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04/12/2023, 20:20 Testemunha da História

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Testemunha da História
[Entrevista à Teoria e Debate]

Jacob Gorender

1 de Outubro de 1991

Observação: O historiador brasileiro Jacob Gorender estava em Moscou no dia do golpe


frustrado. Nesta entrevista, ele registra suas impressões sobre o futuro de um país que já se
chamou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Fonte: Entrevista concedida a Paulo de Tarso Venceslau - Teoria e Debate.
Transcrição: Alexandre Linares
HTML: Fernando A. S. Araújo.

Em meados de 89, você fez um artigo para esta revista em que dizia
que a crise da União Soviética e dos países do Leste Europeu era uma
crise do modelo stalinista. Voltando há pouco de uma viagem de dois
meses e meio pelos países do Leste e Cuba, você acha que a crise é de
modelo ou do socialismo de uma maneira mais profunda?

Em meu artigo, coloquei a questão já no título: se era uma crise mortal ou


seria uma reconstrução do socialismo. Minha resposta foi de que se tratava de
uma reconstrução. Eu manifestava a convicção de que a perestroika podia ter
êxito como renovação do socialismo na União Soviética, a começar do aspecto de
tornar eficiente a sua economia, fazendo com que o estatismo totalitário cedesse
lugar a relações de mercado, sem afetar o caráter socialista das relações de
produção. E, ao mesmo tempo, introduzindo a democratização em todos os
setores da vida política e social. Hoje, depois dos acontecimentos que todos
conhecem e também de um contato direto com a realidade de cinco países do
antigo e já inexistente campo socialista, eu não posso deixar de reconhecer que a
pergunta feita naquele artigo deve ser respondida, para a quase totalidade dos
países que compunham o campo socialista, como uma crise mortal de fato.

Que tipo de crise seria essa?

É uma crise mortal para o que pudesse haver de socialismo nessas


sociedades. Ou seja, uma certa socialização ainda que sob forma de propriedade
estatal, mas que procurava, de alguma maneira, beneficiar os trabalhadores,
estabelecendo o pleno emprego e introduzindo uma série de conquistas que eles
jamais tiveram nesses países.

Como você vê, hoje, a Glasnost e a Perestroika?

A glasnost, a democratização dessas sociedades, realmente aconteceu. Hoje


existe democracia no Leste Europeu: pluralismo partidário, jornais que são

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editados livremente, idéias circulando, fim da censura nas artes, nas editoras etc.
Mas o projeto de reconstrução socialista na economia e em tudo que diz respeito
às relações de trabalho, de propriedade, realmente não se consumou. Nos países
onde o socialismo foi imposto pelas tropas do exército soviético, é evidente que o
regime não poderia funcionar bem desde seu ponto de partida porque ele
truncava o desenvolvimento nacional próprio de cada país, e era obrigado a
supermilitarizar a sociedade, a impor-se pela força. Nesses países houve
conquistas também, mas em certo momento o funcionamento da economia se
tornou ineficaz e a opressão política, insustentável. Houve múltiplas reações. Na
União Soviética, entretanto, a economia, apesar de ter tido êxitos notáveis, não
conseguiu assimilar a nova revolução científico-tecnológica, por ser dirigida de
forma centralizada e burocrática e, com isso, se atrasou em relação aos países
capitalistas de alto desenvolvimento. Não conseguiu sustentar a Guerra Fria, a
corrida armamentista, perdeu o fôlego e se atolou em uma situação tão difícil
que o projeto da perestroika não foi capaz de corrigir. Uma influência muito
negativa adveio das dissensões de caráter nacional, sufocadas durante muito
tempo, e que irromperam com uma violência tremenda, complicando o quadro de
dificuldades que já eram enormes. Nessa situação, tornou-se impraticável levar a
bom termo o projeto de reconstrução do socialismo. Gorbatchev acreditava nesse
projeto até alguns dias depois de ser libertado de seu seqüestro na Criméia. Só
por alguns dias. Diante da realidade que pôde observar na volta, ele também se
rendeu.

Que nova realidade Gorbatchev encontrou depois de seu sequestro?

O putsch - iniciado na madrugada de 19 de agosto, segunda-feira - teve a


virtude, assim se pode dizer, de desvelar uma realidade. Eu já estava em Moscou
há cerca de três semanas quando o golpe irrompeu e, durante essas semanas,
conversei com pessoas de instituições acadêmicas, do meio jornalístico e do
povo, uma vez que conheço a língua russa e lia diariamente tudo que podia. O
que me diziam muitas pessoas é que, apesar de todas as mudanças, o grande
poder que ainda dominava a União Soviética era o KGB - Comitê de Segurança
do Estado. Junto com ele estavam o Alto Comando das Forças Armadas e o
Ministério do Interior com sua milícia, a Omon - uma brigada para tarefas ditas
especiais, responsável por massacres e assassinatos terroristas nos países
bálticos e em outros pontos do país. Esse conjunto de instituições repressivas,
que supostamente continuava a ter a mesma força de antes, propendia, em
consonância com o Ministério e, sobretudo, com o primeiro ministro Valentin
Pavlov, a combater e reduzir tudo o que a perestroika e a própria glasnost tinham
conseguido. Também me diziam que a situação política era de distensão, depois
que Gorbatchev se entendeu com Ieltsin, em abril deste ano. O que apressou a
iniciativa golpista foi a data de 20 de agosto, quando o Tratado da União
receberia as primeiras assinaturas. Neste Tratado, Gorbatchev propunha um novo
relacionamento entre o governo central e as repúblicas, num molde inaceitável
para essas velhas instituições do comando administrativo central, que perderiam
muitas das suas prerrogativas, em especial porque o tratado consagraria a

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descentralização do poder econômico, que passaria em grande parte para as


repúblicas.

Quem se opunha ao Tratado da União?

Eram essas instituições do comando central e o núcleo do Partido Comunista


da União Soviética, já muito desprestigiado, porém que ainda funcionava, dotado
de um aparelho ramificado com células dentro do exército, do KGB, das
instituições da União. Os oito membros do chamado Comitê do Estado de
Emergência, que assumiu o poder em conseqüência do golpe, eram membros do
PCUS e vários também membros do Comitê Central. A iniciativa golpista mostrou
que essas instituições já eram mera aparência. Elas tinham uma força fictícia.
Quando Ieltsin tomou a iniciativa de resistir junto a seus adeptos, no Palácio do
Parlamento Russo, a chamada "Casa Branca", e se entricheirou ali, não teve que
enfrentar nenhum assalto. Os golpistas foram incapazes de promover um único
combate armado. Embora vários generais tenham aderido ao golpe, eles não
conseguiram convencer a oficialidade a arremeter contra a "Casa Branca". Mesmo
cercada por tanques, quem quisesse entrava e saía à vontade. Os manifestantes
fizeram barricadas com vigas de construção de prédios, blocos de cimento e
veículos sucateados. Munições, armas e alimentos foram armazenados dentro do
edifício do Parlamento.

Você chegou a ver tudo isso?

Claro, estive lá, como também circulei por várias partes da cidade. Observei
que, com helicópteros, tanques e tropas treinadas, essas barricadas não seriam
obstáculo eficiente e o pessoal que estava dentro da "Casa Branca" não teria
condições de resistir. Os oficiais comandantes dos tanques, porém, não quiseram
atacar. E a tropa de choque do KGB, ao receber ordem de assalto, também se
recusou. Há dez anos, isso seria impensável. Mas tinha havido uma mudança na
sociedade, que fazia com que essas mesmas instituições não obedecessem ao
comando dos golpistas. Revelou-se, assim, que os golpistas não tinham força
real, o que foram obrigados a reconhecer. O golpe se extinguiu sem lutas,
rapidamente, a televisão mudou de tom, começou a transmitir a sessão do
Parlamento russo, com ataques verbais violentíssimos ao Comitê de Emergência,
Gorbatchev foi logo contatado na Criméia e, no dia seguinte, quinta-feira, já
estava em Moscou.

O que se revelou foi a fragilidade de instituições que tinham a


aparência de poder mas, na verdade, já tinham sido profundamente
minadas pela atuação democratizante da glasnost...

Exatamente, por toda aquela massa enorme de denúncias sobre o antigo


regime e também pela evolução da própria vida da sociedade, que não aceitava
mais o passado da União Soviética. Gorbatchev não conseguiu se esquivar de
reconhecer ter sido o responsável pela nomeação de todos os golpistas. Ele foi
preso pelo chefe de seu gabinete e pelos generais que comandavam a sua guarda
pessoal. E todos os ministros acompanharam o golpe. O chefe do KGB, o ministro

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da Defesa e o ministro do Interior foram nomeados por Gorbatchev. Ele os


nomeou porque era o secretário-geral do Partido Comunista e considerava serem
válidas as pressões do partido. Contudo, em meados deste ano, Gorbatchev
tomou mais uma iniciativa de renovação do Partido Comunista e, para isso, já
tinha proposto um novo programa, que seria discutido num Congresso em
outubro, obviamente impossibilitado de se realizar. Quando voltou da Criméia,
Gorbatchev ainda pensava que o partido pudesse ser salvo. Mas assim que
chegou, nas primeiras entrevistas, viu-se atacado exatamente por esse lado: por
ter nomeado os golpistas e por ser secretário-geral do PCUS. E Ieltsin não perdeu
tempo, mandou fechar e lacrar a sede do Comitê Central do PCUS. Embora sem
energia, Gorbatchev protestou contra isso no momento, mas não pôde fazer
nada, porque o Comitê Central do PC soviético ficou, durante o período do golpe,
em silêncio. Não se manifestou a favor do Comitê de Emergência, mas também
não o condenou, como seria de se esperar, tratando-se do seqüestro do próprio
secretário-geral. Quando chegou sexta-feira - o golpe tinha começado na
madrugada de segunda -, o próprio Gorbatchev se convenceu da inviabilidade de
continuar como secretário-geral do PC. Dissolveu o Comitê Central e depois, na
condição de presidente da República, decretou a dissolução do próprio partido e a
transferência de seus bens para o Estado. Essa foi era uma mudança tremenda:
o partido que não tinha mais grande prestígio, porém que possuía uma estrutura
gigantesca e tinha sido a espinha dorsal da sociedade soviética durante todo esse
tempo; o partido que fez a Revolução de 17, o partido de Lenin era
sumariamente dissolvido e declarado fora da lei pelo próprio secretário-geral. Em
algumas repúblicas, foi colocado na ilegalidade. Por que isso aconteceu? É que a
evolução da sociedade soviética, nesse ambiente de democracia que se foi
instaurando depois de 85, se deu num sentido ideológico pró-capitalista. A
falência do modelo stalinista conduziu intelectuais e operários, após toda uma
trajetória ideológica que ainda está por ser bem analisada, no sentido da
oposição não só a Stalin, mas a Lenin e a Marx. O socialismo e o marxismo se
tornaram alvos da aversão e da hostilidade da grande maioria da sociedade.

Essa relação estava latente desde o início do processo de construção


do socialismo?

Penso o contrário. O chamado "socialismo real" não somente se desviou do


marxismo, como se opôs frontalmente a ele. Não teria sido possível mostrar que
se tratava de um determinado modelo de socialismo que falia o modelo stalinista
- e não do próprio socialismo? Que era possível um socialismo intrinsecamente
democrático? Isso não podia ter-se tornado claro para a grande massa dos
soviéticos e, em particular, para a sua intelectualidade? Sim, poderia, mas estava
longe de ser fácil. Porque, para começar, onde está esse outro modelo
democrático de socialismo? O outro modelo apontado era o da social-democracia.
E a social-democracia é um regime pensável somente num país capitalista. A
prosperidade da Suécia, por exemplo, impressiona os soviéticos. Ao mesmo
tempo, a crise na União Soviética coincidia com um período de avanço dos países
capitalistas desenvolvidos em conseqüência da revolução científica e tecnológica.
Os soviéticos comparavam o atraso do seu padrão de vida, os seus bens de
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consumo de má qualidade, a sua habitação deficiente etc., com o que havia na


Europa Ocidental, nos Estados Unidos e no Japão.O brasileiro Jacob Gorender
estava em Moscou no fatídico agosto. Para ele, os acontecimentos na URSS são
conseqüência de um desvio do marxismo autêntico, perpetrado pelos stalinistas.
Mas os soviéticos não conseguem ver isso, depois de tantos anos sob a ditadura
do partido único.

Eles tinham informação a respeito disso?

Com a glasnost, as informações se tornaram abundantes. Já não era possível


esconder. Criou-se a idéia de que a União Soviética se retardara porque tinha
aderido ao socialismo. E o grande responsável por isso seria Lenin. Essa era a
idéia que encontrei lá, expressa em jornais, conversas, entrevistas, de múltiplas
maneiras. Uma opinião em circulação afirmava que, se tivesse continuado
capitalista em 17, se só tivesse havido a Revolução de fevereiro, a Rússia seria
hoje um país tão rico quanto os Estados Unidos ou o Japão. Essa idéia se
enraizou e Lenin passou a ser apontado como o grande responsável pela pobreza
dos russos e dos demais povos soviéticos. Na Ucrânia, já derrubaram todas as
estátuas de Lenin e fariam isso em Moscou, se não houvesse vigilância. O
marxismo também foi declarado uma doutrina antinacional: uma doutrina falida e
responsável por toda essa infelicidade dos povos da União Soviética. Já não era o
modelo stalinista, era o próprio socialismo que devia ser repudiado.

Esse sentimento é generalizado?

É muito amplo. Continua a haver gente que se considera marxista, que


procura respostas marxistas para essas questões. Mas são minoria. No
movimento operário, há tendências anarco-sindicalistas, com certa força em
alguns setores e se fundou mesmo um Partido do Trabalho, com influência
anarco-sindicalista.

Qual é a base social desse partido?

São sindicalistas sem partido e anarco-sindicalistas. É um pessoal anti-


estatista, que não quer saber de subordinação nação ao Estado, porque o Estado
é visto como um patrão. Não existiam capitalistas privados, mas existia o Estado
e ele não era melhor que um capitalista privado. Pagava mal, exigia muito
trabalho e, no foral das contas os trabalhadores não tinham um padrão de vida
como poderiam ter, assim pensavam, se fossem um país capitalista desenvolvido.

Você concluiria que estamos vendo o ressurgimento acelerado do


capitalismo na União Soviética?

Eu ainda não quero avançar conclusões, porque esse é um problema muito


difícil do ponto de vista teórico. O próprio golpe mostrou que há duas formações
sociais diferentes. Antes, quem mandava era uma camada burocrática
privilegiada, que se expressou nos golpistas e os apoiou, tácita ou abertamente.
Era a camada dos aparelhos centrais do Estado, na União, nas repúblicas e nas
empresas, com um padrão de vida muito superior ao do povo, porém que não
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podia se apropriar dos meios de produção e transmití-los por herança. O


privilégio dessa camada derivava de relações de poder. Se essas relações
mudassem, eles perderiam os privilégios. Agora sim, está se formando e se
desenvolvendo na União Soviética uma burguesia no sentido estrito da palavra:
são pessoas que têm a propriedade privada dos meios de produção, de maneira
plena e juridicamente formalizada.

Como é que se deu o processo de aquisição desses meios de


produção?

Através de uma corrupção tremenda, que está lavrando tanto na União


Soviética como nos outros países do Leste Europeu. Uma parte da antiga
burocracia tinha dinheiro porque acumulava, mas não podia gastar a não ser em
consumo pessoal ou clandestinamente, pois fábricas clandestinas já existiam.
Esta burocracia empregou esses recursos e os reproduziu com rapidez, porque os
negócios que estão fazendo hoje na URSS são para obter lucros de 1000% ou
mais. Nesses poucos anos, já surgiram alguns milhares de pessoas que
acumularam milhões de dólares. Os golpistas, como representantes da velha
"nomenklatura", não iam refrear esse processo. Iam gravar sobre ele o suborno
no velho estilo. Como foram derrotados, nem é mais necessário pagar um tributo
a tais burocratas. Os novos capitalistas progridem livremente e de maneira legal.

Grande parte desses novos milionários são ex-integrantes da


burocracia estatal?

Uma parte, sem dúvida, é. Sob este aspecto, destacam-se os diretores de


empresas. Contudo, muita gente que não fazia parte da burocracia, mas que tem
"espírito empresarial" entrou nessa jogada, por dispor de informações
privilegiadas, relações pessoais, formação universitária, habilidade para negócios
etc. E aí está se dando um roubo escandaloso dos bens do Estado. Os bens de
consumo - dos quais o Estado ainda é o grande comprador e distribuidor são
desviados da rede comercial estatal para a rede comercial privada e vendidos até
dez vezes mais caros. E, no meio do caminho, ganha-se uma fortuna. Hoje,
Moscou é o melhor lugar para se fazer grandes negociatas. E não só Moscou.

Varsóvia virou um imenso bazar, com centenas e centenas de barracas,


cheias de roupas, sapatos e eletro-eletrônicos, objetos de todo tipo que vêm da
Coréia, de Taiwan, do Japão etc. Ali barganham poloneses, russos e até gente
que vem da Mongólia. Varsóvia parece um Paraguai do Leste Europeu, onde se
pratica uma especulação desenfreada. Do ponto de vista social, há uma
degradação tremenda.

Você escreveu que a questão do mercado era uma questão vital e que
o socialismo vai ser obrigado a conviver com ele durante longo período
nessa transição. Você alterou esta posição.

Não alterei. O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de


imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um

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tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo,


precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e
refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos. Mas o que se dá é
que a idéia generalizada na União Soviética é de um mercado livre e harmonioso,
do tipo teorizado por Adam Smith. É isso que está na cabeça dos economistas
soviéticos liberais. Mas a União Soviética e os outros países do Leste Europeu
têm um grande problema para instaurar o mercado, que não sabemos como vai
ser resolvido porque é inédito. Trata-se da privatização de milhares de grandes
empresas. Note bem: milhares. Não há, ainda, dentro desses países, capital
privado, nacional, que possa adquiri-las. Em alguns casos, empresas
multinacionais têm se associado às empresas do Leste. Têm comprado até 100%
delas. É o caso da Volkswagen, que vai se tornar a principal acionista da fábrica
Skoda, da Tcheco-Eslováquia. A Suzuki e a General Motors estão montando
fábricas de automóveis na Hungria. Há casos desse tipo, mas são isolados. E não
se pode pensar que o capital estrangeiro se apressará em investir em países
onde não há legislação adequada, nem o brasileiro Jacob Gorender estava em
Moscou no fatídico agosto. Para ele, os acontecimentos na URSS são
conseqüência de um desvio do marxismo autêntico, perpetrado pelos stalinistas.
Mas os soviéticos não conseguem ver isso, depois de tantos anos sob a ditadura
do partido único. Por enquanto, o Leste Europeu constitui um território de
reserva para futura expansão do capital transnacional.

Como é que vão ser privatizadas essas empresas?

Esta é a grande questão que deverá ser resolvida nos próximos anos. Aí sim,
vai haver uma contradição de classe entre a nova burguesia - que pretende
açambarcar tudo e recapitalizar o país - e os trabalhadores. Em vários desses
países, há setores significativos dos operários que se consideram com direito à
gestão dessas fábricas seja como acionistas ou sob a forma de arrendamento,
pelo sistema de leasing. Existe, na União Soviética, na Polônia, na Tcheco-
Eslováquia e na Hungria, uma tendência autogestionária significativa entre os
trabalhadores.

Isso se manifesta através do movimento sindical?

Manifesta-se principalmente através dos sindicatos independentes, que se


criam hoje em todos esses países. E através de certo movimento anarco-
sindicalista, notório na União Soviética e na Tcheco-Eslováquia. Na Polônia,
manifesta-se através do Solidariedade, que pretende ser um movimento
propriamente sindical. Acredito que a questão da privatização de milhares de
grandes empresas é realmente o campo de batalha onde ainda vai se travar uma
luta de classes nesses países.

Quais os setores que estariam se digladiando?

Os trabalhadores, com a consciência de que também são proprietários dessas


empresas, os diretores de empresas e os capitalistas privados que já existem. Há
um capitalismo de empresas menores, que está brotando selvagemente, com as

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cooperativas, pequenos empresários etc., e, do outro lado, as grandes empresas


estatais, que teriam caráter verdadeiramente oligopolista. O mais provável é que
a restauração capitalista comece já com o predomínio de uma estrutura
oligopolista. Eu pude ver na TV russa programas de gerenciamento japonês e
americano. Quer dizer, de gerenciamento capitalista. A palavra manager se
incorporou à língua russa. O manager é louvado como um tipo extraordinário,
que dinamiza e cria riquezas.

Como historiador estudioso, você teve contato com o mundo


acadêmico? Como esse setor está sentindo essas mudanças?

Antes do golpe, eu tive vários contatos com alguns acadêmicos. E boa parte
deles já não tinha mais nada a ver com o marxismo. Outros apresentavam uma
versão do marxismo que, a meu ver, era completamente diluída, pobremente
eclética. Na verdade, a um passo do abandono do marxismo.

Isso já vem desde o início da glasnost?

Essa virada pró-capitalista se acentuou, tanto quanto eu pude acompanhar


pela imprensa, a partir de 89. O desmoronamento do Leste Europeu repercutiu
na União Soviética num sentido de aceleração da descrença no marxismo. Dois
homens prestigiados hoje nos meios acadêmicos da União Soviética são Frederik
Hayek, economista liberal austríaco muito conhecido, e Karl Popper, autor de A
sociedade aberta e seus inimigos, uma das obras básicas do liberalismo político
do século XX.

Frederik Hayek é um neoliberal por excelência?

Sim. A crítica dos liberais ao planejamento centralizado tem certa razão


quando afirmavam, Hayek em particular, que uma economia não podia funcionar
sem as sinalizações do mercado, dirigida de cima por um órgão de comando
central. Isto se comprovou de fato, inviável. Todavia, eu não aceito que o
mercado liberal, o mercado irrestrito, seja algo que nós devemos ambicionar.
Acho que, como Trotski também escreveu, não se pode concentrar todas as
decisões econômicas em um órgão soberano, porque é impossível que uma única
cabeça seja capaz de prever os mil e um incidentes e novidades que acontecem
na base, nas empresas. E como é que essas empresas se orientarão para tomar
o caminho mais eficiente? Através de um plano feito lá em cima por um
Ministério? Não, através das sinalizações do mercado. Mas, como está sendo dito
por vários marxistas, um mercado socializado, um mercado de agentes sociais.
Não de agentes privados, não totalmente livre. Inexiste mercado livre, aliás, no
mundo capitalista. O Estado sempre tem um volume tal de dispêndios, que nunca
é inferior a um terço do Produto Interno Bruto. Inclusive no que se refere aos
países capitalistas de alto desenvolvimento, a exemplo dos Estados Unidos e do
Japão.

E a questão da religião? Há uma retomada do sentimento religioso?

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O quadro ideológico da URSS, para quem a conheceu, como eu, há mais de


trinta anos, é completamente diverso. A religião se revitalizou. Hoje, pode atuar
livremente, sem constrangimentos. Principalmente a Igreja Ortodoxa, que é a
mais importante, mas também os muçulmanos, na Ásia, e outras religiões que
existem na União Soviética. A Igreja Católica tem um papel político muito
acentuado, como se sabe, na Polônia. Sua atuação hoje é tão intervencionista na
vida política que até católicos me disseram que é excessiva, que a Igreja está
exorbitando. Eu ouvi de um polonês: "na Polônia, nós temos padres demais".
Parece que, em matéria de padre, a Polônia supera até a Itália. Em Moscou você
vê na rua cartomantes jogando tarô, lendo a mão, adeptos do Hare Krishna
vestidos com túnica e de cabeça raspada dançando na rua Arbat. Além disso, há
tendências populistas muito fortes. Se a situação na União Soviética se tornar
crítica, porque já é muito instável, abrirá caminho para tendências populistas até
de tipo fascistóide.

Entre esses populistas você incluiria Ieltsin?

Ieltsin era populista, na oposição. Hoje ele é governo na Rússia, já está numa
situação em que não pode fazer promessas descabidas, precisa ser contido e tem
a obrigação de tomar medidas que melhorem a situação imediata do povo, pois
este vai cobrá-lo. Ieltsin ainda goza de uma grande popularidade por causa de
sua luta contra os golpistas e porque ele explora um sentimento muito poderoso
hoje em todos os países do Leste: o sentimento do nacionalismo, tremendamente
revigorado. Com elementos de racismo, particularmente de anti-semitismo, em
muitos casos. Na. Rússia e na Ucrânia, bem como em outras repúblicas da
desagregada União Soviética, têm influência organizações declaradamente
fascistas.

O que está por trás de toda essa crise?

Na essência desse modelo de socialismo de Estado está o partido único, que


se fundiu com o Estado. Obviamente, a sua base mais adequada como partido
único só poderia ser a estatização total da economia. As duas coisas se casam: a
estatização total da economia fornece apoio ao partido único fundido ao Estado e
vice-versa. Um regime socialista pluripartidário não pode funcionar com uma
economia totalmente estatizada. Socialismo não é a mesma coisa que estatismo,
nem a propriedade estatal é a única forma de propriedade social socialista. Em
suma, enquanto marxistas, devemos repudiar o extinto socialismo real porque foi
um socialismo de caserna, conforme a expressão cunhada por Marx.

E Cuba?

Gostaria de fazer uma ressalva com relação a Cuba. O regime ideal para
Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista. Talvez,
há dez anos, quando a situação era estável, Cuba pudesse ter iniciado um
processo que avançasse no sentido de um regime democrático pluripartidário.
Mas isso não se deu porque não havia impulso interno e não era a "onda" em
nenhum país do campo socialista. A situação de Cuba não é a de qualquer um

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dos países do Leste Europeu. Cuba está sob bloqueio econômico dos Estados
Unidos e, com o desmoronamento dos regimes burocráticos do Leste e a queda
drástica dos fornecimentos soviéticos, é evidente que a situação econômica se
tornou muito difícil, como reconhecem os dirigentes cubanos. A mais difícil que
eles já enfrentaram, com necessidade de um racionamento rigorosíssimo. Não há
fome, mas há carências alimentares, às vezes agudas. Muitos bens como
manteiga, óleo de cozinha, carne, artigos de higiene doméstica não existem ou
são escassos. Nessas condições, seria descabido exigir que Cuba mudasse de
rumo nas questões internas. Aqui, vale o ditado de que "não se troca de cavalo
no meio da correnteza de um rio". A manutenção do regime político como ele
existe é algo imposto pela própria necessidade imperiosa de sobreviver. Os
dirigentes cubanos estão procurando saídas para as carências econômicas e
penso que devemos apoiá-los para que as encontrem e para que elas se tornem
efetivas. Seja através da biotecnologia, que é muito desenvolvida em Cuba; do
turismo, que eles estão incentivando; ou de outras medidas como o incremento
da produção de alimentos, a economia de combustível e assim por diante.

É visível essa crise em Cuba?

É visível no vazio das prateleiras das lojas, nas filas incontáveis, nos pedidos
dos cubanos aos turistas para que sejam intermediários de compras nas lojas
especiais. Sabe-se que existe um câmbio negro ativo.

Você teve contato com o povo?

Tive contato com gente do povo, mas não posso avaliar com precisão pela
conversa o seu sentimento íntimo. Nos regimes em que há partido único, em que
só uma opinião é expressa pelos meios de comunicação, torna-se muito difícil
você ouvir uma crítica ao regime, ainda mais se manifestada para um
estrangeiro. Eu, entretanto, ouvi críticas ao fato de não haver liberdade política e
cultural, à falta de iniciativas dos governantes para democratizar o país, para
evitar que tudo isso acabe numa explosão em que o povo perderia o que ganhou
com o regime socialista, particularmente a educação universal e a excelente
saúde pública.

Caiu o padrão de vida do povo cubano com a crise?

O padrão de vida, no que diz respeito à alimentação, roupa e outros


aspectos, embora modesto, é melhor do que na América Latina em geral. Eu não
vi em Cuba pessoas depauperadas: o aspecto físico da população é saudável,
nunca vi uma população com dentes tão bons como em Havana, apesar de já
estar havendo carências alimentares. Mas por quanto tempo essa situação pode
durar? Porque a falta de matérias-primas, de equipamentos, de peças de
reposição e de combustível está levando ao fechamento de fábricas de tecidos,
de papel, de níquel etc. A educação está se ressentindo porque se reduziu a
edição de livros. Hoje, você quase não encontra o que comprar nas livrarias, não
se editam coisas novas, a não ser muito parcimoniosamente, exceto discursos de
Fidel Castro e de líderes do governo. No mundo acadêmico, a atividade editorial

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caiu muito. E o cinema está parado. Se não se encontrar uma saída viável, isso
não poderá durar um tempo indefinido.

Na sua opinião, Fidel Castro tem alguma semelhança com os líderes


derrubados no Leste Europeu?

Eu jamais diria que ele é igual a um Honecker ou a um Ceaucescu. Ele dirigiu


uma revolução autêntica e não se deixou corromper. Mas há um culto a ele. Não
como houve a Stalin. Não há estátuas, o nome dele não é dado a cidades etc.
Mas o culto à personalidade se manifesta na imprensa, na maneira como o
trabalho ideológico é conduzido. Isso é indiscutível e, a meu ver, não é benéfico à
formação espiritual dos trabalhadores no regime socialista.

E na União Soviética, você viu alguma manifestação de solidariedade


ou preocupação com o que está acontecendo em Cuba?

Eu pude ler, quando já estava fora da União Soviética, que ia ser aberto em
Moscou um escritório representativo da liderança cubana de Miami. O próprio
Jorge Mas Canosa esteve em Moscou junto com o poeta Armando Valladares e foi
recebido com um tapete vermelho à saída do avião, segundo eu li num jornal
espanhol. Ele se dizia encantado pela amabilidade que havia encontrado e estava
em Moscou para abrir um escritório representativo da sua organização sediada
em Miami. Cuba não pode mais contar com a União Soviética.

Depois dessa viagem, você reafirma suas convicções socialistas e


marxistas?

Eu estou convencido de que tudo isso não é a morte do marxismo. O


marxismo não é um capítulo encerrado na História das idéias. E também não
estamos assistindo ao término da luta pelo socialismo. Eu não acredito que o
capitalismo seja, como já foi apregoado, o fim da história: o último regime que a
humanidade deve atingir. Eu penso que o socialismo continua válido como
perspectiva viável e concreta para todos os povos. E a única teoria que oferece
uma perspectiva fundamentada, com vistas ao socialismo, é o marxismo: não
existe outra. O anarco-sindicalismo é insuficiente, se bem que o elemento
autogestionário deva ser enfatizado dentro da visão marxista, o que não ocorreu
até agora. Porém, o próprio marxismo deve ser revisto e enriquecido nas
questões do partido. Um partido que faz luta armada, por exemplo, se organiza
de maneira militarizada. Quando, porém, toma o poder, deve continuar
militarizado? E militarizar a sociedade? Absolutamente, não. Esse é um erro
gravíssimo. E o Estado, deve ser o órgão que submete a sociedade civil?
Absolutamente, não. Tais questões precisam ser abordadas no âmbito do
marxismo para que ele se revigore como teoria.

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Fonte

https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 11/12
04/12/2023, 20:20 Testemunha da História

Inclusão 26/05/2014

https://www.marxists.org/portugues/gorender/1991/10/01.htm 12/12

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