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Revoluç4ó na Polônia 25
ção de duas câmaras no parlamento; 2. a autogestão; 3. o cado, mas nesse plano a crítica maior do Solidariedade e
incentivo às pequenas empresas privadas; 4. o fim do mo- do povo polonês era contra as ineficiências do sistema
nopólio governamental dos meios de comunicação; de planejamento.
5. eleições livres em todos os níveis da sociedade; 6. cria- Depois de um "milagre econômico" muito seme-
ção de um poder judiciário independente; 7. despoli~iza- lhante ao brasileiro, e ocorrido também na primeira me-
ção da polícia; 8. total independência do Parlamento e tade dos anos 70, a Polônia mergulhou em uma profunda
dos conselhos locais. crise econômica, que refletiu o desmoronamento do sis-
O programa não fazia qualquer alusão ao socialismo, tema rigidamente centralizado de planejamento econô-
, mas isto não significava que se tratasse de um programa mico adotado pela alta tecnoburocracia estatal. A produ-
anti-socialista. Era, claramente, um programa contra o ção industrial e mineral polonesa, em 1981, caiu cerca de
"socialismo" autoritário do tipo soviético, ou seja, con- 15%. Apenas as boas safras agrícolas minoraram um
tra o estatismo. Mas não propunha o retorno à proprie- pouco esta situação. O Solidariedade culpava o Governo
dade privada dos meios de produção. Estes deveriam por essa situação e entendia que só com a sua participa-
obviamente permanecer socializados, com exceção de al- ção os problemas econômicos da Polônia poderiam ser
gumas atividades prôprías de microempresas, em que a resolvidos.
iriiciativa particular deveria ser incentivada. Para as mé- A revolução política e a grande crise econômica na
dias e grandes empresas, o que se desejava não era o Polônia eram acompanhadas de uma grande esperança.
retorno ao capitalismo e sim o seu apoio: a autogestão. Os poloneses misturavam sua crítica impiedosa ao pas-
A conseqüência dessa revolução foi um vácuo no po- sado e sua angústia diante das dificuldades presentes com
der. O Governo e o Partido Comunista perderam sua au- uma clara atitude de esperança. E a esperança na Polônia
toridade. Desacreditaram-se completamente perante toda tinha uma palavra-chave: a autogestão dos trabalhadores
a população. Suas ordens já não eram mais obedecidas. em todos os níveis da sociedade. O autogoverno, não
Ainda nas palavras de Kuron: "Nós estamos em um im- apenas ao nível das fábricas, das lojas, das empresas e dos
passe. Aparentemente, o velho sistema continua existin- escritórios, mas também ao nível político regional e na-
do, mas na verdade foi descartado. Qualquer ordem é cional, tornou-se a grande palavra de ordem na Polônia.
contestada. A população não permite que nada lhe seja Através da autogestão o socialismo seria renovado, o so-
imposto. Por exemplo: o programa de reforma econômi- cialismo deixaria de ser um slogan, que irritava profunda-
ca elaborado pelo Governo para superar a gravíssima mente os poloneses, para se transformar em uma realida-
crise econômica, ao qual eu dou nota positiva, está sendo de.
rejeitado. "
Havia, portanto, uma revolução em marcha na Polô-
nia. Uma revolução pacífica, mas profunda, cujo único, 2. A CRISE ECONÔMICA
mas poderoso,instrumento era a organização de toda a
população contra a alta tecnoburoeracía estatal. As ar- A brutal redução da produção nacional em 1981 é o
mas utilizadas eram as greves, porém mais importantes melhor indicador da profundidade da crise econômica
do que elas era a consciência de t~ a sociedade que era polonesa. Isto jamais acontecera neste país nem em ne-
preciso mudar. nhum outro país estatal. Haviauma escassez generalizada
Esta revolução teve como causas básicas, de um lado, de alimentos e de alguns bens industriais importantes.
o autoritarismo, senão totalitarismo, da alta tecnoburo-' , Havia mas para tudo: para carne, pão, cigarros. Filas que
cracia, de outro, a crise econômica. sempre existiram, mas que, até o início de 1981, eram
No plano econômico o objetivo fundamental da re- bem menores e menos generalizadas.
volução era simplesmente liberdade. Ou, se quisermos Na verdade, conforme nos disse o Prof. Joseph Bal-
usar uma expressão mais simples e direta, o estado de cerek," "não se trata de uma crise cíclica. Houve crises
direito. O que se desejava era a liberdade de informação, cíclicas na Polônia em 1948,1956, 1968, 1976. Agora
de opinião e de participação no poder. Mais amplamente, encontramo-nos diante de uma catástrofe econômica
era o respeito aos direitos individuais na forma em que sem precedentes."
eles aparecem na Declaração dos Direitos Humanos das Havia várias causas para a crise. Embora os polone-
Nações Unidas. Uma tese insistente da esquerda autoritá- ses, exceto os membros do Governo, não gostassem de
ria, burocrática, de que a ênfase nesses direitos seria admitir que a revolução política em marcha tinha um
fruto de uma ideologia burguesa ou seria a expressão da papel importante no agravamento da crise, não há dúvida
"democracia burguesa" fica, assim, totalmente desmenti- de que esse fenômeno era verdadeiro. Afinal, todas as
. da. Defiriitivamente, a Revolução Polonesa não tinha ca- revoluções provocaram crises econômicas graves.
ráter burguês. Ela, simplesmente, defendia,' no plano po- A economia polonesa encontrava-se desarticulada. A
lítico, alguns valores que se tornaram universais. produção caiu não apen,!lSdevido às greves, mas porque o
Por outro lado, a Revolução Polonesa tinha também enorme endividamento externo, as restrições às importa-
causas econômicas. Mas isto não significava que, no pla- ções e os' erros de planejamento conduziram à falta de
no econômico, o' objetivo principal fosse reclamar uma matérias-primas e componentes industriais essenciais
melhor distribuição de renda. Isto também era reivindi- para que a indústria pudesse trabalhar. O sistema de pla-
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cesso de tentativa e erro, de aproximações sucessivas. Ele Mas essa crítica à tecnoburocracia e ao controle es-
está sempre sujeito a distorções, aliás como o mercado tatal e centralizado da economia não significava que se
também está. Mas, quando o crédito internacional se desejasse a restauração da propriedade privada. Não ha-·
toma fácil e o clima é de euforia, os erros tomam-se via, praticamente, ninguém que propusesse ou defendesse
muito mais graves. urna alternativa capitalista para a Polônia. Isto era ínima-
ginável para os poloneses. Conforme declarou in-
No caso polonês, esse tipo de distorção, decorrente
sistentemente Lech Walesa em uma entrevista ao jornal
de investimentos planejados apressadamente, somou-se a
France Soir, "não podemos imaginar na Polônia outro
um sistema de preços de produtos alimentares básicos
sistema social diferente do que existe atualmente, Quere-
completamente descolado do valor das mercadorias. No
mos apenas que ele funcione sob a direção dos operários,
caso da carne, do leite, do trigo, os preços pagos pelo
a serviço dos operários, mas não queremos mudá-lo".
Estado aos produtores chegava a ser cerca de três vezes
Nenhum dos poloneses que tive oportunidade de en-
superior ao pago pelos consumidores. Em conseqüência,
trevistar, inclusive os mais críticos da situação, defendeu
foi necessário montar um enorme sistema de subsídios ,
'ou citou a existência de correntes favoráveis ao capitalis-
ao mesmo tempo em que todos os indicadores da econo-
mo em seu país. Defendiam apenas a privatização de
mia se confundiam, e as distorções se agravavam ainda
mais. pequenas lojas, restaurantes e atividades semi-artesanais.
A grande indústria, o grande comércio, o sistema finan-
Some-se a isto um desempenho sempre insatisfatório
ceiro deveriam permanecer socializados. Por isso, Walesa
da agricultura, dados os preços relativamente arbitrários
falava que não queria mudar o regime.
que lhe eram impostos, e, especialmente, a permanente
claro que a proposta de entregar a direção das
ameaça em que os camponeses viviam de verem expro-
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de planejamento centralizado estava em ruínas, mas te- Mas para isto seria necessário que a URSS não inter-
mia por uma anarquia ainda maior caso a proposta auto- viesse e que aceitasse essa proposta autogestionária. Seria
gestionária fosse aceita integral e subitamente. :e claro esta uma alternativa realista? Os poloneses acreditavam
que, dessa forma, a alta tecnoburocracia defendia seu que sim. A revolução política e a crise econômica em
poder e era fiel à sua concepção hierárquica e autoritária, marcha na Polônia só poderiam ter uma solução satisfa-
que parte do pressuposto de que o seu conhecimento tória, segundo esse raciocínio, se o Governo recuperasse
técnico e racionalizador é ínsubstítuível, sua autoridade. Ora, isto só seria possível, dado o alto
A resistência da tecnoburocracia à proposta autoges- nível de organização e conscientização dos trabalhado-
tionária do Solidariedade sofreu um golpe decisivo em res, se estes participassem do poder. Os poloneses per-
setembro de 1981, quando, pela primeira vez na história cebiam isso. Os soviéticos também já deveriam estar co-
de um Partido Comunista no poder, este foi derrotado meçando a perceber ~ste fato. Por outro lado, os polo-
no Parlamento. Depois de negociações, nas quais o papel neses MO queriam, de forma alguma, hostilizar os sovié-
do KOR foi importante, o Governo e a direção do Soli- ticos. Estavam dispostos às mais diversas formas de so-
dariedade haviam chegado a um difícil compromisso e lução de compromisso, desde que récuperassem a demo-
apresentaram um projeto de lei comum sobre a auto- eracía interna, da qual a autogestão era parte essencial.
gestão no dia 21 desse mês, considerado ainda insatisfa- Nesse sentido, a idéia básica era a de estabelecer na
tório por muitos membros do Solídaríedade.i" Dois dias Polônia um sistema de representação política baseada em
depois, entretanto, os membros do Governo, também duas Câmaras. Uma seria a Câmara Política, controlada
insatisfeitos, informaram que não estavam mais de pelo Partido Comunista, e que garantíria os acordos polí-
acordo e que desejavam retornar ao seu projeto inicial ticos, econômicos e militares com a URSS, e a outra
ligeiramente modificado. Sua Intenção era a de dar ao seria a Câmara Econômica, resultado do sistema autoges-
Governo direito de defínír, sem a participação dos sindi- tionário apoiado no Solidariedade. Talvez essa fosse uma
catos, uma lista de empresas estratégicas, cuja adminis- solução aceitável para ambas as partes. De qualquer for-
tração ficaria fora do sistema de autogestão. Os membros ma, conforme afirma o Prof; Wojeieck Lamentovicz, em
do Solidariedade no Parlamento, além de uma série de um artigo não publicado, "o modelo polonês de autoges-
outros deputados, cuja posição MO se definira até então, tão socialista surge da crise do poder". Essa crise não era
reagiram. O próprio Partido Comunista se dividiu. Uma apenas do poder da alta tecnoburocracia polonesa, mas
maioria se formou contra o Governo, e afinal este foi da alta tecnoburocracia soviética. A proposta autogestio-
obrigado a ceder no dia25. O projeto de lei original foi nária era uma solução para essa crise.
aprovado por unanimidade, e deveria entrar em vigor a A segunda Câmara do Parlamento polonês, citada
1~ de janeiro de 1982. explicitamente pelo documento do Solidariedade de Var-
É preciso, entretanto;' assinalar que a tecnoburocra- sóvia (Mazowie), era uma solução imaginosa na medida
cia governamental não resistia a uma liberalização exces- em que. dividindo o poder e O especializando, reconhecia
siva da autogestão apenas com receio de perda de poder.. a dependência política e militar da Polõnía em relação à
Havia, também, ,uma legítima preocupação de ordem Uniã'o Soviética, e ao mesmo tempo reclamava o contro-
econômica ou, mais precisamente, de ordem administra- le interno da sociedade para os próprios poloneses repre-
tiva. Embora o nível cultural dos operários poloneses sentados pelo Solidariedade.
seja razoavelmente elevado, de fato eles não estavam pre-
parados para assumir, de uma hora para outra, tantas
responsabilidades. Pude verificar, contudo, que muitos 4. UMA COMPARAÇÃO
deles tinham consciência dessa limitação. Por isso, ten-
diam a se apoiar nos técnicos e nos engenheiros, que A crise política e econômica que atravessou a Polônia
recebem salários praticamente iguais aos recebidos pelos teve uma série surpreendente de pontos comuns com
operários. Nos casos em que ocorreram eleições para re- a crise brasileira, apesar de a Polônia ser uma formação
presentação dos trabalhadores, a presença de técnicos, dominantemente estatal, enquanto o Brasil é dominante-
membros da inteOigentsia, junto aos operários era uma mente capitalista, apesar de a renda por habitante da
constante. Polônia ser o dobro da brasileira e a distribuição de
Nesse sentido, o presidente do Solidariedade da re- renda na Polônia ser muito mais igualitária que no.Brasil.
gião de Varsóvia (Mazowie) e operário eletricista na ci- De fato, tanto o Brasil quanto a Polônia encontra-
dade de Ursus, Zbgniew Bujak, quando lhe perguntamos vam-se, em 1981, em uma crise econômica grave e em
sobre os conflitos que existiriam na Polônia entre a média um processo de transformação política. Certamente, a
tecnoburocracía (técnicos, professores, administradores, crise econômica polonesa era mais aguda do que a brasi-
que os poloneses chamavam de intelectuais) e os operá- leira e a transformação política mais profunda, impor-
rios, ele foi taxativo: "São todos trabalhadores. O Solida- tando mesmo em uma revolução. O' Brasil caminha para
riedade nasceu da simbiose entre intelectuais e trabalha- a democracia nos quadros de um capitalismo tecnoburo-
dores." A proposta autogestionária da Polônia, se áfínal crátíco que permanece intocado, enquanto que era possí-
se concretizasse, seria também o resultado de uma alian- vel que a Polônia não apenas se democratizasse, mas que
ça entre operários e técnicos. S6 assím ele seria viável. . sua formação social deixasse de ser dominantemente, es-
o Oorreio da Unesco
mósofo polonês conhecia suficientemente seu país para não atri-.
buir à Revolução Polonesa um caráter anti-socialista. .
2 Michnick, Adam. Ce que nous voulons et ce que nous pouvons, uma janela aberta 80bre o mundo
L 'Altemative, (8): 10, jan./fev. 1981. Conferência pronunciada
em Varsóvia, em 14 de novembro de 1980.
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