MARIA BOA:
Tem algum documento dele?

VIGÁRIO:
Não, mas sei que ele está à espera de seus três companheiros do Grupo de
Metralhadoras. Talvez os senhores o conheçam.
.
POLLY:
(Limpando a bandeira) Não fazemos a menor ideia de quem possa ser. Somos do grupo de
manutenção de bandeiras.

VIGÁRIO:
Ninguém aqui está à espera de um colega extraviado?

URIA:
Ninguém. Maria Boa pode atender a esse senhor. É um velho conhecido nosso.

VIGÁRIO:
Obrigado. São dez garrafas de uísque. Do bom. Do legítimo.

MARIA BOA:
Dez garrafas de uísque do bom, do legítimo, aqui estão. (Entrega uma caixa ao Vigário)

VIGÁRIO:
Aí está o dinheiro. Pode ficar com o troco. (Para o trio) Tenham um feliz dia feliz, meus senhores.

(O Vigário faz um salamaleque e sai. Maria Boa também)

URIA:
Dez garrafas de uísque?

POLLY e JESSE:
Agora Jip não volta mesmo.

URIA:
Só nos resta fabricar um novo John Jip. Sua plaqueta de identificação, que é o mais importante, nós
já temos. O resto, tanto faz que seja esta ou aquela pessoa.

POLLY:
Mas dá para fazer um homem virar outro?

URIA:
Pessoas como ele se transformam, pode-se dizer, espontaneamente. Colocado dentro da água, em
poucos dias começarão a aparecer nadadeiras entre os dedos. E ele achará que sempre foi assim,
anfíbio.

POLLY:
Isso pode acontecer com qualquer um?

URIA:
Claro. Todos os homens são iguais. Um homem é um homem

JESSE:
Não há mais tempo a perder. Vamos acordar nosso reserva de quarto homem.
CENA 8 - Cantina

(Os três soldados em volta de Misael Maia fazendo ruídos para acordá-lo.)

POLLY:
Meu caro amigo, foi ótimo o senhor não ter ido embora. Certos acontecimentos recentes impediram
que nosso camarada Jip pudesse juntar-se a nós.

URIA:
Pé chato, o senhor tem pé chato?

MISAEL MAIA:
Por quê?

URIA:
Porque sem pé chato o senhor pode se engajar na Infantaria. Com pé chato pode ir para o
Regimento Motorizado.

MISAEL MAIA:
Infelizmente minha mulher está me esperando, com a água no fogo.

POLLY:
Esse seu senso de responsabilidade nos emociona até as lágrimas.

URIA:
Por isso queremos que fique conosco.

JESSE:
Queremos que seja feliz conosco.

URIA:
Feliz como um soldado!...

(As três filhas da viúva Maria Boa entram na cena, como pin- up, graciosas soldadinhos.)

(Música – Ela só quer, só pensa em namorar)

JESSE:
E em tempos de guerra, a vida é ainda mais agradável.

POLLY:
E é somente durante a batalha. que o homem atinge a plenitude de sua grandeza.

URIA:
E é nessas ocasiões que a mamãe...

POLLY:
Que é como chamamos carinhosamente o Exército, nós dá...

JESSE:
Sem custo adicional...

URIA:
Algumas gramas diárias do pó de pirlimpimpim...

JESSE:
Que faz nossa coragem crescer sem limites. Isso sim é verdadeiramente uma carreira militar.

MISAEL MAIA:
É, estou vendo que a vida de soldado é muito agradável.

URIA:
Agradabilíssima. E ainda se ganha o direito de ser chamado, a toda hora, de senhor. Senhor Jip.

MISAEL MAIA:
Senhor... Com licença.

URIA:
O senhor está indo embora?

POLLY:
Assim, de repente!?

MISAEL MAIA:
Sim, agora mesmo.

JESSE:
Então, entregue as roupas para ele, Polly Baker!

URIA:
Calma, JESSE Malone.

POLLY:
Mas, afinal, por que é que o senhor não quer ser o Jip?

MISAEL MAIA:
Porque eu sou Misael Maia.

JESSE:
Seja qual for o seu nome, o senhor será recompensado.

POLLY:
Regiamente!

URIA:
Queremos lhe oferecer um grande negócio.

MISAEL MAIA:
Negócio? Que negócio?

URIA:
Um negócio da China, na verdade o maior negócio já feito em Natal.

POLLY:
Mas como o senhor não tem tempo...

MISAEL MAIA:
Bem, tempo é uma coisa relativa...

URIA:
Ah, então o senhor poderia ter tempo?
MISAEL MAIA:
Depende do negócio. Mas tem de ser coisa que valha a pena, porque a esta hora eu já deveria estar
em casa, minha mulher está me esperando...

POLLY, URIA e JESSE:


E a água já está no fogo!

MISAEL MAIA:
No caso de eu aceitar essa proposta, qual a ordem de grandeza dessa lucratividade?

URIA:
Dê-nos um tempo para uma deliberação, sim?

(Os três deixam Misael Maia no fundo da cena e vêm até o proscênio.)

URIA:
Primeiro vamos desmontar Misael Maia. Depois, reconstruí-lo como john jip. Vamos envolver
nosso honesto carregador em uma negociata, como se faz nos dias de hoje: um leilão fraudulento
que será desmascarado por nós mesmos e poderá levá-lo à corte marcial e ao fuzilamento. O nosso
ratinho de laboratório vai aprender que viver é muito perigoso e vai querer ser qualquer coisa,
menos Misael Maia.

POLLY:
E qual vai ser a negociata?

URIA:
Vamos pegar pesado. Transações ilícitas com material bélico.

POLLY:
Como é que é?

URIA:
Venda de armas do Exército.

JESSE:
E se nos pegam, nós é que vamos à corte marcial?

URIA:
Calma, será apenas uma brincadeira. Vamos preparar uma poderosa arma de destruição disfarçada
de carrocinha de leite. Não, não, vamos preparar uma carrocinha de leite, que pareça um lança-
mísseis disfarçado de carrocinha de leite.

POLLY:
Ou seja, qualquer coisa...
JESSE:
Que se pareça com qualquer coisa.

POLLY:
E ele vai acreditar?

URIA:
Ora, um dia, o Conselho de Segurança da ONU vai acreditar! Vão preparando o artefato, e deixem
nosso quarto homem por minha conta.

(Polly e Jesse saem, Uria vai até Misael Maia.)

URIA:
Senhor Misael Maia, queremos colocá-lo na grande negociata que vamos fazer ainda hoje. A nossa
divisão teve a sorte de descobrir, escondido em um galpão, uma preciosidade, uma poderosa arma
de destruição em massa, que agora nos pertence.

MISAEL MAIA:
E onde é que eu entro nisso?

URIA:
Precisamos de alguém que possa aparecer como vendedor. Nós, do Exército, não podemos negociar
nenhum equipamento bélico. Já o senhor, como civil...

MISAEL MAIA:
E qual é minha comissão?

URIA:
Dez por cento do valor do negócio.

MISAEL MAIA:
Tenho de ir para casa.

URIA:
Vinte!

MISAEL MAIA:
Minha mulher está me esperando.

URIA:
Trinta.

MISAEL MAIA:
A água já está no fogo.

URIA:
Quarenta, e não se fala mais nisso.

MISAEL MAIA:
Quarenta e cinco, e não se fala mais nisso.

URIA:
Fechado. Polly Baker, Jesse Malone, venham cumprimentar o nosso mais novo bilionário!

POLLY:
O senhor é exatamente o homem de que precisávamos.

JESSE:
Um homem que deve ter a cabeça cheia de idéias.

MISAEL MAIA:
Eu tenho sim, minhas próprias ideias próprias, E muitas adivinhações, por exemplo: O que é, o que
é: É branco, mamífero, e enxerga tão bem atrás como na frente?

POLLY:
Branco?

URIA:
Mamífero?...

POLLY:
Essa é muito difícil.

MISAEL MAIA:
Se é. Eu mesmo não consegui decifrá-la... Bom, um mamífero branco, que enxerga tão bem atrás
como na frente, é? É... um cavalo branco e cego!

(Entra o Sargento Fairchild)

FAIRCHILD:
Está aí fora uma mulher procurando por um homem chamado Miss aiel “Graia”.

(Sai para buscar a mulher.)


MISAEL MAIA:
Misael Maia! O nome ê Misael Maia, não tem “r”, não...

FAIRCHILD:
Entre, minha senhora. Tem alguém aqui que deve conhecer seu marido.

OS TRÊS!
Quem? Nós? “Mis” o quê?
MULHER:
Os senhores me desculpem eu incomodar, mas é que meu marido saiu de casa ontem e até agora não
voltou! Gente, o quê que é isso? Eu sou uma mulher casada que deve ter um marido em casa, e não
por aí metido com esses soldados que são a escória da humanidade, uns filhos da... (Só agora ela
repara no marido.) Ah, você? O que você está fazendo aí?

MISAEL MAIA:
A senhora está falando comigo?

MULHER:
Com quem mais haveria de ser? Pelo amor de Deus, o que você está fazendo com esse uniforme
militar?

MISAEL MAIA:
Eu não sei quem é a senhora.

MULHER:
Mas eu sei muito bem quem é você, Misael Maia.

URIA:
Essa mulher não regula bem...

MULHER:
Gente, não é fácil ter um marido que não sabe dizer “não”.

MISAEL MAIA:
Eu gostaria de saber do que ela está falando...

FAIRCHILD:
Eu acho que a senhora “Gray” tem a cabeça no lugar. Por favor, senhora “Gray”, continue.

MULHER:
Maia, senhora Misael Maia.

FAIRCHILD:
Pois bem, continue, senhora Maia.

MULHER:
Eu não sei bem o que você anda tramando, mas lhe garanto que isso não vai acabar bem. Vamos já
para casa, andai Gente, mas o quê que é isso? O rato roeu sua língua?

MISAEL MAIA:
A senhora está falando comigo?

MULHER:
E com quem mais haveria de ser?

MISAEL MAIA:
Não sei, acho que a senhora está me confundindo com outra pessoa.

MULHER:
Você bebeu Misael Maia?! Gente, pelo amor dos deuses, ele não pode beber. E muito fraco para o
álcool.

MISAEL MAIA:
Eu não sou esse Galy “Gray” que a senhora está falando.

FAIRCHILD:
Maia! O nome é Misael Maia!

MULHER:
Ô, Misael Maia, ontem, a esta hora, eu pus a água no fogo e até agora você não voltou com o peixe.

MISAEL MAIA:
Que história é essa de peixe? Que tem a senhora? Louca?

FAIRCHILD:
Alguma coisa me diz que este peixe não está cheirando bem. (Para os três soldados.) Os senhores
conhecem esta mulher? (Os três fazem que não com a cabeça) E o senhor?

MISAEL MAIA:
Não.

FAIRCHILD:
Diga a esta mulher como o senhor se chama.

MISAEL MAIA:
Jip. John Jip.

OS TRÊS SOLDADOS:
John Jip de Dakota.

FAIRCHILD:
O senhor poderia me apresentar sua plaqueta de identificação?

(URIA entrega a plaqueta de Jip)


FAIRCHILD:
John Jip.

MISAEL MAIA:
De Dakota...
FAIRCHILD:
A senhora tem certeza de que é aquele o homem que a senhora está procurando?

MULHER:
Seu Sargento, olhando bem, tem alguma coisa diferente do meu marido Misael Maia. Não sei bem o
que, mas tem...

FAIRCHILD:
Se alguma coisa está diferente, eu logo vou saber o que é ou não me chamo Cincão Sanguinário.

MULHER:
Eu não tenho mais nada que fazer aqui. Com licença.

FAIRCHILD:
Vou acompanhá-la.

MULHER:
Gente, o quê que é isso? Eu sei o caminho de casa.

(Sai, Fairchild vai atrás, depois de uma olhada significativa nos quatro.)

MISAEL MAIA:
Um homem é um homem, e um gato é um bicho!...

URIA:
O senhor esteve brilhante. Agora vá colocar suas roupas civis. Me dê sua plaqueta de identificação.
POLLY e JESSE, tragam o artefato bélico.

(Misael Maia sai para trocar de roupa. Polly e Jesse saem pelo lado oposto.)

URIA:
(Chamando) Maria Boa! (A viúva se aproxima) A senhora não quer participar de
nossa brincadeira fazendo o papel de compradora?

MARIA BOA:
Com uma condição: os senhores me ajudarão na desmontagem da minha cantina.

URIA:
Fechado!

MARIA BOA:
E eu vou comprar o quê?

URIA:
Uma carroça velha, que a senhora comprará dele como se fosse um artefato bélico.
MARIA BOA:
E ele deve acreditar na arma ou na carroça?

URIA:
Ele deve acreditar que é um artefato bélico disfarçado de carroça, que chamaremos de... Galharufa.

MARIA BOA:
E o que vem a ser isso?

URIA: Nada.

MARIA BOA:
E a desmontagem da minha cantina?

URIA:
Deixe por nossa conta.
(A viúva sai. Polly e Jesse entram trazendo a carroça.)

CENA 9 - Número um: A venda da galharufa

URIA:
Camaradas, estamos em guerra, o tempo da desordem acabou. Não haverá covardes nem desertores,
nosso Grupo de Metralhadoras deverá embarcar completo. Por isso o estivador- Misael Maia deve
ser transformado imediatamente no Soldado John Jip. Todos devem estar atentos às ordens que
JESSE, POLLY e eu dermos, e Todos devem se comportar como .verdadeiros-atores. Essa é uma
das poucas ocasiões em que o teatro serve para alguma coisa. Atenção: “Primeiro ato”: A venda da
galharufa!

(Volta Misael Maia em trajes civis. Pára diante do estranho objeto.)

MISAEL MAIA:
O que é isso?

URIA:
E o artefato bélico que o senhor vai negociar.

MISAEL MAIA:
Olhando assim parece uma moita de chuchu...

URIA:
Pois é exatamente isso que eles querem que se acredite.

MISAEL MAIA:
Eles quem?

URIA:
Os alemães costumam dissimular suas armas dando-lhes a aparência de algo inocente.

MISAEL MAIA:
Ah...

POLLY:
Na verdade, trata-se de uma tremenda arma, mas isso não pode ser dito em voz alta.

URIA:
Um senhor que não quer ser identificado pelo nome pretende vender uma galharufa!

POLLY:
Chamemos assim o artefato.

URIA:
Pela melhor oferta.

MARIA BOA:
Eu sou a compradora. O senhor me vende esta...

URIA, POLLY e JESSE:


Galharufa!

MISAEL MAIA:
A senhora tem certeza que quer comprar... este negócio?

MARIA BOA:
Ah, mas desde criança eu sonho em ter uma galharufa.

MISAEL MAIA:
Então está falando com a pessoa certa, eu sou o dono.

MARIA BOA:
Na verdade, trata-se de uma arma de destruição em massa, mas isso não pode ser dito em voz alta.

MISAEL MAIA:
Quem comprar esta... carroça leva como brinde uns tonéis de petróleo vazios e tudo o mais que
estiver contido nela.
SOLDADO:
O Sargento Cincão está na praça convocando a tropa! Aí vem mais um discurso do Cincão
Sanguinário!

URIA:
Segure aqui, tome conta da galharufa que nós já voltamos. Não deixe que ela escape.

(Todos vão saindo de fininho, com jeito de “não me comprometam”. Misael Maia, como um
estafermo, fica ali, parado, assuntando)

MISAEL MAIA:
Minha mãe sempre dizia que a gente nunca sabe o que é certo. Você, então, Misael Maia, não sabe é
nada! Hoje você saiu de casa para comprar um peixe pequeno, à tarde já tinha trocado por uma
macaxeira, agora está com esta enorme...ga...ba...babarufa. E ninguém sabe o que vai acontecer
alías desde que você tenha um cheque na mão, tanto faz como tanto fez. Meu avô sempre dizia:
“Pagando bem, que perigo tem?”

(Fairchild faz um discurso do alto da torre. Todos vão entrando, escutando)

FAIRCHILD:
Soldados, chegou a hora decisiva! Finalmente nossos aviões se deslocam para a Europa e norte da
África para mais um triunfo da civilização sobre a barbárie. Cairemos sobre eles com todo o peso da
nossa intolerância! Vamos ver quem é mais determinado na matança, nas atrocidades, nas
mutilações, nos estupros, nas torturas, nas decapitações. Soldados, esta semana mesmo estaremos
marchando sobre o território inimigo, e. vamos: fazer da vida deles um verdadeiro inferno!

(Soa uma trovoada)

FAIRCHILD:
Ai, chuva não!

(Desce correndo da torre)

CENA 10 - Número dois: O leilão da galharufa

URIA:
“Segundo ato”: O leilão da galharufa!

JESSE:
Está aberto o leilão! O melhor lance leva este artefato bélico super especial.

POLLY:
Esta galharufa é sua?
MISAEL MAIA:
E minha desde que me entendo por gente.

JESSE:
Esta raridade teve apenas um único dono. O lance mínimo é de 300 cruzeiros.

URIA:
Trezentos cruzeiros!

MARIA BOA:
Não dou mais de duzentos. É muito velha.

MISAEL MAIA:
É o ideal para uma viúva dona de cantina.

JESSE:
Vou vender pelo melhor lance. Até aqui 200 cruzeiros. Está abaixo do preço mínimo...

MARIA BOA:
Duzentos e cinquenta. E nem. um centavo a mais.

JESSE:
Duzentos e cinquenta Cruzeiros, dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido! A senhora pode
preencher o cheque. E o senhor, qual é seu nome?

MISAEL MAIA:
Não deve ser mencionado.

JESSE:
É apenas para fazer um cheque nominal. (Misael Maia faz sinal de não com o dedo) Então o senhor
mesmo escreve o seu nome, assim não precisamos mencioná-lo.

URIA:
Aqui está o seu cheque, senhor que não quer ser identificado. Coloque seu nome.

(Misael Maia põe seu nome no cheque. Entrega-o a URIA, que lê em voz bem alta)

URIA:
Misael Maia, o seu nome é Misael Maia?

POLLY:
Senhor Misael Maia, o senhor está preso por tentativa de venda de arma de exclusividade do
Exército.
MISAEL MAIA:
Arma?... Que arma? Isso é uma carroça...

POLLY:
Ora, senhor Misael Maia, qualquer militar sabe que estamos diante de uma arma de destruição em
massa.

JESSE:
Mas isto aqui é uma carroça.

(Espanto geral)

MISAEL MAIA:
Eu não disse?

MARIA BOA:
Que ultraje!

JESSE:
Tirem isto daqui!

URIA:
Apenas uma carroça disfarçada de artefato bélico disfarçado de carroça.

POLLY:
Então o senhor vendeu uma carroça por 250 cruzeiros como se fosse material bélico?

JESSE:
É, senhor Misael Maia, o senhor se afunda cada vez mais nos seus crimes.

MISAEL MAIA:
Eu não sou Misael Maia.

POLLY:
E quem é o senhor?

MISAEL MAIA:
Alguém que não quer que seu nome seja revelado.

POLLY:
Tem documento de identidade?

MISAEL MAIA:
Não, não trouxe comigo.
POLLY:
Então está detido para averiguações, senhor que não quer que sua identidade seja revelada.

MISAEL MAIA:
Sinto muito, mas eu preciso ir embora. A minha mulher está me esperando e deve estar preocupada.
Mais tarde eu volto para discutirmos o assunto... Com licença.

URIA:
O senhor não vai a lugar nenhum antes de dar certas explicações, senhor Misael Maia.

(Misael Maia ê imobilizado, com uma corda amarram-lhe mãos e pés. Depois o jogam num tonel)
URIA:
Agora, que espere o processo.

(Música ASSUM PRETO – Luiz Gonzaga)

MARIA BOA:
Eu também já tive um nome. Lá na Paraíba, na cidade, Todos que o ouviam diziam: é um nome
honesto, esse nome. Mas num belo dia, numa bela noite eu bebi uns copos de gim a mais. E na
manhã seguinte tinham escrito, a giz, na minha porta, um palavrão: Puta! Então o leiteiro não
deixou mais o leite. A chuva apagou o palavrão escrito a giz, mas mesmo assim, o padeiro não
deixou mais o pão. Eu tinha perdido meu bom nome. R-A-IM-U-N ...Ah! Não perca tempo
soletrando o seu nome. Para quê um nome é apenas um nome Como um homem é apenas um
homem.
CENA 11 - Número três: O processo.
URIA:
“Terceiro ato”: Está aberta a sessão que inicia e termina o processo contra o homem que tentou
vender armas do Exército.

MISAEL MAIA:
Eu queria dizer uma coisa...

URIA:
O senhor já disse coisas demais. Quem sabe o nome do homem que foi pilhado
vendendo gato por lebre?

SOLDADO:
Ele se chamava Misael Maia.

URIA:
Existem provas disso?

SOLDADO:
Há várias testemunhas. E o cheque nominal é prova definitiva e suficiente.

URIA:
O que o acusado tem a declarar?

MISAEL MAIA:
Foi alguém que não queria ter seu nome revelado.

SOLDADO:
Eu ouvi ele dizer que se chamava Misael Maia.

URIA:
Não é o senhor?

MISAEL MAIA:
Se eu fosse Misael Maia, então talvez eu fosse aquele que os senhores estão
procurando.

URIA:
Mas o senhor não é?
MISAEL MAIA:
Não, não sou.

URIA:
O senhor talvez nem estivesse presente quando houve o leilão.

MISAEL MAIA:
Não, eu não estava presente.

URIA:
Mas o senhor viu que havia alguém chamado Misael Maia e que vendeu o artefato bélico?

MISAEL MAIA:
Isso eu posso afirmar.

URIA:
Então o senhor estava presente?

MISAEL MAIA:
De certa maneira sim...

URIA:
Vocês estão vendo? Até a lua se esconde de vergonha das mentiras deste senhor. Eu ouvi falar de
um tal de John Jip, que depois queria fazer com que acreditassem que se chamava Misael Maia. Por
acaso o senhor é esse jip?

MISAEL MAIA:
Não, claro que não.

URIA:
O seu nome não é Jip? Qual é o seu nome?

(Misael Maia aperta bem a boca)

JESSE:
O seu silêncio é altamente suspeito.

POLLY:
Os juízes que se reúnam para deliberar e proclamar a sentença.

(Os juízes se afastam para o fundo da cena. Dois soldados ficam junto de Misael Maia)
MISAEL MAIA:
Dá para ouvir o que eles estão dizendo?

SOLDADO:
Não. Quase nada.

MISAEL MAIA:
Ouçam bem o que eu vou dizer: um homem não vale nada!

(Jesse volta à cena com o rosto descoberto. Aproxima-se de Misael Maia)

JESSE:
Olhem só quem está aí, se não é o nosso velho amigo. Misael Maia!

MISAEL MAIA:
Não, eu não sou esse que você está pensando, não. Chega mais perto para você ver.

JESSE:
Então você não é o Misael Maia!? (Fala com os guardas.) Me deixem ficar sozinho com este
homem. Ele acaba de ser condenado à morte.

MISAEL MAIA:
Já decidiram? Ah, Jesse, você que é um grande soldado, por favor, me ajude!

JESSE:
Me disseram que é Misael Maia quem deve morrer.

MISAEL MAIA:
Não pode ser!

JESSE:
Mas então você não é Misael Maia? Olhe bem nos meus olhos. Sou eu, JESSE, seu amigo. Você
não é Misael Maia, de Natal?

MISAEL MAIA:
Não, você deve ter se enganado.

JESSE:
Nós éramos quatro quando chegamos aqui. Você era um de nós?

MISAEL MAIA:
Sim, eu era. Era eu.

(Jesse vai até a viúva Maria Boa que está recolhendo cordas e lonas. URIA veio ajudá-la.)

JESSE:
A lua ainda está baixa no céu, e ele já quer ser John Jip.

URIA:
Mas ainda é Misael Maia. Eu acho que devemos ameaça- lo de morte mais um pouco. Depois
continuamos a desmontagem.

MARIA BOA:
A desmontagem mais urgente é a do bar – vagão – cantina da viúva Maria Boa. Os
canhões já estão chegando.

(Todos se empenham na desmontagem. Maria Boa passa perto de Misael Maia)

MISAEL MAIA:
Dona viúva Maria Boa, eu não sou esse que eles estão pensando.

MARIA BOA:
Você não é mais nem quem você ainda pensa que é.

CENA 12 - Número quatro: A execução


URIA:
“Quarto ato”: A execução de Misael Maia no acampamento militar de Natal.

POLLY:
Já temos o veredicto, homem sem nome. O senhor será fuzilado varias vezes: primeiro, por ter se
apropriado de armas do Exército, crime passível de pena capital; depois, por tentar vender armas do
Exército, crime contra a segurança nacional; e também por ter tentado vender uma carroça como se
fosse material bélico, crime de fraude; e ainda por não apresentar nenhum documento que o
identifique, crime de falsidade ideológica.

MISAEL MAIA:
Eu sozinho fiz tudo isso?

URIA:
E ainda falta fazer o principal. Sair daí e, como um bravo soldado, marchar até o paredão de
fuzilamento.

(Soldados puxam Misael Maia para fora do tonel e tiram uma foto com o condenado.)
MISAEL MAIA:
Eu não sou quem vocês estão procurando. Meu nome é Jip, juro!
JESSE:
Mais um fuzilamento, por jurar em falso. Você é Misael Maia, só pode ser Misael Maia, e Misael
Maia verá seu próprio sangue correr. Em frente, marche! Abram caminho!

(Misael Maia é carregado pelos soldados, dando uma volta completa pela cena. Grita como o
protagonista de uma tragédia.)
MISAEL MAIA:
Por favor, um julgamento não pode ser feito assim. E o direito de defesa? O processo?!

JESSE:
Aqui vai um criminoso...

MISAEL MAIA:
Isso não é direito...

JESSE:
Condenado a várias mortes pela corte marcial de Natal.

MISAEL MAIA:
Socorro! Mas não aparece ninguém para evitar que um homem seja morto, assassinado?

URIA:
Alto! (O pelotão pára.)

URIA:
Você quer fazer seu último pipi?

MISAEL MAIA:
URIA... Quero.

URIA:
Fiquem de guarda.

(Misael Maia começa a fazer tudo bem lentamente à espera de algum milagre que o tire daquela
situação)
SOLDADO:
Rápido!

MISAEL MAIA:
Com pressa eu não consigo. Aquilo lá não é a lua?

SOLDADO:
E, já é tarde.

MISAEL MAIA:
E aqui não era a cantina da viúva Maria Boa onde a gente vinha sempre beber e fumar um charuto?

URIA:
Não, meu caro. Aqui é o lugar das execuções e este lugar é a chamado “Rampa sem vergonha”,
onde ninguém tem vergonha de berrar como um porco sendo sangrado.

MISAEL MAIA:
Eu vou berrar, vou chamar o Sargento Fairchild, o Cincão Sanguinário...

URIA:
Vá fazendo suas últimas orações.

MISAEL MAIA:
URIA, nós somos amigos, bebemos juntos, brindamos juntos à nossa saúde, lembra?...

URIA:
Preparar!

MISAEL MAIA:
Você não vai fazer isso com quem...

(Uria poem um capuz preto em Misael Maia, que está desesperado.)

MISAEL MAIA:
Agora chega de brincadeira você não...

URIA:
Apontar!

MISAEL MAIA:
Pelo amor de Deus...

URIA:
É um... E é dois... E é...

MISAEL MAIA:
Pare! Pare, não diga três! Senão você vai se arrepender! Escutem, eu confesso. Eu confesso que não
sei mais quem sou. Eu esqueci, juro que esqueci. Ontem à noite, enquanto chovia, eu ainda me
lembrava; Más agora não me lembro mais do que eu me lembrava ontem à noite, enquanto chovia.
Ontem à noite chovia muito, não chovia? Por favor, vejam de onde está vindo minha voz e
entendam que é a voz de alguém que não sabe bem quem é, mas que ainda tem um corpo, e, por
favor, não atirem na direção dessa voz...

URIA:
E dois e meio... E é...
(Misael Maia dá um berro e desmaia antes que Polly lhe dê uma paulada)
TODOS:
Ih, desmaiou!

URIA:
Atirem para o alto. Para que ele entenda que foi fuzilado e está morto.

(Os soldados atiram para o alto)


URIA:
Vamos preparar a partida.

Hurra! Hurrah!
Hurra! Hurrah!
Um homem de verdade não tem medo de lutar.
Hurrah! Hurrah!
Soldado prevenido bate antes de apanhar
Hurrah! Hurrah!
Aqui se aprende a ser homem,
aqui se aprende a lutar,
E a vencer, vencer, vencer, vencer.
Hurrah!

CENA 13 - Número cinco: Funeral de Misael Maia


URIA:
“Quinto ato”: Funeral e oração para Misael Maia, o último homem de caráter do século XX.
POLLY:
Peguem aquela caixa, escrevam na tampa “Misael Maia” e desenhem uma cruz. Depois carreguem a
caixa em uma cerimônia fúnebre. E, por último, enterrem a caixa.

(A Viúva Maria Boa e os três soldados observam Misael Maia ainda desacordado.)

URIA:
Viúva Maria Boa, nossa desmontagem e montagem estão chegando ao fim. Nosso homem
finalmente parece reconstruído.

(Misael Maia começa a acordar)


MARIA BOA:
Você deve estar com fome e com sede. Não quer comer alguma coisa? Ou beber?

JESSE:
Ele não vai querer comer.

MARIA BOA:
Vai querer comer, sim. Você pode tirar a personalidade de um homem, mas não tira a sua fome (A
viúva tira do bolso do avental um pão e o dá a Misael Maia, que o come com voracidade. A um
sinal de Jesse os soldados formam um cortejo)

MARIA BOA:
Eu não disse? Não tira a sua fome.

MISAEL MAIA:
Mais! (Comendo, repara no cortejo) O que é que eles estão levando ali?

MARIA BOA:
Um homem que acabam de fuzilar.

MISAEL MAIA:
Como era o nome dele?

MARIA BOA:
Se não me engano, ele se chamava...

POLLY:
Misael Maia.

MISAEL MAIA:
E o que é que vão fazer com ele?

MARIA BOA:
Agora vai ser enterrado.
MISAEL MAIA:
Ele era bom ou mau?

MARIA BOA:
Era um homem perigoso.

MISAEL MAIA:
Claro, por isso deve ter sido executado. Eu estava presente.

JESSE:
Esse não é o Jip? Jip, você precisa se levantar logo e preparar a oração fúnebre desse Misael Maia.

MISAEL MAIA:
Tem certeza que eu estou aqui? Vocês estão me vendo? Então eu estou aqui. O que eu estou
fazendo?

JESSE:
Você está marchando como um soldado. Você é um soldado nato!

MISAEL MAIA:
E quando vocês querem alguma coisa de mim, o que vocês dizem?

JESSE:
Jip, dê uma voltinha. E prepare a oração fúnebre de Misael Maia

(Misael Maia vai lentamente em direção à caixa. Está com medo)


MISAEL MAIA:
Este é o caixão, ele está aí dentro? Eu morreria na mesma hora, se visse no caixão o rosto vazio de
um homem que eu conheci, um rosto que eu via no espelho, que me olhava no espelho da água, que
fazia a barba quando eu fazia a barba. E eu sei que esse olhar agora é o de um morto. Então eu não
posso abrir esse caixão. Porque eu tenho medo. Porque temos medo, meus dois eus, que esse duplo
de mintsaia do caixão e fique vagando, à noite, como um morcego, entre as árvores e as barracas.
Gostaria de ser alegre, gostaria. Mas sozinho não se é coisa alguma. E preciso que alguém me
chame para que eu seja alguém. E é preciso que eu tenha um nome para que alguém possa me
chamar. Uma floresta existe se ninguém a atravessa? Como Misael Maia pode reconhecer sozinho
que ele próprio é Misael Maia? O que é Misael Maia? Se lhe amputarem um braço, esse braço
segue sendo o braço de Misael Maia? E o olho de Misael Maia reconheceria o braço de Misael
Maia? E o pé? Gritaria: “Ei! É ele!” Não, eu não posso abrir este caixão, até porque não é grande a
diferença entre o sim e o não. E eu, o meu eu o out o eu. somos úteis e utilizáveis quando não
somos inúteis. (Ouve-se o barulho de helicópteros) Por isso fecho os olhos e me desprendo do que
em mim não agrada aos outros e fico com o que pode agradar para sobreviver sem muitas histórias.

(Ouve-se mais forte o barulho de helicópteros preparando-se para levantar voos)

MISAEL MAIA:
Aonde vão esses helicópteros?
MARIA BOA:
Vão para onde nos mandam os senhores da guerra. Toda guerra é suja, toda guerra é cega. Mata-se
por engano, por engano também se morre. Por isso cada um de nós traz uma plaqueta pendurada no
pescoço. Uma plaqueta com número e nome para que se saiba, mesmo que faltem pedaços* quem
era, quando vivo, aquele morto, Você tem uma plaqueta?

MISAEL MAIA:
Tenho.

MARIA BOA:
E o que está escrito nela?

MISAEL MAIA:
John Jip

Os TRÊS SOLDADOS:
John Jip de Dakota.

MARIA BOA:
E agora, John Jip, vá se lavar, você está sujo como um porco.

Voz:
Embarcar! Cinco minutos para a partida dos caminhões do Oitavo Regimento de
Infantaria Mecanizada!

SOLDADO:
O sargento Fairchild vem aí.

URIA:
Viúva Maria Boa, faça alguma coisa para que ele não meta o nariz nos nossos assuntos.

MARIA BOA:
Vai ser fácil, o tempo continua chuvoso, e quem vem aí é um civil.

TODOS: Civil?

(Entra Fairchild vestido à paisana.)

FAIRCHILD:
Ah, você está aí, Gomorra embalsamada.

SOLDADO:
Cala a boca, civil! (Risos debochados da soldadesca.)

FAIRCHILD:
Olha a roupa que eu estou vestindo. Tudo isto, esta vergonha, para dormir com você, Messalina. E
isto aqui em cima de minha cabeça, isto é digno da minha lenda? (um soldado pega o chapéu do
Sargento).'Ei vocês, "cambada de vagabundos, vão indo agora por que vocês vão chorar muito nas
minhas mãos. .Eu quero beber, eu preciso beber. Vocês vão ser esmagados como moscas ou não me
chamo Cincão Sanguinário.

URIA:
Sargento, como é que conseguiu esse nome?

FAIRCHILD:
Cincão: Sangrento? Posso: contar, senhora viúva Maria Boa?

MARIA BOA:
Conte, meu Tigre de Natal!

FAIRCHILD:
Muito bem. Aqui está. o rio Mekong, Vietnã. Aqui estão os cinco prisioneiros, com as mãos
amarradas nas costas. Então eu chego, sozinho, sem medo nenhum, apenas com um simples
revólver na mão. Brinco com a. arma passando na cara deles e digo: “Este revólver já falhou mais
de uma vez, eu tenho de experimentar. Assim”. E , aponto para a cabeça do primeiro: bang! O bicho
cai sem nem um ai. Faço o mesmo com o segundo: beng! E com o terceiro: bing, e bong e bung!
Cinco vezes. Apenas isso, meus senhores. Cincão Sanguinário.

JESSE:
Seu civil idiota!

TODOS:
Civil!

FAIRCHILD:
Civil, não! Eu não sou civil... Eu já nem sei mais direito. Quem eu sou...

MISAEL MAIA:
O senhor está tendo algum problema com o seu nome? Leia o que diz sua plaqueta de identificação.
A minha diz que me chamo John Jip, do 1º Grupo de Metralhadoras. E a sua?

FAIRCHILD:
A minha diz que eu vou esmagar Todos vocês, como quem mata piolhos. E diz também que esta
filha de Sodoma nunca mais vai tocar em mim...

MARIA BOA:
Nunca mais, meu sangrento?

FAIRCHILD:
Nunca mais!
MARIA BOA:
Então nunca mais, meu Cucaracha!

TODOS:
Cucaracha?

FAIRCHILD:
Cucaracha, não! Eu ainda sei quem sou. Eu sou o Tigre de Mossoró, o Leão de Natal, o Furacão
Caicó, o Cincão Sanguinário! O Fodão do Nordeste!

(Ouve-se um trovão.)

TODOS:
Olha a chuva, Carmelo!

FAIRCHILD:
Pouco me importa que chova ou que faça sol. E tudo muito simples. É mais fácil do que parar de
fumar. Nunca mais vou gastar um centavo com mulher. Estarei livre de qualquer tentação. (Vai
saindo de cena. Saca um revólver ao mesmo, tempo, em que completa a frase) Se teu olho te faz
pecar... arranca-o! Corte o mal pela raiz. Vejam como se faz um guerreiro completo...

(Sai. Ouve-se um tiro. Todos levam a mão entre as pernas)

URIA:
Guerra é guerra!

Voz:
Atenção! Embarcar! Todos nos caminhões!
TODOS:
Desmontar! Vamos depressa com isso! Carreguem! Vamos embora!

URIA:
Ei, Camarada Jip, é hora de embarcar, sua oração fúnebre.

MISAEL MAIA:
Oração pronunciada por John Jip, em 20 de outubro de 2005: Aqui jaz Misael Maia, um homem que
foi fuzilado. Saiu de manhã para comprar um peixe, à tarde tinha uma macaxeira e à noite foi
fuzilado. Não cometeu nenhum grande crime, senhores, era um homem comum. Eu tinha bebido
demais, mas um homem é um homem e é por isso que ele foi fuzilado. E agora já começa a soprar o
vento da noite, a madrugada vai ser fria e por isso nós devemos sair daqui o quanto antes. (Repara
nos uniformes dos outros.) E eu? Cadê meu uniforme?

OS TRÊS:
Hurrah!
POLLY:
Depressa, um equipamento completo para o nosso quarto homem, John Jip de
Dakota! Hurra!

TODOS:
Quem ataca primeiro ganha a guerra.
E quem perde vai pra baixo da terra.

MARIA BOA:
Mais uma vez os aprendizes de feiticeiro desencadeiam forças que não sabem controlar. Abrem a
caixa de Pandora, espalhando pelo mundo afora doenças, desgraças, guerras, Todos os males que
deveriam ter ficado trancados. Dentro da caixa, apenas uma coisa ficou presa: a esperança.

POLLY:
Capitão John Jip, o senhor está formidável!

TODOS:
Hurra!

MISAEL MAIA:
Quem é o inimigo?

URIA:
O inimigo pode ser qualquer cidadão que cruze o nosso caminho.

MISAEL MAIA:
Já sinto crescer em mim a ânsia de cravar os dentes na garganta do inimigo. Um impulso ancestral
me ordena: semeia a morte nas famílias! Que vivam somente os órfãos e as viúvas! Assume tua
missão sanguinária como um brutal carniceiro! Eu nasci para matar!

(Todos começam a atirar para Todos os lados até que não sobre ninguém vivo sobre o palco.
Lentamente entra um homem vestido de branco e se posiciona no meio dos corpos caídos.)

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