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As origens da revolução
A revolução rompe com o antigo regime e, no entanto, é dele que emana. Como é então possível romper com o
antigo regime e simultaneamente dele proceder? A Revolução Francesa é o acontecimento que põe esse
problema com maior acuidade, na medida em que é o primeiro acontecimento desse tipo e na medida em que
surge com uma instantaneidade ímpar e introduz uma mudança radical.
2. Vem depois a revolução propriamente dita, quando os estados gerais decidem transformar- se em assembleia
nacional, quando tomam a decisão de não se dissolverem antes de terem dado à França uma constituição. É o
momento em que se opera a transferência da soberania, que deixa de ser identificada com a pessoa do rei e
passa para a representação da nação, pondo fim a séculos de monarquia. Esta revolução, muitas vezes apelidada
de revolução dos juristas, merece duplamente tal denominação, visto que é feita por homens de leis e o próprio
acto é de essência jurídica.
A Assembleia Constituinte dá à França novas instituições e, na noite de 4 de Agosto de 1789, ataca a ordem
social com a votação de decretos que consumam a ruína do feudalismo.
Esta primeira revolução é mais antinobiliárquica do que antimonárquica, uma vez que conserva o princípio da
monarquia e tenta conciliar a instituição régia com as aspirações da França moderna. A sua inspiração é
essencialmente individualista e liberal.
3. Esta primeira fase revolucionária é seguida de uma segunda, que as intenções e as disposições da primeira
não faziam prever. Inicia-se com a jornada popular de 10 de Agosto de 1792, derruba a monarquia, executa o
monarca e proclama a república.
Mais radical, vai muito mais longe do que a precedente em todos os domínios. A primeira revolução, a da
Constituinte, era liberal. A segunda ultrapassa o liberalismo: tende a apagar as diferenças sociais, suprime a
distinção censitária em que assentava, sob o regime da Constituição de 1791, o exercício dos direitos políticos.
Enquanto a primeira é feita por uma burguesia desafogada de togados, que em seguida ocupa as administrações
departamentais e municipais, a segunda é obra da arraia-miúda de Paris, das secções, dos sans-culottes. A
primeira emprega processos moderados, ao passo que à segunda não repugna recorrer a soluções extremas se as
circunstâncias, tanto internas como externas, o exigirem; o terror é um aspecto desta revolução.
Diferença também no plano das instituições políticas e administrativas: a primeira revolução liberal suprime
todos os agentes do poder central, enquanto a segunda se empenha numa direcção completamente diferente,
estabelecendo um governo concentrado, autoritário, que em nada fica atrás do absolutismo da monarquia. O
governo revolucionário alia uma política de inspiração democrática a um poder forte, liberto de todos os
entraves que a monarquia não conseguira extirpar, completamente subordinado à noção da salvação pública. É
esta a situação que se vive até ao 9 Termidor.
4. Fazendo-se eco dos acontecimentos de 14 de Julho de 1789, uma revolução municipal substitui nas cidades
os municípios tradicionais pelos novos poderes. Nos campos, uma revolução camponesa prossegue o seu curso
pela emancipação completa da terra e a libertação do indivíduo. É um movimento autónomo que tem o seu
programa, os seus actores, e cujo ritmo não coincide com o da revolução parisiense. A revolução agrária opera-
se por vagas sucessivas, irregulares, a primeira das quais é o «grande medo», uma espécie de jacquerie que
triunfa pelo medo que inspira aos senhores e à assembleia e que conduzirão à abolição a prazo dos direitos
senhoriais.
Depois do 9 Termidor, a história da revolução perde esta simplicidade e a linha geral altera-se e complica-se. A
Convenção do Termidor e, mais tarde, o directório oscilam entre a restauração do passado e o aprofundamento
da revolução. Os homens do Termidor regressam ao liberalismo em que se inspiravam os constituintes e
abandonam a política democrática avançada praticada pelos montanheses. Diremos, mas com grandes
precauções, que a revolução, depois do Termidor, volta a tomar-se burguesa, por oposição à revolução popular
entre 1792 e 1794. O regime oscila entre dois perigos, o da contra-revolução monárquica e o do jacobinismo.
Bonaparte põe cobro a esta indecisão, e o 18 Brumário assinala o fim de dez anos de sucessivos ressaltos.
O medo
Os dois partidos, contra-revolucionário e revolucionário, usaram-no. Os emigrados experimentam a intimidação
e contam com o medo para desencorajarem ou para isolarem os revolucionários. Em sentido inverso, os
revolucionários empregam o terror contra os seus adversários. Esta dialéctica dos medos simétricos e
antagónicos, do terror e do contraterror, ocupa um lugar muito importante no desenrolar da revolução.
A guerra
De todos os factores, a guerra é o mais determinante, apesar de não ter desempenhado qualquer papel até 1792.
Porém, em Abril de 1792, a assembleia legislativa declara guerra à Boémia e à Hungria e, a partir daí, é
introduzido um dado novo que vai ter consequências incalculáveis. A guerra tem como primeira consequência
que o destino da revolução já não depende apenas das assembleias, mas também do acaso dos combates.
As condições de exercício do poder são profundamente modificadas, as garantias suspensas, as liberdades
individuais postas entre parênteses. A guerra engendra o terror.
A questão religiosa
Existem duas teses opostas sobre as conexões entre a questão religiosa e a revolução. Segundo a primeira,
sendo a revolução anti-religiosa, tinha de fazer guerra à Igreja; a outra interpretação reduz as dimensões do
conflito entre a revolução e a Igreja a um acidente,já que os revolucionários não se propunham descristianizar a
França, mas reconstrui-la à volta do cristianismo. Uma sucessão de mal-entendidos conduziu ao cisma.
A verdade situa-se entre estas duas teses extremas. É certo que a revolução, a princípio, não era anti-religiosa,
mesmo que fosse anticlerical. Contudo, concluir que se tratou de um simples acidente é minimizar o alcance
dos primeiros acontecimentos. A constituição civil do clero comportava disposições inaceitáveis, que atingiam
a estrutura hierárquica da Igreja e os vínculos com Roma, o que levou ao cisma e à perseguição. A ruptura teve
consequências enormes, pois os católicos foram lançados em bloco para o campo da contra-revolução. As
consequências ultrapassarão o período revolucionário, pois o conflito com a igreja católica pesará durante um
século e meio sobre toda a Europa.
As vontades e as paixões
A estes factores objectivos juntam-se outros mais subjectivos, verdadeiramente humanos, psicológicos ou
políticos. Com efeito, do lado dos detentores do poder é preciso contar com as intrigas, com a conspiração
aristocrática, com o mal que os emigrados fizeram à coroa, com o jogo duplo do rei e com a política do «quanto
pior melhor» praticada pelos contra-revolucionários. Estas intrigas lançaram a suspeição e erradicaram da
opinião pública o lealismo monárquico. No campo oposto funcionaram os revolucionários desejosos de irem
mais longe, as divergências, as rivalidades, as lutas de facções, que o curso dos acontecimentos e os problemas
nascidos da guerra acentuaram.
A primeira etapa
A primeira etapa vai de 1789 até à declaração de guerra (Abril de 1792). Num primeiro tempo, os
acontecimentos em França suscitam fora das fronteiras a comiseração dos soberanos, a curiosidade e a simpatia
de uma parte da opinião pública. Quase todos os grandes espíritos da Europa compreendem, de imediato, a
importância do acontecimento, pois a língua francesa é no século XVIII o veículo das ideias e dos escritos. A
Revolução Francesa, por seu lado, não está fechada sobre si própria, e os acontecimentos depressa exercem nos
vizinhos reacções em cadeia. Um pouco por toda a parte desenham-se movimentos contra os príncipes, os
senhores e os bispos, contra os privilégios. Pode já falar-se de uma revolução da Europa ocidental.
A segunda etapa
A segunda etapa (1792-9) é a ruptura entre a França e os soberanos e caracteriza-se pela guerra. Os soberanos
apercebem-se da necessidade de asfixiarem a revolução à nascença na própria França, enquanto a revolução é
levada a fazer a guerra aos «déspotas». A guerra é de um género relativamente novo, de tipo ideológico. É uma
cruzada contra o antigo regime; não se limita a repelir o invasor, passa à ofensiva e empreende uma guerra de
libertação. A França anuncia que prestará assistência a todos os povos que queiram libertar-se da tirania. A
linha divisória entre revolucionários e contra-revolucionários passa daí em diante pelo interior de cada povo. Os
soberanos vêem virar-se contra si uma parte dos seus súbditos, que abraçam a causa dos exércitos
revolucionários.
Entre os soberanos e a revolução a luta é desigual. A Europa coligada deveria normalmente vencer; no entanto,
a verdadeira relação de forças é vantajosa para a revolução, que se mostra mais apta a conduzir à vitória esta
guerra de um novo tipo. Os soberanos mantêm os antigos métodos, enquanto a revolução inova, recorrendo a
meios inéditos, mais eficazes. Mobiliza a nação, lançando contra exércitos de profissionais as massas
mobilizadas e motivadas. A revolução reconduz os invasores às fronteiras, penetra em território estrangeiro,
ocupa, transforma política e socialmente. A invasão, a ocupação, conduzem à abolição do antigo regime e, por
outro lado, as ordens e o feudalismo são abolidos, as corporações dissolvidas, o Estado secularizado, a
igualdade civil proclamada e as instituições da França revolucionária introduzidas.
O directório provoca a formação de repúblicas irmãs, o que responde a duas preocupações: uma, puramente
militar, tende a dispor à volta da França um escudo protector; a outra, cujo alcance é maior, visa a
transformação da Europa.
A terceira etapa
A terceira etapa é dominada pela personalidade de Napoleão, cuja acção não constitui ruptura com a revolução,
mas a extensão da obra empreendida pelas assembleias e pelos directores. Napoleão conjuga a guerra e a
administração, a acção dos prefeitos e a presença das tropas e estende o domínio às extremidades da Europa, da
Península Ibérica à Polónia e das províncias da Ilíria à Dinamarca.
Napoleão introduz em toda a parte os princípios e as instituições revolucionários e os métodos da administração
moderna. A burguesia e as classes médias vêem abrir-se-lhes campos novos de actividade e de iniciativa e a
divisão territorial adoptada para a França em 1800 é aplicada à Alemanha e à Itália, com os departamentos
dirigidos pelos prefeitos, os corpos técnicos, a administração financeira, a magistratura, as obras públicas.
3. A obra da revolução
Qual é o balanço da revolução? Duas reflexões preliminares se impõem.
1. A revolução nem sempre foi bem inspirada. De facto, a revolução não está integralmente voltada para o
futuro: alimenta um sonho nostálgico da idade de ouro e das repúblicas de outrora. Ao invés, certas ideias
sofreram por estarem avançadas para o seu tempo: certos aspectos da política económica eram prematuros.
Entre as inovações, muitas desaparecerão com a restauração, mas não para sempre, pelo que a história do
século XIX é a redescoberta progressiva das antecipações da revolução.
3.1. O Estado
Evolução da noção de política
Com a revolução a noção de política transforma-se.
As práticas
A consulta popular por via eleitoral
Com a Constituinte, a revolução recorre à eleição para a escolha dos representantes da nação: para a nomeação
das administrações; para a justiça - os magistrados são escolhidos por via electiva por tempo limitado; para o
próprio clero - a constituição civil do clero previa que os bispos e curas fossem escolhidos pelos eleitores. A
eleição torna-se o processo universal de designação. Mas, se o campo de aplicação da eleição é universal, só
uma pequena parte dos cidadãos tem direitos políticos.
O directório
Após a descentralização extrema da Constituinte e a reorganização provisória empreendida pelo governo
revolucionário, o directório deixa uma obra administrativa que está longe de ser negligenciável. O sistema
fiscal, que vigorou no século XIX, assegurará o essencial dos recursos do Estado até à adopção do imposto
sobre o rendimento, durante a Primeira Guerra Mundial. No que diz respeito às instituições militares, o
directório adopta, com a lei Jourdan, o sistema de recrutamento que dividia os recrutas em classes, que se
convocam à medida das necessidades.
O consulado
O consulado estabiliza as instituições. Bonaparte lança as bases da administração moderna e traça o quadro no
qual a França ainda vive. Se as constituições políticas do consulado e do império não sobreviveram a Napoleão,
a constituição administrativa foi conservada por todos os regimes posteriores. A reforma consular estabeleceu
uma administração centralizada: tudo emana de Paris, tudo lá vai parar. Isto diz até que ponto o consulado toma
o caminho oposto à inspiração liberal da primeira revolução.
A administração é especializada, já que existem administrações competentes para as finanças, a justiça, as obras
públicas, o culto, para o próprio ensino, com a criação da universidade napoleónica. Esta administração é
servida por um corpo de funcionários em que o poder pode ter confiança, pois é ele que os nomeia e os exonera.
O funcionário é um tipo social novo: o antigo regime só conhecia oficiais que tinham comprado um cargo, e os
comissários que tinham uma carta de comissão. Os novos funcionários só são responsáveis pela sua actividade
perante o Estado e fogem ao controle da justiça ordinária.
Paralelamente à justiça ordinária, que tratava dos litígios entre cidadãos, há uma justiça administrativa, a única
competente quanto aos actos da administração. Esta administração é exportada de França pelos exércitos. Os
outros países copiam-na, pois compreenderam que ela traz consigo a eficácia, a racionalidade, o poder. Deste
modo, no governo dos homens, tanto para a política como para a administração, a revolução, prolongada pelo
génio administrativo de Napoleão, modificou profundamente a ordem existente e modelou o futuro.
Antes de 1789
Mesmo antes da revolução, o movimento das ideias e a política dos Estados tinham já alterado sensivelmente a
situação. O racionalismo combate o domínio político da Igreja, mas vai mais longe, atacando o próprio dogma.
Por seu lado, o absolutismo monárquico pugnou pela sua emancipação, já que a afirmação da sua soberania era
válida também em relação às tutelas religiosas.
O papel da revolução
A ruptura progressiva entre o catolicismo romano e a revolução explica muitas peripécias e também alguns
insucessos da revolução. Ao secularizarem as instituições, os revolucionários são levados a tomar medidas
radicais. O clero perde o seu estatuto, os seus privilégios: o registo civil é transferido para as municipalidades,
os seus bens são confiscados, as ordens religiosas dissolvidas e o próprio culto é muitas vezes entravado. Pela
primeira vez as sociedades modernas fazem a experiência de uma separação radical entre o religioso e o
político, entre as igrejas e o poder público.
Depois da revolução
A obra de Bonaparte é ambígua: ele não assume toda a política religiosa empreendida pela revolução, que
considera em parte quimérica, como, por exemplo, os cultos revolucionários. Contudo, mantém a secularização
e a venda dos bens nacionais. Com a Concordata de 1801, a Igreja vê a sua situação oficial novamente
reconhecida, mas muito diferente da do antigo regime. Fica consagrado no direito público que a França vive
sob o regime do pluralismo religioso e Bonaparte consegue que o papa renuncie à restituição dos bens
nacionais. Convertidos em funcionários, bispos e curas são nomeados com o acordo do governo, recebem um
vencimento e são quase tão dependentes dos poderes públicos como os funcionários das outras administrações.
A obra da revolução
A revolução começou por destruir a sociedade do antigo regime e, três meses depois da primeira sessão dos
estados gerais, pode dizer-se que ela desaparecera. A sociedade nova caracteriza-se pela liberdade do indivíduo,
da terra, da iniciativa individual. São abolidos todos os entraves (corporações, privilégios, direitos banais), os
monopólios que impediam a concorrência ou a livre escolha, as regulamentações restritivas que paralisavam a
iniciativa. Ela toma medidas para impedir a reconstituição desses constrangimentos com a lei Le Chapelier de
1791, que extingue as corporações e os agrupamentos e proíbe a sua reconstituição. Desde então é considerado
delito o facto de os indivíduos se agruparem em função das suas actividades profissionais ou económicas.
Esta primeira revolução liberal, individualista, considera que a tutela mais temível para o indivíduo é a
existência de corpos intermediários. Esta hostilidade pelos corpos e pelas ordens é talvez o traço mais
característico do seu espírito. Este estado de espírito sobreviverá muito tempo à revolução; toda a tradição
republicana e democrática do século XIX continua a desconfiar dos agrupamentos e das associações. Será
preciso aguardar o dealbar do século XX, que dará um estatuto às associações. Foram necessários cento e dez
anos para se aceitasse a reconstituição de associações, tão grande era o receio de que prejudicassem a liberdade
do indivíduo.
A revolução instaura como prática a igualdade civil. Todos os franceses têm desde então os mesmos direitos
civis e também as mesmas obrigações. É o fim dos privilégios, os próprios títulos são abolidos e as distinções
sociais suprimidas. A igualdade perante a lei e a justiça significa a supressão de todas as justiças senhoriais,
municipais, eclesiásticas.
A revolução instaura um sistema de contribuição proporcional aos recursos de cada cidadão e garante a
igualdade no acesso aos cargos civis e militares, suprimindo a venalidade dos cargos. O exército e a
administração pública vão tomar-se vias de promoção social: é em parte pelo serviço do Estado e pelo serviço
das armas que se fará a renovação de homens. Um fenómeno semelhante atinge a propriedade, com a venda dos
bens nacionais, a qual lança no circuito económico bens tornados estéreis pela inalienabilidade eclesiástica ou
pela transmissão hereditária dos bens nobiliárquicos.
A guerra revolucionária
Com a revolução aparece a nação em armas, a mobilização geral. É, primeiro, o apelo aos voluntários e, mais
tarde, a generalização do serviço militar, consequência do princípio da igualdade. A táctica e a estratégia são
transformadas pela intervenção do número, pela interrupção das massas. Aos exércitos profissionais, que eram
objecto de um treino muito apurado, opõe a revolução massas mediocremente instruídas, mas que triunfam pela
superioridade numérica e pelo impulso revolucionário.
Uma nova característica é a guerra psicológica e ideológica. O soldado defende tanto o seu solo como o regime
a que aderiu e bate-se tanto pela revolução como pelo interesse nacional. Os revolucionários pensam que o
soldado-cidadão é superior ao mercenário, pois compensa a sua inexperiência com o seu heroísmo, ao mesmo
tempo que a propaganda é uma das armas mais eficazes desta guerra.
3.6. Conclusão
A revolução, revista pelo consulado e pelo império, concretizou algumas tendências anteriores da monarquia. A
ruptura não é tão impressionante como se nos afigura ou como a historiografia a apresenta. Encontram-se de
ambos os lados da ruptura de 1789 elementos de continuidade. A monarquia, a seu tempo, empreendera um
esforço paciente de uniformização e de unificação para aumentar a centralização, reforçar a coesão, reduzir os
particularismos. A revolução, beneficiando de um impulso novo e da adesão da nação, pôde levar a bom termo
este esforço e varrer as últimas resistências.
A segunda observação refere-se às relações entre o período propriamente revolucionário e o que se lhe segue
imediatamente, dominado pela personalidade de Bonaparte. Na verdade, se a síntese napoleónica é recuada em
relação às tentativas mais avançadas da revolução, foi talvez por este recuo que se tornou viável a obra da
revolução, que permitiu à ordem política e social instituída pela revolução perdurar, já que foi amputada do que
comportava de mais contestável e quimérico.
Terceira observação, a restauração não demoliu o edifício construído pela revolução, se bem que tenha limitado
a aplicação dos princípios na prática. Ainda que tenha criticado o sistema e denunciado alguns princípios,
acabou por respeitar a obra da revolução.
A quarta e última observação esclarece um período mais próximo de nós: no século XIX, a sociedade,
retomando o caminho interrompido pela restauração, levará a bom termo o que a revolução iniciara,
restabelecerá o que fora suprimido e tirará todas as consequências dos princípios enunciados em 1789.
4. O continente americano
Até à independência americana e à Revolução Francesa, o Novo Mundo estivera estreitamente associado à
Europa ocidental. Os Europeus tinham integrado a América no seu sistema económico (regime do pacto
colonial) e tinham sobreposto às civilizações pré-colombianas os seus modos de vida, as suas instituições, a sua
religião. Os anos 1790-1825 assinalaram um momento capital no desenvolvimento histórico da
América, que sofreu as repercussões dos acontecimentos da Europa. A revolução exerceu uma influência
intelectual e política na América, que aderiu à sua escola, quis imitá-la e adoptar-lhe os princípios. Mais
indirectamente, as guerras de Napoleão na Península Ibérica tiveram grandes repercussões sobre a emancipação
da América Latina.
A independência do Brasil
Quando Napoleão procura fechar a Europa à Inglaterra, Portugal recusa inverter as alianças. Nos finais de 1807,
invade Portugal e a dinastia de Bragança embarca para o Brasil, que, de uma situação de dependência, se toma a
sede do governo e o centro do poder enquanto dura a hegemonia francesa na Europa. Assim, com mais de um
século de avanço, um governo europeu deixara o seu país para manter a existência do Estado, como o farão
alguns governos em 1940 perante o avanço hitleriano.
Estes anos serão para o Brasil anos de desenvolvimento: já não podendo contar com Portugal para as trocas
comerciais, abre-se ao comércio britânico. Porém, terminada a guerra, retomando Portugal a sua independência,
o Brasil não aceitará voltar a ser uma província sujeita às decisões de Lisboa. De resto, a família real prolonga a
sua permanência, mas, em 1820, a vaga de agitação que percorre a Europa atinge Portugal e o rei vê-se
obrigado a regressar a Lisboa para restabelecer a sua autoridade, deixando o seu filho D. Pedro como regente no
Rio de Janeiro. Entre Portugal e o Brasil, entre a metrópole e a colónia, entre pai e filho, rei e regente, os laços
afrouxam e a separação efectua-se sem crise. O regente D. Pedro proclama a independência do Brasil e toma-se
o primeiro imperador constitucional. Este império constitucional durará até 1888, data em que a república será
proclamada uma república de inspiração positivista.
O ponto de partida
Tal como para o Brasil, o ponto de partida é o momento em que as tropas francesas asseguram o controle da
Espanha, mas as consequências não são as mesmas. Os Bourbons não embarcaram para a América, a dinastia
abdica, e no trono Napoleão coloca o seu irmão José. Na ausência do soberano, as colónias vêem-se forçadas a
administrar-se a si próprias. Desenvolve-se uma vida política local, que poderia classificar-se de democrática,
se não se limitasse apenas aos crioulos. Economicamente, abrem-se ao comércio britânico e é a frota inglesa
que assegura a sua segurança e o seu abastecimento.
A caminho da emancipação
Numa segunda fase, as colónias desligam-se da junta insurreccional de Sevilha. O movimento muda então de
orientação e passa à luta pela emancipação, sendo a primeira medida dos colonos a substituição dos vice-reis e
dos capitães-generais por administrações que eles controlam. No conjunto da América espanhola o movimento
é conduzido pelos crioulos, salvo no México, onde toma um carácter mais democrático, com a participação dos
índios, que têm à cabeça eclesiásticos de origem índia, como os padres Hidalgo e Morales, que dão, em 1810, o
indício da independência; os crioulos que temem ser submergidos pelos indígenas permanecem leais à Espanha.
Entre 1810 e 1814 lavra a guerra civil entre a minoria lealista e a maioria saída da independência, que tem à
cabeça Bolívar no Noroeste da América do Sul e San Martín no vice-reino de La Plata. Entre 1813 e 1814, a
insurreição triunfa.
O terror contra-revolucionário
Mas, ao mesmo tempo, a Península Ibérica é libertada da ocupação francesa e o rei reocupa o trono. Fernando
VII, que decide restabelecer a autoridade nas colónias revoltadas, envia um corpo expedicionário. Os seus
desígnios são servidos por um concurso de circunstâncias favoráveis: os insurrectos são pouco numerosos,
estão mal armados e divididos; os lealistas, que retomaram as armas, lutam ao lado dos Espanhóis, que,
aproveitando os antagonismos, se apoiam nos índios contra os crioulos. O México, a Venezuela, o Noroeste da
parte andina da América espanhola, são reconquistados.
A independência
A atrocidade da repressão, assim como o valor de alguns homens, entre os quais Bolívar e San Martín, contribui
para relançar o movimento. Finalmente, os insurrectos, denominados «independentes», recebem o apoio de
voluntários da Europa: o fim das guerras libertou soldados profissionais que vêm bater-se ao lado dos
revoltosos. Por outro lado, a insurreição das tropas espanholas de Fernando VII em Cádis é o ponto de partida
da revolução espanhola, que durará três anos, até que a expedição francesa consiga, em Trocadero, esmagá-la e
restabelecer o poder de Femando VII. A sedição de Cádis ilustra a interacção dos acontecimentos nas duas
costas do Atlântico, pois é a insurreição das tropas que recusam ir para a América esmagar os revolucionários
que permite o sucesso destes. Dez anos mais tarde reproduz-se o mesmo fenómeno com a revolução polaca de
1830, quando os polacos mobilizados se sublevam contra o czar Nicolau, que pretende dirigi-los contra a
Bélgica, salvando assim a independência belga e a Revolução Francesa de 1830. As revoluções do Ocidente
triunfam com o sacrifício das do Leste.
Finalmente, os independentes beneficiam do apoio da Grã-Bretanha, que foi a primeira nação a reconhecer os
seus governos, e dos Estados Unidos, que se opõem à intervenção da Santa Aliança. A Declaração de Monroe
situa-se nesta conjuntura. Esta declaração, significa que o tempo da dominação colonial na América pertence ao
passado.
As operações correm de feição aos insurrectos. San Martín transpõe os Andes e liberta o Chile, enquanto
Bolívar liberta o Norte do continente. San Martín sobe então para o norte, Bolívar desce, juntando as forças nos
planaltos do Peru, onde a batalha de Ayacucho, em 1824, põe um ponto final nesta história, com a libertação de
toda a América espanhola. Sendo o Brasil independente há dois anos, todo o continente sul-americano é, desde
então, senhor do seu destino.
Conclusão
O império espanhol e português dissolvem-se, mas outros laços não políticos subsistem, com uma cultura e uma
língua comuns, o catolicismo e tudo aquilo que os Espanhóis resumem num termo vago: a «hispanidade».
A libertação da América Latina paga-se durante muito tempo com um duplo malogro político: a falência da
unidade e a instabilidade política. Sob a fachada colonial, a América conhecera uma unidade de civilização e de
governo. Com a independência, o antigo império espanhol divide-se em fragmentos de dimensões muito
desiguais, a maior parte dos quais não têm condições de viabilidade. Mesmo a Grande Colômbia, que devia
reunir a Colômbia propriamente dita, o Equador, a Venezuela e a Bolívia, se fragmenta, marcando o fracasso de
Bolívar, que pretendia emancipar e unificar a América.
Demasiado pouco povoado, demasiado vasto, rivalidades que opõem os países, a hostilidade da Grã-Bretanha e
dos Estados Unidos, que não têm interesse em encorajar a unidade, este continente quase não conhece
circunstâncias favoráveis à sua unificação política. Data dessa época a dissimetria entre a poderosa união do
Norte e a fragmentação da América do Sul. Esta desigualdade põe a América Latina à mercê do Norte e falseia
o conteúdo do pan-americanismo, que mais não é do que um instrumento da hegemonia
política ou económica norte-americana.