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caráter apaziguador, e mesmo da parte dos líderes inte-

artigo lectuais como Jacek Kuron, geralmente considerado um


radical, mas que na realidade tinha uma perfeita cons-
ciência dos limites políticos a curto prazo da Revolução
1. A Revolução Polonesa,' Polonesa, apesar desses esforços não foi possível oonter
2. A crise econômica; os rntús exaltados. Em conseqüência, o grau de desordem
3. A proposta autogestiondrta na Polônia; econômica e política, que estava tomando conta da Polô-
4. Uma comparação; nia, tornou-se insustentável, facilitando a intervenção mi-
5. Precariedade da tecnoburocracia. litar.
O Solidariedade sempre afirmou que não pretendia
(, poder político e que se dispunha a manter todos os
compromissos políticos e. militares com a URSS. Por
outro lado, sabia da necessidade de urna reforma econô-
mica que reduzisse salários, adequando a renda à produ-
1980/81: a revolução ção. Mas, nos últimos meses de 1981, essa estratégia de
moderação foi aos poucos sendo derrotada no seio do
·autogestionária próprio Solidariedade. A gravação dos debates do Con-
gresso do Solidariedade nas vésperas do golpe pelo siste-
na Polônia· ma de informações estatal e a proposta de um plebiscito
para decidir sobre o futuro da Polônia foram provavel-
mente as gotas d'água que faltavam para provocar o
golpe militar.
, -Talvez esse radicalismo tenha também reduzido um
pouco a própria e extraordinária unidade de todo o povo
Luiz Carlos Bresser Pereira .polonês em torno do Solidariedade contra a opressão
Professor do Departamento de Planejamento e
tecnoburocrática interna e externa. Foi essa união, fo-
Análise Econômica, da EAESP/FGV.
ram os 9,5 milhões de associados do Solidariedade (em
urna força de trabalho urbana de 12 milhões de trabalha-
dores), mobilizados em torno dos ideais de democracia e
autogestão operária, que fizeram a força da Revolução
Na Polônia foi esmagada a primeira revolução de traba- Polonesa.
lhadores da história da humanidade. Houve muitas revo- Mas, se houve um enfraquecimento dessa unidade,
luções antes dessa em que trabalhadores participaram, devido ao radicalismo de alguns líderes do Solidariedade,
mas sempre como forças auxiliares ou simplesmente provavelmente esse enfraquecimento não será definitivo.
corno massa de manobra. Nas revoluções burguesas os Raramente na história, todo um povo se uniu tão forte-
trabalhadores não foram outra coisa senão massa de ma- mente em torno de uma idéia revolucionária como acon-
nobra. Nas revoluções tecnoburocráticas, impropria- teceu na Polônia sob a liderança de Lech Walesa e com o
mente chamadas de socialistas, foram forças auxiliares de apoio da Igreja Católica.
uma vanguarda de intelectuais que afinal serviram à tec- Essa revolução não se desmoralizou, embora talvez
noburocracia. Em muitas ocasiões houve, sem dúvida, tenha se desgastado um pouco, dada sua falta de perspec-
revoltas de trabalhadores. Entre julho de 1980 e dezem- tiva a curto prazo. De fato, dada a proximidade ameaça-
bro de 1981, entretanto, uma revolução esteve em mar- dora da URSS, o povo polonês sabia que não podia cami-
cha na Polônia, cujos atores principais foram os traba- nhar muito em direção ao socialismo autogestionário e à
lhadores, mais especificamente, os operários. Em dezem- democracia. Sabia que era preciso fazer concessões, par-
bro de 1981, através da brutal intervenção dos militares, tilhar o poder, caminhar lentamente.
a democracia que começava a surgir na Polônia foi liqui- A crise econômica, por sua vez, embora de responsa-
dada. bilidade direta da alta tecnoburocracia comunista, foi
Os resultados do golpe de Estado do General Jaru- usada por essa mesma tecnoburocracia contra o Solida-
zelski foram garantidos pelo apoio ostensivo da URSS. A riedade. E à medida que a falta de alimentos se agravava
tecnoburocracia foi vitoriosa a curto prazo. Nada garan- devido, em primeiro lugar, aos erros de planejamento do
te, entretanto, que o pequeno grupo de altos tecnoburo- Governo, mas em segundo lugar à desordem causada pela
a-atas, que domina o país, tenha condições de se manter situação revolucionária, o próprio Solidariedade também
no poder a longo prazo, mesmo com o apoio de seu se desgastava.
poderoso vizinho do Leste. Mas é 'pouco provável que esse desgaste tenha sido
l! claro que a alta tecnoburocracia se aproveitou dos definitivo. Muito maior será o desgaste da própria tecno-
erros cometidos pelos líderes mais radicais do Sindicato 'burocracia oomunista, obrigada mais uma vez a utilizar
Solidariedade. Apesar de todo o esforço em prol da mo- da violência contra os trabalhadores. Ao agir assim, a
deração de Lech Walesa, por todos conhecido pelo seu tecnoburocracia revelou ao mesmo tempo sua força e sua

Rev. Mm. Emp., Rio de Janeiro, 22 (3): 23-33, jul./set. 1982


fraqueza. A força bruta do momento. A fraqueza intrín- .foi causada pela revolução política. Essa crise profunda,
seca da falta de perspectiva histórica. em uma sociedade relativamente igualitária, fez com que
Por isso, a esperança que o mundo todo e especial- as reivindicações na Polônia fossem mais políticas do
mente o próprio povo polonês colocaram na sua revolu- que econômicas. As reivindicações econômicas foram
ção não está morta. A tecnoburocracia, apoiada na orga- também importantes, mas o fato é que os rendimentos
nização, apesar de todo seu poder, possui uma fragilida- na Polônia antes e durante a revolução eram maiores do
de essencial que afinal acabará por predominar. Aliás, a que .a produção. Não havia falta de dinheiro nas mãos
,burguesia ocidental, apoiada no capital, é mais poderosa, " dos trabalhadores, havia falta de produção, que se desor-
mais sólida, e resiste mais a mudanças. Mas também ela ganizou. Os preços foram mantidos artificialmente
tem sido obrigada a ceder. A tecnoburocracia provavel- baixos através de um enorme sistema de subsídios. Os
mente cederá mais depressa. Ê certo que os fatos do salários reais, em conseqüência, aumentaram, enquanto a
momento desmentem esse otimismo. A tecnoburocracia produção, que vinha crescendo até 1979, entrou em
aparenta vencer mais urna vez. Mas esta vitória na Polô- colapso a partir de 1980. F oi por isso que um dos líderes
nia lhe custará muito caro. A primeira revolução de tra- do KOR (Comitê de Defesa Operária), declarou, no final
balhadores sofreu um revés. Isto era razoável esperar. ~ de 1980, preocupado com a crise econômica: "Todos
preciso, porém, considerar como esperança que esta foi a exigem aumentos, nossa unidade e nossa solidariedade
primeira. Certamente não será a última revolução dos são fantásticas, mas ísto não pode durar muito tempo.
trabalhadores da história. Esse tipo de contrato social, onde todos exigem o
Neste artigo, vamos procurar, em primeiro lugar, de- máximo, não é possível,,,2 Em julho de 1981, os limites
finir a natureza da Revolução Polonesa ocorrida entre das demandas econômicas estavam relativamente claros
julho de 1980 e dezembro de 1981. Foi uma revolução para todos. As reivindicações políticas superavam as eco-
popular realizada contra a tecnoburocracia. Houve nômicas. E a autogestão, demanda ao mesmo tempo po-
outras revoluções anteriormente: na Hungria em 1956; lítica e econômica, era vista como a forma de realizar as
na Tchecoslováquia em 1969; na própria Polônia em reformas econômicas necessárias, que exigiriam sacrifí-
1956, 1968, 1970 e 1976. Em todas elas a tecnoburocra- cios de todos, com a legitimidade necessária.
cia local saiu vitoriosa, graças ao apoio da URSS. Na Nofinal deste artigo discutiremos brevemente o pro-
última revolução polonesa os trabalhadores foram afinal blema da tecnoburocracia enquanto classe e do estatismo
derrotados, mas, seja pela sua profundidade, seja por sua enquanto modo de produção. Veremos, então, que as
duração, ela já tem um papel defínítívo na história. sociedades estatais são muito menos sólidas e monolíti-
Na verdade, talvez esta revolução venha a ter impor- cas do que pretendem seus defensores e seus críticos.
tância na história da humanidade, na medida em que Ficará patente, assim, a fragilidade ou precariedade da
abriu claramente perspectivas para o socialismo democrá- tecnoburocracia enquanto classe dominante. A proprie-
tico e autogestionário. Este é um segundo assunto que dade pela tecnoburocraciade organização burocrática es-
trataremos neste trabalho. Houve uma insistência por tatal' não tem a mesma solidez da propriedade privada
parte da URSS e da esquerda burocrática do Ocidente dos meios de produção pela burguesia~de forma que a
em acusar a Revolução Polonesa de anti-socialista. Esta transitoriedade histórica dessa classe social e do respecti-
posição foi significativamente compartilhada pela direita vo· modo de produção tomam-se patentes. Esta transito-
no Ocidente, que vê anti-socialismo em todos os movi- riedade, dramaticamente evidenciada pela Revolução Po-
mentos de protesto nos países estatais erroneamente cha- lonesa, nos permitirá, afinal, uma conclusão otimista so-
mados de socialistas por suas próprias tecnoburocracias bre as perspectivas do socialismo democrático, apesar da
dominantes (que assim pretendem legitimar-se) e pelos derrota recente.
críticos nos países capitalistas, que assim podem atribuir
ao socialismo os defeitos do estatismo. Na verdade, a
Revolução Polonesa só foi anti-socialista se identificar- 1. A REVOLUÇÃO POLONESA
mos socialismo com estatismo e autoritarismo.
Os dois objetivos fundamentais da' Revolução Polo- Havia uma revolução em marcha na Polônia. Pela pri-
nesa foram a democracia e a autogestão. A exigência de meira vez, a formação social em que o modo estatal de
liberdade de palavra, de informação e de participação era produção é dominante era abalada a partir de suas pró-
dominante em toda parte. A autogestão era a expressão prias bases. E a alta tecnoburocracia do Partido Comu-
política e econômica dessa exigência de democracia. Já nista (partido Operário Unificado), no poder há pouco
que o retorno ao capitalismo era impensável ("não é uma mais de 30 anos, via sua posição gravemente ameaçada.
questão no quadro polonês", como nos disse Leszek Era toda a sociedade polonesa que se movimentava. Não
Kolakowski), 1 a autogestão era a forma pela qual seria eram apenas os trabalhadores, ou seja, os operários e
possível aos trabalhadores tirarem o poder da tecnoburo- camponeses clássicos, mas também a média tecnoburo-
cracia e assumi-lo diretamente. Examinaremos o proble- cracía, a grande maioria de técnicos e administradores de
ma da autogestão na terceira parte deste artigo. nível médio da Polônia, que se revoltavam contra a do-
Antes, entretanto, faremos uma análise da crise eco- minação da alta tecnoburocracia e contra o modo estatal
nômica polonesa, que condicionou e ao' mesmo tempo de produção.

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Solidarinosd, o grande sindicato independente Soli- le. Na prática, a fiscalização e o controle acabaram termi-
dariedade, que surgiu e se firmou a partir das greves de nando em confronto, e a revolução foi liquidada.
Gdansk, em julho e agosto de 1980, era o grande instru- Mas não foi só no plano estritamente político que a
mento dessa revolução. Mas o Solidariedade tornou-se sociedade se transformou naqueles 18 meses de revolu-
subitamente tão grande, somou em tão pouco tempo ção. De um lado, havia urn sentimento muito forte e
cerca de 9,5 milhões de trabalhadores para urna força de muito generalizado de crítica e de desencanto em relação
trabalho hão-agrícola de 12,5 milhões de trabalhadores e ao Governo, ao seu "socialismo", ao seu "marxismo".
técnicos que, na verdade, transformou-se na manifesta- Quando alguém perguntava a urn polonês se ele era a
ção do próprio povo polonês. Os camponeses - ou seja, favor ou contra o socialismo, a resposta imediata era:
o restante da população - também se organizaram à base "Mas o que é que você entende por socialismo?" Nin-
dos sindicatos independentes, Solidariedade, com o guém era a favor do capitalismo, mas todos estavam pro-
apoio decisivo do Solidariedade operário. fundamente revoltados com o estatismo que ali recebeu
o nome de "socialismo".
Essa revolução pacífica, enquanto durou, derrubou Por outro lado, como se fosse para compensar o
dois governos - o Governo Gierek e o Governo Kania - pessimismo que os momentos difíceis passados e presen-
e provocou profundas transformações no Partido Comu- tes inspiravam, havia em um grande número de polone-
nista e no Estado polonês, do qual o partido é parte
ses urna clara atitude de esperança no futuro, ao mesmo
integrante. O Governo, ao mesmo tempo que resistia a tempo em que se notava uma melhoria sensível nas rela-
certas reinvidicações do Solidariedade, procurava ou era
ções interpessoais. O medo e as atitudes cerimoniosas,
obrigado a fazer concessões de todas as naturezas às rei- senão agressivas e desconfiadas, entre os cidadãos esta-
vindicações populares. A alta tecnoburocracia estatal re- vamdando lugar a um relacionamento muito mais livre e
velava uma flexibilidade que só não era surpreendente relaxado. Solidariedade não era apenas um nome ou um
porque a rigor não lhe restava outra alternativa. Mas é slogan - era Urna atitude que se desenvolvia.entre á po-
preciso admitir que esta liberdade era também um fenô- pulação, que sabia que teria de passar por grandes difi-
meno real, que mostrava, de um lado, que as bases do culdades econômicas e políticas antes de superar aquela
seu poder - a propriedade coletiva da organização buro-
fase revolucionária da sociedade polonesa.
crática estatal - não são tão sólidas quanto as da burgue-
Esta revolução, conforme nos declarou Jacek
sia, e, de outro lado, que, quando sob pressão a tecnobu-
Kuron, em Varsóvia, tinha, entretanto, um caráter para-
rocracia é capaz de se adaptar e de se purgar de maneira
doxal. "As demais revoluções visaram sempre a tomar o
efetiva. Além do primeiro-ministro, o número de mem-
poder. O Solidariedade não está preparado para assumir
bros do Partido Comunista Polonês que foram expulsos
o poder." E acrescentaríamos que não só não estava pre-
do partido por corrupção, incompetência e autoritaris-
parado, mas que também não se dispunha a assumir esse
mo, ou que simplesmente não foram reconduzidos a seus
poder. Só abandonou essa Postura no final, quando. os
postos, foi enorme.
radicais do moviménto assumiram o controle efetivo da
O Congresso do Partido Comunista, realizado em ju- organização. Ainda nas palavras de Kuron, que, como
lho de 1981, revelou mudanças extraordinárias. Os dele- dirigente do KOR (Comitê de Defesa dos Operários) -
gados que compareceram ao Congresso foram eleitos um pequeno grupo de intelectuais que deu as bases teó-
livremente, de forma que provavelmente cerca de 30% ricas para o Solidariedade - tinha uma clara autoridade
eram membros do Solidariedade. As decisões importantes sobre o assunto, "o Solidariedade é uma organização que
no Congresso foram todas tomadas por voto secreto. Foi defende os direitos: 1. profissionais, 2. dos cidadãos,
a primeira vez que isto ocorreu em um partido comunista 3. da nação como um todo. ~ um movimento para de-
governamental, .e representou urna mudança radical no fender a população contra o poder. No passado, quando
sentido da democracia do partido. O resultado foi uma havia uma revolução, as massas que a haviam realizado
renovação completa da cúpula do partido. Dos 15 mem- .tomavam-se imediatamente indefesas diante do poder.
bros do Bureau Político, apenas quatro foram reeleitos, Aqui é diferente: o Solidariedade é urna organização con-
inclusive o Secretário Geral do Partido, Kania, que havia tra qualquer poder."
anteriormente deposto Gierek e vinha fazendo insisten- . Essas declarações de Walesa e de Kuron, no sentido
tes manifestações a favor da renovação e democratização de que o Solidariedade não aspirava ao poder, devem ser
do partido e da sociedade polonesa. Dos 200 membros entendidas em termos relativos. Na verdade, o Solidarie-
do Comitê Central, que também foi amplamente reno- dade sabia que as condições internacionais o impediam
vado, 20% eram membros do Solidariedade. de entrar em confronto generalizado com o Partido Co-
Do lado da sociedade civil as modificações não fo- munista. Mas, na medida em que a Revolução Polonesa
ram menores. Não foi apenas o Solidariedade que assu- era um processo em marcha, isto não impediu que o
miu urn papel decisivo na fiscalização e crítica ao Gover- Congresso do Solidariedade,encerrado em 7 de outubro
no. Conforme declarou l.ech Walesa, que entrevistamos de 1981, aprovasse um programa de ação de 43 páginas,
rapidamente, o papel do Solidariedade não pretendia ser que era praticamente um programa de governo. Entre
. de confronto, mas também não de participação e muito outras coisas foi proposto e aprovado: 1. a separação
menos de colaboração. Era de fiscalização, era de contro- entre o poder político e o poder econômico com a cria-

Revoluç4ó na Polônia 25
ção de duas câmaras no parlamento; 2. a autogestão; 3. o cado, mas nesse plano a crítica maior do Solidariedade e
incentivo às pequenas empresas privadas; 4. o fim do mo- do povo polonês era contra as ineficiências do sistema
nopólio governamental dos meios de comunicação; de planejamento.
5. eleições livres em todos os níveis da sociedade; 6. cria- Depois de um "milagre econômico" muito seme-
ção de um poder judiciário independente; 7. despoli~iza- lhante ao brasileiro, e ocorrido também na primeira me-
ção da polícia; 8. total independência do Parlamento e tade dos anos 70, a Polônia mergulhou em uma profunda
dos conselhos locais. crise econômica, que refletiu o desmoronamento do sis-
O programa não fazia qualquer alusão ao socialismo, tema rigidamente centralizado de planejamento econô-
, mas isto não significava que se tratasse de um programa mico adotado pela alta tecnoburocracia estatal. A produ-
anti-socialista. Era, claramente, um programa contra o ção industrial e mineral polonesa, em 1981, caiu cerca de
"socialismo" autoritário do tipo soviético, ou seja, con- 15%. Apenas as boas safras agrícolas minoraram um
tra o estatismo. Mas não propunha o retorno à proprie- pouco esta situação. O Solidariedade culpava o Governo
dade privada dos meios de produção. Estes deveriam por essa situação e entendia que só com a sua participa-
obviamente permanecer socializados, com exceção de al- ção os problemas econômicos da Polônia poderiam ser
gumas atividades prôprías de microempresas, em que a resolvidos.
iriiciativa particular deveria ser incentivada. Para as mé- A revolução política e a grande crise econômica na
dias e grandes empresas, o que se desejava não era o Polônia eram acompanhadas de uma grande esperança.
retorno ao capitalismo e sim o seu apoio: a autogestão. Os poloneses misturavam sua crítica impiedosa ao pas-
A conseqüência dessa revolução foi um vácuo no po- sado e sua angústia diante das dificuldades presentes com
der. O Governo e o Partido Comunista perderam sua au- uma clara atitude de esperança. E a esperança na Polônia
toridade. Desacreditaram-se completamente perante toda tinha uma palavra-chave: a autogestão dos trabalhadores
a população. Suas ordens já não eram mais obedecidas. em todos os níveis da sociedade. O autogoverno, não
Ainda nas palavras de Kuron: "Nós estamos em um im- apenas ao nível das fábricas, das lojas, das empresas e dos
passe. Aparentemente, o velho sistema continua existin- escritórios, mas também ao nível político regional e na-
do, mas na verdade foi descartado. Qualquer ordem é cional, tornou-se a grande palavra de ordem na Polônia.
contestada. A população não permite que nada lhe seja Através da autogestão o socialismo seria renovado, o so-
imposto. Por exemplo: o programa de reforma econômi- cialismo deixaria de ser um slogan, que irritava profunda-
ca elaborado pelo Governo para superar a gravíssima mente os poloneses, para se transformar em uma realida-
crise econômica, ao qual eu dou nota positiva, está sendo de.
rejeitado. "
Havia, portanto, uma revolução em marcha na Polô-
nia. Uma revolução pacífica, mas profunda, cujo único, 2. A CRISE ECONÔMICA
mas poderoso,instrumento era a organização de toda a
população contra a alta tecnoburoeracía estatal. As ar- A brutal redução da produção nacional em 1981 é o
mas utilizadas eram as greves, porém mais importantes melhor indicador da profundidade da crise econômica
do que elas era a consciência de t~ a sociedade que era polonesa. Isto jamais acontecera neste país nem em ne-
preciso mudar. nhum outro país estatal. Haviauma escassez generalizada
Esta revolução teve como causas básicas, de um lado, de alimentos e de alguns bens industriais importantes.
o autoritarismo, senão totalitarismo, da alta tecnoburo-' , Havia mas para tudo: para carne, pão, cigarros. Filas que
cracia, de outro, a crise econômica. sempre existiram, mas que, até o início de 1981, eram
No plano econômico o objetivo fundamental da re- bem menores e menos generalizadas.
volução era simplesmente liberdade. Ou, se quisermos Na verdade, conforme nos disse o Prof. Joseph Bal-
usar uma expressão mais simples e direta, o estado de cerek," "não se trata de uma crise cíclica. Houve crises
direito. O que se desejava era a liberdade de informação, cíclicas na Polônia em 1948,1956, 1968, 1976. Agora
de opinião e de participação no poder. Mais amplamente, encontramo-nos diante de uma catástrofe econômica
era o respeito aos direitos individuais na forma em que sem precedentes."
eles aparecem na Declaração dos Direitos Humanos das Havia várias causas para a crise. Embora os polone-
Nações Unidas. Uma tese insistente da esquerda autoritá- ses, exceto os membros do Governo, não gostassem de
ria, burocrática, de que a ênfase nesses direitos seria admitir que a revolução política em marcha tinha um
fruto de uma ideologia burguesa ou seria a expressão da papel importante no agravamento da crise, não há dúvida
"democracia burguesa" fica, assim, totalmente desmenti- de que esse fenômeno era verdadeiro. Afinal, todas as
. da. Defiriitivamente, a Revolução Polonesa não tinha ca- revoluções provocaram crises econômicas graves.
ráter burguês. Ela, simplesmente, defendia,' no plano po- A economia polonesa encontrava-se desarticulada. A
lítico, alguns valores que se tornaram universais. produção caiu não apen,!lSdevido às greves, mas porque o
Por outro lado, a Revolução Polonesa tinha também enorme endividamento externo, as restrições às importa-
causas econômicas. Mas isto não significava que, no pla- ções e os' erros de planejamento conduziram à falta de
no econômico, o' objetivo principal fosse reclamar uma matérias-primas e componentes industriais essenciais
melhor distribuição de renda. Isto também era reivindi- para que a indústria pudesse trabalhar. O sistema de pla-

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nejarnento central polonês entrou em colapso, não tas, entretanto, é pequena, de forma que seus privilégios
apenas por falta de autoridade dos planejadores, em que não chegam a afetar o nível geral de vida da população
ninguém jamais acreditava, mas também devido aos erros polonesa.
cometidos no planejamento econômico. Este padrão de vida elevado podia ser observado em
Isto não significa que o sistema de planejamento toda parte: na população bem-alimentada e bem-vestida
econômico centralizado tenha sido um fracasso na Polô- apesar da crise; no consumo social em nível bastante
nia. Muito pelo contrário, até há alguns anos ele vinha satisfatório dos serviços de educação,saúde, esportes e
apresentando resultados extraordinariamente favoráveis lazer; nos prédios residenciais semelhantes às superqua-
em termos de 1. aumento da produção por habitante, dras de Brasília, com apartamentos pequenos, mas con-
2. aumento do padrão de vida, 3. melhor distribuição de fortáveis, de cerca de 70 m2 para famílias de quatro a
renda. cinco pessoas; no número crescente de autom6veis; na
Entre 1950 e 1970, a produção por habitante beleza de Varsóvia e na reconstrução cuidadosa dos mo-
aproximadamente duplicou. Entre 1970 e 1979, segundo numentos históricos poloneses. 5
os dados do Banco Mundial, a renda per capita na Polônia Embora a renda por habitante na Polônia seja pou-
cresceu a uma taxa média anual de 4,9%, o que pode ser 'co, mais que o dobro da brasileira, é inegável que o
considerada uma taxa excelente, Este aumento da pro- padrão de vida é muito superior ao dos trabalhadores
dução ocorreu principalmente na indústria pesada e na brasileiros. Pude verificar inclusive o padrão de vida dos
mineração. O modelo soviético de desenvolvimento, que camponeses, alguns dos quais entrevistei em suas proprie-
pdvílegía os insumos básicos e a indústria de bens de dades. ~ semelhante ao dos trabalhadores e técnicos ur-
capital, foi claramente seguido. A produção de bens in- 'banas.
dustriais de consumo também cresceu, mas a taxas me- Mas esse sistema econômico entrou em crise. Por
nores, e a agricultura, depois de alguns êxitos no início quê? A causa básica obviamente não foi a revolução do
da década, apresentou uma taxa de crescimento clara- Solidariedade. Esta foi mais uma conseqüência do que
mente insatisfatória. uma causa, embora, em seguida, tenha tendido a agravar
O aumento da produtividade, somado ao igualitaris- a situação.
mo econômico, permitiu que o padrão de vida da popu- A causa 'básica provavelmente se encontra na conju-
lação crescesse de maneira significativa. "Em 1970, os gação de um "milagre" econômico na primeira metade
rendimentos da população, em comparação com os do dos anos 70, quando a renda crescia cerca de 10% ao
período entre as duas guerras, quase duplicaram (fazen- ano, com a quadruplícação dos preços do petróleo em
do-se os cálculos com grandezas comparéveísl.?" A partir 1973, que, de um lado, desequilibrou a balança comer-
de 1970, certamente os salários reais e o padrão de vida cial dos países sem petróleo e, de outro, provocou uma
continuaram a 'aumentar, pelo menos à mesma taxa de súbita abundância de crédito internacional devido à ne-
crescimento da produtividade (4,9% ao ano). Ou talvez cessidade de reciclagem dos petrod6lares. Esses fatos,
ainda mais rapidamente, tendo sido provavelmente esta conjugados com a recusa sistemática dos trabalhadores
uma das causas da crise econômica atual. de permitir que os preços dos bens básicos aumentassem
O aumento do padrão de vida foi acompanhado ou e se ajustassem ao seu verdadeiro valor, ou, mais simples-
possibilitado por um extraordinário igualitarismo econô- mente, ao seu custo de produção, provocaram erros de
mico. As variações em torno do salário médio mensal de planejamentc e distorções na economia, que começaram
cerca de 5.000 slots por mês são pequenas. Os engenhei- a aparecer com toda violência.
ros e a intelligentsia, de Um 'modo geral, ou seja, a média De uma maneira muito semelhante à brasileira, a
tecnoburocracia, ganham tanto quanto um operário euforia do "milagre", exatamente no momento em que
semiqualificado é certamente menos do que um operário ocorria o primeiro choque do petr6leo, levou a Polônia a
'qualificado ou do que um mineiro, este devido às condi- um processo acelerado de endividamento externo. Em
ções adversas de seu trabalho. Os mais mal remunerados julho, o país devia mais de USS 25 bilhões, dos quais,
são os empregados de escritório e trabalhadores em servi- cerca de USS 16,2 bilhões aos bancos ocidentais, segun-
ços - comércio, restaurantes, limpeza etc. do estimativas do Bank for International Settlements.
Certamente, existem os privilegiados. São uns Seja em relação às exportações, seja em relação ao Pffi,
poucos pequenos proprietários agrícolas, que consegui- este volume de dívida externa é altíssimo.
.ram alta produtividade produzindo em estufas, durante Por outro lado, o crédito fácil levou à compra apres-
todo o ano, hortaliças e outros produtos especiais, e ' sada e indiscriminada de máquinas e licenças de fabrica-
também, naturalmente, os altos tecnoburocratas, que re- ção. Na esperança de reduzir rapidamente o gap tecnol6-
cebem ordenados e vantagens especiais do Estado. Seus gico, compravam-se licenças que não eram usadas ou que
'ordenados propriamente ditos não são especialmente ele- não se adequavam às necessidades da economia polonesa,
vados, porém os mais corruptos (e uma certa corrupção faziam-se ,investimentos mal planejados, sem a articula-
tende a se generalizar nestas esferas) tendem a se benefi- çll'o necessária com os demais setores, resultando em ca-
ciar de uma série de privilégios indiretos, cuja extinção •• cidade ociosa e desperdício. '
foi uma das 21 reivindicações dos operários de Gdansk, O planejamento econômico, como um substituto do
em agosto de 1980. Esta camada de altos tecnoburocra- . mercado n~ coordenação da economia, é sempre um pro-

Revolução na Polônia 27
cesso de tentativa e erro, de aproximações sucessivas. Ele Mas essa crítica à tecnoburocracia e ao controle es-
está sempre sujeito a distorções, aliás como o mercado tatal e centralizado da economia não significava que se
também está. Mas, quando o crédito internacional se desejasse a restauração da propriedade privada. Não ha-·
toma fácil e o clima é de euforia, os erros tomam-se via, praticamente, ninguém que propusesse ou defendesse
muito mais graves. urna alternativa capitalista para a Polônia. Isto era ínima-
ginável para os poloneses. Conforme declarou in-
No caso polonês, esse tipo de distorção, decorrente
sistentemente Lech Walesa em uma entrevista ao jornal
de investimentos planejados apressadamente, somou-se a
France Soir, "não podemos imaginar na Polônia outro
um sistema de preços de produtos alimentares básicos
sistema social diferente do que existe atualmente, Quere-
completamente descolado do valor das mercadorias. No
mos apenas que ele funcione sob a direção dos operários,
caso da carne, do leite, do trigo, os preços pagos pelo
a serviço dos operários, mas não queremos mudá-lo".
Estado aos produtores chegava a ser cerca de três vezes
Nenhum dos poloneses que tive oportunidade de en-
superior ao pago pelos consumidores. Em conseqüência,
trevistar, inclusive os mais críticos da situação, defendeu
foi necessário montar um enorme sistema de subsídios ,
'ou citou a existência de correntes favoráveis ao capitalis-
ao mesmo tempo em que todos os indicadores da econo-
mo em seu país. Defendiam apenas a privatização de
mia se confundiam, e as distorções se agravavam ainda
mais. pequenas lojas, restaurantes e atividades semi-artesanais.
A grande indústria, o grande comércio, o sistema finan-
Some-se a isto um desempenho sempre insatisfatório
ceiro deveriam permanecer socializados. Por isso, Walesa
da agricultura, dados os preços relativamente arbitrários
falava que não queria mudar o regime.
que lhe eram impostos, e, especialmente, a permanente
claro que a proposta de entregar a direção das
ameaça em que os camponeses viviam de verem expro-
Ê

empresas e, afinal, de toda a economia aos operários


priadas suas pequenas propriedades (diversas vezes dis-
implicava em enorme mudança. Era, uma revolução.
cutiu-se e algumas vezes iniciou-se, sempre com maus
Significava retirar o poder da tecnoburocracia e entregá-
resultados econômicos, o processo de estatização da agri-
lo aos operários.
cultura), e teremos as causas básicas da crise econômica
Já existia na Polônia, desde as grandes greves de
polonesa.
1956, um sistema de autogestão, Mas esse sistema foi
Essa gravíssima crise ainda não estava perfeitamente
esvaziado, submetido à direção do POUP em 1958, com
clara para os trabalhadores do Solidariedade quando eles
a lei da autogestão, que criou as KSR (Conferências de
organizaram seu movimento social histórico no verão de
Autonomia Operária) ao nível das empresas. Segundo
1980, embora já tivessem uma idéia razoável de que os
essa lei, as decisões passavam a caber a um coletivo con-
problemas econômicos eram sérios. Tanto assim que, en-
trolado pelo Partido e pelo sindicato oficial. A partir de.
tre as suas 21 reivindicações, constava "a publicação de
1978, o presidente da KSR passou a ser o primeiro secre-
informações sobre a situação do país e permissão para
tário do Partido na empresa.
que todos os grupos e camadas sociais participem das
discussões do programa de reformas". Um ano depois,
A autogestão proposta pelo Solidariedade era uma
entretanto, a gravidade e a profundidade da crise, então
coisa totalmente diferente. A Seção de Varsóvia
expressa em queda da produção e falta de alimentos;
(Mazowie) do Solidariedade publicou, em março de
estava clara para todos.
1981, as 10 condições para uma reestruturação do sis-
tema de auto gestão operária:
3. A PROPOSTA AUTOGESTIONÁRIA
"1. O pessoal da empresa é o perfeito soberano dos ór-
NA POLONIA
gã'os de autogestão; somente sua vontade plenamente de-
finida pode constituir a base dessa reestruturação.
Havia, aparentemente, duas soluções possíveis para a re-
2. A liquidação imediata das Conferências de Auto-
volução política e a crise econômica em pleno curso na
nomia Operária (KSR) é a condição indispensável para a
Polônia: ou o país caminhava para o socialismo autoges-
reestruturação da autogestão autêntica.
tionário ou era invadido pela URSS. Afinal, o que ocor-
3. Os membros de um órgão de autogestão autêntica
reu foi uma terceira alternativa: diante dadesmoralízação
são eleitos exclusivamente pelo pessoal; o conselho dos
da tecnoburocracia civil comunista, a tecnoburocracia
operários (ou dos trabalhadores) deve ser independente
militar deu o golpe e assumiu o poder com o apoio da
em suas decisões.
URSS. .
4. O órgão .de auto gestão não tem razão de ser se a
O caminho em direção à autogestão foi, entretanto, autonomia das empresas não for assegurada.
defendido por praticamente todas as correntes durante a 5. O sindicato é o único órgão apto a preparar as ativi-
Revolução Polonesa. Para o Solidariedade, transformou- dades indispensáveis à instalação da auto gestão nas em-
se em uma palavra de ordem. Todos criticavam o centra- .presas.
lismo do planejamento burocrático-estatal. O controle 6. Os trabalhadores e o conselho operário definem a
burocrático e centralizado da economia era considerado política da empresa, ou seja, tomam as decisões mais
ineficiente, incompatível com a democracia. importantes sobre a produção e seu desenvolvimento.

28 Revista de Administração de Empresas


7. A designação e a exoneração do diretor pertencem duto da decisão de alguns tecnoburocratas, mas o resui-
ao conselho operário. tado do deba,te, em todos os níveis, realizado pelos re-
8. O direito à informação é muito importante para os presentantes dos trabalhadores. A' autogestão atingiria,
trabalhadores, assim, não apenas a nível das empresas, das escolas, das
9. Os conselhos operários (ou de trabalhadores) têmo organizações locais, mas o da sociedade global. O plane-
direito de cooperar e de se coordenar ao nível local e jamento econômico tornar-se-ia parte do processo auto-
regional. gestionário.
10. A criação de uma Câmara autogerida (ou '''segunda Conforme nos declarou Joseph Balcerek, "a autoges-
câmara") no Parlamento é a condição para garantir aos tão significa asociaíização autêntica deis meios de produ-
conselhos operários e aos outros órgãos auto geridos uma ção. Se límítarrnos a autogestão às empresas teremos a
influência social direta nas decisões econômicas nacio- propríedade de grupos. Sou contra essa solução. A única
via que vejo é a do desenvolvimento da autogestão em
todos os níveis, vertical e horizontalmente".
Por outro lado, no I Congresso do Solidariedade, em A proposta autogestionária polonesa baseava-se sem
outubro de 1981, quando as posições ideológicas do mo- dúvida, na experiência iugoslava. Alguns de nossos entre-
vimento já estavam claramente definidas, a primeira das vistados negaram este fato, mas Kuron, por exemplo, o
37 teses que constituíam o Programa do Solidariedade reconheceu claramente. Todos, entretanto, faziam
então aprovado afirmava: questão de estabelecer as diferenças. A proposta autoges-
"Primeira tese: nós exigimos a introdução, em todos tionária em debate na Polônia era muito mais ampla e
os níveis de direção, de uma reforma democrática auto- profunda. "Na Iugoslávia a autogestão limita-se às em-
gestionária que permitirá ao novo sistema econômico e presas", disse Joseph Balcerek, i'e está subordinada aos
social reunir o plano, a autonomia e o mercado." burocratas." Kuron, por sua vez, nos afirmou: "A dife-
Conforme nos declarou Jacek Kuron: "Nós queremos rença fundamental entre a autogestão iugoslava e a polo-
democracia política, social e da produção. Não queremos nesa é que a primeira foi estabelecida de cima para
de maneira alguma restaurar a propriedade privada, a não baixo, enquanto que aqui o processo será de baixo para
ser para restaurantes, cabeleireiros. Mas é preciso que ao cima. Na Polônia, a autogestão proposta deverá ser um
lado do aparelho do Estado existam cooperativas, exista movimento de massas, organizado por regiões e em esca-
uma organização social do trabalho. Veremos então o la nacional. "
que funciona melhor. No Ocidente existem pequenas fá- Também o Partido Comunista aceitava parcialmente
bricas familiares que produzem pequenas peças. Na Polô- a idéia de reestruturar o sistema de autogestão. A tecno-
nia constroem-se enormes "combinados", fábricas imen- burocracia nele dominante percebeu que talvez através
sas. Os resultados são péssimos. dela se pudesse sair da crise política, devolvendo-se a
A proposta autogestionária significava o controle di- legitimidade e a autoridade ao Estado, com o qual o
reto da produção e, portanto, o controle da economia Partido Comunista se confunde. Significativamente, a
pelos trabalhadores. Não significava apenas o controle proposta autogestionária dos anarquistas clássicos trans-
das empresas. Não bastava que os trabalhadores eleges- formava-se em uma eventual condição para restabeleci-
sem, ao nível das empresas, os seus dirigentes. Isto repre- mento de um mínimo de ordem na economia polonesa.
sentaria o risco de criar o que os poloneses chamam de Na verdade, o sistema de autogestão, antes de ser
"propriedade de grupo". Seria transformar os trabalha- regulamentado, já estava sendo implantado. À medida
dores de uma determinada fábrica, de uma determinada que o Governo perdia o controle efetivo do Estado, su-
organização, em seus proprietários e, dessa forma, colo- blinhando o caráter revolucionário da situação polonesa,
cá-los defendendo seus interesses privados contra os inte- sistemas de autogestão iam sendo implantados. Con-
resses mais gerais da sociedade. forme informa L 'Altemative, "uma pesquisa por soció-
Quando se falava em autogestão, o que se pretendia logos do Solidariedade, em março de 1981, junto a 178
era um processo de descentralização e de democratização empresas da região de Varsóvia indica que em 68% das
profundo da economia polonesa. As eleições para a esco- empresas consideradas surgiram, nos últimos meses,
lha dos dirigentes ocorreriam em todos os níveis: na novas formas de autogestão operáría","
seção, no departamento, na divisão, na empresa, na cída- Mas é claro que a alta tecnoburocracia estatal tinha
de, na região, no setor industrial ou de serviços, no país uma visão muito mais limitada do que deveria ser a auto-
como um todo. Em todos esses níveis, haveria represen- gestão do que tinha o Solidariedade, ou o KOR, ou
tantes dos trabalhadores dirigindo, decidindo, coorde- mesmo a ala democrática do Partido Comunista. Este,
nando. .naturalmente, estava muito longe de ser uma organização
Autogestão significava também descentralizar a ati- monolítica. Entre a ala neo-estalinista e a ala democrá-
vidade econômica e estabelecer as bases de uma econo- tica existia uma posição de centro, dominante, represen-
mia de mercado. O planejamento econômico seria manti- tada por Kania e pelo Primeiro-Ministro Militar Wojcieck
.do, mas o mercado teria um papel maior como indicador Jaruzelskí." Este grupo aceitava formalmente a idéia de
na alocação dos recursos e na determinação da eficiência autogestão, mas queria limitar a amplitude dos poderes
das atividades empresariais. E o plano não seria o pro- delegados aos trabalhadores. Admitia que o atual sistema

Revolução na Polônia 29
de planejamento centralizado estava em ruínas, mas te- Mas para isto seria necessário que a URSS não inter-
mia por uma anarquia ainda maior caso a proposta auto- viesse e que aceitasse essa proposta autogestionária. Seria
gestionária fosse aceita integral e subitamente. :e claro esta uma alternativa realista? Os poloneses acreditavam
que, dessa forma, a alta tecnoburocracia defendia seu que sim. A revolução política e a crise econômica em
poder e era fiel à sua concepção hierárquica e autoritária, marcha na Polônia só poderiam ter uma solução satisfa-
que parte do pressuposto de que o seu conhecimento tória, segundo esse raciocínio, se o Governo recuperasse
técnico e racionalizador é ínsubstítuível, sua autoridade. Ora, isto só seria possível, dado o alto
A resistência da tecnoburocracia à proposta autoges- nível de organização e conscientização dos trabalhado-
tionária do Solidariedade sofreu um golpe decisivo em res, se estes participassem do poder. Os poloneses per-
setembro de 1981, quando, pela primeira vez na história cebiam isso. Os soviéticos também já deveriam estar co-
de um Partido Comunista no poder, este foi derrotado meçando a perceber ~ste fato. Por outro lado, os polo-
no Parlamento. Depois de negociações, nas quais o papel neses MO queriam, de forma alguma, hostilizar os sovié-
do KOR foi importante, o Governo e a direção do Soli- ticos. Estavam dispostos às mais diversas formas de so-
dariedade haviam chegado a um difícil compromisso e lução de compromisso, desde que récuperassem a demo-
apresentaram um projeto de lei comum sobre a auto- eracía interna, da qual a autogestão era parte essencial.
gestão no dia 21 desse mês, considerado ainda insatisfa- Nesse sentido, a idéia básica era a de estabelecer na
tório por muitos membros do Solídaríedade.i" Dois dias Polônia um sistema de representação política baseada em
depois, entretanto, os membros do Governo, também duas Câmaras. Uma seria a Câmara Política, controlada
insatisfeitos, informaram que não estavam mais de pelo Partido Comunista, e que garantíria os acordos polí-
acordo e que desejavam retornar ao seu projeto inicial ticos, econômicos e militares com a URSS, e a outra
ligeiramente modificado. Sua Intenção era a de dar ao seria a Câmara Econômica, resultado do sistema autoges-
Governo direito de defínír, sem a participação dos sindi- tionário apoiado no Solidariedade. Talvez essa fosse uma
catos, uma lista de empresas estratégicas, cuja adminis- solução aceitável para ambas as partes. De qualquer for-
tração ficaria fora do sistema de autogestão. Os membros ma, conforme afirma o Prof; Wojeieck Lamentovicz, em
do Solidariedade no Parlamento, além de uma série de um artigo não publicado, "o modelo polonês de autoges-
outros deputados, cuja posição MO se definira até então, tão socialista surge da crise do poder". Essa crise não era
reagiram. O próprio Partido Comunista se dividiu. Uma apenas do poder da alta tecnoburocracia polonesa, mas
maioria se formou contra o Governo, e afinal este foi da alta tecnoburocracia soviética. A proposta autogestio-
obrigado a ceder no dia25. O projeto de lei original foi nária era uma solução para essa crise.
aprovado por unanimidade, e deveria entrar em vigor a A segunda Câmara do Parlamento polonês, citada
1~ de janeiro de 1982. explicitamente pelo documento do Solidariedade de Var-
É preciso, entretanto;' assinalar que a tecnoburocra- sóvia (Mazowie), era uma solução imaginosa na medida
cia governamental não resistia a uma liberalização exces- em que. dividindo o poder e O especializando, reconhecia
siva da autogestão apenas com receio de perda de poder.. a dependência política e militar da Polõnía em relação à
Havia, também, ,uma legítima preocupação de ordem Uniã'o Soviética, e ao mesmo tempo reclamava o contro-
econômica ou, mais precisamente, de ordem administra- le interno da sociedade para os próprios poloneses repre-
tiva. Embora o nível cultural dos operários poloneses sentados pelo Solidariedade.
seja razoavelmente elevado, de fato eles não estavam pre-
parados para assumir, de uma hora para outra, tantas
responsabilidades. Pude verificar, contudo, que muitos 4. UMA COMPARAÇÃO
deles tinham consciência dessa limitação. Por isso, ten-
diam a se apoiar nos técnicos e nos engenheiros, que A crise política e econômica que atravessou a Polônia
recebem salários praticamente iguais aos recebidos pelos teve uma série surpreendente de pontos comuns com
operários. Nos casos em que ocorreram eleições para re- a crise brasileira, apesar de a Polônia ser uma formação
presentação dos trabalhadores, a presença de técnicos, dominantemente estatal, enquanto o Brasil é dominante-
membros da inteOigentsia, junto aos operários era uma mente capitalista, apesar de a renda por habitante da
constante. Polônia ser o dobro da brasileira e a distribuição de
Nesse sentido, o presidente do Solidariedade da re- renda na Polônia ser muito mais igualitária que no.Brasil.
gião de Varsóvia (Mazowie) e operário eletricista na ci- De fato, tanto o Brasil quanto a Polônia encontra-
dade de Ursus, Zbgniew Bujak, quando lhe perguntamos vam-se, em 1981, em uma crise econômica grave e em
sobre os conflitos que existiriam na Polônia entre a média um processo de transformação política. Certamente, a
tecnoburocracía (técnicos, professores, administradores, crise econômica polonesa era mais aguda do que a brasi-
que os poloneses chamavam de intelectuais) e os operá- leira e a transformação política mais profunda, impor-
rios, ele foi taxativo: "São todos trabalhadores. O Solida- tando mesmo em uma revolução. O' Brasil caminha para
riedade nasceu da simbiose entre intelectuais e trabalha- a democracia nos quadros de um capitalismo tecnoburo-
dores." A proposta autogestionária da Polônia, se áfínal crátíco que permanece intocado, enquanto que era possí-
se concretizasse, seria também o resultado de uma alian- vel que a Polônia não apenas se democratizasse, mas que
ça entre operários e técnicos. S6 assím ele seria viável. . sua formação social deixasse de ser dominantemente, es-

30, Revista de Administração de Empresas


tatal e se tornasse crescentemente socialista graças ao Ora, apesar de todos os esforços da alta tecnoburo-
projeto de autogestão em todos os níveis da sociedade, cracía das formações estatais para alcançar esse resulta-
que os poloneses estavam tendendo a ver como solução do, apesar de todo o seu autoritarismo, senão totalitaris-
básica para seus problemas. mo, e apesar do reconhecimento por parte dos ideólogos
A crise política, tanto em um país como em outro, da burguesia no Ocidente de que esse objetivo foi alcan-
teve duas causas: a crise econômica e o autoritarismo de çado, o fato é- que não o foi, nem na URSS e muito
uma alta tecnoburocracia estatal. Esta alta tecnoburocra- menos nos países do Leste europeu. E é claro que na
cia, que no Brasil perdeu o apoio da burguesia, na Polô- Polônia, mesmo depois da revolução, qualquer idéia sa-
nia dividiu-se. Em ambos os casos, a crise política foi bre uma sociedade monolítíca é absolutamente insusten-
fundamentalmente uma crise de legitimidade, faltando tável. Em meio à revolução em marcha, o grau de con-
inclusive aos dois goverrlos qualquer representatividade flito e de liberdade eram ambos muito grandes. Termi-
efetiva da população. nada a revolução, acabou-se a liberdade, mas não os con-
A crise econômica, por sua vez, teve algumas ca- flitos.
racterísticas e causas comuns aos dois países. Tanto o De fato, não apenas na Polônia, mas também na
Brasil como a Polônia viveram um "milagre" econômico URSS e nos demais países chamados socialistas ou comu-
no início dos anos 70. As altas taxas de crescimento nistas, esse monolitismo, que é insistentemente repetido
econômico levaram não apenas a uma concentração de e defendido pelas autoridades e pelos documentos ofi-
renda11 (no Brasil muito mais grave do que na Polônia), ciais, não existe. O monolitismoseria um sinal da coesão
mas também à realização de investimentos excessivos e da sociedade e, portanto, dá inexistência de lutas de clas-
mal planejados, que ficaram incompletos ou produziram ses no seu interior. Como os ideólogos burgueses pro-
altos índices de capacidade ociosa. Levaram ainda à curam sempre negar que haja luta de classes no capitalis-
criação de um complexo sistema de subsídios que distor- mo, o mesmo fazem os ideólogos estatais em seus países,
ceu gravemente o sistema de preços (estes dois erros falando no "caráter monolítico da liberdade socialista".
foram provavelmente mais acentuados na Polônia). Em Na verdade, uma sociedade desse tipo está cheia de
ambos os casos, a conseqüência foi a inflação, na Polônia brechas, de espaços a serem preenchidos pela liberdade.
reprimida, no Brasil aberta. Por mais que os altos dirigentes tecnoburocráticos pro-
Por outro lado, nos dois países, a euforia do "mila- curem garantir a ordem e disciplina, 1. seja através de
gre" levou os governantes a não dar atenção ao primeiro uma maciça propaganda ideológica, 2. seja através de
choque "do petróleo, em 1973, e a continuar seus planos concessões econômicas crescentes aos trabalhadores,
grandiosos. O resultado foi um endividamento externo, '3. seja, finalmente, através de um pesado aparato poli-
que se transformou na principal limitação econômica cial, o fato é que as sociedades industriais contemporâ-
que a Polônia e o Brasil enfrentam. neas são excessivamente complexas para poderem ser co-
locadas facilmente em uma camisa-de-força. O resultado
.é que se forma toda uma série de relações que escapam
5. PRECARIEDADE DA TECNOBUROCRACIA ao plano. Muitas são permitidas. Outras são toleradas.
Algumas, reprimidas.
Embora a tecnoburocracia militar tenha afinal saído vi- O fato de que as atividades não planejadas sejam
toriosa, graças ao apoio soviético, um fato fica claro permitidas ou toleradas não significa qualquer atitude
quando analisamos a Revolução Polonesa de 1980/81: .democrática por parte dos dirigentes. Significa apenas
uma sociedade estatal está muito longe de ser monoH-. que transformar a sociedade em uma pirâmide monoliti-
tica, ao contrário do que pretende sua classe dominante carnente estruturada é rigorosamente impossível.
tecnoburocrática e do que afirmam seus críticos no Oci- Para ter ummínímo de eficiência, a sociedade esta-
dente. Uma segunda conclusão correlata refere-se ao ca- tal, aliás como qualquer organização, precisa descentrali-
ráter de classe dessas sociedades: a alta tecnoburocracia zar-se, precisa conceder autonomia local, precisa estimu-
é, sem dúvida, a classe dominante nos países estatais, lar a competição entre os seus diversos setores, precisa
mas sua posição é muito mais instável ou precária do que recompensar a criatividade. Nas empresas existe, ao lado
os próprios tecnoburocratas gostariam que fosse, e (no- da organização formal, uma organização informal. Nas
vamente) do que seus críticos ímagínam.P sociedades estatais, independentemente da vontade de
Muitas vezes, especialmente quando temos em mente seus dirigentes, a organização informal é, também, ines-
uma sociedade estatal como a soviética, somos levados a capável. .
acreditar que essa sociedade é toda ela uma rígida e disci- Contudo, mais importante do que esta inviabilidade
plinada organização burocrática. Lembrando-nos do mo- a longo prazo do moaolítísmo estatal, é a conclusão que
delo ideal de burocracia de Max Weber, pensamos logo os acontecimentos na Polônia entre julho de 1980 e de-
em uma estrutura. hierárquica em que a impessoalidade e. zembro de 1981 sublinham, de maneira definitiva,
a autoridade racional-legal prevaleceriam sobre a socieda- quanto à instabilidade, senão precariedade, do poder da
de de alto a baixo, não deixando espaço para qualquer classe tecnoburocrática.
manifestação mais livre, para qualquer criatividade, e Sem dúvida. existem duas classes básicas no modo
muito menos para qualquer crítica ou qualquer conflito. estatal de produção: a tecnoburocracia e os trabalhado-

Revolução na Polônia .31


res, A tecnoburocracia é uma classe, enquanto detém a intelligentsia e os operários que permitira o surgimento e
propriedade, ou seja, o controle efetivo das organizações que garantia a força do Solidariedade.
burocráticas em geral e principalmente da organização Na verdade, o que fica claro na análise da Polônia é
burocrática estatal que engloba todas as demais. Nos pró- a precariedade e a instabilidade da alta tecnoburocracia,
prios países estatais, é comum os sociólogos locais dividi- enquanto classe dominante. A base do seu poder - o
rem a sociedade em duas classes - a intelligentsia e os monopólio do conhecimento técnico e organizacional -
trabalhadores - ou em três, quando os camponeses são é cada vez menos decisiva, não porque esse conhecimento
separados dos trabalhadores porque, na verdade, nos venha perdendo importância (pelo contrário), mas por-
países do Leste europeu, são pequenos burgueses pro- que ele vai deixando de ser monopólio de uns poucos.
prietários de duas terras. Por outro lado, a simples ocupação de cargos burocráti-
Mas a existência da tecnoburocracia ou intelligentsia cos é obviamente algo muito menos sólido e concreto do
como uma classe distinta dos operários e dos camponeses que a propriedade privada dos instrumentos de produção
não significa que todos os privilégios fiquem para a tecno- pela burguesia.i ' Não bastasse isso, os tecnoburocratas,
burocracia. Esta é uma visão simplificada e errônea, na dando um sinal de fraqueza ideológica, sempre negaram
qual até certo ponto eu próprio incídí no passado. A sua própria condição de classe, pretendendo sempre estar
tecnoburocracia é uma classe de trabalhadores coordena- falando em nome dos trabalhadores e do ideal socialista.
tivos, ao contrário dos operários, que são trabalhadores
Por todas essas razões, a posição da tecnoburocracia
operativos. Ora, ao nível da tecnoburocracía, só a alta
nos países estatais é frágil e instável, obrigando-a a ser
tecnoburocracia, uma pequena minoria de dirigentes es-
muito mais flexível do que geralmente se imagina.
tatais, tem rendimentos superiores aos dos operários es-
Apenas em situações muito especiais, como, por exem-
pecializados. Estes, em geral, tendem a ganhar tanto ou
plo, diante da ameaça de invasão externa, a tecnoburo-
mais do que a média tecnoburocracia (engenheiros, por
cracía tem condições de acelerar o processo de acumula-
exemplo), e certamente mais do que a baixa tecnoburo-
ção de meios de produção em detrimento dos salários
cracia (empregados de escritório).
dos trabalhadores. Fora dessas circunstâncias excepcio-
Na verdade, o próprio conceito de classe, enquanto
nais, a tecnoburocracia é obrigada a transferir pratica-
.grande grupo social definido pela sua inserção nas rela-
mente todos os ganhos de produtividade para os traba-
ções de produção, perde, em parte, validade nas socieda-
lhadores. E muitas vezes é levada a realizar essa tarefa de
des estatais. A tecnoburocracia deve ainda ser considera-
maneira irracional, congelando os preços de produtos es-
da uma classe na medida em que é detentora de uma
senciais para os consumidores ao mesmo tempo em que
relação de produção específica - a organização - cuja
cria um enorme sistema de subsídios ao consumo, já que
propriedade lhe pertence. Além disso, a tecnoburocracia
os produtores devem receber preços adequados ..
tem uma forma específica de apropriação do excedente
econômico (os ordenados); realiza um trabalho coorde- Observe-se que esta prática, que provoca distorções
nativo ao invés de operativo ou manual; possui uma ideo- graves na economia, não é uma exclusividade na Polônia.
logia própria, baseada na eficiência técnica ou na supe- Também na URSS a situação é semelhante. Todas as
rioridade da administração e do planejamento; transfor- vezes que os dirigentes poloneses quiseram elevar os pre-
ma a autorídade em um fetiche; faz da expansão da orga- ços da carne, do leite, do pão, os protestos foram tão
nização burocrática seu objetivo por excelência; e pro- fortes que eles foram obrigados a desistir. Foi preciso o
cura transmitir a seus filhos os mesmos poderes e privilé- golpe de Estado de dezembro de 1981 para que a tecnobu-
gios. rocracia tivesse condições de corrigir essas distorções. Na
Entretanto, se tudo isto é verdade, é preciso reco- URSS, os dirigentes não chegaram ainda a tentar aumen-
nhecer que não é toda a tecnoburocracia, mas apenas sua tar os preços. Em conseqüência, os preços dos bens de
camada superior, que ocupa os principais postos do Esta- consumo básico estão congelados desde meados dos anos
do e do partido, que goza de privilégios e possui real- 50, obrigando também o Governo soviético a montar um
mente poder. Nesse sentido, o conceito de camada, que complexo e economicamente perigoso sistema de subsí-
em absoluto é uma exclusividade ou uma invenção da dios.
sociologia funcionalista (afinal, sempre tivemos uma mé- A inflexibilidade e o autoritarismo da alta tecnobu-
dia e uma alta burguesia), é até certo ponto mais útil do rocracia nos países estatais é, na verdade, um sinal muito
que o de classe para caracterizar uma sociedade estatal. mais de fraqueza do que de força. Como a ameaça de
A média e a baixa tecnoburocracias na Polônia se invasão por parte das potências ocidentais é hoje muito
sentem tão' ou mais exploradas e oprimidas pela alta te c- menor do que foi em 1917, em 1939 ou em 1945, sua
noburocracia do que os operários. ~ por isso que o movi- manutenção no poder depende fundamentalmente de
mento revolucionário polonês contou com a participação sua capacidade de proporcionar uma elevação sistemática
ativa dos funcionários e- intelectuais. Não foi por outra nos padrões de consumo de toda a população. Os meca-
razão que o Presidente do Solidariedade da região de nismos ideológicos e repressivos também são importan-
Varsóvia, Zbgniew Bujak, não apenas negou que houves- tes, mas ·vão se tornando cada vez menos eficientes, não
se conflito entre os operários e os intelectuais na Polô- resistindo a uma crise econômica mais profunda, como o
nia, mas ainda acrescentou que fora a simbiose entre a caso polonês deixou muito claro.

32 Revista de AdministraçãO de Empresas


N o caso da Polônia, é preciso assinalar que o golpe 7 O texto completo do programa e um dossiê de toda a
militar de dezembro de 1981 não foi apenas uma forma revolução· encontra-se em Pologne, le dossier de Solidarité:
Gdansk, aoíit 1980 - Varsovie, dec. 1980, número especial de
de a tecnoburocracia local se manter no poder com o L 'Alternative, Paris, 1982.
apoio da URSS. Foi também, e contraditoriamente, uma
forma de os tecnoburoeratas militares poloneses evita- 8 L 'Alterna tive , (12):40, set./out.1981.
rem a iminente invasão soviética. Esse fato deu um cará- • Jaruzelski, no final de outubro, substituiu Kania na direção do
ter paradoxalmente nacionalista ao golpe e facilitou-lhe a Partido Comunista, mostrando que talvez só o Exército tivesse
vitória .. condições de negociar com o Solidariedade, dada a desmoraliza-
ção do partido. Mas, afinal, o Exército optou pela clássica solu-
Esta é mais uma demonstração da precariedade es- ção de força. . .
sencial da tecnoburocracia. Sua vitória, esmagando a Re-
lONa segunda parte do I Congresso do Solídaríedade, na semana
volução Polonesa, deveu-se, de um lado, à desordem em
seguinte, ocorreu um fato que ilustra, de um lado, essa insatisfa-
que a sociedade estava imergíndo e à radicalização do ção e, de outro, as contradições da Revolução Polonesa. Neste
Solidariedade, no finaldo processo revolucionário e, de congresso a liderança de Lech Walesa foi confirmada ao mesmo
outro, ao apoio e, ao mesmo tempo, à ameaça de in- tempo que a direção do Solidariedade era criticada por haver
aceito "antidemocraticamente" o compromisso com os parla-
vasão da URSS .. Foram esses fatores, mais do que a mentares do Governo sem haver antes consultado amplamente
força intrínseca. da tecnoburocracia, que permitiram o seus membros.
êxito do golpe de Estado. Através dele o domínio da
11 De acordo com Henryk Flakierski, "aPolônía em 1970 expe-
te cnoburocra cia foi restabelecido, mas não a sua legitimi- rienciou um considerável crescimento na desigualdade dos rendi-
dade, e muito menos a estabilidade a médio prazo. mentos. Em contraste com a experiência de outros lugares do
Leste da Europa, a liderança polonesa não usou a distribuição
dos benefícios sociais para contrabalançar o crescimento na dis-
persão relativa de ganhos" (Economic reform and income distri-
butíon in Poland: the negatíve evidence". Cambridge Journal of
Economics.B (2): S6, June 1981).

12 Examinei o problema da tecnoburocracia enquanto classe


social e emergente e do estatismo enquanto modo de produção
em A sociedade estatal e a tecnoburocracia (São Paulo, Brasi-
liense, 1981), livro em que reuni todos os meus trabalhos sobre o
assunto, publicados esparsamente desde 1972.

1 3 Este fato leva Joseph. Balcerek a negar o caráter de classe da


* Este artigo foi escrito após minha viagem à Polônia, em julho tecnoburocracia, ainda que admita seus privilégios. Não aceito
de 1981. Agradeço a meus companheiros de viagem Eduardo e esta opinião, que limita muito o conceito de classe social. A
Marta Suplicy e a Mário Dowbor, um "polonês médio", como ele tecnoburocracia é uma classe enquanto grande grupo social inse-
]Xóprio se autodenominou, que nos guiou' e conosco debateu a rido em relações de produção específicas que a definem. Mas é
realidade polonesa durante toda a viagem. uma classe com uma mobilidade e uma instabilidade maiores do
que a da burguesia, da mesma forma que esta era mais móvel e
1 Entrevista em São Paulo, em agosto de 1981. Apesar de precária do que a aristocracia feudal.
exilado e de adotar uma posição basicamente conservadora, o

o Oorreio da Unesco
mósofo polonês conhecia suficientemente seu país para não atri-.
buir à Revolução Polonesa um caráter anti-socialista. .

2 Michnick, Adam. Ce que nous voulons et ce que nous pouvons, uma janela aberta 80bre o mundo
L 'Altemative, (8): 10, jan./fev. 1981. Conferência pronunciada
em Varsóvia, em 14 de novembro de 1980.

3 Joseph Balcerek é professor da renomada Escola de Planifi-


cação e Estatística da Universidade de Varsóvia. ~ membro do
Partido Comunista, mas extremamente crítico da política econô-
mica dos anos 70, que levou a Polônia à crise.

4 Bozik, Pawel. A economia da Polônia contemporânea. Lisboa,


Editorial Estampa, 1977. p. 2S.

5 Paul M. Sweezy, em Post-revolutionary society (New York,


Monthly Review Press, 1980), atribui este fato à "politização do
processo de utilização do excedente" nas sociedades pós-revolu-
cíonárías (que correspondem basicamente às "sociedades esta-
tais" na minha terminologia). Esta politização permitiu maiores
avanços em termos de emprego, educação, saúde, .previdência
social e reforma agrária nas sociedades estatais, quando compara-
das com as capitalistas com nível de renda per capita similar. Mas
adverte, quase antecipando a revolução polonesa: "Qualquer ten-
tativa de reduzir ou minar esses avanços sociais poria em questão Escreva para Caixa Postal 9.052,
a legitimidade não apenas da liderança, mas do próprio sistema" CEP 20.000, Rio de Janeiro, ReJ,
(p. 147-8).
mandando oheque pagável no
• Para cada um desses itens havia uma pequena explicação Rio ou vale postal, em nome da
redigida pelo Solidariedade de Mazowie. Texto completo em Fundação Getúlio Vargas.
L 'Alternative, (12):41-2, set./out. 1981.

Revolução na Polônia 33

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