Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Testemunha da História
[Entrevista à Teoria e Debate]
Jacob Gorender
1 de Outubro de 1991
Em meados de 89, você fez um artigo para esta revista em que dizia
que a crise da União Soviética e dos países do Leste Europeu era uma
crise do modelo stalinista. Voltando há pouco de uma viagem de dois
meses e meio pelos países do Leste e Cuba, você acha que a crise é de
modelo ou do socialismo de uma maneira mais profunda?
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 1/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
editados livremente, idéias circulando, fim da censura nas artes, nas editoras etc.
Mas o projeto de reconstrução socialista na economia e em tudo que diz respeito
às relações de trabalho, de propriedade, realmente não se consumou. Nos países
onde o socialismo foi imposto pelas tropas do exército soviético, é evidente que o
regime não poderia funcionar bem desde seu ponto de partida porque ele
truncava o desenvolvimento nacional próprio de cada país, e era obrigado a
supermilitarizar a sociedade, a impor-se pela força. Nesses países houve
conquistas também, mas em certo momento o funcionamento da economia se
tornou ineficaz e a opressão política, insustentável. Houve múltiplas reações. Na
União Soviética, entretanto, a economia, apesar de ter tido êxitos notáveis, não
conseguiu assimilar a nova revolução científico-tecnológica, por ser dirigida de
forma centralizada e burocrática e, com isso, se atrasou em relação aos países
capitalistas de alto desenvolvimento. Não conseguiu sustentar a Guerra Fria, a
corrida armamentista, perdeu o fôlego e se atolou em uma situação tão difícil
que o projeto da perestroika não foi capaz de corrigir. Uma influência muito
negativa adveio das dissensões de caráter nacional, sufocadas durante muito
tempo, e que irromperam com uma violência tremenda, complicando o quadro de
dificuldades que já eram enormes. Nessa situação, tornou-se impraticável levar a
bom termo o projeto de reconstrução do socialismo. Gorbatchev acreditava nesse
projeto até alguns dias depois de ser libertado de seu seqüestro na Criméia. Só
por alguns dias. Diante da realidade que pôde observar na volta, ele também se
rendeu.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 2/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Claro, estive lá, como também circulei por várias partes da cidade. Observei
que, com helicópteros, tanques e tropas treinadas, essas barricadas não seriam
obstáculo eficiente e o pessoal que estava dentro da "Casa Branca" não teria
condições de resistir. Os oficiais comandantes dos tanques, porém, não quiseram
atacar. E a tropa de choque do KGB, ao receber ordem de assalto, também se
recusou. Há dez anos, isso seria impensável. Mas tinha havido uma mudança na
sociedade, que fazia com que essas mesmas instituições não obedecessem ao
comando dos golpistas. Revelou-se, assim, que os golpistas não tinham força
real, o que foram obrigados a reconhecer. O golpe se extinguiu sem lutas,
rapidamente, a televisão mudou de tom, começou a transmitir a sessão do
Parlamento russo, com ataques verbais violentíssimos ao Comitê de Emergência,
Gorbatchev foi logo contatado na Criméia e, no dia seguinte, quinta-feira, já
estava em Moscou.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 3/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Você escreveu que a questão do mercado era uma questão vital e que
o socialismo vai ser obrigado a conviver com ele durante longo período
nessa transição. Você alterou esta posição.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 6/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Esta é a grande questão que deverá ser resolvida nos próximos anos. Aí sim,
vai haver uma contradição de classe entre a nova burguesia - que pretende
açambarcar tudo e recapitalizar o país - e os trabalhadores. Em vários desses
países, há setores significativos dos operários que se consideram com direito à
gestão dessas fábricas seja como acionistas ou sob a forma de arrendamento,
pelo sistema de leasing. Existe, na União Soviética, na Polônia, na Tcheco-
Eslováquia e na Hungria, uma tendência autogestionária significativa entre os
trabalhadores.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 7/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Antes do golpe, eu tive vários contatos com alguns acadêmicos. E boa parte
deles já não tinha mais nada a ver com o marxismo. Outros apresentavam uma
versão do marxismo que, a meu ver, era completamente diluída, pobremente
eclética. Na verdade, a um passo do abandono do marxismo.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 8/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Ieltsin era populista, na oposição. Hoje ele é governo na Rússia, já está numa
situação em que não pode fazer promessas descabidas, precisa ser contido e tem
a obrigação de tomar medidas que melhorem a situação imediata do povo, pois
este vai cobrá-lo. Ieltsin ainda goza de uma grande popularidade por causa de
sua luta contra os golpistas e porque ele explora um sentimento muito poderoso
hoje em todos os países do Leste: o sentimento do nacionalismo, tremendamente
revigorado. Com elementos de racismo, particularmente de anti-semitismo, em
muitos casos. Na. Rússia e na Ucrânia, bem como em outras repúblicas da
desagregada União Soviética, têm influência organizações declaradamente
fascistas.
E Cuba?
Gostaria de fazer uma ressalva com relação a Cuba. O regime ideal para
Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista. Talvez,
há dez anos, quando a situação era estável, Cuba pudesse ter iniciado um
processo que avançasse no sentido de um regime democrático pluripartidário.
Mas isso não se deu porque não havia impulso interno e não era a "onda" em
nenhum país do campo socialista. A situação de Cuba não é a de qualquer um
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 9/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
dos países do Leste Europeu. Cuba está sob bloqueio econômico dos Estados
Unidos e, com o desmoronamento dos regimes burocráticos do Leste e a queda
drástica dos fornecimentos soviéticos, é evidente que a situação econômica se
tornou muito difícil, como reconhecem os dirigentes cubanos. A mais difícil que
eles já enfrentaram, com necessidade de um racionamento rigorosíssimo. Não há
fome, mas há carências alimentares, às vezes agudas. Muitos bens como
manteiga, óleo de cozinha, carne, artigos de higiene doméstica não existem ou
são escassos. Nessas condições, seria descabido exigir que Cuba mudasse de
rumo nas questões internas. Aqui, vale o ditado de que "não se troca de cavalo
no meio da correnteza de um rio". A manutenção do regime político como ele
existe é algo imposto pela própria necessidade imperiosa de sobreviver. Os
dirigentes cubanos estão procurando saídas para as carências econômicas e
penso que devemos apoiá-los para que as encontrem e para que elas se tornem
efetivas. Seja através da biotecnologia, que é muito desenvolvida em Cuba; do
turismo, que eles estão incentivando; ou de outras medidas como o incremento
da produção de alimentos, a economia de combustível e assim por diante.
É visível no vazio das prateleiras das lojas, nas filas incontáveis, nos pedidos
dos cubanos aos turistas para que sejam intermediários de compras nas lojas
especiais. Sabe-se que existe um câmbio negro ativo.
Tive contato com gente do povo, mas não posso avaliar com precisão pela
conversa o seu sentimento íntimo. Nos regimes em que há partido único, em que
só uma opinião é expressa pelos meios de comunicação, torna-se muito difícil
você ouvir uma crítica ao regime, ainda mais se manifestada para um
estrangeiro. Eu, entretanto, ouvi críticas ao fato de não haver liberdade política e
cultural, à falta de iniciativas dos governantes para democratizar o país, para
evitar que tudo isso acabe numa explosão em que o povo perderia o que ganhou
com o regime socialista, particularmente a educação universal e a excelente
saúde pública.
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 10/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
caiu muito. E o cinema está parado. Se não se encontrar uma saída viável, isso
não poderá durar um tempo indefinido.
Eu pude ler, quando já estava fora da União Soviética, que ia ser aberto em
Moscou um escritório representativo da liderança cubana de Miami. O próprio
Jorge Mas Canosa esteve em Moscou junto com o poeta Armando Valladares e foi
recebido com um tapete vermelho à saída do avião, segundo eu li num jornal
espanhol. Ele se dizia encantado pela amabilidade que havia encontrado e estava
em Moscou para abrir um escritório representativo da sua organização sediada
em Miami. Cuba não pode mais contar com a União Soviética.
Início da página
Fonte
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 11/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História
Inclusão 26/05/2014
https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 12/12