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direcção de

Jean-Pierre Rioux
Jean-François Sirinelli
PARA UMA HISTÓRIA
CULTURAL
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direcção de
Jean-Pierre Rioux
Jean-François Sirinelli

PARA UMA HISTÓRIA


CULTURAL

j\jt

1998
EDITORIAL ESTAMPA
0

riográfico deva ser abordado de maneira suficientemente vasta para i VIOLÊNCIA E CONSENTIMENTO: A «CULTURA DE GUERRA»
ii englobar não apenas a história das produções e dos produtores cul- ' DO PRIMEIRO CONFLITO MUNDIAL
turais, mas também a análise dos comportamentos humanos e das \
relacões sociais. É a este nível que a história do caso Dreyfus mais ( Stéphane Audoin-Rouzeau
carece de resultados. Não se pode deixar de realçar que a abordagem " Annette Becker
arrefecida de um tema, que não o está tanto quanto por vezes se ,
l pensa, se toma possível pelos processos de despolitização que atingem ,"
a história contemporânea em França, como que em eco do descrédito ,
que afecta hoje as forças políticas no seu conjunto. A presença de uma T
l
nova geração de historiadores, muito menos sensíveis às apostas po- i
líticas do que os seus antecessores, anima igualmente as tendências {l
culturalistas que cada vez mais presidem às análises de acontecimen- g No momento em que finda o século XX, nunca, e estranhamente,
tos habitualmente reservados à história política tradicional. Este aspec- a guerra de 1914-1918 pareceu ao mesmo tempo tão longínqua e tão
to apresenta pelo menos uma vantagem: autoriza um estudo da vida próxima. Longínqua face à progressão lenta, caótica, de uma «casa
política em temos diferentes dos que nos lega a esfera da ideologia.
Permite finalmente levantar problemas resultantes tanto do psicológico _ comum europeia»
so do início que toma
do século. quase incompreensível
E próxima, face à palavra oSarajevo
confronto
de imen-
novo
como do antropológico, para tudo dizer sobre o humano, mesmo na J pronunciada, e sobretudo face à plena renascença das nações na Europa,
l sua parte maldita. l sobretudo a Leste, mas também a Oeste. Nações de novo descobertas
f como no princípio do século, vividas por alguns como entidades
i étnicas, mesmo biológicas. E no entanto, ainda que a violência dos
; sentimentos nacionais tenha estado na raiz do conflito de 1914-1918,

l e em especial no encarniçamento da luta, tem-se hoje muita dificul-


? Clade em explicar as razões dessa obstinação furiosa. François Furet
i descreve perfeitamente esse paradoxo, ao observar: «Um adolescente
de hoje no Ocidente já não pode sequer conceber as paixões nacionais
f
b que levaram os povos europeus a matarem-se durante quatro anos.
; Ainda tem noção disso pelos seus avós, mas ignora as razões. Nem
l os sofrimentos passados nem os sentimentos que os tomaram aceitá-

, ' ¢ h
veis lhe são compreensíveis; nem o que tiveram de nobre nem o que
1 comportaram de passivo falam ja ao seu coraçao ou ao seu espirito
. · p ~ p ·

, {|,b como uma lembrança, mesmo transmitida... A primeira guerra do


j século XX [...l continua a ser um dos acontecimentos mais enigmá-
l i ticos da história modema.j
Y
l l François Furet, Lê Passé d'une illusion, Paris, Laffont/Calman-Lévy, 1995,
\
T p. 36.

236 t 237
P

É pois uma tarefa particularmente difícil a dos historiadores da ! outro lado, para compreender a própria guerra, convém actualizar as
l, «cultura de guerra» do primeiro conflito mundial, que aqui se definirá, , inflexões na evolução das representações no interior do próprio con-
l num sentido amplo, como o campo de todas as representações da b flito. Mas, seja como for, o domínio desta dupla cronologia impõe que
guerra forjadas pelos contemporâneos: de todas as representações que nos coloquemos no «panorama» do primeiro conflito mundial, e não
a si próprios deram da imensa provação, primeiro durante e, em se- à distânciaZ Isto, dir-se-á, é válido para o estudo de todos os fenômenos
guida, após ela. Aos historiadores que tentam, sob este ângulo, chegar do passado: no entanto, é próprio dos paroxismos engendrar tipos de
ao mais profundo da Grande Guerra2, convém dizer quanto e como o visão livres das exigências fundamentais da disciplina histórica. Por-
conflito continuou a alimentar os sobressaltos de um século que se , que ver a guerra de bem longe permite exorcizá-la mais facilmente,
,, iniciou com a grande catástrofe europeia - e depois mundial - do evitar as questões fundamentais que nos levanta, hoje ainda, enquanto
princípio deste século. Dedicando-se doravante a rodear esta noção ' Europeus do fim do século xx. Neste sentido, a historiografia do
capital de «cultura de guerra», devem no entanto satisfazer uma con- primeiro conflito mundial multiplicou as imagens construídas a priori,
dição prévia: libertar a historiografia do conflito do invólucro em que ,' ou estabelecidas desde há muito. Uma história renovada, decidida a
a encerraram os contemporâneos dos anos vinte e trinta, e cujas con- , abordá-la em pleno centro, sob o ângulo das culturas, só pode ser,
sequências se fazem sentir até aos nossos dias, tanto na historiografia desde logo, um projecto de demolição.
ii como na criação literária e artística. A este respeito, a historiografia '
l, do segundo pós-guerra acrescentou muitas vezes alguns estratos de °
incompreensão suplementares colocando, sem o querer, o primeiro ' Mundialização e totalização
conflito mundial na sombra do de 1939-1945. Descobrir as represen- ,
tações dos homens e das mulheres que viveram a tragédia de 1914- A questão lancinante que atormentou os antigos combatentes e que
: -1918 consiste, em primeiro lugar, em isolá-las das reconstruções dos ' continua a inquietar os historiadores é simples: como foi que militares
próprios agentes e das dos seus filhos, por vezes desde os primeiros b
e civis, na frente, perto da frente, longe da frente, aceitaram a guerra,
momentos da guerra, mais frequentemente desde o dia do armistício aquela guerra, e durante tanto tempo? Uma cronologia subtil do con-
até à véspera do segundo conflito mundial, e depois para além dele. flito, e dos seus fenômenos culturais, permite hoje precisar melhor as
O estudo da cultura de guerra impõe portanto uma dupla cronologia: ' evoluções subterrâneas. Para a França, por exemplo, tudo indica que
por um lado, exige que se separem os anos de confronto dos que lhe ' as inflexões são infinitamente mais complexas do que a passagem do
sucederam, conservando no espírito a ideia essencial de que a guerra , «entusiasmo» de 1914, a que Jean-jacques Becker há muito fez jus-
foi largamente recusada depois do conflito - e mesmo antes -, mas Q tiça4, ao por demais famoso «cansaço» de 1917: com efeito, parece que
não durante, a não ser de uma maneira relativamente marginal. Por '

' 3 Esta observação junta-se à de George Mosse a propósito do estudo de um


2 O Centro de Investigação do Historial da Grande Guerra de Péronne (Somme) outro paroxismo, o dos fascismos, que ele propõe estudar mais do interior, a fim
tenta, desde 1989, desenvolver este tipo de investigação sobre a história cultural ' de os compreender verdadeiramente. Ver, sobre este assunto, The Nationalization
do conflito, inscrevendo-a em panicular numa perspectiva nitidamente compara- of the Masses. Politicai Symbolism and Mass Movements in Germany from the
da. As suas publicações mais representativas são as seguintes: «La guerre de ' Napoleonic Wars through the Third Reich, Ítaca e Londres, Comell University
1914- 19 18. Essais d'histoire culturelle», Vingtième siècle. Revue d'histoire, n.° 41, ' Press, 1975, e a sua entrevista publicada na Revue européenne d'histoire, vol. l,
Jan.-Mar. 1994, e Jean-jacques Becker, Jay Winter, Gerd Krumeich, Annette ' n.° 2, 1994, pp. 247-252.
Becker, Stéphane Audoin-Rouzeau, Guerres et Cultures, 1914-/9/8, Paris, Armand ' 4 Jean-jacques Becker, 1914: comment lês Français sont entrés dans la
Colin, 1994. j guerre, Paris, Presses de la Fondation nationale dês sciences politiques, 1977.
.
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0

! depois de um ano e meio de mobilização cultural quase sem falhas em 1914-19156. Uma profunda estima pela sua natureza americana
(1914-1915) a verdadeira linha de separação das águas da Grande procedeu directamente dessa guerra feita com «a flor na espingarda»,
Guerra seria a de 1916. Em contrapartida, o ano de 1918 traduzir-se- numa Europa assaltada pela dúvida e despedaçada pelo luto. Desco-
-ia por um movimento de remobilização espontânea em sentido inverso, bre-se aqui a cronologia: a Grande Guerra dos Estados Unidos teve
também ele seguido da «desmobilização cultural>>5 de 1919, cuja ' lugar muito mais cedo; entre o Sul e o Norte, de 1861 a 1865.
amplidão, precocidade e efeitos profundos sobre a sociedade francesa Para além do balanço bem conhecido do imenso confronto, pode-
ainda precisam de ser largamente avaliados. Transpondo a análise para -se esperar hoje ligá-lo, via memória colectiva, a algo que nos seja
os outros beligerantes, podem discernir-se pontos de inflexão diferen- compreensível?
tês no desenrolar da guerra, sobretudo em função do seu lento pro- Recorda-se a imensa sangria demográfica. Nove milhões de mor-
cesso de mundialização e de totalização. A totalização provém em tos na Europa e, no mesmo espaço geográfico, três vezes mais de
parte do bloqueio estratégico que surgiu a partir do fim do ano de feridos, entre os quais seis milhões de inválidos, sem dúvida três
1914, da propagação do conflito, do progresso do poder de fogo e da milhões de viúvas, seis milhões de Órfãos, um número nunca avaliado
de parentes e pais de luto... Conhece-se o enfraquecimento econômico
l mobilização econômica - mas também cultural, e talvez sobretudo
cultural - das frentes internas.
. A mundiahzaçao,
. . ~ mais . bem conhecida,
. das principais potências. europeias,~ substituídas
" . pelos Estados ·Unidos
tem relaçao~ com o papel desempenhado pelos imperios. . . colonlals
. . e e,.,numa cena medida,
, . .
pelo Japao na Asia. . Sabe-se
. da perda meme- ·
' . . diavel de prestigio das metropoles nas colonias onde estalam as pri-
com a parte enorme tomada pelos Estados Unidos a partir de 1917, · "f " ° " "
Ê gue trans formaram uma «guerra civil· ' europeia»
· num confronto muri- meiras. mani estaçoes de . emancipaçao.
. . ·
Tem-se conhecimento · do desa-
dial,
. mas sempre a favor da cultura europeia. . E· a «hora dos Celtas», parecimento
· · de · quatro imperios, um "f dos quais em " proveito de" um
' , . , . . . . . totalitarismo radicalmente novo, edi icado sobre as minas do czarismo.
i proclamada na propria Australia pelo prlmelro-mlnlstro M. Hughes... · f " " "
Essa mesma cultura faz com que os Americanos,
, não esgotados com da
Admite-se
Europa»a de
catástro
que seecontinua
dos tratados
aindadohoje
pos-guerra,
a sofrer as
da consequências.
«balcanizaçao
três anos de guerra, descubram em 1917-1918, na frescura da sua Recorda-se o erro cometido em relação à Alemanha em Versalhes,
propaganda e na sua prática de combate na frente ocidental, toda uma que leva à exacerbação dos nacionalismos além-Reno e à afirmação
série de elementos característicos da cultura de guerra dos Europeus do mais radical de entre eles, o nazismo, cuja vitória política em 1933

Uma demc'nstraçao- do mesmo gênero


" fOl' feita
' para os outros paises
· beligerantes.
· 4 , .
trazia em si a nova catástrofe. · lembrança geral que -a
Em suma, é da
Ver, sobre este assunto, Jean-jacques Becker e Stéphane Audoin-Rouzeau dir., guerra de 1914-1918 esta ligada a um cortejo de horrores e de sofri-
Les Sociétés européennes et la Guerre de 19/4-/918, Centre d'histoire de la mentos de que todo o Europeu ainda hoje conserva - julga-se - cena
France contemporaine, Université de Paris X-Nanterre, 1990, e «Lés entrées en consciência.
guerre de 1914>>, Guerres mondiales et Conflits contemporains, n.° 179, Julho ' E, no entanto, o balanço da Grande Guerra foi subestimado; o seu
1995. . . preço foi, sem dúvida, ainda mais elevado do que se disse. Porquê?
5 Fomos buscar esta expressão sugestiva a John Flome, o primeiro a levantar . - ·
esta problemática, nomeadamente num colóquio organizado em Dublin em 1993: Porque so agora se começam a levantar cenas questoes, deixando de
0 .

Mobilizing for Total War: Society anal State in Europe, 1914-/9/8, aetas a se isolar o conflito e tentando repô-lo na continuidade. De facto, a
publicar. Este esquema só é válido no caso das potências vitoriosas, e nunca para
a Alemanha onde, pelo contrário, a «derrota recusada» impede o fenômeno de
«desmobilização» e leva uma boa pane dos Alemães a continuarem a guerra 6 Sobre este ponto, ver a obra de Mark Meigs, Optimism at Armageddon:
contra o inimigo, desta vez interno. Sobre este ponto, ver Gerd Krumeich, in Lês Voices ofAmerican Participants in World War One, Londres, Macmillan, 1996,
Sociétés européennes et la Guerre de 1914-/918, op. cit., e in Guerres et Cuitures, e Annette Becker, La Guerre et la Foi, de la mort à la mémoire, /914-/930,
1914-/9/8, op. cit. t Paris, Armand Colin, 1994.

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j
i

guerra permitiu evoluções, foi portadora de rupturas; mas também tempo promessas de rogos e de coragem comum, na frente e na
' diferiu prazos, manteve durante muito mais tempo os homens num retaguarda? Todas as sociedades beligerantes foram atravessadas por
século XIX que eles não podiam resolver-se a abandonar, provocou uma série de fluxos que iam da frente à retaguarda e reciprocamente,
mesmo regressõesZ No centro destas reflexões, descobre-se a noção munições e ternura, fervor e abastecimento, tenacidade e violência,
de totalização da guerra, mas desta vez nas suas consequências no amor e sofrimento, ferimento e reconforto. Para terminar na morte.
campo cultural. A morte, violência última, está no centro da totalização do conflito.
O processo de totalização da guerra está profundamente ligado a Ora, paradoxalmente, o testemunho do combate e, depois, a historio-
uma transposição de limiares, de graus na violência do confronto8, grafia «asseptizaram» durante muito tempo a morte, com o risco de
transposição que tem a sua origem nos sistemas de representação das nos tomar em parte incompreensível a história da Grande Guerra;
sociedades envolvidas na imensa provação. A este respeito, convém , largos aspectos do que se encontrava no centro de uma das piores
recordar primeiramente o que todas as investigações sobre a história experiências deste século estão ocultos e por explorar.
cultural dos exércitos confirmam: a imensa maioria dos soldados era Quanto ao combate: decerto não faltaram testemunhos, desde os
constituída por civis de uniforme, que permaneciam no essencial anos vinte e, sobretudo, dos anos trinta, para realçar todo o horror do
muito próximos das suas preocupações de civis9. Correspondências e campo de batalha. Mas, visto de mais peno, é quase sempre a bru-
licenças permitiam uma interpenetração das preocupações da frente e talidade anônima, cega, que é posta à frente, a violência sem respon-
da retaguarda, interpenetração muito mais importante do que dizem os sabilidade identificada. A brutalidade de indivíduo para indivíduo
está, no entanto, muito pouco presente. Mas ela existiu de facto, e as
, testemunhos
fechados literários
no mito dos anos vinte eentre
da incomunicabilidade sobretudo dos anosQuanta
civis e soldados. trinta, colecções dos museus de guerralo vêm aqui desmentir os discursos
correspondência rústica em que o rendeiro mobilizado dá à mulher os ' históricos mais tranquilizadores: as matracas de trincheira, os punhais
últimos conselhos para a colheita que se fará sem ele e evoca as paisa- feitos à mão pelos soldados são armas de assassinos cuja lembrança
gens novas que descobre? Quantas cartas de amor que são ao mesmo foi mais tarde ocultada. Era necessário poder viver depois com o
traumatismo desta violência. Era necessário poder viver com a lem-
brança do prazer da mone infligida: «Aconteceu-me - conta, em
7 Assim sobre o plano místico, Kenneth E. Silver, Vers lê retour à l'ordre. . ·- ·-
L'avant-garde parisienne et la Prenuere.. Guerre mondiale,
. Paris,
. Flammarion,
. ·
1936, um director " ocasiao da entrega da sua Legiao
de escola por i "de
1991; Richard Cork, A Bitter Truth. Avant-Garde Art anal the Great War, Yale ' Honra - «a mim que nunca dei um soco a quem quer que se a, a mim
University Press, 1994. que tenho horror à desordem e à brutalidade, ter prazer em matar.ji
8 George Mosse está na origem da noção de «brutalização», no sentido anglo- ' Por ser decerto muito mais rara, a violência directa também existiu.
-saxônico de «tomar brutal». Ver, sobre este assunto, a sua obra Fallen Soldiers. Como existiu, e em todos os campos, o ódio ao inimigo, tão pouco
Reshaping the Memory of the World Wars, Oxford University Press, 1990. Para . acentuado, quando tantas linhas foram consagradas, por exemplo, às
uma aplicação desta noção no campo ideológico de 1914-1918, Stéphane Audoin- . ~ . ~
-Rouzeau, La Guerre dês enfants, 19/4-/918. Essai d'histoire culturelle, Paris, ' confratemizaçoes. As violaçoes de mulheres e outras atrocidades
Armand Colin, 1993. cometidas sobre os civis também tiveram lugar, tanto na Prússia
9 Ver sobre este assunto a tese de Annick Cochet, L'Opinion et le Moral dês
soldats en 1916, d'après lés archives du contrOle postal, Université de Paris 10 Sobre este ponto preciso, ver sobretudo as colecções do Historial da Gran-
X-Nanterre, 1986, 2 t.; Stéphane Audoin-Rouzeau, 14-18. Lés combattants dês de Guerra de Péronne, além, por exemplo, das de museus tão oficiais como o
tranchées, Paris, Armand colim 1986: John G. Fuller, Troop Morale and Popu- Museu do Exército de Viena, o Imperial War Museum de Londres, ou o Australian
lar Culture in the British and Dominion Armies, 1914-1918, Oxford, Clarendon War Memorial de Canberra.
Press, 1991: Bemd Ulrich, Benjamin Ziemann, Frontalltag im Emen Wetltkrieg. ll Stéphane Audoin-Rouzeau, La Guerre dês enfants, /9/4-19/8, op. cit.,
Wahn und Wirklichkeit, Frankfurt, Fischer, 1994. ' p. 11.

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Oriental, na Áustria-Hungria, na Sérvia e na Bélgica, como no Norte provar, pela leitura dos documentos, que está em prática um verda-
da França. Passada a época da sua encenação pela propaganda de cieiro darwinismo social nas violências de 1914, que só se podem
guerra, um silêncio persistente, até à sua exumação em data recentel2, compreender no quadro de sistemas de representação que fazem da
rodeou estas práticas, no entanto fundamentais para a nossa compre- invasão uma luta de tipo étnico. Nunca se havia tratado tantos civis
ensão da cultura de guerra europeia. As atrocidades cometidas contra com tanta violência e em tal escala. E isto na Europa policiada de
os civis fizeram dos diferentes territórios ocupados da Europa verda- 1914, largamente desabituada da violência, e mesmo da violência de
cieiros laboratórios para o estudo dos processos de totalização da guewa, desde 1870. Para além da dinâmica de brutalidade própria da
guerra. Regiões ocupadas no Norte e Leste da França, da Bélgica, situação de confronto nos campos de batalha, onde o abuso da vio-
Sérvia, Prússia Oriental e Rússia Ocidental, tomaram-se o primeiro lência não tem precedente histórico, havia, como é evidente, o desejo
círculo para qualquer tentativa de compreensão deste século de assas- de vencer depressa, numa guerra destinada a terminar em algumas
sinatos. Está-se longe de uma etiologia da violência, de uma transfor- semanas. Havia também, como Mare Bloch mostrou em 1921 num
inação de bons pais de família em «bestas sanguinárias [...I num artigo que levava setenta anos de avanço sobre a história cultural da
verdadeiro acesso de sadismo colectivo,,l3: por toda a parte na Euro- guerra tal como hoje se escrevel5, o medo do outro, etemo espião e
pa, no decorrer do Verão de 1914, foram cometidas violências contra franco-atirador, sempre pronto, além disso, a torturar os feridos. Havia,
os civis por homens que usavam farda e amas. Estas exacções sobretudo, o desejo de impor uma lei do vencedor, de que não se
ultrapassaram largamente os horrores quase habituais sobre os civis, duvidasse provir de uma civilização superior, cuja própria sobrevivên-
esse etemo dado do estado de guerra, que tendia no entanto a ser mais cia estava em causa. Os debates que, por exemplo, agitam a França
bem controlado no quadro do processo de «civilização da guerra», em sobre o destino a reservar às crianças nascidas das violações da inva-
prática na Europa há mais de dois séculos e meio]4. Porque se pode são do Verão de 1914, os «filhos da violação boche», geneticamente
maus, destinados a tomar impuro o sangue dos futuros genitores
'2 Esta é a obra de uma equipa de dois investigadores, um de origem austra- masculinos da nação e, portanto, a contaminar a raça francesa, são
liana, John Home, o outro de origem alemã, Alan Kramer, ambos professores no sintomáticos de uma visão essencialmente étnica, e mesmo biológica,
Trinity College (Dublin). As suas principais contribuições sobre este aspecto do conflito em curso: esta guerra é também a de uma purificação
decisivo para a compreensão da Grande Guerra são as seguintes: John Home, étnica, pelo menos de um receio da impureza étnica por corrupção do
«Lês mains coupées: "atrocités allemandes" et opinion française en 1914>>, Guerres esperma e do sanguel6.
mondiales et Conj/lits contemporains, n.° 171, Julho 1993, pp. 29-45; Alan Kramer, · ' i '
«LêS "atrocités allemandes": mythologie Fk)pulair'e, propagande et manipulations Os relatórios sobre as atrocidades, ho,e retirados de um longo
dans l'armée allemande», Guerres mondiales et Con/7its contemporains, n.° 171, esquecimento, de certo modo quase «voluntário», contêm testemunhos
Julho 1993, pp. 47-67; John Home e Alan Kramer, «German "Atrocities" and irrefutáveis. Contêm também narrativas que depressa se julgou serem
Franco-German Opinion, 1914: The Evidence of German Soldiers' Diaries»,
Journal of Modern History, n.° 66, Março 1994, pp. 1-33. O conjunto dos seus
trabalhos será publicado proximamente sob a forma de livro: «German Atrocities» 15 Este fenômeno do rumor e do seu substracto cultural foi magistralmente
in 19/4: Meanings anal Memory of War, Cambridge University Press. analisado por Mare Block em 1921, na Revue de synthèse historique. Mare Bloch
13 Dr. Reiss, Rapport sur lês atrocités commises par lês troupes austro-hon- tirou da sua experiência de guerra numerosos elementos que iriam orientar o seu
groises pendant la première invasion de la Serbie, Paris, Grasset, 1919 (relatório trabalho ulterior de medievalista, «Réflexions d'un historien sur lês fausses
de 1915), p. 70. nouvelles de guerre», in Mare Bloch, Mélanges historiques, Paris, Serge Fleury,
l' Para uma abordagem actual sobre este ponto, ver, em panicular, Joèl EHESS, 1983, t. I, pp. 41-57.
Comette, Lê Roí de Guerre. Essai sur la souveraineté dans la France du Grand 16 Stéphane Audoin-Rouzeau, L'Enfant de l'ennemi (/914-1918). Viol, avor-
Siècle, Paris, Payot, 1993. temem. infanticide pendam la Grande Guerre, Paris, Aubier, 1995.

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m

' de ordem mítica: as mãos cortadas das crianças do Norte, por exem- conhecido» vivo, surgindo das fileiras dos «homens de ferro» de
!j pIo, ou a crucificação de um soldado canadiano na porta de uma Verdun e do Somme. Mas podia também divertir-se a escarnecer da

, granjal7. memória enfraquecida dos Europeus de 1939: «Quem fala hoje ainda
" A propaganda dos países aliados, sobretudo a inglesa e depois a da aniquilaçãol8 dos Armênios?» Apócrifa ou não, a frase mostra bem
americana, veiculou no entanto todos os crimes, os verdadeiws e os que a certeza de impunidade dos assassinos do segundo conflito
falsos. A tal ponto que depois da guerra, e isto até aos trabalhos mais , mundial se alimentara da má consciência daqueles que haviam acre-
.i recentes, estas «atrocidades» eram, no essencial, consideradas em bloco ditado fazer a «guerra do Direito» e se haviam encontrado afinal na
como invenções puras e simples da propaganda. Dos dois lados do violência radical, a de toda a guerra, que se tomara, no caso preciso,
' espectro político, camuflaram-se voluntariamente as atrocidades da «guerra de exteminaçãoj%
Grande Guerra, e até nos países que com elas mais haviam sofrido, E foi também pelos mesmos tipos de razões que os espantosos
como a Bélgica. Por pacifismo, sobretudo, em nome de uma recon- estragos infligidos ao corpo humano pelo combate moderno foram em
ciliação necessária; para evitar ver a guerra de frente, talvez... Os parte minimizados, e por vezes negados, em proveito de versões menos
antigos combatentes pacifistas, em especial os mais militantes, con- traumatizantes. Devemos dizê-lo: prevaleceu uma complacência de-
sideravam que «atrocidade» era a própria guerra, não sendo por isso masiada para com o vasto território da violência de guerra, primeiro
necessário assinalar esta ou aquela exacção deformada pela propa- entre as testemunhas, depois entre os historiadores. Jean-Norton Cru,
' ganda. Uma verdadeira tela conceptual foi então erguida por estes cuja importante obra, Témoins, é frequentemente considerada como a
f militantes, mais determinados em condenar a guerra como atrocidade «Bíblia» do testemunho de combate, é perfeitamente representativo,
l' do que atrocidades»
«falsas denunciar astoma-se
atrocidades
o bodenaespiatório
guerra. Ados
propaganda sobre
pacifistas: os as
povos para além dadesua
preocupação denúncia constante
asseptização. dosdahorrores
Tratando-se da guerra,
confrontação dessa
dos corpos
haviam sido enganados, haviam acreditado bater-se por valores ele- humanos com os meios modernos de destruição, o autor nega por
vados, tinham-nos levado a crer que o ódio ao outro era justo; mas exemplo toda a visibilidade dos traumatismos físicos. Depois de haver
era tudo falso, tudo tinha sido inventado. Esses antigos combatentes refutado a «lenda» dos «montões de mortos», é por exemplo nestes
' transformados em militantes da aproximação dos povos libertavam-se temos que chega à das «ondas de sangue»: «Vi pouco sangue em
assim da culpabilidade de terem também eles acreditado na guerra de Verdun e noutros lugares. Muitos cadáveres não mostram sinal dele,
Civilização. E, como os outros, ou mais que os outros por vezes, de a menos que os levantem: a terra, a erva absorvem o sangue sob os
nela terem consentido. corpos. Alguns ferimentos causam a mone sem abrir os grandes vasos.
Um outro antigo combatente, Adolf Hitler, estava convencido de Há hemorragias internas [...].>>20 Sem dúvida que nem tudo é inexacto
que a propaganda aliada, em especial na invenção das atrocidades que neste discurso minimalista. O que não permite que fiquem em silêncio
tanta força moral dera aos combatentes do «Direito», marcara entre outras realidades, essas realmente insuportáveis. Um outro veterano,
1914 e 1918 uma superioridade que seria de examinar de peno no Paul Fussell, cuja particularidade é ser ao mesmo tempo um antigo
combate futuro, nessa nova fase de uma guerra que a Alemanha nunca combatente de 1939-1945 e um especialista anglo-saxão da cultura de
aceitara terminar e da qual ele era, de ceno modo, o «soldado dês-

" John Home, «LêS mains coupées», art citado; Alan Kramer, «LéS "atrocités" 18 Ou, segundo as traduções, aniquilamento ou destruição.
allemandes: mythologie populaire, propagande et manipulations dans l'armée 19 Dr. Reiss, Rapport sur lês atrocités..., op. cit., p. 128.
allemande», in Guerre et Cultures, 19/4-1918, op. cit.; Annette Becker, La 20 jean-Norton Cru, Témoins, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, reed.
Guerre et la Foi, de la mort à la mémoire, 1914-1930, op. cit. 1993, p. 31.
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l'
guerra do primeiro conflito mundial21, fala verdade quando observa, Mas, para além dessa normalidade relativa das existências em
'
l com um humor negro característico das reticências que se juntam a guerra, que se sabe das expectativas quando os seus estão na frente,
qualquer palavra relativa a combate: «Na guerra I...], as entranhas são dos sofrimentos havidos aquando do seu ferimento, da sua mone?
muito mais visíveis do que é normalmente decente imaginar,»22 Que foram a morte dos filhos para os pais e mães, a morte dos pais
Sofrimento dos corpos: o que é que se sabe do que sofreram, até e dos irmãos para os filhos? Fala-se comodamente dos «lutos» em
ao fim da sua vida devastada, esses milhões de homens de trinta abos, geral, das «viúvas», dos «órfãos»: mas estas palavras só muito rara-
' com os membros amputados, o rosto arrancado, os pulmões queima- mente possuem um conteúdo verdadeiro. Também nada se sabe ainda
:' dos? Sofrimento do espírito: a historiografia só muito recentemente se sobre o «trabalho de luto» desses milhões de europeus que nenhuma
preocupa com os danos psíquicos, por vezes irremediáveis, provoca- palavra exacta designa, além das mulheres que perderam o marido e
dos pela guerra nos soldados, nevroses inerentes à imersão prolongada dos filhos que perderam o pai. Das imãs que perderam um irmão, dos
na situação de confronto, suicídios. Este atraso é particularmente grande pais que perderam o filho, que se sabe? E, no entanto, é em pane ao
em França, onde não há mesmo palavra genérica para descrever o escândalo e ao choque psicológico da mone dos jovens, bem mais que
fenómeno da «loucura», temporária ou definitiva, induzida pela expe- às condições materiais de vida, que se deve, por exemplo, atribuir a
riência de guerra, contrariamente às línguas alemã (Kriegsneurosen) taxa mais elevada de mortalidade dos idosos nas capitais europeias
e inglesa («hell shock). E, no entanto, um sétimo das disponibilidades entre 1914 e 191824,,.
· ' francesas em camas de hospitais e médicos foi mobilizado pelas Os arquivos médicos, tão subutilizados em França, em especial
i' necessidades psiquiátricas... Como pode o historiador dar coerência os dos hospitais psiquiátricos, quer civis, quer militares, e os arqui-
' k ao que é por definição incoerência, como dar vida ao que se perdeu? vos do Comité Internacional da Cruz-Vermelha de Genebra pemi-
A imprensa dos diferentes antigos beligerantes publica, em 1919 e em tem, a partir de agora, encontrar uma palavra, a daqueles que, num
1920, fotografias de soldados que voltaram amnésicos e dos quais os dado momento, se encontraram fora do conflito: prisoneiros milita-
hospitais tentam, desse modo, encontrar laços familiares ou profissi- rês, civis internados dos territórios ocupados, feridos2$,.. A sua in-
onais apagados pela guerra. capacidade física para continuarem a bater-se fez deles excluídos
Também os sofrimentos da retaguarda foram ocultados. Sem dú- felizes por estarem finalmente afastados desse conflito sem fim? Ou
vida que aqui as coisas são diferentes, porque a «banalização da quiseram a todo o custo retomar o seu lugar no combate da Civili-
guerra»23 entre os civis, passados os primeiros confrontos, libertou zação ou da Kultur? Anuência à exclusão do combate, à do «bom
vastas margens de «normalidade» na vida quotidiana. ferimento», à da deserção? Ou culpabilidade perante o afastamento,

" 2' A sua principal obra é a seguinte: Paul Fussell, The Great War and Modern 2' Contrariamente ao que se poderia crer, a situação da frente interior evolui
Memory, London, Oxford, New York, Oxford University Press, 1975. A influ- num sentido muito diferente nas três capitais. Em Londres, pK)r exemplo, a
ência deste livro foi enorme nos países de língua inglesa e determinou numerosas esperança de vida dos adultos aumenta durante a guerra. Em contrapartida, os
vocações de historiadores da Grande Guerra antes de ser severamente criticado: velhos sofrem, nas três capitais, uma catástrofe demográfica que não pode ser
Robin Prior e Trevor Wilson, «Paul Fussell at War», War in History, Março explicada, por exemplo, só pelas restrições, aliás muito desiguais consoante o
1994, pp. 63-80. país. Sobre este ponto, ver Jay Winter e Jean-Louis Robert «Un aspect ignoré
0
22 Paul Fussell, A la guerre. Psychologie et comportements pendam la Seconde de la démographie urbaine de la Grande Guerre: lê drame dês vieux à Berlim
Guerre mondiale, Paris, Lê Seuil, 1992, p. 379. Londres et Paris», Annales de démographie historique, 1993, pp. 303-328.
23 Esta noção fundamental foi forjada por Jean-jacques Becker, in Lés Français 25 Annette Becker, Dês politiques humanitaires pendant la Grande Guerre?,
dans la Grande Guerre, Paris, Laffont, 1980. obra em preparação.

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i
(
a dos prisioneiros que tentam uma vez mais chegar à frente, conen- ano), os combatentes franceses consentiram de novo em combater28.
"' do todos os riscos da evasão26? Mas a combater de maneira sensivelmente diferente da que lhes era
l - pedida desde os princípios da guerra de trincheiras. Jean-Louis Robert
provou também que na retaguarda o sentimento nacional defensivo
l Messianismo, milenarismo e escatologia não se manifestara de maneira fundamentalmente diferente: os grevis-
' tas das fábricas de armamento, em 1918, tendiam a retomar o trabalho
l SÓ há pouco se começou a avaliar a importância das grandes na altura das ofensivas alemãs, quando uma ruptura de abastecimento

l expectativas veiculadas pela guerra de 1914-1918. O conflito foi, em da frente poderia provocar a derrota29. A verdadeira questão, para nós
primeiro lugar, um confronto entre nações, entre Europeus - ou ho- a mais perturbadora, não é afinal saber pof(juê e como se rebelaram "
mens de cultura europeia - combatendo pela sua nação. De nada serve contra a guerra, mas por que razão, na imensa maioria dos casos,
negá-lo, exagerando a importância das resistências, das revoltas, das quiseram e continuaram a fazê-la. O drama da guerra, e uma das
rebeliões, como tendem a fazer hoje tantos autores (no cinema, no chaves da sua duração e do seu encarniçamento, é pois o investimento
romance, na banda desenhada...) que se debruçaram sobre a Grahde dos homens de 1914-1918 na sua nação, sem o qual não se pode
Guerra. Os motins franceses de 1917, a maior rebelião militar que explicar a coragem, o espírito de sacrifício, o sentido do dever (para
atingiu a frente oeste, constituem o exemplo mais característico da retomar uma palavra omnipresente em todas as correspondências) dos
incapacidade dos nossos contemporâneos para compreenderem quais combatentes. Era o seu sentimento, tão fortemente interiorizado, de
foram as apostas dessa época, apostas tal como foram entendidas do defenderem o seu solo, fosse a que preço fosse. Porque o conflito foi
interior. Não era exactamente contra a guerra, e ainda menos por uma de natureza fundamentalmente defensiva para todos os protagonistas
hipotética revolução do tipo bolchevista (em Maio-junho de 1917!), ' sem excepção. Oitenta anos depois de Verdun, um sobrevivente de
que os soldados do Chemin-des-Dames se revoltavam27. O que eles uma das maiores batalhas deste século dizia ainda recentemente: «Na
queriam era que oficiais competentes os levassem, de uma vez por minha frente havia dez departamentos ocupados, na minha retaguarda
todas, à vitória, pondo em proporção exacta as perdas e os benefícios a minha família: que queriam que fizesse?>>30 Repetimos: um dos
que se tinha o direito de esperar das ofensivas, e que a guerra por fim aspectos mais trágicos da guerra de 1914-1918 foi, afinal, quer isto
terminasse; não era a legitimidade da própria guerra que estava em agrade quer não, o consentimento dos que nela tomaram parte.
causa, mas antes uma cem maneira de a conduzir. As investigações Mas, se as nações suportaram tal investimento, foi porque todas
mais recentes sobre o assunto mostram muito bem que os motins têm eram consideradas como portadoras de imensas expectativas positivas.
o sentido de uma tentativa de renegociação do contrato tácito que Expectativas de um mundo melhor, de uma nova etapa da civilização
ligava os combatentes ao seu comando: uma vez obtido esse novo humana, de uma nova «idade de ouro,,31, expectativas que explicam
equilíbrio dos poderes (sem que a repressão tenha grande importância,
pois os motins declinaram antes que a repressão fizesse sentir os seus
efeitos, moderados não obstante, considerando um contexto em que o 28 Leonard V. Smith, Between Mutiny and Obedience. The Case of the French
exército francês regista na frente mais de 400 mortos por dia nesse Fifth lnfantry Division during World War One, Princeton University Press, 1994.
29 Jean-Louis Robert, Ouvriers et Syndicats parisiens pendant la Grande
Guerre, tese de doutoramento de Estado, Paris-Sorbonne, 1990; Anais da Uni-
26 Para um estudo pioneiro respeitante aos prisioneiros: Giovanna Procacci, versidade de Besançon, 1996.
Soldati e prigionieri italiani nélia Grande Guerra, Roma, Editori Riuniti, 1993. 30 France-Culture, «L'histoire en direct», 23 Março 1995.
27 Como o demonstrou, em 1967, Guy Pedroncini: Lês Mutineries de /917, 31 Podemos inspirar-nos aqui na introdução à muito boa análise de Raoul
Paris, PUF, 1967. Girardel Mythes et Mythologies politiques, Paris, Lê Seuil, 1986.

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o envolvimento de milhões de homens no conflito. Jacques Copeau ciam a Imitação de Cristo ao heroísmo do sacrifício, os Judeus fazem
exprime bem, desde Novembro de 1914, essa expectativa extraordi- o mesmo dom da sua pessoa, pela França e por Deus. O militantismo
nária que é já a da «Der dês Der»: «Eis o que é admirável: uma nação patriótico e espiritual visa, num primeiro tempo, aniquilar o inimigo
pacífica e pacifista, vitoriosa de um militarismo tremendo, destruindo e, depois, ultrapassar a mone. Depois da esperança na vitória vem a
a guerra com a guerTa,»32 No fundo, a cultura de guerra de 1914-1918 esperança na vitória sobre a mone. Ortodoxia: peregrinações, devo-
foi profundamente alimentada de esperanças de tipo religioso. Entre ções à Virgem e aos santos, culto do Sagrado Coração; heterodoxia:
1914 e 1918, um intenso investimento religioso na pátria, vindo do superstições, cadeias de preces, profecias; uma e outra associam-se e
século XIX, alcança então o apogeu e trás em si, paradoxalmente, a completam-se, de tal modo o drama devastador da guerra exige em
promessa do seu declínio. Mas, até 1918, crer na Pátria e crer em Deus contrapartida milagres e certezas. Todos esses fervores se misturam
são duas noções muitas vezes indissociáveis... Isto não significa de no que se pode chamar uma «imitação da pátria>>; A guerra, desde que
forma alguma que todos os participantes na guerra - combatentes e se queira encará-la sob o ângulo das culturas, .oi pois uma imensa
civis - tenham sido crentes, nem mesmo que uma maioria de entre tensão colectiva de tipo escatológico34, É certo que a maior parte
eles o tenha sido. É, porém, certo que os valores e o vocabulário da sofreu primeiro, obedeceu à opressão, «aguentou», à falta de poder
i religião e da fé impregnaram a cultura de guerra de 1914, forneceram- agir de outro modo: mas só uma muito pequena minoria pôde libertar-
k· -lhe as suas imagens, alimentaram as representações de uma geração -se totalmente do sistema de representações da maioria.
persuadida de estar envolvida numa verdadeira cruzada. «Perdoa aos Não podemos entender totalmente esta cultura de guerra sem nos
teus filhos os seus erros de outrora; ergue-os em glória, acíormece-6s detemos na última pona cronológica, a dos amanhãs, a dos anos vinte
na tua bandeira! Ergue-te, renovada e vitoriosa, sobre os seus túmulos! e trinta. É necessário voltar a colocar aqui cada indivíduo numa série
Serás salva pelo nosso holocausto, pátria, pátria!», escreve numa das de círculos concêntricos, afectivos e políticos, que vão dos parentes
suas cartas o capitão Dubarle, mono em 191 533. Fervor, morte e pátria ao Estado. Os membros das famílias, das profissões, das paróquias,
são expressas num verdadeiro tríptico. Descobre-se também esta ten- dos bairros, das aldeias, têm um destino individual situado num dês-
são nos textos de intelectuais e de escritores e, bem assim, na corres- tino colectivo pela sua comuna, a sua Igreja, a sua organização po-
pondência da frente de homens cuja ortografia hesitante demonstra lítica ou sindical, a sua pátria, da guerra ao pós-guerra, «da mone à
uma alfabetização muito recente, fenômeno ao mesmo tempo decisivo memória».35 O culto universal prestado à «geração perdida» por todos
e ainda superficial. Todos exprimem certezas culturais, baseadas na os antigos beligerantes só pode explicar-se mediante este esquema:
superioridade intrínseca da sua pátria - da sua Civilização - face ao desde os altares domésticos onde as fotografias e últimas canas são
inimigo. O «outro» descrito como bárbaro, como demoníaco, surge expostas nas salas de estar do mundo inteiro, até às cerimônias nacio-
ainda assim sob a pena das mais pacifistas das testemunhas: se a nais de enterro dos soldados desconhecidos em França, na Inglaterra
guerra é um crime, aqueles que indubitavelmente a quiseram e impu- e na Itália. O desfile da vitória do 14 de Julho de 1919 em Paris é
seram não são eles criminosos? Para os Franceses em especial, é subvertido pela morte e pelo luto: mil mutilados abrem o desfile, e
evidente que os Alemães são os homens da «gesta do diabo» e que o cenotáfio é tão alto quanto o Arco do Triunfo. A mone triunfa até
eles mesmos, inversamente, exaltam a abnegação, o sacrifício, num
entusiasmo compreendido no sentido etimológico. Se os Cristãos asso-
3' Para uma primeira abordagem da interpretação aqui apresentada: Annette
Becker, Stéphane Audoin-Rouzeau, «Vers une histoire culturelle de la Première
32 Jacques Copeau, Journal, Paris, Seghers, 13 de Novembro 1914, t. l, Guerre mondiale», Vingtième siècle. Revue d'histoire, op. cit., pp. 5-7.
p. 624. 35 Annette Becker, Lês Monuments aux morts. Mémoire de la Grande Guerre,
33 Lettres de guerre de Robert Dubarle, Paris, Perrin, 1918. Paris, Errance, 1989: La Guerre et la Foi, op. cit.

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i sobre os vencedores36, A nível local intermédio, os monumentos aos marcadas pelos cemitérios e pelos monumentos comemorativos. Não
mortos colectivos fazem dos territórios dos antigos beligerantes imen- exigiam as cláusulas executórias do tratado de Versalhes que os
:| sos túmulos das esperanças e dos ódios de 1914-1918. A violência túmulos dos vencedores fossem de pedra branca, luminosa, e as dos
inaudita do conflito terá feito de todos os campos de batalha, e tam- vencidos em pedra preta, símbolo do opróbrio? Continuou-se a espe-
bém dos territórios ocupados, imensos cemitérios. Mais ainda, enter- rar dos mortos que dessem um sentido ao conflito.
I rar os mortos é também ocupar o terreno, continuar a luta pela civi- Quanto às grandes expectativas da Grande Guerra, elas não mor-
i, lização, durante e depois da guerra: «Como o Germano tem por hábito reram com o fim dos combates, com as decepções que se deram por
aplicar em tudo o absoluto da sua mentalidade, trata o morto segundo toda a parte, e mesmo entre os vencedores, no encontro da paz. Tudo
o duplo ponto de vista que sempre o guia... o do orgulho e o do lucro... se passa como se fosse o campo político europeu que tivesse, de certo
Aviltar o nosso solo, desonrá-lo... CONTINUAR ainda a OCUPÁ-LO modo, «recuperado» as expectativas de 1914-1918. Mas sob uma
mesmo depois da evacuação... tal a finalidade do Alemão, o seu outra foma: esta, igualmente trágica, dos totalitarismos fascistas e
plano de guerra na derrota... As lápides tomar-se-ão canazes da sua comunistas. Um e outro tinham em comum a promessa de um novo
força, quadros da sua resistência e as colunas terão a forma de postes ser humano, esse homem novo que a Guerra, com as suas supostas
de fronteiras.,,37 O ódio ao outro aqui revelado, em 1917, não deve «virtudes» e com a vitória do seu próprio campo, devia, pensava-se,
admirar. Estes túmulos descritos com mágoa encontravam-se na parte dar à luz. Se tantos europeus se perderam entre as duas guerras, na
ocupada do território francês. A ocupação alemã foi sentida como conversão aos grandes extremismos do século xx, poder-se-á
uma atrocidade sem igual, como uma violação. E a violação das compreendê-lo e explicá-lo sem fazer referência à imensa mobilização
sepulturas, real ou suposta, encontra aqui toda a sua lógica: no meio colectiva de 14-18, cuja conclusão deixou tantos protagonistas órfãos
do que é mais sagrado, a morte, o inimigo só pode mostrar todo o seu de grandes esperanças? Assim, a guerra de 1914-1918 transformou
tamanho. Depois do conflito, a exumação dos milhões de corpos, a toda a primeira metade deste século, num período de expectativas
reinumação nos cemitérios militares nacionais ou o repatriamento dos prolongadas para milhões de europeus sob a foma de ideologias
corpos para as suas pátrias e famílias respectivas deram lugar a im- políticas concorrentes inimigas, mas cuja força de atracção provinha
portantes confrontos entre e no interior de todos os antigos beligeran- em parte da mesma origem. O desastre da Grande Guerra foi ainda
tes38. Se os campos de batalha foram em larga medida devolvidos à . . · ·
vida,
. as paisagens
. do Norte e do Leste da França f-
.icaram para sempre assim
É, pois,
mais permitido
duradouro interrogarmo-nos
- e bem mais profundo
sobre o- silêncio
do que seprolongado
julga.
que durante muito tempo rodeou esta cultura de guerra, sobre esta
3' Annette Becker, «Du 14 juillet 1919 au ll novembre 1920, mort, OU est forma discreta de ocultação. Do ponto de vista das testemunhas, a
ta victoire?», Vingtième siècle. Revue d'histoire, n.° 49, Jan.-Mar. 1996. resposta é muito clara: todos quiseram exorcizar e reconstruir uma
37 Henri Lavedan, «L'autre occupation», L'lllustration, 12 Maio 1917, p. 439. guerra diferente, que lhes permitisse viver com o traumatismo da
38 Annette Becker, «Lés deux rives de 1'Atlantique, mémoire américaine de guerra vivida. Mas a resposta é menos simples no que diz respeito aos
la Grande Guerre», Annales de l'université de Savoie, Janeiro 1995, pp. 23-26; f " ' ' " ' '
id., <<Lès croix de bois, sépultures de la Grande Guerre», Communio, n.° XX, pro lsslonals da historia, que, face aos combatentes que se julgavam
1995, pp. 165-178. A descoberta, em 1991, do corpo de Alain Foumier, a esca- os historiadores exclusivos da sua experiência de guerra - pode pen-
vação arqueológica da sepultura colectiva dos homens da sua secção, dão um sar-se uma vez mais em Jean-Norton Cru que não hesitava ele próprio
muito bom exemplo dos combates relativos à morte dos homens da Grande em censurar os testemunhos que não lhe pareciam conformes - renun-
Guerra, então e hoje: Frédérique Boura, «Lorsque l'archéologie traite de l'histoire ciaram durante muito tempo às regras elementares da operação histó-
proche, la sépulture collective de Saint-Remy-la-Calonne (Meuse)», Lês Dossiers . P · ·
de l'archéologie, Verão de 1992, pp. 55-70. rica. Para além da culpabihdade do escrevente perante o combatente,

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* "
0 0
r

não estará a resposta ligada ao facto de a guerra de 1914-1918 ter sido


sempre, na sua vertente mais sombria, um assunto insuportável?
A Grande Guerra foi de facto muito grande39, porque legou ao
i nosso século, e a toda a humanidade, um novo modelo de conflito: a
, «guerra total», de que o segundo conflito mundial ia apresentar mais
" ' tarde um modelo ainda mais completo. Neste sentido, ensinou-nos
muito sobre o mais sombrio de nós mesmos. Ela pode e deve con-
tinuar a fazê-lo num esforço necessário, ao mesmo tempo histórico e
cívico, de compreensão das imensas apostas deste século. Apostas que
seria vão pensar, como o início deste artigo recordava, que de futuro
se esteja livre. Cinquenta anos depois da sua saída de Buchenwald,
Jorge Semprun escolheu celebrar a memória dos seus companheiros
com uma meditação literária e histórica, L'Écriture ou la Vie, onde OBRAS
cita André Malraux: «Uma vez que talvez trabalhe na minha última
obra, retomo em Lês Noyers de 1'Altenburg, escritos há trinta anos,
um dos acontecimentos imprevisíveis e assombrosos que parecem
crises de loucura da história: o primeiro ataque alemão pelos gases em
Bogalko, no Vístula, em 1916... O sacrifício prossegue com o Mal
mais profundo e o mais velho diálogo cristão: depois deste ataque na
frente russa, sucederam-se Verdun, a iperite da Flandres, Hitler, os
campos de extermínio...»
E Malraux, concluindo sobre o que se refere à Grande Guerra, e
de como se quebram talvez entre as nossas mãos as armas mais bem
temperadas da disciplina histórica: «Se recordo isto, é porque procuro
a região crucial da alma em que o mal absoluto se opõe à fratemi-
dacje»®.

39 Donde o título, tirado de Jean-Piem Rioux, da tentativa colectiva destinada


a um largo público e publicada em Lê Monde no Verão de 1994. Os artigos foram
reunidos numa obra: Centro de Investigação do Historial de Péronne, /4-/8. La
Trés Grande Guerre, Paris, Le Monde éditions, 1994.
" Jorge Semprun, L'Écriture ou la Vie, Paris, Gallimard, 1995, pp. 62-63.
Ver André Malraux, Oeuvres complètes, Paris, La Plêiade, t. l, 1989, e t. 2, 1996.

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