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A indecisão de Khrushchev comunista.

Imre Nagy iniciou o Novo


Curso, uma linha paralela à do seu
Os franceses e os britânicos estão
atolados no Suez e nós na Hungria. patrono na União Soviética, que antecipou
Nikita Khrushchev as estratégias reformistas no movimento
comunista. Essa mudança, porém, foi

A s duplas crises da Guerra Fria – a


intervenção paralela dos soviéticos
na Hungria e dos franceses e britânicos no
interrompida com o declínio de Malenkov
e a ascensão de Khrushchev, aliado aos
sobreviventes da velha guarda bolchevique
Suez, em Outubro de 1956, e a crise dos – Vyacheslav Molotov, Kliment Vorochilov
mísseis de Cuba e o confronto entre a e Lazar Kaganovich. Em Budapeste, a vira-
China e a Índia, em Outubro de 1962 – gem no centro teve como consequência
ainda não encontraram os seus cronistas. desastrosa o regresso de Rakosi, em 1955.
No entanto, os documentos revelados Em Fevereiro de 1956, Khrushchev fez a
pelos arquivos, nomeadamente os arqui- sua ruptura com o estalinismo, no XX Con-
vos comunistas, bem como os testemu- gresso do Partido Comunista da União
nhos dos participantes, mostram como as Soviética, isolando a velha guarda bolche-
crises paralelas de Outubro de 1956 e de vique sem, todavia, retirar os históricos do
1962 são inseparáveis, sem que nada nas Presidium. O seu discurso na sessão
origens respectivas fizesse prever a sua secreta do Congresso, que denuncia os cri-
convergência. mes de Estaline contra os comunistas,
Os prolegómenos da crise húngara devem é publicado pela imprensa ocidental – mãos
procurar-se na sucessão de Estaline e, polacas asseguraram a fuga do documento
sobretudo, no XX Congresso do Partido – e teve efeitos opostos na União Soviética
Comunista da União Soviética. Em 1953, e na Europa de Leste. No primeiro caso,
a mudança na direcção soviética teve significa o «degelo» do comunismo sovié-
repercussões directas nas direcções dos tico, no segundo marca o início de um
partidos comunistas dos países-satélites ciclo de instabilidade profunda que vai
da União Soviética na Europa de Leste. dividir os partidos no poder, ao mesmo
Com efeito, para consolidar a sua posição tempo que mobiliza os movimentos políti-
de poder, os novos dirigentes do centro cos e sociais contra os regimes comunistas
comunista em Moscovo tentaram impor e as correntes nacionalistas contra a domi-
rapidamente os seus feudatários nas peri- nação russa e soviética.
ferias. Para a Hungria, Giorgii Malenkov, As revoltas operárias de Poznan, a 28 e 29
o principal responsável do Presidium de Junho, foram o primeiro sinal de uma
depois da morte de Estaline e a liquidação crise séria, não só pela extensão dos protes-
de Lavrenti Beria, escolheu Imre Nagy, um tos, mas sobretudo porque os militares
comunista preso no período estalinista, polacos se recusaram a disparar contra os
para substituir Mathias Rakosi, o velho trabalhadores. A crise acelerou a divisão
estalinista responsável pela repressão bru- interna do Partido Comunista polaco, acen-
tal que marcou a instalação do regime tuada pela reabilitação dos comunistas pre-

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sos durante o estalinismo, incluindo mentos das tropas soviéticas. Pode pensar
Wladyslaw Gomulka, na sequência do XX que são os russos quem precisa da ami-
Congresso. Em Outubro, os comunistas zade do povo polaco. Mas, como polaco e
polacos escolheram Gomulka para voltar a como comunista, juro que a Polónia pre-
dirigir o seu partido, o que provocou uma cisa da amizade da Rússia mais do que a
reacção brutal por parte de Khrushchev e da Rússia da amizade da Polónia. Não perce-
direcção soviética, para quem a substi- bem que sem essa amizade não podemos
tuição dos dirigentes mais ortodoxos por existir como nação independente? Aqui vai
um comunista reformador e nacionalista ficar tudo em ordem, mas não deixem
punha em causa a continuidade da filiação entrar as tropas soviéticas em Varsóvia por
da Polónia no bloco soviético. O pedido de que isso torna virtualmente impossível
Gomulka para substituir o marechal sovié- controlar os acontecimentos.»2
tico Konstantin Rokossovski na chefia das O dirigente russo vacilou, mas mandou
Forças Armadas polacas e na direcção do parar as suas divisões. Nesse contexto,
Partido Comunista polaco veio confirmar Gomulka pôde conter a revolta polaca,
as piores previsões do centro. neutralizar os seus adversários internos e
Khrushchev decidiu partir para Varsóvia obter a lealdade das Forças Armadas, ao
para explicar aos comunistas polacos as mesmo tempo que o seu regime comu-
regras do sistema soviético. Fez-se acom- nista definia um quadro inédito de co-
panhar por quatro membros do Presi- existência com a Igreja Católica. Mas a
dium, incluindo quer os seus rivais crise polaca teve uma continuação linear e
ortodoxos – Molotov e Kaganovich – quer imediata na Hungria, onde se repetiu o
o seu principal aliado reformador, Anas- mesmo padrão – a mobilização dos movi-
tas Mikoyan, e ainda Nikolai Bulganin. mentos políticos e sociais contra o regime
Paralelamente – e, de certo modo, tam- e a divisão interna do Partido Comunista3.
bém pedagogicamente, para ilustrar O sucesso de Gomulka é um estímulo adi-
melhor a sua lição – ordenou a mobiliza- cional, como o demonstra a enorme mani-
ção das divisões soviéticas na Polónia, festação de estudantes no dia 23 de
que cercaram a capital, onde os comunis- Outubro, em Budapeste, que marca o iní-
tas russos e polacos se vão reunir, no dia cio dos treze dias da crise húngara.
19 de Outubro1. Hannah Arendt insiste na similitude entre
A decisão inicial de Khrushchev era forçar as duas crises, polaca e húngara. Numa
a direcção do Partido Comunista polaco a fórmula que demonstra a sua extraordiná-
demitir Gomulka, sob a ameaça da inter- ria intuição – as revelações sobre a inter-
venção militar soviética, que estava em venção militar russa na crise polaca foram
curso. Depois, tudo se passou de forma feitas muitos anos depois da sua morte –
diferente. Gomulka, numa intervenção Arendt escreveu que «quase só por acaso
dramática, convenceu Khrushchev a não aconteceu na Polónia o que se passou
mudar de posição: «Camarada Khrus- na Hungria e na Hungria o que se passou
hchev, peço-lhe que mande parar os movi- na Polónia»4. A questão, nesse sentido,

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é saber o que separa as duas crises e pode mento e do Reforço da Amizade e Coope-
justificar a divergência final entre a saída ração entre a URSS e os outros Países
reformista na Polónia e a tragédia da revo- Socialistas», que foi publicada, no dia
lução anticomunista na Hungria. seguinte, pelo Pravda. Esse documento,
Os documentos dos arquivos confirmam preparado pelos quadros do aparelho do
a tese arendtiana: tudo devia ter sido Comité Central e longamente discutido
igual, e por maioria de razão, no sentido na reunião extraordinária do Presidium,
em que as «lições polacas» significavam é o equivalente do XX Congresso para as
uma viragem moderada na estratégia de relações com os satélites. O texto reconhe-
Khrushchev. cia os «erros profundos» do passado,
De facto, a decisão soviética de não inter- incluindo numerosas «violações do princí-
vir militarmente foi reiterada na crise hún- pio da igualdade nas relações entre os paí-
gara. A intervenção inicial das tropas ses socialistas», para proclamar que
soviéticas, logo no dia 24 de Outubro, doravante a União Soviética se comprome-
resultou de um pedido formal de Erno tia a «respeitar a soberania plena de todos
Gero, sucessor e discípulo de Mathias os estados socialistas». Essa determinação
Rakosi, e foram os enviados do Presidium, referia-se, designadamente, à revisão do
Mikoyan (o único dirigente que se opusera estatuto das forças militares soviéticas
em Moscovo à decisão de intervir5) e estacionadas nos estados-membros do
Mikhail Suslov, bem como o embaixador Pacto de Varsóvia, deixando em aberto a
soviético, Yurii Andropov, quem insistiu possibilidade da sua redução ou de uma
nos efeitos desastrosos da primeira inter- retirada completa.
venção e aconselhou a retirada do Exército Em coerência com essa tomada de posição
Vermelho. Paralelamente, as «lições pola- oficial, o Presidium, por unanimidade,
cas» levaram os responsáveis soviéticos a recusou a intervenção militar e decidiu reti-
apoiar a rápida substituição de Gero e, rar as suas forças da Hungria. Khrushchev
mesmo, a aceitar o regresso de Imre Nagy, disse aos seus pares: «Há duas vias, uma
que passou a dirigir o Governo, enquanto via militar e de ocupação, e uma via pací-
a direcção do Partido Comunista ficava fica – a retirada das tropas e as negocia-
entregue a Janos Kadar, uma criatura de ções.»6 Se os dirigentes comunistas
Khrushchev que também fora vítima da russos ainda soubessem reconhecer uma
repressão estalinista. No mesmo sentido, revolução, a sua decisão significaria que
Mikoyan chegou a admitir a restauração estavam preparados para deixar cair o
de um sistema multipartidário, que pode- regime comunista húngaro.
ria limitar o domínio comunista sem o pôr Nas suas memórias, Khrushchev confessa
em causa. que, mal a tinha aprovado, já pressentia
Nessa linha, o Presidium do Partido que aquela era uma má decisão7. No dia
Comunista da União Soviética decidiu, no seguinte, 31 de Outubro, voltou a reunir o
dia 30 de Outubro, aprovar uma «Declara- Presidium de emergência para rever as
ção sobre os Princípios do Desenvolvi- decisões da véspera e decidir, por unanimi-

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dade, a intervenção militar na Hungria. A dimensão húngara foi crucial. A revolução
A Doutrina Khrushchev só durou uma noite. tinha posto em causa, simultaneamente,
O que se passou nessas horas fatais? Desde dois princípios essenciais – a preponde-
logo, a crise húngara entrou numa fase de rância do Partido Comunista e o alinha-
aceleração evidente, entre as manifestações mento com a União Soviética – perante a
de massa constantes e os recuos sucessivos incapacidade de resposta do partido e com
de Imre Nagy. O primeiro-ministro come- a cumplicidade de Imre Nagy. Por outro
çou por reconhecer a revolução como lado, se a revolução anticomunista preva-
um «levantamento democrático-nacional» lecesse na Hungria, o risco não seria só
– ainda tratava os manifestantes por cama- perder um satélite: os perigos de contágio
radas, nos seus discursos, mas respon- eram evidentes – a fronda da liberdade já
diam-lhe da Praça da República que não tinha passado da Polónia para a Hungria e
eram camaradas, eram húngaros8 – e aca- nada impedia o movimento revolucionário
bou por alinhar com as reivindicações de penetrar noutros satélites ou na própria
revolucionárias, incluindo a retirada da União Soviética. (A teoria leninista defen-
Hungria do Pacto de Varsóvia, o fim do dia essa tese para as revoluções comunis-
domínio do Partido Comunista e a forma- tas e, por ironia, talvez pudesse estar certa
ção de uma coligação governamental mul- no caso das revoluções anticomunistas.)
tipartidária. Ao mesmo tempo, a formação No mesmo sentido, pode admitir-se que,
dos conselhos, na melhor tradição das se Khrushchev perdesse a Hungria, perdia
revoluções de 1848, 1871 e 1905, o assalto a sua posição dirigente no PCUS e se a
armado aos centros do partido e dos apa- União Soviética deixasse cair um regime
relhos de segurança, a passagem de uni- comunista, perdia a sua posição à frente
dades militares húngaras para o lado dos do seu bloco imperial e no centro do movi-
insurrectos revelavam a força imparável mento comunista internacional.
do movimento. A intervenção militar francesa e britânica
No dia 30 de Outubro, Nagy disse a Miko- no Suez começou no dia 31 de Outubro,
yan e a Suslov que queria discutir formal- com uma ofensiva fulgurante: entre dois
mente a saída da Hungria do bloco fogos, o regime nacionalista árabe de
soviético, o que deixou ainda mais alarma- Nasser, um cliente da União Soviética,
dos os representantes do Presidium, que estava prestes a cair.
mandaram, ainda nesse dia, para o centro A crise do Suez completou os dilemas de
um telegrama em que reconheciam que «a Khrushchev. A União Soviética ficava con-
liquidação pacífica [dos centros de resis- frontada com a possibilidade eminente de
tência] está fora de causa» e que «se as uni- uma dupla derrota estratégica – na Hun-
dades militares húngaras forem usadas gria e no Egipto. Os próprios não tinham,
contra a insurreição passam-se para o lado ou não queriam ter, dúvidas sobre a ori-
dos revoltosos, o que tornará necessário gem comum das duas ameaças: Vorochilov
retomar as operações militares das forças disse no Presidium que «os serviços secre-
armadas soviéticas»9. tos americanos estão mais activos em

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Budapeste do que os camaradas Mikoyan e É verdade que a intervenção militar no
Suslov»10, dois aliados de Khrushchev. Suez acabou por diminuir os efeitos exter-
Obviamente, a posição de Khrushchev nos da intervenção soviética na Hungria,
ficava posta em causa nessas condições e a sobretudo porque dividiu a aliança oci-
convergência de um recuo na Europa de dental num momento crucial. Mas nada
Leste, dentro do bloco soviético, e no disso era evidente quando Khrushchev
Médio Oriente, com a demonstração da tomou a decisão de intervir, a 31 de Outu-
sua incapacidade de proteger um aliado bro. Nesse dia, o que parecia claro era, por
externo, podia ter consequências imprevi- um lado, a decomposição acelerada do
síveis em cadeia. regime comunista na Hungria e, por
Nesse contexto, se a decisão de intervir na outro, a previsão da vitória da Grã-Breta-
Hungria ainda não tivesse sido tomada – a nha, da França e de Israel contra o Egipto.
decisão de 30 de Outubro tinha sido a de Na sua última emissão, a Rádio Kossuth
não intervir – a crise do Suez tornou essa dizia que «hoje foi a Hungria, amanhã serão
escolha inevitável para Khrushchev e para outros países, porque o imperialismo de
o Presidium. Moscovo não reconhece limites e está só a
Nas vésperas da intervenção militar, tentar ganhar tempo». A declaração é ambí-
Khrushchev foi ter com Tito, que o rece- gua e mais justa no sentido em que a revolu-
beu em Brioni, no meio de uma tempes- ção húngara foi a primeira, depois seguida
tade. Perante o chefe comunista jugoslavo, pela «Primavera de Praga» e pela «revolução
Khrushchev justificou a sua decisão final: autolimitada» na Polónia. Na Checoslová-
em primeiro lugar, estavam a matar comu- quia, a intervenção do Pacto de Varsóvia foi
nistas (um privilégio reservado aos pró- brutal mas menos violenta do que na Hun-
prios nos regimes comunistas); em gria e, em 1981, são os militares polacos
segundo lugar, Nagy tinha decidido retirar quem restaurou o regime comunista, sem
a Hungria do Pacto de Varsóvia, declarara intervenção directa da União Soviética.
a neutralidade e fizera um apelo às Nações Pela sua parte, Khrushchev ganhou tempo e,
Unidas; em terceiro lugar, o capitalismo no ano seguinte, eliminou os seus rivais da
estava prestes a ser restaurado na Hun- velha guarda bolchevique com o apoio dos
gria; em quarto lugar, a intervenção no militares soviéticos. Mas o padrão errático
Suez ia distrair a atenção internacional da das suas indecisões revelou-se ainda mais
«assistência» soviética à Hungria; e, em perigoso na segunda dupla crise, em Outu-
quinto lugar, se não fizesse nada os estali- bro de 1962. Dessa vez, foi preciso retirar os
nistas e os militares uniam-se contra a sua mísseis de Cuba e Khrushchev do poder.
linha antiestalinista11. ■ CARLOS GASPAR

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NOTAS

1 4 8
Ver GLUCHOWSKI, L. W. – «Khrushchev, Ibidem. GATI, Charles – Failed Illusions. Moscow,
Gomulka and the “Polish October”. In Cold War Washington, Bupadest, and the 1956 Hunga-
5
International History Bulletin # 5, Primavera de KRAMER, Mark – «New evidence on rian Revolt. Washington: Woordrow Wilson
1995. KRAMER, Mark – «New evidence on Soviet decision-making…», p. 366. Press Center, 2006.
Soviet decision-making and the 1956 Polish
6 9
and Hungarian crises». In Cold War Internatio- «The “Malin Notes” on the crises of KRAMER, Mark – «New evidence on
nal History Bulletin # 8-9, Inverno de 1996-1997. Hungary and Poland, 1956». (Notas de Vladi- Soviet decision-making…», p. 368.
mir Malin das reuniões do Presidium do
2 10
Este resumo do discurso de Gomulka foi PCUS, traduzidas e apresentadas por KAR- Ibidem, p. 367.
escrito pelo próprio Khrushchev. Cf. TAUB- MER, Mark, ob. cit.). Cold War International
11
MAN, William – Khrushchev. Londres: Free History Bulletin, # 8-9, Inverno de 1996-1997. MICUNOVIC, Veljko – Moscow Diary. Nova
Press, 2006, 2.ª ed., p. 294 York: Doubleday, 1980.
7
KRAMER, Mark – «New evidence on
3
É a tese de Hannah Arendt, no seu texto Soviet decision-making…», p. 369.
sobre a «gloriosa revolução húngara»
(ARENDT, Hannah – «Riflessione sulla rivo-
luzione unghere». In MicroMega, pp. 89-120).

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