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 OPINIÃO Angola na sombra do perpétuo ditador     Carlos Pacheco

OPINIÃO

Angola na sombra do perpétuo ditador


O que urge discutir em primeiro lugar em Angola não são pessoas isoladamente (como se tem estado a
fazer), e sim o MPLA e a corrupção que grassa nas suas entranhas.
Carlos Pacheco
27 de Setembro de 2020, 16:57 (actualizada às 10:03)
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Tragicamente, a roda da história em Angola continua a ser empurrada numa
direcção que não me inspira um só sentimento de tranquilidade. Os sinais que
se me deparam, em vez de me permitirem descortinar um futuro de
esperança, aparecem-me carregados de maus pressentimentos.

As décadas correspondentes à era José Eduardo dos Santos foram décadas


inquietantes pelos piores males que se abateram sobre o país, especialmente o
cerceamento das liberdades, a corrupção e a impunidade total dos seus
dirigentes. Anteriormente Angola vivera quatro anos de tragédia deixada pelo
governo ditatorial de Agostinho Neto, que precipitou o país num dos maiores
banhos de sangue de que há memória no mundo contemporâneo. A comoção
social originada por este abalo, ainda hoje carece de uma avaliação rigorosa,
séria e isenta de partidarismos e medos. Todavia, os dois últimos anos e meio
da era do general João Lourenço, no modo como este general tem estado a
capitanear os superiores destinos do Estado e do seu Partido dirigente,
concorrem para que nas fileiras da cidadania mais esclarecida e independente
se acumulem sobradas razões de incerteza e apoquentação.

Tragédias, de Magdalena Abakanowicz, 1976-1978 DR

Algumas almas mais cândidas têm querido ver no general o timoneiro de


MAIS POPULARES
uma revolução democrática prestes a acontecer no país, capaz de extirpar das
instituições do Estado os velhos vícios que as corroem de morte. Um belo Humanos modernos
sonho que, entretanto, se vai apagando lentamente como uma vela. chegaram à zona onde
hoje é Portugal 5000
anos antes do que se
pensava
Algumas almas mais cândidas têm querido ver no
general o timoneiro de uma revolução democrática Com média de 20 valores,
prestes a acontecer no país, capaz de extirpar das Ana, Joana e Gonçalo
foram para a escolha
instituições do Estado os velhos vícios que as corroem de “natural”: as engenharias
morte. Um belo sonho que, entretanto, se vai apagando no Técnico

lentamente como uma vela



FOTOGRAFIA
Na prisão não há
fotografias. Ela ajuda
Eu, pessoalmente, nunca alimentei boas expectativas com respeito a esta mães reclusas a criar
personagem, até porque instintivamente desconfio de políticos que aparecem álbuns de família felizes
diante das massas cobertos com a aura de homens providenciais. A história
universal está cheia de exemplos sinistros, de profetas de amanhãs dourados.
Quem paga depois a conta das tragédias que vêm a seguir são os povos que
acreditam neles.

O estandarte de anti-corrupção de João Lourenço nasceu manchado de


suspeitas, ferido de integridade. Nas suas dobras já trazia impressa a marca
da ambição pessoal do seu protagonista que ardilosamente se serviu do tema
sedutor da anti-corrupção para enganar o país e governar, não em obediência
a princípios ou em nome dos superiores interesses do Estado, mas para
afirmar e consolidar um poder absoluto. Para isso fez o que fazem todos os
ditadores em início de mandato. Arrasam os velhos companheiros de
percurso e lançam sobre eles toda a sorte de anátemas. Josef Stalin, na União
Soviética, é um bom exemplo: a pretexto de combater a restauração do
capitalismo na Rússia, arrasou politicamente León Trotsky (o pai do Exército
Vermelho e favorito de Lenin para o suceder) e adjudicou-lhe a acusação de
fascista ao serviço do imperialismo alemão. Agostinho Neto, por seu turno,
aniquilou Viriato da Cruz (criador do MPLA) e usou contra ele de uma
incriminação obscena: a de ladrão dos dinheiros do Movimento, não sem
antes ordenar aos seus esbirros que o perseguissem e maltratassem.

Ao ouvir João Lourenço a discursar há dois anos na sede da Presidência da


República portuguesa, em Lisboa, emproado e desdenhoso para com a pessoa
do seu predecessor, acusando-o das piores malfeitorias, imediatamente
pensei: – “Aí está mais um prestidigitador a semear uma narrativa ideológica
fantástica na tentativa de se engrandecer e fazer-se passar por salvador da
pátria”. O discurso em si, sem nenhum resquício de ética e decoro,
pronunciado na presença de um numeroso escol de personalidades
estrangeiras, na verdade caiu muito mal. Nunca se tinha visto algo de
semelhante. Um chefe de Estado ensoberbado na sua casaca a exibir tiques
que já fizeram época, mas que se pensava estarem extintos. Refiro-me aos
tiques de velhos ditadores africanos, tipo general Idi Amin (do Uganda),
Hissène Habré (do Chade), Sani Abacha (da Nigéria) e tantos outros, que
embaciavam o seu espelho de estadistas e se comportavam como ridículos
“imperadores” dos trópicos. João Lourenço francamente revelou-se
desastroso no tom e na escolha do local onde disse o que disse. O discurso
envergonhou todos os angolanos de boa consciência que não se deixam iludir
por estas fanfarras de farisaísmo.

Ao dar-se ares de querer destapar as fossas da corrupção


nacional, causa estranheza a sua celeridade em apontar
responsáveis na pessoa do ex-presidente e da respectiva
família, embora, ao mesmo tempo, deixe de lado outras
figuras cujos actos condenáveis entulham os
subterrâneos do MPLA

Já dizia George Orwell, escritor inglês (1903-1950), que “contar a verdade em


tempos de engano universal é um acto revolucionário”. Por isso, se pergunta:
onde esteve o general João Lourenço nos últimos quarenta anos? Ao dar-se
ares de querer destapar as fossas da corrupção nacional, causa estranheza a
sua celeridade em apontar responsáveis na pessoa do ex-presidente e da
respectiva família, embora, ao mesmo tempo, deixe de lado outras figuras
cujos actos condenáveis entulham os subterrâneos do MPLA. As centenas de
milionários ou de bilionários que fazem de Angola matéria de escândalo no
mundo, sem dúvida configuram uma realidade impossível de ser
escamoteada. Trata-se de uma fidalguia suspeita de incontáveis patifarias na
gestão dos bens públicos. Todos os seus membros pertencem ao mandarinato
do Partido.

Deste modo, o que urge discutir em primeiro lugar não são pessoas
isoladamente (como se tem estado a fazer), e sim o MPLA e a corrupção que
grassa nas suas entranhas. O MPLA é, por si, o rosto da corrupção, o
epicentro de todas as crateras que abalam o Estado angolano. Todos os
problemas de Angola desde o alvorecer da independência nacional se
confundem e estão intrinsecamente associados aos governos desta
organização política. No entanto, os narcisos do palácio presidencial e da
Justiça desdobram-se em passes de mágica para tentar dissolver a dimensão
real da crise com retóricas enganadoras e fazerem as pessoas acreditar nas
narrativas do general.

A questão merece a maior ponderação e a sua análise significa, antes de tudo,


um imperativo de cidadania. Pela primeira vez levantei este véu na reflexão
“Angola, olhando o fundo do abismo”, inserta edição de 2 de Maio de 2019
deste jornal. Para se entender o perfil político de João Lourenço basta
compulsar a sua biografia. Está tudo lá. João Lourenço é o que se pode
chamar de o mais genuíno arquétipo do aparelhismo do MPLA. Ele sempre foi
favorecido, como poucos, por nomeações que o guindaram aos mais altos
postos da administração do Estado e do Partido. Aliás, não deixa de ser
significativo o especial patrocínio que ele recebeu de Eduardo dos Santos,
graças ao qual se lhe abriram todas as portas do “templo sagrado” da
governação e graças ao qual ele chegou onde chegou. Assim sendo, onde
estava este senhor quando a corrupção, entre outros gravíssimos abusos,
corria solta pelos gabinetes ministeriais? Não viu nada? Estava distraído?

Não, João Lourenço não estava distraído. Ele sabia (e sabe) de tudo, da
mesma forma que Nikita Khrushchov, sucessor de Stalin, sabia da história
completa dos assassinatos em massa e da colectivização violenta levada a cabo
pelo Grande Líder, aos quais deu o seu apoio e aprovação. Entretanto, ao
ascender ao patamar de novo ditador, entendeu que só poderia poupar-se de
ser responsabilizado pelas monstruosidades que ele próprio cometera, se
inculpasse de tudo o monstro que o antecedera. O propósito foi claro:
consolidar a sua posição na luta pelo poder dentro do Kremlin. Tanto que a 24
de Fevereiro de 1956, na qualidade de presidente do Comité Central,
apresentou um “Relatório Secreto” ao XX Congresso do PCUS (em sessão
nocturna realizada a portas fechadas) a denunciar os delitos de Stalin. Antes
disso, teve o cuidado de ordenar a liquidação de Lavrenti Beria, outro
monstro na hierarquia do Partido, chefe dos serviços secretos que conduziu o
Grande Expurgo na década de 1930 e que conhecia bem os sulcos mais
sórdidos da biografia de Khrushchov.

As denúncias de João Lourenço contra Eduardo dos


Santos trouxeram de volta os fantasmas do passado, isto
é, o vício político de demolir as figuras da velha guarda.
Direi tratar-se de uma condição de sobrevivência por
parte das novas chefias em regimes de carácter
concentracionário

As denúncias de João Lourenço contra Eduardo dos Santos trouxeram de


volta os fantasmas do passado, isto é, o vício político de demolir as figuras da
velha guarda. Direi tratar-se de uma condição de sobrevivência por parte das
novas chefias em regimes de carácter concentracionário. Eduardo dos Santos,
para segurar bem a coroa que lhe cingia a cabeça, fez o mesmo. Inculpou a
facção Lúcio Lara de todos os males e reforçou o seu poder, que se tornou
totalizante. Na altura houve pessoas que ingenuamente pensaram ver nos
gestos de Eduardo dos Santos a intenção de reformar o MPLA e dar-lhe uma
feição democrática depois da catástrofe humana de 1977. Nada de mais
paradoxal, pois é sabido que este Partido moldado por Neto, de natureza
ditatorial, é um Partido irreformável. José Eduardo dos Santos cresceu dentro
dele e aprendeu bem a lição dos seus mestres. Na arquitectura e doutrina do
MPLA não se mexe. É um princípio pétreo, irrevogável. O comando superior
obrigatoriamente tem de estar nas mãos de um príncipe de ferro, sem
escrúpulos, vocacionado para desbaratar implacavelmente qualquer veleidade
de dissidência interna.

João Lourenço faz parte desta mesma linhagem ideológica, bebeu toda a sua
formação política nas escolas do absolutismo e da discricionariedade. Logo,
nada de inovador se espera dele. Ele cultiva as mesmas narrativas de
antagonismo cénico pelas quais forja vilões e culpados de todas as desgraças
nacionais. Submete-os a julgamento e faz cumprir as leis a seu arbítrio, sem
que nada ou ninguém se lhe oponha. No regime do MPLA não existem
mecanismos institucionais de controlo, então o primeiro homem do país faz o
que quer e fortalece o seu poder igual a um deus salvacionista.

Que motivações explicam este jogo de destruição de lideranças entre si?


Vinganças, malquerenças pessoais? Há de tudo um pouco, a militância em
regimes fechados está longe de ser saudável. Ali nada sobra de parecido com
camaradagem. O que impera é um puro sentido de animalidade: ou se vota
uma dedicação servil ao Chefe e aos rituais que lhe são consagrados, ou se é
reduzido a nada.

João Lourenço cumpre o que eu chamo de hermenêutica da continuidade da


ditadura de Neto, ele é o natural herdeiro da hagiografia e da herança política
do primeiro presidente. À semelhança de Eduardo dos Santos ele esforça-se
também (embora de forma mais enérgica) por cristalizar no imaginário dos
angolanos a figura de Neto como figura tutelar do país. Para os adeptos do
MPLA, Neto simboliza o totem que inspirou e modelou o Partido desde 1962 e
salvou Angola do caos, das invasões estrangeiras e liquidou todos os inimigos
internos e externos. Representa, em suma, a argamassa ideológica do regime,
é o seu núcleo de convergência e unidade. Neto e a ditadura são, assim, o
verso e o reverso da mesma realidade. Se um acabar, o outro também acaba.
Se a ditadura desmoronar, o mito desintegra-se.

A percepção cada vez mais forte em mim é que nada irá


mudará no carácter da ditadura lourencista. Inclusive
arrisco afirmar, contrariando inúmeras expectativas,
que a etapa histórica presente não augura nada de bom
em termos de avanços políticos

A terminar, direi que a percepção cada vez mais forte em mim é que nada irá
mudará no carácter da ditadura lourencista. Inclusive arrisco afirmar,
contrariando inúmeras expectativas, que a etapa histórica presente não
augura nada de bom em termos de avanços políticos. Inclino-me a defini-la
como uma etapa de regressão, de retorno a uma situação em que a autoridade
do líder se fará mais unipessoal, mais dura. Ou seja, mais vincada e logo mais
forte do que a protagonizada por Eduardo dos Santos. Basta observar as
atitudes de arrogância em João Lourenço, a sua complacência e agrado com
os aduladores que pululam à sua volta.

Em vez de escolher homens razoavelmente clarividentes e probos que o


saibam aconselhar, o general prefere a proximidade dos medíocres e
pusilânimes que jamais lhe dirão a verdade. São meros truões engravatados,
habituados apenas a regurgitar clichés. Tais gestos fazem lembrar com
nitidez, em muitos aspectos, o pai-criador da ditadura a quem faltava a
prudência de ouvir bons conselhos, justamente porque afastava de si os mais
doutos que o poderiam aconselhar de forma inteligente. Isto concorreu para
que Agostinho Neto, não poucas vezes, se deixasse enredar pelos aduladores
de turno (todos de baixa craveira intelectual) e tomasse decisões fatais. João
Lourenço fraqueja nos mesmos vícios de poder. É-lhe indiferente a prudência
que se recomenda a um príncipe. Tudo indica que ele já se embrulhou no
manto de senhor Absoluto e só a sua vontade e juízo contam, mesmo que faça
hoje uma coisa e amanhã a destrua.

São realmente preocupantes estes novos cenários, reflexo da fisionomia do


novo déspota. O MPLA e o seu governo permanecem tão quietos e imutáveis
quanto a múmia de um faraó no fundo da sua pirâmide, para usar uma
expressão de Vicente Blasco Ibáñez quando este escritor espanhol na sua
novela La Araña Negra retrata o imobilismo das velhas famílias espanholas
aristocráticas, cheias de brasões e pergaminhos, empanturradas de uma fátua
arrogância. Ou ainda, vivendo encerradas nos seus vetustos casarões dos
tempos feudais, alimentando-se das suas vastas colheitas exploradas em
regime de economia servil (com um exército de miseráveis ao seu serviço); ou
entretendo os seus tempos balofos entre caçadas, missas e bailes
espectaculares. Lamentavelmente, os donos do Poder em Angola ajustam-se a
esta imagem paradigmática. Retrocederam na história até um estádio social
de pré-independência e reproduzem, ponto por ponto, o estilo de vida das
antigas elites coloniais.

João Lourenço dá mostras inequívocas de inépcia ou


impotência para combater a corrupção até às últimas
consequências e evitar o colapso que se avizinha. O gosto
doentio pelo poder (só o poder), fá-lo igualar-se ao
grande ditador da I República

Diante de tudo isto, é possível ter uma ideia clara do rumo que as coisas estão
a tomar. João Lourenço dá mostras inequívocas de inépcia ou impotência
para combater a corrupção até às últimas consequências e evitar o colapso
que se avizinha. O gosto doentio pelo poder (só o poder), fá-lo igualar-se ao
grande ditador da I República. É patente a obsessão de esconder as suas
carências com gestos simbólicos. A incapacidade de reconhecer os erros e as
debilidades do Partido e do aparelho de Estado com os seus velhos troncos
carcomidos, e as péssimas lições que estes exemplos projectam sobre os actos
da governação, constituem, a meu ver, uma característica bastante negativa
da sua liderança.

Historiador angolano

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