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pt * 16 a 29 de abril de 2014 J


anos 70 a nossa situação representa e material, devido ao facto mesmo
para muita gente ora um anacro- desse começo de integração, que
nismo histórico, ora um escândalo, o menos que se pode dizer é que já
ora as duas coisas ao mesmo tempo, Convém, e é urgente, não somos o que éramos há 40 anos.
tanto no plano interno como no Depois de um momento de perple-
externo. Para um certo número de
volver sobre esse xidade, em pouco tempo, operámos
portugueses, ávidos de liberdade e momento de rutura uma conversão do nosso projeto
democracia, um enigma e um pesa-
delo de que não conseguiam sequer
que instaurou entre histórico de que se conhecem
poucos antecedentes. Fizemo-la “à
imaginar o improvável fim que, num nós a democracia e portuguesa”, sem drama, habitua-
relâmpago, a Revolução de Abril
materializou.
abriu um campo de dos como estamos, desde há séculos,
a fazer da necessidade, virtude.
Não parecia haver motivos para possibilidades, em A grande questão, a que merece
que aquilo que se tinha mantido du- todos os domínios, ainda ser colocada, hoje em dia, em
rante meio século não se prolongas- tempo de crise, nacional e europeia,
se. Em 1970, Portugal é a mais velha do qual todos somos é esta: adquirimos, para além das
ditadura europeia, solidamente devedores aparências, esse rosto novo que
implantada apesar dos sobressaltos a memorável Revolução nos teria
que a faziam estremecer periodi- dado? Durante séculos, ser por-
camente. No plano exterior, era a Uma revolução é tuguês significava implicitamente
única potência colonial que recu- sentir-se filho de um país coloni-
sava ainda encarar e, menos ainda, talvez isso: não se sabe zador e, por essa razão, dotado de
admitir o que outros impérios muito para onde se vai, mas uma espécie de identidade universal
mais poderosos - a Inglaterra e a imaginária. Agora, que com exce-
França - já tinham admitido, quer
segue-se em frente, lentes motivos, não nos podemos
dizer, a Descolonização. por fidelidade a sonhos prevalecer deste rosto imaginário,
Todavia, pouco tempo depois, em que é que nos convertemos?
a primeira e última nação coloni-
mais poderosos do que Estamos na Europa, mas custa-
zadora europeia vê-se reduzida ao cada um de nós nos, a nível simbólico, definir-nos
seu espaço do século XV, e o mais como europeus. O “europeísmo”
orgânico dos regimes antidemocrá- não acrescenta nada - por enquan-
ticos do Ocidente vê-se convertido, A grande questão, to - àquilo que nos sentimos ser.
após algumas peripécias, numa hoje em dia, em tempo Sobretudo, não substituiu a inscri-
democracia. Nenhuma nação do ção no espaço, ao mesmo tempo
Ocidente conheceu durante a déca- de crise, nacional VIeIRa Da SIlVa onírico e real, que nos fez sonhar
da de 70-80 um abalo semelhante. e europeia, é esta: durante 500 anos.
Em qualquer outro país, tudo o que E isto leva, para terminar, ao
há 40 anos teve lugar entre nós após adquirimos, para Cartaz do 25 de Abril, a partir de uma ideia/frase único tipo de carência que, ao fim
o momento eufórico da libertação além das aparências, de Sophia de Mello Breyner destes 40 anos de pós-revolução
- em particular a renúncia a um de Abril, se pode assimilar a uma
império colonial de meio milénio esse rosto novo que a certa desilusão que toca o coração
de duração - teria provocado, sem memorável Revolução mesmo da Revolução e da histórica
dúvida, não apenas um dilacera- Revolução. A democracia foi le-
mento no mero plano político como nos teria dado? gitimada; os seus efeitos na vida po-
um traumatismo profundo. lítica e quotidiana dos cidadãos são
Nada nos aconteceu de pareci- inegáveis, por mais que a crise atual
do. Ao cabo de 13 anos de Guerra
A nossa democracia a ensombre. Vivemos num país livre
Colonial, o nosso velho império é ainda ao cabo de 40 e só aqueles que não conheceram
revelou-se um encargo de que era nunca o custo de ter passado largos
imperativo libertarmo-nos. Esse foi
anos uma espécie de anos - ou toda uma vida - numa
o motivo próximo da Revolução de regime sem nome. não-democracia, podem considerar
Abril. Mas a evolução da Europa, os estas regalias como formais ou des-
verdadeiros interesses dos nossos prezíveis. Todavia, de certo modo,
atores económicos iam na mesma a nossa democracia é ainda ao cabo
direção. De certo, o sentimento de O regresso ao antigo lar lusitano de 40 anos uma espécie de regime
fracasso, ao mesmo tempo histórico foi-nos imposto pela força das sem nome.
e ético, criado pela maneira como coisas; a entrada na Europa, por Queremos dizer com isto que a
pusemos fim aos nossos sonhos considerações ao mesmo tem- Revolução - a de todos nós que ela
imperiais, subitamente anacróni- po políticas e económicas, cuja restituiu ao gozo de uma cidadania
cos, e a forma como o processo de imperiosa necessidade ninguém adulta e, naturalmente, aqueles que
Descolonização se desenrolou - podia sentiu e exprimiu com mais historicamente foram os seus atores
ter sido outro? - deixaram os seus convicção do que o então líder do por a terem desejado e sonhado -
vestígios na vida e na memória por- Partido Socialista, Mário Soares, não suscitou ainda um verdadeiro
tuguesas posteriores ao 25 de Abril. que como Presidente cumprirá imaginário, como outrora o da
Mas tudo isso contou pouco esse (até há pouco) sonho capital Monarquia, o da primeira República
diante da urgência - antes de mais do 25 de Abril. Era preciso amarrar e, mesmo, do Estado Novo.
para as mesmas Forças Armadas - um Portugal onde então forças e Só o seu momento inaugural
de se libertar de uma guerra levada tendências pouco democráticas permanece vivo e recebeu na vés-
a cabo com má-consciência (como continuavam vivas, a um conjunto pera da sua celebração, a primeira
a viveram e evocaram alguns dos de forte coerência democrática. Em das suas evocações fictícias apta a
mais decisivos atores e pensado- suma, embarcar, por assim dizer, converter, ou ser já, uma memória
res do 25 de Abril, entre eles Melo na barca da Europa democrática. viva e realmente “memorável”*.
Antunes), e de instaurar e restaurar Qualquer que seja o juízo que Esperamos que esse retrato miti-
as liberdades cívicas, instituciona- façamos, quer sobre as peripécias ficado desse momento, para nós
lizando uma Democracia segundo de uma revolução que entrou cedo sempre presente, nos abra a porta
o modelo ocidental. Para que uma na mitologia da esquerda europeia, para esse imaginário ausente que
vez liberto do antigo fardo glorioso, quer sobre a estabilização enquan- até hoje nos faltava para enterrar-
joão abel manta
Portugal pudesse desempenhar to democracia parlamentar de mos dignamente o imaginário de
na Europa, então em construção, tipo clássico, incluso sobre a nossa séculos que a mesma Revolução, em
um papel capaz de compensar a adesão e integração no processo Cartaz sobre a aliança Povo/MFA (Movimento nome de exigências agora univer-
sua nova realidade de pequeno da construção europeia, Portugal das Forças Armadas, que derrubou a ditadura) sais, sepultou para sempre. J
país, privado daí em diante da sua mudou de rosto. Ou antes, conheceu
dimensão imperial. tais mudanças de ordem estrutural *Lídia Jorge, os memoráveis

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