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64 A PORMAÇJ!.

o DA SOCIEDADE ECONÔMiCA

7. A Blblla tem várias referências hostis à atividade lucrativa - "g


mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que
um rico entrar no Reino dos Céus." Segundo voct, a que se deve
esta antiga antipatia eclesiástica da atividade lucrativa? Por quê?
•. Em nossa própria sociedade ainda existe a idéia de um preço
"justo" (ou salário "justo")? Normalmente, o que se quer dizer com
esses termos? Você acha que essas idéias são compatíveis com o
sistema de mercado?
3
9. O sistema dominial persistiu por quase 1000 anos. Por que a mu-
dança foi tão lenta?
tO. A Grécia e a Roma antigas eram muito mais "modernas", em certo
sentido, do que a Europa feudal. Entretanto, nenhuma delas es-
o APARECIMENTO DA SOCIEDADE
tava sequer próxima de um sistema econômico moderno. Por DE MERCADO
que não?

T RADIÇÁO, ordem, estabilidade __ tais eram os conceitos


básicos da sociedade econômica da Idade Média. e em nosso
capítulo anterior travamos conhecimento com' essa forma es-
tática e desconhecida para nós da vida econômica. Mas
nosso intuito neste capítulo é diferente. Já não se trata de
descrever os fatores que preservaram a estabilidade econô-
mica da sociedade medieval. mas de identificar aquelas for-
ças que finalmente a destruíram.

Novamente precisamos proceder com cautela. Nosso


capítulo abarca uma variedade ínfínda de experiência hístô-
rica. Não sejamos levados a pensar que as forças de mu-
dança que -predominam neste capítulo fossem idênticas de
região para região ou século após século, ou que a transí-
ção efetuada fosse uniforme através de toda a extensão da
Europa _ Pelo contrário, a grande evolução que iremos pre-
senciar nestas páginas não foi clara e nítida, mas confusa
e irregular. Ao mesmo tempo que as primeiras evidências
de uma verdadeira sociedade de mercado começavam a ma-
nífestar-se nas cidades medievais da Itália e da Holanda,
as mais arcaicas formas de relações feudais persistiam nos
setores agrícolas dessas mesmas nações, e mesmo na vida
citadina de outros países _ Devemos ter em mente que o pro-
cesso histórico deste capítulo estendeu-se do século X ao
XVII (e mesmo aos séculos XVIII e XIX) e não se ma-
nifestou da mesma forma em' .doís países quaisquer.

Devidamente acautelados, podemos agora tratar da gran~


de evolução _ Que agentes tiveram forças suficientes para
o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERCADO 67
66 A PORMAÇJ\O DA SOCIEDADE ECONÔMICA

I 1It1111 b m como os Bodos e Ermentrudes rurais. Além


efetuar a importante transformação histórica que deu orí- n, und mais se poderia comprar pimenta. ou tinta púrpu-
gem à sociedade de mercado? 11 dquirir uma lasca autêntica da Santa Cruz? Onde
odta adquirir os maravilhosos tecidos da Toscana
o Mercador Itinerente r palavras esotêrícas, derivadas do árabe. tais co-
•• 'J rro" ou "xarope"? Se o mercador era um fermento
Vamos encontrar a primeira dessas forças sob um- as- qui tação na massa da vida medieval. era igualmente
pecto imprevisto. Imaginemos uma pequena p.rocissão irre- plt da do ingrediente ativo sem o qual a mistura teria
guIar de homens armados. arrastando-se pelas estradas ru- r lmente insossa.
dimentares da Europa medieval: à frente o porta-estandarte,
inalamos a existência do mercador itinerante na Eu-
em seguida um chefe militar. um grupo de cavaleiros arma-
d de os séculos VIII e IX. e podemos seguir seu avan-
dos de arcos e espadas. e finalmente uma caravana de ca~
O séculos XIV e XV. Por esse tempo. o comércio,
valos e mulas carregados de fardos e pipas. sacos e em-
principalmente aos esforços do próprio mercador. já
brulhos.
uficientemente organizado para dispensar os servi-
Alguém não familiarizado com a vida medieval poderia mascates r'" Pois o que esses viajantes trouxeram,
facilmente tomar esse bando como sendo a bagagem de um nte com seus utensílios, foi o primeiro sopro do co-
pequeno exército. Mas estaria enganado. Esses homens não e do intercâmbio a uma Europa que estava afundada
eram soldados. porém mercadores. os mercadores ambulan- tagnação senhorial auto-suíícíente e a bem dizer sem
tes a quem os ingleses do século XII chamavam de pie- I I I: 10. Mesmo cidades inexpressívas e isoladas como For-
potoers, do francês pieds poudreux, pés poeirentos. Não é I J ti r, na França - um minúsculo ponto no mapa tendo
de admirar que andassem empoeirados; muitos deles tinham u nd muito uma estrada para ligar suas poucas centenas
atravessado longas distâncias através de estradas tão más
que sabemos de um caso em que somente com a intervenção
l lm s ao mundo exterior - esses comerciantes audazes
J fi orr ram: 'sabemos. através de um primitivo livro de as-
de um senhor feudal eclesiástico foi possível evitar que se 111 J ntos, que, em maio de 1331, trinta e seis mercadores
lavrasse a "estrada" como terreno de cultivo. Em seus Iar- f I \Ilt S visitaram Forcalquier para tratar de negócios na
dos e sacos havia objetos que tinham feito viagens perigo- n "venda" de um tal Ugo Teralh, tabelião.29 E as-
sas através da Europa. e às vezes mesmo desde a Arábia ím, m milhares de comunidades isoladas, foram lentamente
ou a índia. para serem vendidos de cidade em cidade ou de nd uma teia de interdependência econômica.
pousada em pousada. à medida que esses mercadores aven-
tureiros prosseguiam seu caminho penetrando o interior me- ( 1cbanizeçêo
dieval.:.--_- ----
E aventureiros o eram de fato. Pois nas hierarquias Importante conseqüência do aparecimento do merca~or.
rígidas das grandes propriedades dominiais da Europa não mt foi a lenta urbanização da vida, medieval. a cria-
havia lugar normal para esses mascates errantes. com seus , ti novas cidades e povoados. Quando os mercadores
predicados não-Ieudaís de cálculos e (ainda que grosseira) t (I n vamo era natural que buscassem o. sítio protegido de
contabilidade. e sua instintiva insistência em comerciar com 1111I hur ou castelo local. E assim vamos encontrar. desen-
dinheiro. Os mercadores viajantes eram colocados em nível
muito baixo na sociedade. Muitos deles, sem dúvida. eram ~mentos de uma encomenda feita por ocasião do funeral de
filhos de servos. e mesmo alguns servos fugitivos. Mas co- ueco em 1328 incluem açafrão da Espanha ou da Itália. se-
mo não se podia provar sua servidão, tinham. ao menos por 11 111 ti lc r 'via do Mediterrâneo. gengibre da Indía, canela do Ceí-
omissão. o dom da "liberdade". Não seria surpresa que aos 1 I. 11lrll IIt d Malabar, aníz do sul da Europa e vinhos do Reno e
I ur I 11 • O pedido foi feito para entrega imediata a um m~rc~~or
olhos dos nobres os mercadores parece~_arrivistas-
en1:osett res a orâ~ arma das coisas.
e ele- I I I, '1'
t Ito do fato de ser a Suécia de então uma terra prímítíva
Ir I. Cf. Frltz Rõríq, Mittelalterliche Weltwirtschaft (Iena:
Contudo, ninguém dispens~e serviços. Ao dossel ), 17. (Devo essa referência ao Dr. Goran Ohlin.)
U mbrldg Economia History of Europe, Il, PP. 325~26.
de suas tendas coloridas acorriam os cavaleiros e damas dos
68 A FORMAÇÃO D,\ SOCIEDADE EcONÔMICA
o :APARECIMENTO DA SociEDADE! DE! MER<;AOO 69
volvendo-se em torno das muralhas d~s castelos bem situa-
Ill0S de pior desorganização social. 'Até que as estradas Ios-
dos -- nos foris burqis, donde [eubourq, a palavra francesa
m recuperadas, o movimento econômico era limitado e clau-
para "subúrbio" -- praças de comércio mais ou menos per~
Iíeente , E vale a pena observar que em muitas partes da
manentes, que por sua vez se tornariam o centro de forma-
Buropa s6 nos séculos XVIII e XIX é que se veio a gozar
ção de pequenas cidades. Abrigados junto às muralhas dos
de um sistema de transporte tão eficiente quanto o da ah-
castelos para efeito de proteção, os novos t>urgos apesar
UClIl Roma.
disso não pertenciam "ao" domínio. Os habitantes do burgo
-- os burqesses. burqhers, bourqeois, ou seja, os burgueses Contudo. se o crescimento era arrastado. também era
-- tinham quando muito relações anômalas e inseguras com vel: e em outras regiões mostrava-se bastante mais rá-
o interior do mundo dominial. Como vimos, não se aplicava Ido. Durante os mil anos da Idade Média. cerca de mil
a lei dos "velhos costumes", consagrados pelo tempo, no [ul- Idades foram fundadas na Europa. um estimulo enorme à
gamento de suas querelas, já que não havia costumes antí- mercíalízaçâo e monetização da vida. pois cada cidade pos-
uíe, empório local. portas de peagem .e às vezes casa de
gos nos agrupamentos. comerciais. Nem havia normas defí-
nidas para a cobrança de impostos ou para os determinados unho; celeiros e vendas. tabernas e hospedagens. um ar de
graus de fidelidade que deviam aos mestres locais. Pior aín- "vida de cidade" que contrastava violentamente com o do
da, algumas das cidades nascentes começaram a erguer mu- mpo. O lento crescimento espontâneo da vida urbana foi
ralhas em redor de si próprias. Por volta do século XII. f8~or preponderante na introdução de uma aparência de mer-
o burgo comercial de Bruges, por exemplo. já havia absor- .ado na vida económica da Europa.
vido a velha fortaleza como se esta. fosse o grão de areia
do interior da pérola. As Cruzadas
O curioso é que foi exatamente essa luta pela existên- O aparecimento do mercador itinerante e o surto das
cia nos interstícios da sociedade feudal que proporcionou Idades foram dois grandes fatores na lenta evolução da 50-
muito do impulso para O desenvolvimento de uma nova or- ledade de mercado durante a vida econômica medieval; um
dem econômica e social em relação à cidade. Em todas as terceiro fator foram as Cruzadas.
civilizações anteriores. as cidades eram os postos avançados Parece ironia da História o fato de terem as Cruzadas.
do governo central. Aqui, pela primeira vez, existiam como suprema aventura religiosa da Idade Média, contribuído
entidades independentes, fora da estrutura básica do poder 11II1tO para o estabelecimento de uma sociedade a que a Igre-
social. Em conseqüência, conseguiram estabelecer um código JII se opunha com tenacidade. Mas se considerarmos as Cru-
de leis e de comportamento social e um conjunto de institui- das. não do ponto de vista do impulso religioso. mas sim-
ções administrativas que iriam finalmente se sobrepor àque- plesmente como expedições de exploração e colonização, o
Ias do ruralismo feudal. Impacto econômico que causaram se torna muito mais com-
O processo foi lento e demorado, pois o índice de cres- preenslvel.31
cimento das cidades era de hábito moroso. Em cerca de dois As Cruzadas serviram para colocar em súbito e surpre-
séculos entre os anos 1086 e 1279, por exemplo, a cidade udente contato dois mundos muito diversos. Um deles era
de Cambridge, na Inglaterra, cresceu na média de uma casa , socledade feudal européia ainda entorpecida, com toda a
por ano. 30 Uma razão importante para essa taxa de expan- UlI Inércia rural, sua aversão ao comércio e suas concepções

são quase imperceptível era a dificuldade de mobilizar ho- lnn~nuas da atividade econômica; outro era a brilhante so-
mens e materiais pelas terríveis estradas. Uma conseqüên- ledade de Bízãncío e de Veneza, com sua vitalidade urbana,
cía do declínio do poder romano foi a decadência do ou- un ímperturbável satisfação em ganhar dinheiro e seus re-
trora magnífico sistema de estradas: seu próprio calçamento qulntndos métodos comerciais. Os cruzados, vindos do iso-
era surrupiado e utilizado como material de construção, nos
11 evemos notar aqui algumas das complexas ínterações do pro-
que estamos estudando. Pois as Cruzadas não foram apenas uma
'30 George Gordon Coulton, Medieval Panorama' (Londres: Me-
U do desenvolvImento econômico europeu. mas Igualmente um sin-
rtdían Books Ltd.: .1955), p. 285.
'"11I do desenvolvimento que se realizara anteriormente.
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o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERCADO 71

lamento de seus castelos' e da sensaboria da vida dominíal, de pimenta - e assim estavam nascendo 8 000 peque-
pensavam encontrar no Oriente apenas um bando de selva- capitalístas cE em 1204, quando Constantinopla
" caiu,
gens incultos e pagãos. Surpreenderam-se ao se defrontarem 1\ penas os cavaleiros receberam cada um vinte marcos
com um povo muito mais civilizado. infinitamente mais sun- I prata como parte do saque. mas até os escudeiros e ar-
tuoso e muito mais propenso ao dinheiro do que eles. 'lu lros foram contemplados com alguns marcos cada um.
Um dos resultados foi que os cândidos cruzados aciiba~ As Cruzadas .propiciaram. pois, uma experiência Iecun-
ram sendo os defensores dos interesses comerciais de que d nte à vida européia. A velha base latifundiária da "ri .•
eles pouco entendiam. Durante as três primeiras cruzadas. 'lu za" entrou em contato com uma nova base monetária que
os venezianos, que armaram os navios. os enganaram desla- mostrava muito mais poderosa. De fato, a velha concep-
vadamente como se fossem matutos de feira. O fato de te- ç o da vida: foi ela própria forçosamente revista ante o vis .•
rem sido esbulhados não impediu contudo que os cruzados lumbre de uma existência não somente abastada como mais
chegassem à Terra Santa. embora com resultados díscutí- 1 9re e mais plena. Como meio de sacudir de sua rotina
veís. Mas na célebre Quarta Cruzada (1202~4), Dândolo, Uma sociedade apática, as Cruzadas desempenharam impor-
o astuto doge de Veneza, de 94 anos de idade, conseguiu t nte papel no aceleramento das transformações econômicas
subverter inteiramente a expedição religiosa, transformando-a d Europa.
numa gigantesca operação de pilhagem. do que se aprovei-
taram os venezianos. Fortalecimento do Poder Nacional
Primeiro, Dândolo exigiu dos viajantes pelo transporte
um preço inicial de 85 000 marcos de prata. soma enorme Outro latiu na lenta comercíalízação da vida econômica
para. aquela nobreza sem dinheiro conseguir juntar. Depois, foi o amalgamento gradual das fragmentárias entidades eco .•
quando os fundos foram angariados, recusou-se a manter o nõmtcas e políticas da Europa em blocos mais expressivos.
preço a menos que os' cruzados concordassem em atacar a omo se viu pela dissolução da -vída econômica em conse-
cidade de Zara, rica inimiga comercial de Veneza , Como a qü nela da desintegração do velho Império Romano, uma so-
cidade fôsse cristã e não uma comunidade "infiel". o Papa Ieda de econômica forte requer ampla e firme base política.
01' isso. quando a Europa política começou seu lento proces-
Inocêncio 111 mostrou-se horrorizado e sugeriu que em vez
o de reurdímento, novamente seu ritmo econômico começou a
disso fõsse o ataque dirigido contra o Egito pagão. Mas o
Egito era um dos melhores fregueses de Veneza, e isso hor .•
levar-se.
rorizou ainda mais a Dãndolo . Os cruzados, em dífículda- Uma das mais impressionantes característícas da Idade
des, não tiveram alternativa: Zara capitulou em breve, após Média e um de Seus maiores obstáculos ao desenvolvimento
o que. por Ínsistência de Dândolo, saquearam igualmente a onôrníco foram a fragmentação e o isolamento de suas áreas
cristã Constantinopla. O Oriente "pagão" nunca foi alcan- d governo. Numa jornada de cem milhas, um mercador via-
çado afinal, mas Veneza aproveitou-se magnificamente de J nte poderia percorrer uma dúzia de diferentes soberanias,
tudo. da qual com suas leis, regulamentos, pesos, medidas e
m da próprios. Pior ainda, na fronteira de cada uma delas
Contudo. nem só Veneza saiu lucrando. O impacto eco- h vi a possibilidade de pagar peagem. Por volta dos sé-
nômico sofrido pelos próprios cruzados foi muito mais Ior- ul XIII e XIV acreditava-se haver mais de trinta postos
mídávelque o impacto religioso. Para muitos foi no entanto d p agem ao longo do rio Wesser e pelo menos trinta e
desastroso. pois alguns cavaleiros que fundiram seus obje- In ao longo do Elba; no Reno, um século depois, havia
tos de prata para se unirem aos cruzados retomaram aos m \1 de sessenta desses postos. a maioria pertencente a prín-
domínios completamente sem nada. Para outros. entretanto. II clesíástícos locais: Thomas Wykes, cronista inglês,
as Cruzadas trouxeram um novo impulso econômico. Quan- li r v u o sistema como sendo "a loucura furiosa dos teu .•
do em 1101. por exemplo. os genoveses atacaram Cesarêía, t " Mas a doença não grassava somente na Alemanha.
põrto marítimo da Palestina, 8 000 soldados e marinheiros
embolsaram a recompensa de 48 solidi cada um, e mais duas .8 Ilmbr/dge Bconomlc Histol'y of.Bul'ope, 11. p. 306.
72 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ECONÔMICA

o APARECIMENTO DA SocIEDADE DE MERCADO 73


Havia tantos postos de peagem ao longo do Sena na França
nos fins do século XV que o frete de cereai; 200 milhas p r as fabulosas riquezas das índias; e, de fato, nos prin-
rio abaixo custava metade de seu preço final de venda iv' De pios do século XIV o caminho para o Extremo Oriente já
fato, entre as nações européias, somente a Inglaterra ~ r' tão conhecido que a seda proveniente da China custava
[rutava um mêrcado interno uniffcado, do meio para o final metade do preço da que vinha da região do Cáspío, à me-
a Idade MédIa. -Foi-ess-e- fator que- contrih1:l-iu- poderosa- t id da distância.
mente ara que a Inglaterra se tornasse a primeIra ra de Contudo, o conjunto dessas bravas e ocasionais pene-
potência econômi -Er.llIJrt.ãQlt:~~aL.".-------- __ ~_
tr ções além da Europa formavam apenas uma teia muito
A integração dos fragmentários mercados europeus foi E gil. Seria necessária ainda a exploração sistemática do
um processo essencialmente político e econômico; seguiu-se d conhecido, e para tanto foi preciso que se esperasse o
à gradual centralização do poder que modificou o mapa da dvento dos aventureiros ao serviço dos reis. Colombo e
Europa, passando daquela infinita complexidade do século X V sco da Gama, Cabra I e Magalhães não se aventuraram
para o mapa mais ou menos "moderno" do século XVI. Os n quelas viagens que marcaram época como simples merca-
burgos desempenharam aqui, novamente, um papel impor- res (embora todos esperassem fazer fortuna dessa forma),
tante e decisivo. Foram os burgueses da cidade que se tor- m s como aventureiros em armadas adquiridas e equipadas
naram aliados das monarquias nascentes, díssocíando-se des- m dinheiro dos reis, com aprovação dos soberanos envia-
sa maneira ainda mais dos senhores feudais, ao mesmo tem- d na esperança de acrescer o tesouro real.
po que supriam os monarcas instáveis com esse requisito es- As conseqüências econômicas dessas aventuras espan-
sencíal ao trono, que é o dinheiro. s foram incalculáveis. Principalmente por uma coisa: fi-
Assim, os monarcas e burgueses se associaram para pro- r m canalizar para a Europa um revigorante fluxo de me-
vocar o. lento crescimento dos governos centralizados, e des- t I preciosos . Ouro e prata. vindos das grandes minas es-
tes últimos, por sua vez, provieram não só a unificação das p nholas do México e do Peru, eram paulatinamente trans-
leis e das moedas mas também um estímulo direto ao desen- E ridos a outras nações, pois a Espanha pagava em ouro os
volvimento do comércio e da indústria. Na França, por exem- b ns que adquiria. Daí resultou um aumento de preços em
plo, a manufatura encontrou estímulo no amparo real à fa- t d a Europa - entre 1520 e 1650, somente. estima-se que
mosa tapeçaria Gobalin e aos trabalhos de porcelana de Se- nham subido de 200 a 400%, trazendo ao mesmo tempo
vres: criou-se ocupação para inúmeros artífices e artesãos tímulo e esgotamento à indústria. mas fazendo levantar-se
pelas solicitações oriundas dos palácios reais e dos salões de um grande onda de especulação e comércio.
banquete. Em outros campos, o crescimento do poder nacio- Além disso. é claro. os resultados a longo prazo das ex-
nal também implicava um novo incentivo: a construção de 1 r ções marítimas trouxeram um estímulo econômico ainda
naves, o equipamento de armadas e o pagamento dessas no- maior importância. O estabelecimento de colônias nos sé-
vas forças "nacionais", em sua maioria mercenárias. Tudo~ III s XVI e XVII e a subseqüente ligação comercial com o
isso fez que se movimentassem mais rapidamente os centros N vo Mundo serviram para lançar a Europa numa Iervílhan-
da circulação monetária. t ocíedade mercantil. A descoberta do Novo Mundo foi.
d de o princípio, uma influência catalitica e revolucionária
A Expl-oração o Velho Mundo.

Outro impulso econômico dado pela consolidação gra- Transformação do Clima Religioso
dual do poder político foi o estímulo oficial à exploração ma-
rítima. Durante os longos anos da Idade Média, somente al- A forças modííícadoras que sintetizamos até aqui já es-
guns poucos aventureiros como Marco Pólo se embrenharam v m de fato visíveis. Em qualquer tempo durante a longa
por regiões remotas à procura de uma espécie de caminho 11 I o da sociedade pré-mercado para a sociedade de mer-
I p derlamos verificar com nossos próprios olhos os mer-
Ma Cambridge Economic H istorg of Europe, Il, pp. 134-35. r Itinerantes, as cidades em expansão, as Cruzadas. as
vld n I de crescimento do poder nacional. No entanto,
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o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERCADO 75

es~as não foram as únicas torças que solaparam o sistema


feudal e trouxeram à luz seu sucessor comercial. Havia. Max Weber e do historiador-econômico R. H. Tawney. a
igualmente. correntes modificatívas poderosas mas invisíveis. causa fundamental está na ascensão de um novo ponto de
co.rrentes que afetaram a atmosfera intelectual. as crenças. as vista teológico expresso nos ensinamentos do reformista pro-
atitudes da Europa. Uma delas. de especial importância. foi testante João Calvino (1509-1564).
a transformação do espírito religioso da época. O calvinismo era uma filosofia religiosa bastante rígida.
Baseava-se na crença da predestineçêo, na idéia de que desde
Em nosso último capítulo vimos como a Igreja Católica o princípio Deus já fez a escolha dos que serão salvos ou
se. ac?~va profundamente imbuída de aversão teológica pelo condenados. e que nada que esteja' ao alcance do homem
prmcípío do lucro -- e principalmente pelo dinheiro a juro pode alterar o decreto ínvíolável , Além do mais. segundo
ou usura. Uma história curiosa da época resume muito bem Calvíno, o número dos danados excedia de muito o número
a posição da Igreja. Humberto de Romanis, um monge. fala dos eleitos. de modo que para a maioria das pessoas grandes
sõbre alguém que via demônios em todos os recantos e grê~ eram as probabilidades de que este prelúdio .terreno não Ios-
tas de um mosteiro florentino e no mercado encontrou um se mais que uma graça momentânea antes do Inferno e da
só.· A razão. explica Humberto, é que era necessário apenas Condenação Eterna.
um para corromper toda praça de mercado. onde cada ho-
Talvez só um homem da firmeza de Calvino pudesse
mem trazia um demônio no coração. 3* Em tal clima de de-
suportar a vida sentenciada dessa forma. Pois vamos logo
saprovação. era difícil o florescímento da parte comercial da
vida. verificar que. nos Países Baixos e na Inglaterra. seus dís-
eípulos abrandaram o predicado ínexorável e inescrutável da
Na verdade. por causa de seus trovejamentos contra o doutrina original. Embora a idéia da predestinação conti-
lucro e a usura. a Igreja atingiu na época uma posição de nuasse a ser pregada. já se admitia que no curso da vida ter-
importância econômica dominante. Através de seus dízímos rena havia um sinal do que devia ser seguido. Assim. os
e benefícios a Igreja era o maior coletor e distribuidor de di- teólogos holandeses e ingleses ensinavam que mesmo um ho-
nheiro de toda a Europa: e numa época em que não havia mem em cheiro de santidade podia acabar no Inferno. e que
nem bancos nem Caixas Fortes. a Igreja era o repositório o homem frívolo e irresponsável estava seguramente desti-
de quase toda a fortuna feudal. Algumas de suas subordens, do ao fogo eterno. Somente numa vida pura é que residia
como por exemplo os Cavaleiros Templáríos, tornaram-se ex- mais leve das probabilidades de demonstrar que a Salva-
tremam ente ricas e funcionavam como instituições bancárias. o ainda era possível.
emprestando aos monarcas necessitados em termos rígidos. E assim os calvinistas preconizavam uma vida de retí-
Sem embargo. toda essa atividade levemente desabonatóría d o. de severidade e. o que mais importa. de diligência. Ao
era exercida a despeito (e não por causa) das mais profun- ontrárío dos teólogos católicos. cuja tendência era a decon-
das convicções da Igreja. Pois atrás da desaprovação ecle- ld rar a atividade humana como vaidade. os calvinístas san-
siástica da busca de riquezas havia uma convicção teológica tiEI vam e aprovavam o esforço como índice de valor espí-
profundamente assentada. a crença' firme na transitoriedade l'ltll 1. De fato. entre os calvinistas se formou a idéia do ho-
da vida terrena e na importância da preparação para a Vida 111 m dedicado ao seu. trabalho: de "vocação". como se dizia.
Eterna. A Igreja erguia os olhos e buscava fazer que os ou- , Iérvída procura de sua vocação. longe de evidenciar
tros os erguessem acima da luta cotidiana. pela existência. um' di tração dos fins religiosos. passou a ser ti da pelo ho-
Empenhou-se em reduzir ao mínimo a importância da vida m omo evidência de uma dedicação à vida religiosa. O
terrena e em denegrir as atividades materiais a que somente r ndor diligente. aos olhos calvínístas, era um homem de-
uma carne muito fraca sucumbiria. ' I n O um Irnpío: e partindo dessa identificação da faina
Que é que modificaria. essa influência desalentadora dos nt f rtuna. não demorou muito a surgir a noção de que.
deleites da fortuna? Segundo as teorias do sociólogo alemão \\1 nt m i forçado fosse o homem. maior seria o seu va-
I lvini t s proporcionaram assim uma atmosfera re-
u Beard, op . cit .• p. 160. s ":" "
I dlv r m nte do catolíclsmo.r'epcorajava a busca
Ind I omerclal do mundo.
~."",.
"lI
"
-::
1
.,' "
76 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ECONÔMICA o APARECIM.ENTO DA SociEDADE DE MERCADO 77

Talvez ainda mais importante do que o incentivo à bus- I vida. Contudo, observando o curso subseqüente do de-
ca de riquezas tenha sido a influência. do calvinismo sobre nvolvimento econômico. é curioso verificar que foram os
o uso da fortuna. De modo geral a atitude normal dos prós- J I es protestantes sem exceção, com seu "traço protestante"
peros mercadores católicos era a de que o objetivo do êxito le trabalho e da poupança, que tomaram a dianteira na cor-
terreno fosse a fruição de uma vida de luxo e conforto, ao lu I econômica. Como um dos poderosos ventos que muda-
passo que a nobreza católica ostentava vez por outra um des- m os séculos XVI e XVII, a nova concepção religiosa sem
dém positivamente ridículo pela fortuna. Na orgia de jogo [úvída alguma deu um estímulo realmente favorável à evo-
que se apossou de Paris nos fins do século XVI. sabe-se de luç o da sociedade de mercado.
um príncipe que enviou à sua amásia um diamante de 5 000 .
livres e pulverizou-o, derramando-o sobre ela porque esta o
Queda do Sistema Dominial
considerou muito pequeno. O mesmo príncipe posteriormente •.
perdeu no jogo sua renda de 600 000 livres anuais. Um ma-
A enumeração de todas essas correntes não esgota o
rechal. cujo neto olhou com desprezo o presente de uma bolsa
t logo de forças exerci das contra a velha e rígida ordem
cheia de ouro, atirou-a à rua, dizendo: ''-Pois fica para o var-
nOmica da Europa. A lista poderia ser acrescida e infi~
redor da rua." 35
I lt mente aprimorada. 36 Todavia. com a devida cautela. po-
Os manufatores ou comerciantes calvinistas observavam mos agora começar a compreender a enorme coalizão de
uma atitude completamente diversa em relação à riqueza, nteclmentos - alguns definidos, como as Cruzadas. ou-
Se a religião aconselhava a diligência, desaconselhava a ín- I dlfusos, tais como as evoluções do pensamento religioso
dulgência de maneira ainda mais enérgica. A riqueza era que cooperaram para a destruição da estrutura medieval
para ser acumulada e para ser utilizada em boas coisas, e li vida econômica e a preparação do caminho de uma nova
não para ser dissipada. dln mica estrutura de transações de mercado.
O calvinismo estimulou um aspecto da vida econômica Um aspecto importante dessa profunda alteração foi a
de que pouco ouvimos falar até agora: a percimônie . Trans- m n tização gradual das obrigações feudais. Numa locali-
formou ·a poupança, a abstinência consciente da fruição da I pós outra podemos acompanhar a conversão dos an-
renda, em uma virtude. Fez do investimento, a utilização I o pagamentos feudais em espécie - os dias de trabalho
da economia com propósitos produtivos, um instrumento de quantidade de aves ou ovos que o senhor recebia de
devoção e bem assim de lucro. Tolerava mesmo, com vários rrendatários _ em pagamento de tributos e arrenda-
quids e qaos, o pagamento do [uro , Na verdade, o calvínis- em dinheiro, com que cumpriam as obrigações para
mo acelerou uma nova concepção da vida econômica. Em senhor.
Jugar do velho ideal da estabilidade econômica e social, do rande número de causas jaz por trás dessa comutação
conhecimento e conservação do "seu lugar" na ordem so- 9 mentos feudais. Uma delas foi a crescente procura
cial, tomou respeitável a idéia da luta, do desenvolvimento de alimentos, à medida que a população das cidades
material, do crescimento econômico. li a crescer. Em círculos concêntricos em torno das
Os historiadores econômicos debatem ainda o grau pre-
ciso de influência que pode ser exatamente atribuído à "gtica
Protestante" no surto de uma nova filosofia universal cen-
tralizada no lucro. Pois, afinal de contas, não havia a bem
dizer nada que um calvinista pudesse ensinar a um banquei-
ro italiano católico sobre as virtudes de uma visão comercial

35 Werner Sombart, Luxury and Capitalism (Nova York: Co-


lumbla Universlty Press, 1938), pp.120 e segs. Também Thirion, La
VIc Privé des Finenciers au XVIlIême. Siécle (Paris: 1895),p. 292.
O APARECIMENTO DA SocmoAOB DE ME.RQADO 79
78 A FORMAÇÃO DA SocmDAOE EÇONÔMICA

vi escrito cartas lisonjeiras pedíndo-Ihes que não o desam-


cidades, o dinheiro ínfiltrava-se para a zOJ{a rural. acrescen- p rassem nas horas de necessidade.
do a capacidade do setor rural para comprar artigos urba- O sistema dominial era claramente incompatível com a
nos e excitando seu desejo de assim proceder. Ao mesmo nomia monetária; pois enquanto a nobreza estava opri-
tempo, desejosa de uma renda maior em dinheiro para adqui- mida entre a elevação dos preços e custos e rendas estáticas.
rir uma variedade mais ampla de artigos, a nobreza passou classes mercadoras, para as quais o dinheiro forçosamente
a preferir o recebimento dos tributos e arrendamentos em di- canalizava. iam pouco a pouco aumentando seu poder. No
nheiro aos em espécie. Assim procedendo, entretanto, colo- i tríto de Gevaudan, por exemplo. em que os senhores mais
cava involuntariamente em movimento uma causa ainda mais ri os acusavam a renda de 5 000 livres, os mercadores mais
séria par a deterioração do sistema dominial. Quase todos ri os da cidade possuíam rendas acima de 65 000 livres. Na
os antigos serviços feudais foram transformados em somas Alemanha. enquanto Maximiliano tinha dificuldade de obter
fixas de pagamento em dinheiro. Isso facilitou, tempora- dinheiro, a grande família de banqueiros de Ausburgo con-
riamente, a posição de caixa do senhor feudal. mas log" o trolava receitas muito superiores à renda total do império de
submeteu à pressão que sempre aflige o credor nos tempos M ximiliano. Na Itália, os Gianfigliazzi. de Florença. que
de inflação. E, mesmo quando os tributos não eram fixos, meçaram "do nada" emprestando dinheiro ao Bispo de Fie-
os arrendamentos e tributos em dinheiro retardavam-se em te. acabaram despojando-o de suas posses e deixando-e
relação às crescentes necessidades monetárias da nobreza, de n mi,séria; enquanto isso, na Toscana, os nobres que olha-
modo que as obrigações feudais eram cada vez mais mone- v m com menosprezo os usurários do século X acabaram per-
tízadas para conservar as reservas do senhor. Mas como os ndo suas propriedades para eles nos séculos- XII e XIII.
preços subiam, e o padrão da vida monetízada expandia-se Por toda a Europa, homens de condição social inferior fi-
ainda mais, as circunstâncias concorriam para mantê-lo in- ~ ram bom proveito da economia monetária. Certo Jean Ami-
solvente. i. de Toulouse, fez fortuna com pilhagem na Inglaterra du-
O resultado foi que a aristocracia feudal. que dependia nte a Guerra dos Cem Anos; Guillaume de St , - Y on tor-
então cada vez mais de tributos e arrendamentos para sua nou-se rico vendendo carne a preços extorsivos à cidade de
receita, acaboúperdendo o poder econômico. 31 De fato, no ris; e Jacques Coeur. a mais extraordinária figura de to-
início do século XVI vamos encontrar uma nova classe em d s, ascendeu de mercador a moedeiro do Rei. sendo depois
formação - a da nobreza empobrecide . No ano de 1530, no r presentante comercial do Rei e em seguida financista, não
distrito de Gevaudan, na França, vamos verificar que 121 o Rei, mas do Rei, acumulando entrementes a fabulosa for-
senhores feudais tinham uma renda conjunta de 21 400 livres, tuna de 27 milhões de écus.
mas um desses senhores recebia 5 000 livres do total e ou-
tro 2000, de modo que os restantes auferiam a modesta APARECIMENTO DO ASPECTO ECONÔMIÇO DA VIDA
quantia de 121 livres cada um.3S Na verdade, a escassez de
dinheiro afetava não só a nobreza inferior, mas também a Podemos discernir um imenso processo de transforma-
própria monarquia. O Imperador Maximiliano I. do Sagra- o que revolucionou literalmente a organização econômica
do Império Romano, vez por outra não tinha nem mesmo d Europa. Conquanto, no século X, o dinheiro e as tran-
dinheiro para pagar a hospedagem de sua comitiva; e quando ções fossem apenas periféricos à solução do problema eco-
celebrou o casamento de dois netos com os netos do Rei da n míco, nos séculos XVI e XVII o dinheiro e as transações
Hungria, todos os ornamentos dos consórcios --2000 cor- I começavam a proporcionar a própria força molecular da
céis ajaezados, jóias e pratarias - foram tomados de em- ão social.
préstimo a mercadores banqueiros a quem Maximiliano ha- Mas além e acima dessa monetízação generalizada da
, outra e talvez ainda mais profunda transformação ti-
81 Esse processo de declínío econômico foi consíderavelmente fa- nh lugar. O aparecimento de uma esfera isolada de atívi-
vorecido pela inaptidão da nobreza como administradora de suas pro- I d econômica dentro da matriz circunjacente da vida so-
priedades. Os descendentes dos cruzados eram tão maus negociantes l. Era a criação de todo um aspecto da sociedade que
quanto seus ancestrais.
88 Cambrldge Economic History 01 Eueope, I, pp , 557-58.
80 A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE ECONÔMICA / / o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MER~O 81

nunca houvera antes, mas que d aí por d·;:· . constítI U1r


iajrte ma . mercado em quantidades fixas - foi seguido também por
uma faceta preponderante da existênci/.'1Íúmana. ~ ~ dois outros elementos preponderantes da ~ida econômica. ':1?I
deles foi a terra. Primitivamente concebida como o terrítõ-
Na antiguidade e nos tempos Ieudáis, como VImos, nao rio de um grande senhor, tão ínvíolável quanto o modern~
se podiam separar facilmente ás motivações econômicas ou
território de uma nação soberana: a terra era agora consr-
mesmo as ações econômicas do próprio âmbito normal da dera da em seu aspecto econômico como algo que podia ser
existência. O camponês ao seguir seus hábitos imemoriais comprado ou alugado pelo rendimento econômico que pro-
dificilmente teria consciência de estar agindo segundo uma
duzisse. Uma possessão fundiária que fora outrora à c~ntro
motivação "econômica"; na verdade, não estava: seguia as
de um poder político e administrativo se tornara uma pro-
ordens do senhor feudal ou os ditames do costume. Nem
priedade" com um preço de mercado, ?i.sponível pa;a .um.
mesmo o senhor estava economicamente orientado. Seus in- sem-número de usos, até mesmo como SItiO de uma Iábríca ,
teresses eram militares, políticos ou religiosos, e não direta-
Os tributos, os pagamentos in neture, os bens incor~óreos
mente orientados para a idéia de lucro ou de expansão. Mes-
do prestígio e do poder que outrora fluíam da propriedade
mo nas cidades, como observamos, a conduta habitual dos
da terra deram lugar a um simples' pagamento do arre~da~
homens de negócios estava inextricavelmente mesclada com
mento; ou seja, a um rendimento em dinheiro proveniente
outros propósitos não-econõmícos , O fato inegável de que
de colocar-se a terra em uso lucrativo.
os homens eram ávidos, para não dizer avarentos, não tinha
A mesma transformação se verificou quanto à propríe-
ainda conferido seu sabor à vida em geral; ganhar dinheiro,
como tivemos certa dificuldade para assinalar, era uma preo- da de. Concebida na antiguidade e durante quase toda a Idade
cupação antes periférica do que central na existência medie- Média como soma de riqueza tangível, ou pecúlio, tesouro
val ou antiga. de prataria, metal precioso ou jóias, muito logicamente, se
manifestava sob a forma de casas luxuosas, de castelos e ar-
mamento, de vestes palacianas e jaezes. Mas com a monetí-
Terra, Trabalho e Capital Entrem em Ação zação e a comercialização da sociedade, a propriedade tam-
bém se tornou expressível em termos monetários: a pes-
Com a monetização da atividade diária, entretanto, um soa agora "possuía" tantas livres, tantos écus, l~bras.,ou ~o
elemento de vida autenticamente novo veio aos poucos dar que fosse. A propriedade transformou-se em cepitel, ja nao
à tona. O trabalho, por exemplo, surgiu como uma atividade mais se manifestando em bens específicos, mas em soma
muito diversa da que era no passado. Já não era parte de abstrata de flexibilidade infinita cujo valor estava em sua
uma relação social explícita em que um homem (servo ou capacidade de obter juros ou lucros.
aprendiz) trabalhava para. outro (senhor feudal ou mestre Nenhuma dessas transformações, devemos salientar, foi
de guilda) em troca de pelo menos uma garantia de subsis- planejada, claramente prevista ou r~cebida. com sat~sfa~ão.
tência. O trabalho era agora uma simples quantidade de es~ Não foi com equanimidade que as hierarquias feudais VIram
forço, uma "mercadoria" a ser vendida na praça do mercado suas prerrogativas abocanhadas pelas classes merca~~s.
pelo melhor preço que pudesse obter, inteiramente despro- Muito menos o mestre de guilda preservador das tradições
vida de quaisquer responsabilidades recíprocas por parte do desejou sua própria transformação com.pulsória em "capíta-
comprador, além do pagamento de salários. Se tais salários lista", em homem de negócios guiado pelos sintomas de mer-
não eram suficientes para proverem a subsistência _ bem, cado e assediado pela concorrência. Mas a transição talvez
isso não era com o comprador. Ele comprara o "trabalho" tenha sido mais penosa para a classe camponesa, enredada
e nada mais. num processo histórico que a despojava de seu meio de vida
O surgimento do trabalho "puro" _ trabalho como par- e fazia dela um trabalhador sem terra.
cela de esforço destacada da vida do homem e comprado no
As Demarcações
* A seção seguinte deve muito aos estudos de Karl Polanyí, em Esse processo, que cobrou especial importância na In-
seu famoso The Grest Trensiormetion (Boston: Beacon Press, Inc .,
1957). Parte II. gIaterra, foi o movimento das demarcações, um subproduto
82 A FORMAÇÃO DA SocIEDADE ECONÔMICA
O APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERCADO 83
/
da monetização da vida feudal. Iniciando-o a/partir do sé-
culo XIII. a aristocracia agrária, necessitand,cadá vez mais uma insignificância. De fato, especialmente nos séculos
de dinheiro, começou a encarar suas terras não meramente XVIII e XIX, a demarcação foi o meio pelo qual a Ingla-
como feudos ancestrais, mas como fontes' de renda em di- terra "racionalizou" sua agricultura e finalmente se livrou da
nheiro. A fim de produzir maiores safras de numerário, co- ineficácia do tradicional sistema de faixas dominíaís , Mas
meçaram a "cercar" os pastos que antes eram considerados havia um aspecto ainda mais desumano da demarcação. Co-
"terras comuns". Campos de pastagens comunitários, que mo os campos comuns foram cercados, tornou-se ainda mais
na verdade sempre pertenceram ao senhor feudal. a despeito difícil para o arrendatário mantê-los , A princípio vagarosa-
de seu uso comum, foram reclamados para o proveito exclu- mente, depois com crescente rapidez, se viu ele pressionado
sivo do senhor e se transformaram em pastagens de ovelhas. para fora da terra, até que nos séculos XV e XVI, quando
Por que pastagens de ovelhas? Porque uma procura crescente a demarcação dos campos comuns atingiu o auge, de % a
de tecidos de lã estava fazendo da criação de ovelhas uma 9/10 dos arrendatários de algumas propriedades tinham sido
ocupação altamente rendosa. A especialista em história me- expulsos da terra. Povoados inteiros se extinguiram. Sír Tho-
dieval. Eileen Power, escreve: mas Morus descreveu o que foi isso em sua Utopia. Lívro I:
Quem visita a Câmara dos Lordes, ao contemplar respeitosamente
aquela augusta assembléia. não pode deixar de surpreender-se ven- Suas ovelhas que soiam ser dóceis e mansas, e de tão pouco
do um sólido e desgracioso objeto em face do trono _ um des- alimentar, segundo ouvi dizer se fizeram, pois. tão' vorazes e te-
gracioso objeto sobre o qual durante toda a sessão do Parla- míveis que estão devorando hoje os próprios donos. Arruínam.
mento verá sentar-se o Lorde Chanceler da Inglaterra. O objeto arrasam e devoram inteiros campos, casas e cidades. A fim de
é um fardo de lã. e está impregnado de tanta História quanto verificar em que partes do reino nasce a. mais pura, e conseqüen-
o próprio gabinete do Lorde Chanceler ... O Lorde .Chancelee da temente a mais rica lã. os nobres e cortesãos. e até mesmo certos
Inglaterra está sentado sobre um fardo de lã porque foi sobre um abades, santas criaturas conhecidas de Deus, não contentes com
fardo de lã que esta graciosa terra chegou à prosperidade .39 os rédítos anuais que lhes vinham da. terra desde os tempos de
seus antepassados... já não deixam nenhum sitio para cultivo.
o
sistema das "demarcações" na Inglaterra processou-se
tudo arrolando em pastos, deitando por terra casas e Cidades. sem
nada deixar de pé. a não ser a igreja. talvez com o fito de trans-
em ritmo irregular que atingiu um clímax primeiro no século formá-Ia em estábulo de ovelhas .. ,
XVI e mais tarde nos fins do século XVIII e princípio do
século XIX. 40 Ao fim, cerca de quatro milhões de hectares, o movimento das demarcações propiciou força poderosa
aproximadamente a metade das terras aráveis da Inglaterra, para a dissolução dos laços feudais e para a formação das
tinham sido "cercados" -- nos primórdíos da era dos Tudor, novas relações de uma sociedade de mercado. Subtraindo a
pela sua conversão mais ou menos arbitrária em pastos de posse ao camponês, "criou" uma nova espécie de força de
ovelhas; no final do período, pela consolidação forçada de trabalho -- sem terras, destituído das fontes tradicionais de
faixas e glebas de arrendatários em tratos próprios para a renda. ainda que ínfimas, viu-se impelido a buscar trabalho
agricultura comercial em larga escala. Presunuvelmente hou- para obter salário onde quer que se apresentasse a possi-
ve justa compensação. bilidade.
Do ponto de vista estritamente econômico, o movimento
Do proletariado agrícola surgiu por sua vez o proleta-
das demarcações foi sem dúvida alguma salutar ao acarretar
riado urbano. embora houvesse, além disso, um processo de
um mais produtivo emprego da terra, que até então rendia
proletarização nas cidades à medida que a estrutura das guil-
89 Medieval People (Garden Cíty, Nova York: Anchor Books, das dava lugar a maior quantidade de firmas de "aparên-
1954), p. 125. cia comercial". Mas grande porção da classe agrícola des-
4,() Em outras nações européias o sistema das "demarcações" tam- terrada das grandes propriedades fundiárias empreendeu o
bém se verificou. com graus variáveis de rigidez. Na França e na Itá- caminho das cidades em busca de trabalho. Isso provocou
lia. os pequenos arrendatários persistiram multo tempo depois de já ha-
verem deixado de existir na Inglaterra; na Alemanha, um processo de
o crescimento da população urbana. Daí resultou, como ve-
desapropriação de Invulgar crueldade resultou numa série de "guerrilhas" rificamos na Inglaterra a. partir da era elísabetana, a agrava-
e levantes dos camponeses. ção do problema dos "pobres errantes". E uma das solu-
ções propostas no século XVIII foi a de que fossem con-
84 A FORMAÇÂO DA SOCIEDADE EcONÔMIC<I\ o APAREcIMENTO DA SoCIEDADE DE MER«ADO 85

finados em recintos que um reformista chamou candidamente não assumem, em todas as sociedades, a separação especí-
de "Casas do Terror". fica que os distingue numa sociedade de mercado. Nas eco-
nomias prê-mercado, a terra, o trabalho e o capital estão ínex-
Dessa forma, a eclosão de um sistema propenso ao mer-
cado p.rovocou a formação de. uma "força de trabalho", e tricavelmente mesclados e associados na figura do escravo e
embora o processo de ajustamento de outras classes da so- do servo, do senhor feudal e do mestre de guilda - nenhum
ciedade não se mostrasse tão brutal, este também exigiu seu
deles entrando no processo produtivo como a encarnação de
uma função econômica específica ofertada por determinado
preço social. Os mestres de guilda lutaram tenazmente con-
preço. O escravo não é um "trabalhador", o mestre de guil~
tra os manufatureiros que invadiam suas ocupações protegi-
da não é um "capitalista", nem o senhor feudal um "propríe-
das e transgrediam as salvaguardas tradicionais ou desmon-
tavam as formas estabeleci das de produção utilizando-se de tárío", Somente quando um sistema social se desenvolveu,
nova maquinaria. Obstinadamente a nobreza agrária bus- o trabalho é vendido, a terra alugada, e o capital livremente
cava proteger seus antigos privilégios contra a usurpação dos investido, é que vamos encontrar as categorias econômicas
novos-ricos endinheirados. emergindo do fluxo da vida.
Contudo, o processo de economízação, quebrando as ro- A economia / moderna descreve assim a maneira pela
tinas estabelecidas do passado, reorganizando o poder e o qual certo tipo de sociedade, com uma história específica de
prestígio de todas as classes sociais, já não podia ser detido. aculturação e evolução institucionel, resolve seus problemas
Implacavelmente seguiu seu curso histórico e distribuiu im- conômicos , Pode ser bem possível que em outra era não
parcialmente suas recompensas e sacrifícios históricos. Em- haja nem "terra", nem "trabalho", nem "capital". Se, por
bora se estendendo por um longo período, não foi uma evo- exemplo, uma sociedade de comunismo puro viesse um dia
lução, mas uma lenta revolução que se apossou da sociedade prevalecer, o método pelo qual o produto social seria asse-
econômica européia. Somente após a sociedade haver expe- gurado ou distribuído não precisaria necessariamente apre-
rimentado sua longa manopla, sofrendo um dos mais vio- sentar mais semelhanças com o nosso atual sistema de paga~
lentos transtornos da História, é que o mundo da transações mente de salários ou receitas de renda ou distribuição de
surgiria como "natural" e "normal" e as classes da "terra", lucros do que o nosso próprio sistema apresenta com seu pre-
do "trabalho e do "capital" se tornariam tão prosaicas que decessor sistema feudal. Nesse caso, a "economia" como a
seria difícil acreditar que não houvessem sempre existido. onhecemos teria que ser revista para corresponder a uma
nova relação social em que os problemas da produção e da
Os Fatores de Produção distribuição seriam resolvidos.
Mas o surto de uma sociedade de mercado, com seus no-
Todavia, como tivemos ocasião de ver, o trabalho livre,
vos fatores de produção, não foi a única criação daquelas
assalariado e contratual, a terra, como produtora de renda e
f rças de transformação que examinamos neste capítulo.
de lucro, e o capital fluido, buscando investimento, não eram
Juntamente com as novas relações de homem para homem no
de todo "naturais" e "normais", porém criações da grande
m rcado, surgiu uma nova forma de controle social para ar-
transformação de uma sociedade pré-mercado em uma so-
r b tar a chefia econômica da antiga égide da tradição e do
ciedade de mercado. A Economia denomina essas três cria-
m ndo.
ções de fatores de produção, e em grande parte se dedica
à análise da combinação desses três componentes básicos do
processo produtivo no mecanismo do mercado. r r cimento do "Motivo Lucro
O que devemos perceber nesse passo de nossa indaga-
ção, entretanto, é que "terra", "trabalho" e "capital" não ual era essa nova forma de controle? Essencialmente,
existem como categorias eternas da organização social. Re- comportamento social. de ação normal e co-
conhecidamente, são categorias da natureza, mas esses as- a ámbíêncía de um novo mercado impôs à so-
pectos eternos do processo produtivo - o solo, o esforço hu- , qu I r p drão de comportamento? Na lin-
mano e os artefatos que podem ser aplicados à produção - n nii t r t nd n I r ma lml r
86 A FORMAÇ.s.ODA SocIEDADE ECONÔMICA
o APAREOMENTO DA SoaEoADE DE MERCADO 87

renda pessoal (OU minimizar os gastos pessoais) pela con ... pregados na manufatura de calçados. Ou se a sociedade.
cretização das melhores trocas possíveis no mercado. Em operando através desse mecanismo de mercado, quisesse di-
linguagem comum, era a propensão para comprar barato e minuir a quantidade de energia social empregada na fabrí-
vender caro, ou na terminologia comercial, o motivo de lucro. cação de chapéus, bastaria reduzir as recompensas - salá ...
rios, rendas, lucros _ à manufatura chapeleíra, que isso pro-
A sociedade de mercado, na verdade, não inventou essa vocaria um êxodo dos fatores da produção dessa indústria
tendência. Talvez nem a tenha mesmo intensificado. Mas para outro campo mais lucrativo. Na presença de uma ten ...
fê-Ia de fato um aspecto ubíquo e necessário do comporta- dência universal para a maxímízação das rendas. a sociedade
mento social. Embora os homens se sentissem ambiciosos na dotou-se de um poderoso instrumento para a alocação de
Idade Média ou na antiguidade, de fato não se interessa- seus recursos.
vam pelas transações de mercado em função das atividades
econômicas básicas de seus meios de vida. E mesmo Sé O Note-se, entretanto, que esse dispositivo regulador re-
fizessem (como, por exemplo, quando um camponês vendia quereu muito mais do que a tendência do interesse pessoal.
na feira alguns ovos), a transação raramente seria matéria Igualmente necessária foi a mobilizeçêo dos fatores de pro...
de importância dominante para a continuidade de sua exis- dução. Enquanto o trabalho estava ligado a suas propríeda-
tência. As transações de mercado numa sociedade Iundamen- des dominiais ou às guildas, ou quando os mestres de guilda
talmente não-mercado eram pois uma atividade subsidiária, estavam proibidos de expandir sua escala de operação ou ar-
um meio de suplementaçâo da atividade vital que, embora es- riscar-se a novos empreendimentos, o mecanismo de controle
cassa, era profundamente independente dos atos de compra não funcionava. Nesse caso, elevando recompensas para os
e venda. sapatos ou diminuindo as recompensas para chapéus não se
estaria provocando nenhum acréscimo ou decréscimo subs-
Com a monetízação do trabalho, da terra e do capital, tancial na distribuição do esforço social.
entretanto, as transações se tornaram atividades universais e
decisivas. Agora tudo estava à venda, e as condições das Parte essencial da evolução da sociedade de mercado se
transações eram tudo, menos subsidiárias à própria exístên- deveu não só à monetízaçâo da vida, mas também à mobi ...
cia. Para o homem que vendia seu trabalho no mercado, Iização da vida - ou seja, a dissolução daqueles laços de
numa sociedade que não assumia responsabilidade alguma local e estação que eram o próprio cimento da vida feudal.
por sua manutenção, o preço pelo qual ajustava a transação E essa exigência essencial de mobilidade conduz a um ponto
era de toda importância. O mesmo ocorria em relação ao mais avançado. A mobilidade significava que todos os ofí-
senhorio ou ao capitalista nascente. Para cada um deles uma cios e profissões estavam a partir de então abertos para to-
boa transação poderia significar riqueza, ao passo que a má dos. Surgiu a concorrência. A tradicional divisão estanque
significava a ruína. Assim o padrão da maxímização eco ... do trabalho feudal teve que dar lugar a uma rivalidade uni ...
nômica se havia generalizado através de toda a sociedade versal entre as ocupações. Cada ocupação já não era mais
e fura dotado de urgência inerente que fazia dele uma força um abrigo protetor tanto para o aprendiz quanto para o mes-
poderosa para a configuração do comportamento humano. tre da guilda. Agora cada trabalhador ou empregado podia
ser deslocado de sua função por um concorrente cujo tra-
A nova sociedade de mercado fez mais do que criar um balho fosse -maís barato. -
ambiente em que os homens fossem forçados a seguir seu
interesse econômico pessoal. Trouxe ao mesmo tempo à rea- O Funcionamento da Concorrência
lidade um ambiente social em que os homens podiam ser con-
trolados em suas atividades econômicas. Com a tendência Para os desalojados, a instituição da concorrência deve
generalizada para maximizar a renda, era agora possível di-
ter parecido severa e injusta; mas para a sociedade como um
rigir a aplicação das energias humanas em várias direções
todo, propiciou uma salvaguarda essencial. Libertando a ten-
pelo acréscimo ou a redução das recompensas oferecidas para
dência ao interesse econõmíco pessoal das limitações do feu ...
diferentes tarefas. Se fosse necessário um esforço maior para dalísmo, a sociedade parecia em perigo de ser continuamente
a fabricação de calçados, o mecanismo de mercado aumen-
lograda por comerciantes aproveita dores ou trabalhadores
taria as recompensas à terra, ao trabalho e ao capital em-
o APARECIMENTO DA SoCIEDADE"> DE MERC,ADO 89
88 A FORMAÇ.s.O DA SocIEDADE ECONÔMIC,A

se poderia dizer. Pelo contrário. estando os próprios vende-


exigentes o grande receio dos filósofos sociais da Idade dores empenhados numa luta entre si. e achando-se os com-
Média. pradores também envolvidos numa disputa similar. o resul-
O que a concorrência fez. entretanto. foi conter o im- tado da luta decisiva é perfeitamente previsível. s-
o preço
pulso econômico. Lançando um vendedor contra outro. fazia das mercadorias oscilar. a interaçâo de oferta e procura opera
com que se tornasse impossível a um participante isolado no sentido de conduzí-los aos custos de produção. E no caso
obter posição estratégica em proveito próprio. Ainda mesmo de as rendas de fatores em diferentes empregos oscilar tem-
que todos os vendedores de um mercado em concorrência porariamente pé;1racima e para baixo. de novo O mecanismo
quisessem estabelecer preços monopolístícos, a presença de competitivo operaria no sentido de trazer as remunerações
um ~rupo de concorre~tes ávidos. cada qual desejoso de pas- de tarefas similares a um alinhamento comum.
sar a frente ~o ~utro .a custa de uma pequena baixa do pre- Existe ainda um ponto final digno de nota. Vimos co-
ço. assequrana a sociedade que os preços finais de venda mo funciona a economia de um mercado competitivo para
não seriam mais altos do que o mínimo necessário à manu- atender aos desejos da sociedade. Mas quem pode afirmar
tenção da continuidade da produção. que os desejos sejam esses?
A concorrência não só impede o vendedor de usar seu Numa economia prê-mercado, indagações dessa natureza
poder econ_ômi~o.eID prejuízo social como também assegura não suscitam problemas delicados. Os "desejos" de tais so-
uma retra~ao similar do comprador. Nenhum negociante po- ciedades já estão codificados pela tradição perene ou espe-
d: forç~r Isoladamente os preços aquém do custo de produ- ciaImente formulados pelos seus governantes. Mas na so-
çao, pOIS logo os compradores ávidos imediatamente dão cabo ciedade de mercado a específicação dos desejos requer uma
de seu estoque. E esse mecanismo funciona não só no mer- nova dimensão. Consiste agora nas procuras de todo aquele
cado de mercadorias. mas igualmente no mercado de fato- que possua os meios necessários para entrar no mercado.
res , Está claro que nenhum operário poderia exigir mais do Os "desejos". da sociedade são agora expressos por milhões
que os salários. "corre?tes" se ~esejasse conseguir emprego. de encomendas diárias, levadas ao mercado por uma comu-
Mas nem por ISSOteria necessídada de aceitar salários bai- nidade inteira. A medida que entram no mercado. essas en-
xos de um dado empregador. uma vez que poderia obter me- comendas vão afetar os preços das mercadorias. A variação
lhor salário noutra parte. de preços constitui. portanto. indícios para os produtores: a
elevação denuncia um aumento da procura e real ou possí-
. . Mesmo se todos os empregadores.· digamos. na indús-
vel aumento da remuneração; a queda de preços indica o
tria de calçados. quisessem pagar salários mais baixos
contrário.
d~ ~ue o~ empregadores da indústria chapeleira, a concor-
rencia mais uma vez proveria remédio. Nesse caso o fator Dessa forma a sociedade de mercado projeta o consu-
trabalho se mudaria da indústria de calçados para a índüs- midor a uma posição de extraordinária importância. Em sua
. tria de chapéus. ocasionando com isso uma deficiência de disposição e poder de compra é que se baseia a previsâo
operários na indústria de calçados e um excesso na de cha- das procuras com que se defrontam os produtores dentro
~éus .. Os salários te~iam que subir na indústria de calçados da sociedade. Se os consumidores não desejam uma merca-
a medida que os fabricantes sentissem a necessidade de fazer doria ou serviço. ou se não desejam adquiri-Ia pelo preço
voltar a mão-de-obra às suas fábricas. e cairiam na indús- ofertado, tal mercadoria ou serviço ficará sem saída. Nesse
tria de chapéus. por excesso de trabalhadores disponíveis. caso. o esforço de produção requerido para supri-Ia não será
compensatório e em breve deixará de ser feito. Numa so-
A.í então começamos a perceber a natureza complexa do ciedade de mercado. o consumidor é o [ormuledor decisivo
mecanismo de controle de preços proporcionado pela luta do padrão de atividade econômica. Tornou-se o todo-pode-
competitiva. Cruzando-se no mercado. compradores e ven- roso do processo econômico - soberano não como índíví-
dedores se defrontam numa concorrência em que cada com- duo, mas como membro de toda uma comunidade que orienta
prador anseia comprar pelo menor preço e em que cada ven- controla coletivamente a marcha do esforço produtivo da
dedor anseia ganhar o máximo possível. Mas não se trata ocíedade .
simplesmente de uma luta decisiva de cujo resultado pouco
o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERCADO 91
90 A FORMAÇÃO DA SocIWADE ECONOMIC,A

flcações, não poderemos compreender de todo a maneira pela


o Sistema de Mercado e a Ascensão do Capitalismo
qual o capitalismo surgiu do feudalismo. Contudo, sem uma
ompreensão das modificações econômicas mais entranhadas
Funcionará realmente o mercado como sugere esta in-
que tiveram lugar, por assim dizer, espontaneamente e sem
trodução teórica inicial? Quase todo o resto deste livro será
consciente intervenção humana. o acompanhamento das
dedicado exatamente a essa questão; ou seja: até que ponto
transformações legais e políticas em si não pode ser com-
o resultado do processo de mercado na realidade correspon-
de ao mesmo resultado num sistema de mercado "puro". preendido.
Mas ainda não estamos aptos a considerar este problema. Muitas dessas alterações necessárias só ocorreram nos
Viemos acompanhando a evolução do mercado somente até éculos XVI e XVII. ou mesmo mais tarde. Apesar de tudo.
esta sua primeira aparência semiformada, quando a "teoria" servidão só veio a ser formalmente abolída na França em
de um mercado ainda nem sequer passava pela idéia dos 1789, e só o foi na Alemanha meio século mais tarde. Ainda
homens. Voltemos, portanto, à nossa narrativa histórica, re- por volta de 1700. a sociedade de mercado não havia atin-
tomando-a no ponto em que o sistema de mercado começa gido um estágio em que o capitalismo se mostrasse como uma
a se transformar no próprio capitalismo, A lenta evolução , ntidade legal e política inteiramente realizada. Embora a
do sistema de mercado não pode ser considerada simples- "terra", o "trabalho" e o "capital" já tivessem existência; em-
mente como o surto de um novo mecanismo de controle so- bora uma sociedade altamente monetizada já caracterizasse
cial. Deve ser igualmente encarada como a evolução de uma França. a Inglaterra e a Holanda; embora as classes co-
nova organização sócio-econômica da sociedade, uma nova merciais já fossem fortes e prósperas. ainda lhes faltava a
estrutura de leis de organização política, de instituições so- obtenção final de uma "liberdade" econômica, uma ruptura
ciais, de idéias. final com os laços e restrições tradicionais quanto ao traba-
lho e ao capital, a pedra final dos controles e comandos de ci:
A sociedade de mercado não poderia coexistir com uma
forma de organização legal que não reconhecia, por exem- ma. Na Inglaterra, no final da década de 1700, nenhum
mestre chapeleiro podia empregar mais do que dois aprendi-
plo, a liberdade individual de escolher alguém o emprego que
zes, ou nenhum mestre cuteleiro mais que um. e esta e ou-
desejasse, Nem poderia existir sob um código de leis que
tras regulamentações similares da guilda só iriam desapare-
mal reconhecia a "propriedade privada" tal como a conhe-
cer quando o medieval Estatuto dos Artífices fosse revogado
cemos. Nem poderia florescer sob um sistema político em
que o privilégio cabia antes ao berço do que à iniciativa, ou em 1813. Na França, da mesma forma, uma teia de regu-
em que a nobreza agrária possuía por lei e por costume a lamentos obstava o capitalismo nascente. Regras e editos,
principal força regularizadora dos negócios da sociedade. O muitos dos quais buscando uniformizar a produção, estabele-
feudalismo como organização legal, política e social teve que ciam o número exato de fios empregados nos tecidos da in-
. I
dar lugar a outra forma de sociedade com um conjunto muito dústria têxtil francesa, e a desobediência a essas leis impli-
diverso de leis, costumes e instituições políticas. •cava o risco do pelourinho ...- primeiro para o tecido, depois
para o fabricante.
Chamamos essa outra forma de sociedade de capitalis-
Vamos encontrar na metade do século XVII a grande
mo, e o longo processo de transformação que estudamos em
revolução do mercado ainda pelo meio, ou antes, vamos en-
seus aspectos econômicos pode ser mais amplamente inter-
contrar o processo básico de monetização e comercialização
pretado como sendo a evolução (ou revolução) do feudalis-
incomodamente encerrado numa estrutura de organização so-
mo em capitalismo. Os que se interessam por Política irão
observar o aumento da representação política por parte da cial ainda não de todo adaptada a ele.
classe média, crescimento esse que iria culminar na derru- Denominamos mercantilismo esse estágio do pré ....capita-
bada do poder feudal pela Revolução Francesa e numa ero- lismo, 'mas não devemos encarar o mercantilismo exclusiva-
são mais gradual na Inglaterra. Da mesma forma, o estudio- mente como sendo uma época em que o capitalismo nascente
so do Direito nota o aparecimento de uma lei contratual, ou Inda estava contido por uma ordem econômica e social ar-
o declinio das restrições legais da servidão ou das prerro- ica. Pelo contrário, essa também foi uma época em que a
gativas legais da aristocracia. Sem um estudo dessas modí- meta final do capitalismo era poderosamente estimulada e
o APARECIMENTO DA SocIEDADE DE MERCADO 93
92 A FORMAÇÃO DA SociEDADE ECONÔMI~

turo. Os. elementos básicos do capitalismo tinham sido cria-


acelerada. Pois a política do mercantilismo se devotava ao
dos e esperavam sua vez. A vez chegou logo depois, pri-
erguimento da força nacional econômica - em parte subsi-
meiramente na Inglaterra, mais tarde em toda a Europa e
diando, em parte acelerando a expansão da manufatura nas-
nos Estados Unidos. Em breve haveremos de ver desven-
cente. Na França, Colbert, o ministro das finanças de Luís
dar-se esse importantíssimo capítulo da História Econômica.
XIV. afirmava à frívola corte de Versalhes que a grandeza do
país dependia de sua riqueza, sua riqueza de seu trabalho, e
RESUMO
seu trabalho do estímulo aos produtores agrícolas, industriais
e comerciais que eram, de modo geral, encarados com arro- 1. Poderosas [orçes transformadoras operaram no feudalismo 'europeu I
gante desdém. Com tal objetivo em mente, lutou para esti- e gradualmente serviram para introduzir a estrutura de uma socie-
mular a burguesia nascente e favorecer os interesses da ín- dade de mercado. Entre essas forças, as principais eram: I
.dústria e do comércio em geral. • O papel do mercador itineré!nte, ao introduzir na vida feudal
o comércio, 11 moeda e o espírito aquisitivo.
Assim procedeu, mas de uma forma curiosamente para-
doxal, com uma rede de regulamentos, tarifas e ordenações • O processo de urbanização como fonte da atividade econômica,
e como local de um novo poder, comercialmente orientado.
que sufocavam o impulso empreendedor ao mesmo tempo que
ansiavam promovê-lo: e os benefícios sociais de sua política • As Cruzadas, como força desínteqradora da vida feudal e ín-
econômica foram largamente viciados pela necessidade de trodutora de novas idéias.
ater-se a um sistema feudal de impostos que era severo, iní- • O surgimento de Estados nacionais, unificados e defensores do
quo e corrupto . Contudo, como em nenhum outro período comércio.
anterior, as sementes para o subseqüente crescimento foram • O estímulo da Idade da Exploração e do ouro que ela trouxe
delíberadamente plantadas através de toda a era mercantil: à Europa.
Frederico o Grande, à margem de um de seus editos, lamen- • O aparecimento de novas idéias religiosas, mais simpáticas à.
tava que seus cidadãos tivessem que ser arrastados para o atividade empresarial do que o catolicismo.
lucro "pelo nariz e pelas orelhas". 4l • A monetização das dívidas no sistema dominial.

E uma anomalia significativa também deve ser assi- 2. Corno conseqüência dessas forças, começamos a ver a separação
entre a vida econômica e social. Os processos de produção e dis-
nalada. A despeito da multiplicidade de requlamentos que tribuição já não eram indiferenciavelmente mesclados aos costumes
o mercantilismo impusera, foi também durante esses anos - e práticas religiosas. políticas e sociais: começavam a formar uma
talvez por causa das próprias dificuldades da regulamenta- área distinta na vida.
ção - que a idéia de um mercado totalmente livre e desim- 3 , Com a ascensão do aspecto econômico da vida, vemos ocorrerem
pedido começou a ganhar aceitação. "Que [eut-il [eire pour transformações profundas e duradouras. O servo camponês ·já não
vaus eider?" (Como podemos ajudá-lo"}, escreveu Colbert é mais Iígado à terra, e torna-se um trabalhador livre e móvel;
o artesão já não está mais preso às regras da guilda e transfor-
ao mercador Leqendre , " Naus leissez-ieire" (Deixe-nos em ma-se num empresário livre e independente; o senhor de terras se
paz), foi a resposta. Colbert não ligou muito para o conse- transforma (no moderno sentido da expressão) em proprietário de
lho, mas este logo se transformaria no lema do f.OVO mundo terras. A transformação foi longa e violenta, especialmente no
capitalista. complexo caso das demarcações.
Uma ampla revisao da História Econômica deveria es- -4• O advento dos trabalhadores livres, capitalistas e proprietários
tudar o mercantilismo europeu detalhadamente, pois esta foi de terra. cada um deles vendendo seus serviços no mercado de tra-
balho. capital e terra. tornou possível falar de "fatores de produ-
uma era crítica da História Econômica, uma era em que o ção", Com isso estavam implícitas duas coisas: as categorias fí-
crescimento industrial foi pela primeira vez lançado Como um sicas da terra. trabalho e capital como agentes diferenciáveis no
deliberado ato de política econômica nacional. Contudo, era, processo de produção. e as categorias sociais de trabalhadores. pro-
por assim dizer, uma posição de equilíbrio instável. não de prietários de terra e capitalistas como grupos ou classes distintos
no mercado. .
todo emancipada 00 passado, não de todo integrada no Iu-
5, O aparecimento dos fatores de produção assinalou a entrada em
'1A. Lowe, Economics and Sociology (Londres: George Allen ação do sistema de mercado já amadurecido, Suas caracteristicas
& Unwln, 1935}, p. 23. eram:
91 A FORMAÇÃO DA SocIEDADE ECONÔMICA
o APARECIMENTO DA SoCIEDADE DE MERc,AOQ 95
• O "motivo lucro" como guia do comportamento econômico.
6. Você acha que a maior parte dos norte-americanos obedece ao
• A grande mobilidade social e legal dos fatores de produção.
motivo lucro? A maior parte dos norte-americanos tem grande mobi-
• O aparecimento da "procura" - quantidades que os consumi- lidade? Você conhece alguém que tenha mudado de residência por
dores desejam e podem pagar - como o novo regulador da pro- motivos econômicos? E de profissão?
dução.
7. O lucro. certamente. é tão antíqo quanto o homem. Pode-se con-
• A elevação doconsum/dor. em massa. a uma nova posição ·de siderar as origens do capitalismo como sendo igualmente antigas?
controle econômico.
8. Como você definiria feudalismo? Mercantillsmo? Capitalismo?
6. O sistema de mercado exigia não somente a inovação econômica
do processo de mercado. como também toda uma panóplia de trans- 9. Que transformações políticas e legais foram necessárias para trans-
formações políticas e legais. A liberdade e a independência do formar o feudalismo em sistema de mercado?
índívíduo econômico. idéia incompativel com o feudalismo. eram uma
precondíção essencial para um sistema fluido de mercado.
7. A transformação não foi a1cançada de uma só vez. A evolução
do feudalismo para o sistema livre de mercado passou por um es-
tágio transitório chamado mercentilismo , O mercantilismo foi ca-
racterizado por um esforço de regulamentar detalhadamente a pro-
dução e o comércio. dando-lhes, simultaneamente. apoio e enco-
rajamento.
8. As complexidades da regulamentação mercantilista deram origem ao
lema que passaria a ser a essência da filosofia capitalista: leissez-
-faire (deixe-nos em paz).

QUESTÕES

1. O que as atividades do mercador tinham de desintegradoras em


relação à vida feudal? As atividades empresariais de hoje em dia
também causam tensões sociais?
2. As nações subdesenvolvidas da atualidade freqüentemente se asse-
melham às economias da antiguidade ou da Idade Média. pelo
menos quanto à pobreza e estagnação. Discuta se as forças trans-
formadoras mencionadas neste capítulo têm alguma importância
para a modernização dessas áreas. Existem novas forças de trans-
formação?
3. As nações líderes do mundo. quanto à renda pee cepits, são os
E.U.A.. Nova Zelãndía, Austrália e os Estados escandinavos.
Entre as nações menos ricas do Ocidente estão a Irlanda. a Espa-
nha, Portugal e Itália. Você acha que isso prova a validade da
tese Weber-Tawney, quanto à importância da ética protestante no
crescimento econômico? A adição da América Latina modifica o
argumento? E da Ásia?
i. Na Europa. o processo de comercialização e monetízação freqüen-
temente foi violento. Você acha que a Guerra Civil Americana. que
terminou com a escravidão e desintegrou o sistema sulíno semifeudal
de plantação. pode ser considerado como parte da mesma transfor-
mação na América?

5. A vida econômica é distintamente separada da vida política e social


da América?

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