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A OFICINA DA HIST6RIA

do passado, tesouro da nação, tem igualmente a responsabilidade de


traçar esse futuro e, por conseguinte, de fechar o tempo.
A narrativa histórica obedece portanto a um recorte do tempo que
se inscreve no dado bruto da vivência: no fundo, fixa as recordações
dos indivíduos e das colectividades. Conserva vivo aquilo que escolheram
do seu passado ou simplesmente do passado, sem desfazer nem recons-
truir os objectos desse passado: fala de momentos, não de objectos.
Mesmo quando trata ou quer tratar de «civilizações», esse tipo de his-
tória não escapa à regra: quando Voltaire compara o século de Péricles
ou de Augusto ao de Luís XIV, a encarnação concreta dessas sucessivas
Da história-narrativa à história-problema * grandezas indica bem que está a comparar períodos e não conceitos.
Essa é com certeza uma das razões pelas quais esta história foi
principalmente - mas não unicamente - biográfica ou política. Na
A história é filha da narrativa. Não se define por um objecto de

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vivência colectiva da humanidade aquilo que é mais fascinante para as
estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não
testemunhas c mais disponível para a narração é a aventura dos grandes
tem de facto outro sentido que dizer que dispõe todos os objectos que
homens e dos Estados. Não nos devemos admirar de que a história
estuda no tempo: fazer história é contar uma história.
! se tenha desenvolvido, na Antiguidade grega e romana, e depois na
t Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém Europa Moderna, como anais do poder e da guerra. O recorte narrativo
t, ou a alguma coisa, a um indivíduo, a um país, a uma instituição, aos
compassou os infortúnios e as vitórias dos povos - os grandes mo-
i homens que viveram antes do instante em ql:e se narra e aos produtos
mentos da história.
~ da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que constituem
É que o acontecimento dessa história é um momento. É isso mesmo
o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito
que o caracteriza por excelência: é aquele ponto de tempo ímpar em
naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta

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que se passa qualquer coisa que não é redutível nem àquilo que houve
ao homem como a própria imagem do tempo: a duração muito nítida
antes, nem ao que virá depois. Essa «qualquer coisa», ou seja, o facto
de uma vida, entre o nascimento e a morte, e as datas referenciáveis
histórico revestido da dignidade de acontecimento, não é nunca com-

!
dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A divisão do
parável, falando com todo o rigor, a um facto anterior ou posterior,
tempo é portanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto»
dado que é o seu carácter empiricamente singular que lhe dá a sua
da história.
importância: a batalha de Waterloo ou a morte de Estaline aconte-
Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no
ceram apenas uma vez, não se compararam com nenhuma outra bata-
fundo à mesma lógica: não pode, por definição, começar senão pelas
lha, com nenhuma outra morte, e transformaram a história do mundo.
origens da França, contar em seguida as fases do crescimento e da
No entanto, o acontecimento, tomado em si próprio, é ininte-
aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença
ligível. É como uma pedra que apanho na praia: privada de signi-
está em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração
ficação. Para que a adquira, tenho de integrá-Ia numa rede de acon-
tecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da
* Diogéne, n.? 89, «Problêmes des sciences contemporaines», Janeiro-Março narrativa. Waterloo tem um sentido em relação a uma história que
de 1975.
conte a vida de Napoleão, o Primeiro Império ou a rivalidade franco-

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-britânica do século XIX, por exemplo. A morte de Estaline ganha impor- nhece-se nas incertezas desta enumeração ao mesmo tempo toda a
tância na história da Rússia no século XX, na do comunismo interna- ambiguidade das realizações e dos valores que caracterizam o mundo
cional ou noutra qualquer constelação cronológica de factos que se contemporâneo e a impossibilidade, no entanto, de não os evocar como
possa imaginar. O que significa que, no interior da história-narrativa, outros tantos fundamentos implícitos de uma certa história: o narrador
o acontecimento, apesar de por natureza ser único e não comparável, tem de situar o mundo de que fala no fim do tempo que narra.
extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, Em suma, a história-narrativa é a reconstrução de uma experiência
do tempo. vivida no eixo do tempo: reconstrução inseparável de um mínimo de
Não sendo ele um objecto intelectualmente construído para ser conceptualização, mas em que essa conceptualização nunca é explicitada.
estudado, não pode portanto receber a sua significação da análise das Esconde-se no interior da finalidade temporal que estrutura qualquer
suas relações com outros objectos comparáveis, ou mesmo idênticos, narrativa como se fosse o seu sentido.
no interior de um sistema. Pertencendo à ordem do vivido, ao domínio Ora, o que me parece caracterizar a evolução recente da historio-
«daquilo que aconteceu», não pode ser organizado ou mesmo simples- grafia é o recuo talvez definitivo dessa forma de história, sempre flores-
mente baptizado a não ser em relação à significação externa e global cente ao nível das produções de grande consumo, mas cada vez mais
do tempo histórico que tem por função medir. Toda a história-narrativa abandonada pelos profissionais da disciplina. Parece-me que passamos,
é uma sucessão de acontecimentos-origens, que podemos chamar, se sem o sabermos ainda, de uma história-narrativa a uma história-pro-
quisermos, de história evenemencial; toda a história evenemencial é blema, à custa de mutações que se podem resumir do seguinte modo:
uma história teleológica: só o «fim» da história permite escolher e com- 1. O historiador renunciou à imensa indeterminação do objecto
preender os acontecimentos com que ela é tecida. do seu saber: o tempo. Já não tem a pretensão de contar o que se passou,
Esse «fim» pode ser diferente segundo os historiadores e os assun- ou até o que se passou de importante, na história da humanidade, ou
tos que escolheram para contar. Foi envolvido durante muito tempo numa parte da humanidade. Está consciente de que escolhe, nesse pas-
pela apologética religiosa ou pela edificação moral, que hoje em dia sado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado, ques-
passaram de moda. Não se pode dizer o mesmo da exaltação do poderio tões selectivas. Por outras palavras, constrói o seu.objecto de estudo
ou da consciência nacionais, que continua a ser uma das grandes delimitando não só o seu período, o conjunto dos acontecimentos,
justificações da história-narrativa, depois de ter sido, sem dúvida, o seu mas também os problemas colocados por esse período e por esses acon-
impulso fundamental: todos os povos precisam de uma narrativa das tecimentos, e que terá de resolver. Não pode portanto escapar a um
origens e de um memorial da grandeza que possam ser ao mesmo mínimo de conceptualização explícita: a boa questão, o problema
tempo garantias do seu futuro. Assim como a escrita é um poder, os bem colocado são mais importantes - e são mais raros! - do que a
nossos arquivos são recordações ou símbolos do poderio. Mas a his- habilidade ou a paciência em trazer à luz do dia um facto desconhe-
tória transnacional, geralmente designada como história das civilizações, cido, mas marginal.
também não foge a essa imposição inevitável de dar um sentido prévio 2. Rompendo com a narrativa, o historidador rompe igualmente
ao tempo. No mundo laicizado em que vivemos, ela traduz na maior com o seu material tradicional: o acontecimento singular. Se, em lugar
parte das vezes, para além da pertença nacional, a outra grande vivência de descrever um vivido, único, fugidio, incomparável, procurar explicar
colectiva da humanidade desde o século xvnr: o sentimento do pro- um problema, vai necessitar de factos históricos menos vagos do que
gresso. Esse progresso tem nomes e rostos diferentes, é por vezes o aqueles que encontra constituídos sob esse nome na memória dos
desenvolvimento dos bens materiais, mais frequentemente o difícil homens. Tem de conceptualizar os objectos da sua investigação, inte-
advento da razão, da democracia, da liberdade ou da igualdade. Reco- grá-los numa rede de significações e, por conseguinte, torná-los, se não

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idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo. É pri- que se quer resolver e as hipóteses que se pretende testar. Sem me
vilégio da história quantitativa oferecer a via mais fácil - mas não querer alongar sobre este vasto problema, gostaria de me limitar ao
a única - para este tipo de trabalho intelectual. exame das consequências dessa mutação na nossa profissão e no nosso
3. Ao definir o seu objecto de estudo, o historiador tem igual- saber.
mente de «inventar» as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, O arquivo com base no qual se escreve a história passou de uma
tal corno estão, ao seu tipo de curiosidade. Pode acontecer, evidente- colecção de documentos a uma construção serial de dados. Com efeito,
mente, que se lhe depare um arquivo que não só será utilizável tal qual se o historiador passa a trabalhar com um objecto de investigação
está, mas ainda o vai conduzir a ideias, a uma conceptualização nova conceptualmente claro, e se quer por outro lado permanecer fiel à espe-
ou mais rica. É uma das bênçãos do ofício. Mas geralmente acontece cificidade da sua disciplina, que é estudar a evolução dos acontecimentos
o contrário. Ora o historiador que procura colocar e resolver um pro- no tempo, tem de dispor de dados pertinentes (raramente disponíveis
blema deve achar os materiais pertinentes, organizá-los e torná-los enquanto tais) e comparáveis entre si num período de tempo relati-
comparáveis, permutáveis, de modo a poder descrever e interpretar vamente longo. O facto histórico já não é a irrupção de um aconteci-
o fenómeno estudado a partir de um certo número de hipóteses concep- mento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim
tuais. um fenómeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que
4. Daí a quarta mutação da profissão de historiador. As conclu- seja referenciado e estudado através de uma série cronológica de dados
sões de um trabalho são cada vez menos separáveis dos procedimentos idênticos, comparáveis a intervalos preestabelecidos. Estes dados já não
de verificação que as sustentam, com os constrangimentos intelectuais existem em si, mas como elementos de um sistema formado pelos que
que implicam. A lógica muito particular da narrativa, do post hoc, os precedem e pelos que os seguem. São menos susceptíveis de uma
ergo propter hoc, não se adapta melhor a esse tipo de história do que crítica externa de verosimilhança (através da comparação com outros
a história, também ela tradicional, que consiste em generalizar o testemunhos da mesma época) do que de uma crítica interna de coe-
singular. E é aqui que aparece o espectro da matemática: a análise rência (através do estabelecimento da sua comparabilidade no interior
quantitativa e os processos estatísticos, desde que adaptados ao pro- do sistema que formam).
blema e judiciosamente conduzidos, estão entre os métodos mais rigo- A operação intelectual que constitui os dados é portanto dúbia.
rosos de «testagem» dos dados. É preciso primeiro estabelecer a sua significação, que condiciona a sua
Antes de ir mais longe, deveríamos interrogar-nos sobre as razões utilização exacta. Por exemplo: o historiador que se interessa peJa
desta mutação da história. Referem-se provavelmente a factores exter- alfabetização possui antes de mais, para períodos anteriores ao sé-
nos ao próprio conhecimento, como a crise geral do progresso com culo XIX, enumerações de assinaturas. Mas que significa saber assinar
a qual nos debatemos, que põe em causa o sentido de urna evolução o nome, em relação aos critérios actuais de alfabetização, que são a
dominada pelo modelo europeu dos séculos XIX e XX, e a própria noção capacidade de ler e 'escrever? Ou ainda: o historiador das crises e dos
de uma história global e linear: Mas também se referem a elementos diferentes tipos de crises económicas na época moderna utiliza em
internos ao saber, tais como a influência difusa da conceptualização profusão as séries de preços. Mas tem de responder primeiro à seguinte
marxista nas ciências sociais, o desenvolvimento muito brilhante de pergunta: que significa o preço? Quais os movimentos, quais os níveis
algumas dessas ciências de objecto limitado e definido (estou a pensar da vida económica de que é indicador? Uma vez estabelecida a
na economia, na demografia, na antropologia), ou ainda o impacte significação dos dados, é necessário constituir a sua série, torná-I os
da informática, que permite cálculos até aqui inimagináveis, mas com a comparáveis entre si, decidir da unidade-tempo que cobrem, dos
condição de serem prévia e rigorosamente formuladas as questões procedimentos estatísticos apropriados, etc. Operações que não são

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simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas meto- .1
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e o comportamento sexual das populações do passado. Ou do especia-
dológicas. 1
lista do crescimento económico que trabalha com séries de preços.
Poder-se-á objectar a esta visão do trabalho histórico uma espécie Nestes casos, o problema da pertinência e a eventual reorganização
de questão prévia: é que as fontes do historiador são geralmente lacu- dos dados em relação ao problema posto é o problema central da sua
nares, parciais ou simplesmente inexistentes, segundo os acasos da sua manipulação. Por fim, existe um terceiro tipo de fontes, mais delicado
conservação. Seja como for, não se trata, entre a história e as outras ainda de manejar: as que não são de natureza numérica, mas que o
ciências sociais, de estabelecer uma diferença de princípio mas de situa- historiador quer utilizar de modo serial. Para tal, como no caso ante-
ções; existem com certeza problemas, sobretudo nos períodos recuados • rior, deve não apenas estabelecer a sua pertinência e o seu valor como
do passado, em relação aos quais desapareceram os materiais de análise. 1 também reorganizá-Ias sistematicamente em unidades conceptuais e
l,
Porém, em contrapartida, é preciso ver que esses materiais não foram 1 cronologicamente comparáveis. Exemplos: a utilização de contratos
constituídos de uma vez por todas no século XIX com o depósito público notariais de casamento para estudar a endogamia, a mobilidade social,
de arquivos: têm uma elasticidade quase indefinida, e muitos vezes a fortuna ou a alfabetização. Ou a dos testamentos para a análise do
é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si próprio, sentimento da morte.
que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos Assim, se se procurasse classificar as mais recentes conquistas
registos de paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante da historiografia contemporânea pelo grau de rigor das suas realizações,
séculos, até que o nascimento recente da demografia histórica, nos seríamos levados a ter em conta ao mesmo tempo o tipo de conceptua-
anos cinquenta, viesse descobrir o seu imenso valor. Por outro lado, lização dos problemas e a qualidade das fontes em relação a esses pro-
o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca, blemas. Assim, é fácil de verificar que, por exemplo, a demografia his-
dados constituídos directamente pertinentes pode na maioria dos casos tórica ou a história económica são deste duplo ponto de vista, e pelo
contornar o obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe menos em relação ao chamado período «moderno», os sectores mais
permita a sua utilização em segundo grau. bem apetrechados: primeiro porque beneficiam de conceitos elaborados
Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização por disciplinas específicas como a demografia e a economia política,
substitutiva dos dados históricos. Distingui, num artigo recente, três pelo que basta importá-I os para a história, com adaptações menores.
tipos de dados seriais: o primeiro, o mais simples e mais fácil de manejar, Depois porque os objectos desses estudos são mais fáceis de abstrair,
é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis constituídos de definir e de medir do que a maioria dos produtos da actividade
de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe. humana e porque, de resto, a maior parte dos estados europeus esta-
É o caso, por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos belecem e conservam dados desse género desde há vários séculos.
registos de paróquia para o historiador demógrafo: deles se extraem, Contudo, até no interior desses sectores «avançados» da história
com uma manipulação mínima e estandardizada (a técnica da recons- as coisas não são tão simples como o poderiam deixar pensar os cri-
tituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda térios deste palmarés, retirados da classificação académica das nossas
resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas. disciplinas. É que a história, dada a sua natureza indeterminada, tende
O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas a extravasar incessamente às aquisições sectoriais desses saberes espe-
utilizados de modo substitutivo, para responder a questões comple- cializados. A questão que se põe é saber se, e em que medida, ao tomar
tamente diferentes das razões por que tinham sido agrupados esses de empréstimo, ao integrar algumas dessas aquisições, ela terá insti-
dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos tuído um conhecimento do passado que se possa classificar como cientí-
intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção fico.

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É preferível, a fim de ter uma melhor visão deste velho problema, demografia, mas para a qual a história fornece igualmente os mate-
raciocinar sobre exemplos, numa ordem crescente de complexidade riais primários -, o levantamento de nascimentos, casamentos e óbitos.
ou de incerteza. Vou escolhê-los no campo da demografia histórica, Por pouco que trabalhe com dados seguros ou verificados - e esse
que é um dos sectores mais trabalhados pela historiografia francesa «pouco» é, na realidade, muito porque o problema da verificação das
desde há uns vinte anos. É também um sector que apresenta facilidades fontes numéricas não é simples -, a demografia histórica contribui
excepcionais para a formalização matemática dos problemas. Esse com resultados comparáveis aos da simples demografia: o conjunto
privilégio resulta da natureza específica da disciplina e dos sacrifícios das relações que permitem medir os elementos de uma dada população
que esta consentiu na definição do seu objecto: a demografia funda- e o modo como evoluem.
menta-se inteiramente num postulado abstractamente igualitário, se- Esses elementos, medidos ano a ano, constituem resultados claros
gundo o qual o nascimento de Napoleão tem exactamente a mesma (não ambíguos) e certos. Mas a sua interpretação já não o é. Tomemos
importância que o de qualquer um dos seus futuros soldados. Sacri- uma taxa de mortalidade geral que baixa durante um século, por exemplo
ficando assim por hipótese tudo aquilo que haja de peculiar na vida na França do século XVIII. É necessário estabelecer, decompor essa
dos indivíduos, ou seja, o essencial da sua história, constitui a humani- taxa por grupos etários, obter nomeadamente a taxa de mortalidade
dade histórica em unidades permutáveis e mensuráveis, mediante alguns infantil ou juvenil, para saber onde se produz a baixa da mortalidade.
tipos constantes e comparáveis de acontecimentos: o nascimento, o Suponhamos que se trata de ganhos espectaculares na sobrevivência
casamento, a morte. Esses acontecimentos, desembaraçados de todas dos recém-nascidos (O- 1 ano): uma série de hipóteses muito diversas
as significações que as civilizações, cada uma à sua maneira, neles pode explicar um fenómeno desse tipo, desde a multiplicação das par-
colocam, ficam reduzidos àquilo que têm de mais elementar: o facto, teiras nos campos até à transformação do sistema de aleitamento,
simplesmente, de terem acontecido. passando por este ou aquele progresso pontual da medicina numa dada
Digo propositadamente que são acontecimentos porque não vejo, doença infantil. Como escolher, sem ter testado cada uma destas ideias
a priori, o que possa distinguir determinado facto histórico de outro e algumas outras?
facto histórico: por exemplo, um nascimento, mesmo anónimo, de uma É verdade que se pode proceder de outro modo e partir, não de uma
batalha célebre. Deste ponto de vista, a distinção usual entre estrutura só variável, mas do conjunto das variáveis de um sistema demográfico.
e acontecimento, entre história estrutural e história factual não pode A abordagem é então menos histórica do que propriamente demográfica:
ter qualquer significação no que diz respeito ao próprio dado histórico; utiliza ou constitui um modelo de reprodução de uma população supos-
não há factos não factuais e factos factuais. A história é um aconteci- tamente estável, pondo provisoriamente entre parênteses o factor tempo.
mento permanente. Mas certas categorias de acontecimentos prestam-se Suponhamos que todas as «casas» deste modelo foram preenchidas;
mais facilmente do que outros a uma conceptualização, ou seja, a uma a pergunta do historiador subsiste: como evolui o sistema? É possível,
integração num sistema de inteligibilidade: é o caso dos acontecimentos evidentemente, pela observação daquilo que se passou ou mesmo pela
demo gráficos. simulação daquilo que se teria podido passar se esta ou aquela variável
De facto, esses dados brutos, e particularmente simples, sobre do sistema tivesse estado ausente ou fosse muito diferente diagnosticar
os nascimentos, casamentos e óbitos constituíram o objecto de um por onde é que o sistema se modifica; como é que, por exemplo, se
saber específico: a demografia. Podem portanto dar lugar a um certo desenvolve ou, ao contrário, se retrai. Mas a análise dessas variáveis
número de cálculos e análises, que são em si outros tantos objectos estratégicas remete, como no caso anterior, para elementos exógenos
pré-fabricados da investigação histórica: ou seja, objectos, conceitos ao sistema e que agem sobre ele. Isto é, para hipóteses de interpretação
elaborados por uma disciplina que não é a história - neste caso a que saem do campo demográfico e remetem imediatamente para con-

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ceitos não constituídos em disciplina científica e para indicadores que veis: veja-se Chaunu, Le Roy Ladurie, redescobrindo M althus! A Europa
na maioria dos casos estão por inventar. rica, a Europa «desenvolvida» dos séculos XVII e XVIII, essa franja de
Vejamos o problema da idade de casamento, variável central da alta produtividade agrária que se estende desde a bacia de Londres até
regulação demo gráfica nas populações da Europa pré-industrial, entre à Itália do Norte, passando pelos Países Baixos, a França do openfield,
os séculos XII e XIX. Sem entrar aqui em pormenores, parece de facto o vale do Reno, encontraria a sua estabilidade em torno de uma relação
que o recuo da idade de casamento terá sido o instrumento endógeno do homem com a terra de quarenta habitantes por quilómetro quadrado.
essencial para uma estabilização da dimensão global dessas populações, Mas esta proposição, mesmo que seja grosso modo verdadeira - o que
submetidas por outro lado a punções externas (fomes, guerras, epide- não é muito evidente, porquanto os dados sobre a produtividade e a
mias) cujo impacte decresce ao longo do período. Como se opera essa produção agrárias desta época são difíceis de manejar -, não diz
regulação? De dois modos. A longo prazo, a elevação progressiva da nada sobre as mediações através das quais foi vivido esse ajuste da idade
idade de casamento, até aos seus «níveis» clássicos de vinte e cinco, de casamento. Será que se trata - na medida em que não é acompa-
vinte e seis anos (para as mulheres), anula dez anos de fecundidade nhado de um aumento dos nascimentos ilegítimos - de uma mais
possível e diminui assim, independentemente de qualquer acção contra- perfeita interiorização, durante urna adolescência mais longa, das regras
ceptiva, o número de crianças por família «completa». Por outro lado, de austeridade sexual? Ou deveremos ver aí sobretudo uma adaptação
a mais curto prazo, a extrema variabilidade das taxas de mortalidade de tipo socioeconómico, de tal modo que os filhos esperam, para se
segundo os acasos da conjuntura é equilibrada por variações compensa- casar, isto é, para SE estabelecerem, que a geração precedente lhes entre-
tórias da idade de casamento: quando uma população atravessa uma gue a exploração familiar?
crise demográfica (qualquer que seja a sua causa), adia os seus casa- Dir-me-ão que se deve começar pelo mais fácil e que as incer-
mentos, pelo que recua a idade de casamento. Mal sai dela, pelo contrá- tezas são menores no que respeita às variações da idade de casamento
rio, acrescenta aos casamentos adiados outros de camadas etárias mais a curto prazo. Porque é que, em períodos de crise, uma população
jovens. O abaixamento provisório da idade de casamento desempenha adia os seus casamentos? A resposta é relativamente clara: por causa
então um papel de recuperação do nível anterior à crise. Deste modo, das incertezas em relação ao futuro, que nascem do espectáculo do
podemos facilmente conceber e fazer funcionar um modelo demo gráfico presente. A consciência histórica é, de facto, uma consciência deter-
que permita examinar qual a evolução de uma população, permanecendo minada pelos acontecimentos a curto prazo; é a conjuntura que con-
todos os outros factores iguais, a partir das variações da idade de casa- diciona as suas reacções de optimismo ou de pessimismo em relação
mento: como é que cresce, como é que diminui. ao futuro. Quando o historiador tem de lidar com reacções deste tipo,
Este tipo de simulação permite seguir o papel desempenhado por que são estratégias conscientes de resposta a um dado acontecimento,
uma variável num sistema, e até na evolução desse sistema. Mas não está relativamente à vontade para reconstituir-Ihes o encaminhamento
as causas que sobre ela actuam. Por outras palavras, permite descrever através dos vestígios que elas deixaram; pois não faz mais do que ressus-
e não interpretar e muito menos explicar. De facto, basta colocar a citar as razões dos agentes históricos. O aborrecimento é que essa redun-
questão: quais são os factores susceptíveis de agir sobre um comporta- dância não leva longe! A crise adia os casamentos, a prosperidade
mento cultural como o da idade em que se casam as pessoas, para se multiplica-os antes que a crise seguinte os atinja novamente. Bom!
ser remetido para uma pluralidade de interpretações possíveis. A longo Mas fica por compreender o problema essencial: saber como se estabe-
prazo, a elevação da idade de casamento, na Europa clássica, até aos lece, através dessa sucessão de ajustamentos em sentido contrário, um
vinte e cinco, vinte e seis anos, pode ser interpretada como um ajusta- recuo global da idade de casamento que permita travar o crescimento
mento optimizado da densidade populacional aos recursos disponí- «natural» das populações da Europa pré-industrial.

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É aqui que uma descoberta de tipo descritivo, como esta, leva lógico a propósito do qual nenhuma demonstração é possível. Serve
forçosamente o historiador a hipóteses explicativas que são duplamente para interpretar comportamentos que são indefinidamente interpretáveis
delicadas: primeiro porque estavam por natureza fora do alcance dos noutros termos: por exemplo, substituindo a ideia weberiana de auto-
homens cujo comportamento estuda e, portanto, não existem traços disciplina do indivíduo pela do reforço dos constrangimentos externos,
escritos directamente utilizáveis. Depois, porque é obrigado a sair da neste caso a Igreja e o padre; todavia, por outro lado, não existem
análise propriamente demográfica e da precisão conceptual e factual e não existirão nunca dados pertinentes para responder a hipóteses
que ela implica. Tem de compreender os mecanismos através dos quais que dizem respeito à psicologia dos agentes históricos: estes morreram
a probabilidade de comportamento colectivo que está inscrita na aná- já e poucos foram, mesmo entre os raros que falavam de si, os que
lise dos dados sobre a idade de casamento se encarna na multiplicidade se interessaram por essa parte de si próprios que não tinham, antes de
das condutas individuais. Freud, nem os meios nem mesmo a curiosidade de explorar. O his-
Retomemos a título de exemplo as duas hipóteses sugeridas acima. toriador daquilo que hoje em dia se designa de um modo muito vago
Apesar de serem de natureza diferente, não são incompatíveis. Têm por «mentalidades» é assim levado quer a raciocinar sobre textos espar-
em comum facilitar nos indivíduos que viveram nessa época a har- sos ou ambíguos quer a achar um indicador, não nas psicologias, mas
monização das expectativas e das oportunidades que é uma das condi- nos próprios comportamentos, para induzir a partir deles as caracte-
ções da vida social, esse mecanismo um pouco melancólico com o rísticas psicológicas.
qual os homens prevêem e fabricam o seu futuro mais provável. Mas No primeiro caso, vai encontrar dificuldades ligadas à significação
a primeira é de ordem psicológica, a segunda de ordem económica. de um testemunho ao mesmo tempo subjectivo e excepcional. É verdade
A primeira é uma moral, a segunda uma estratégia. A primeira não que, em certo sentido, todos os dados históricos (tirando aqueles que
é mensurável, a segunda já o é. De facto, o historiador poderá estabe- constituem os vestígios da vida material do homem) são subjectivos:
lecer uma relação entre a procura das novas gerações e o mercado das mesmo o registo de um nascimento ou a contabilidade de uma explo-
explorações, ou dos empregos livres, em resultado do desaparecimento ração agrícola foram, num certo momento do tempo, lançados no
dos velhos. Se não dispuser de dados suficientes para trabalhar numa papel por um indivíduo. Mas as imposições do registo são muito dife-
escala macroeconómica, poderá ao menos abordar o problema por rentes conforme o objecto observado, a natureza da observação e do
intermédio de uma série de monografias de explorações familiares, que observador: consoante se trate de um acontecimento normal, repeti-
lhe permitirão definir a rotação das gerações numa mesma exploração. tivo, isto é, comparável a um anterior, ou de um acontecimento extraor-
Trata-se de um processo objectivo, que pode, pelo menos em teoria, dinário, anotado exactamente porque foge aos hábitos; consoante se
ser objecto de uma conclusão clara. Ao contrário, a generalização na trate de uma observação sistemática, submetida a regras, ou de um
Europa clássica de um super-ego puritano (no plano sexual) é uma hipó- testemunho fortuito, de uma contagem ou de uma impressão; consoante,
tese que não pode implicar respostas não ambíguas. Vê-se facilmente enfim, a relação que une o observador e a coisa observada é da ordem
o que é que torna essa hipótese verosímil: a ética protestante, a Contra- do conhecimento ou não.
-Reforma, a «civilização» de Norbert Elias! ... Mas não se pode provar No que ao meu exemplo diz respeito, os testemunhos históricos
realmente nem que é verdadeira nem que é falsa. que nos podem informar sobre as características psicológicas dos com-
Porquê? Antes de mais porque o super-ego é um conceito psico- portamentos de há vinte séculos são, evidentemente, de ordem lite-
rária; digo «literária» no sentido lato do termo, nele incluindo alguns
textos que a posteridade não elevou a essa dignidade, alguns diários
1 Norbert Elias, La Civilisation des maurs, Calmann-Lévy. íntimos inéditos, uns quantos manuscritos antigos que possam lançar

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alguma luz sobre o tema. Porém, limitados a um meio social restrito, a evolução desse espaçamento na vida das famílias. Consiste, a partir
estes testemunhos são por natureza raros, impossíveis de explorar de um stock de mulheres casadas em idade de ter filhos, em relacionar
em séries temporais sistemáticas. Quem quiser ultrapassar o seu carácter o número de nascimentos e a idade das mães. Se a fecundidade dos casais
aleatório deve voltar-se para uma documentação diferente, de tipo nor- diminuir muito rapidamente depois das primeiras crianças e com a idade
mativo: por exemplo, os manuais de bem-viver ou os tratados espe- da mãe, há intervenção de práticas contraceptivas; senão, há apenas
cializados de moral religiosa, como os livros de' penitências. Mas os sucessão dos nascimentos, travada unicamente pela duração do aleita-
textos dessa natureza apresentam a mesma ambiguidade que a produção mento dos recém-nascidos e pelo enfraquecimento biológico da fecun-
legislativa dos Estados: prescrevem um dever-ser, do qual nunca se didade à medida que a mãe potencial envelhece.
sabe em que medida é aceite, obedecido, interiorizado pelos homens. As condições da experimentação parecem assim simples e claras.
A repetição, no decurso de um longo período histórico, das mesmas As curvas estabelecem sem ambiguidade, por exemplo, que as popu-
prescrições traduzirá uma penetração social do comportamento pres- lações canadianas no século XVIII ignoravam a contracepção e que os
crito ou, pelo contrário, traduzirá resistências a esse comportamento? duques e os pares de França da mesma época já a praticavam. Mas entre
A segunda hipótese é tanto, se não mais, verosímil do que a primeira: estes dois extremos, os resultados permanecem ambíguos: precisamente
neste caso, o texto normativo é mais interessante pela «exposição dos porque o espaçamento dos nascimentos, na vida de um casal, está
motivos» e o que implica de observação do que por aquilo que inter- sujeito a factores diferentes da simples contracepção, é impossível
dita ou ordena; no fundo, é essencialmente testemunho dos meios de isolar esse elemento. E o alongamento do intervalo intergenésico,
que provém, o Estado ou a Igreja. quando não é brutal, pode dever-se, por exemplo, a uma modificação
Por isso o historiador das mentalidades, que procura alcançar das práticas de aleitamento e a um desmame mais tardio do recém-
níveis médios de comportamento, não se pode satisfazer com a literatura -nascido. Por isso as conclusões categóricas são difíceis, como teste-
tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjectiva, munha a discussão em curso sobre este problema desde há uma dezena
não representativa, ambígua. Deve voltar-se para os próprios compor- de anos.
tamentos, ou seja, para os sinais objectivos desses comportamentos. Quando se tenta fazer o resumo do balanço metodológico, parece-
A hipótese discutida aqui de um super-ego «weberiano» que estenderia -me que encontramos incertezas inultrapassáveis a três níveis: o do
o seu domínio às almas da Europa clássica pode ser testada com vários conceito (o super-ego pensado como uma espécie de consciência colec-
tiva de austeridade que dá forma às condutas individuais), que na
desses sinais: o número de nascimentos ilegítimos e de concepções
realidade não é susceptível de demonstração; o dos dados históricos
pré-nupciais ou a prática da contracepção. A diminuição ou o baixo
número de nascimentos ilegítimos ou de concepções pré-nupciais num subjectivos, dos testemunhos, que são raros, não representativos,
ambíguos ; o dos indicadores objectivos, que são igualmente ambíguos.
mundo onde a idade de casamento é elevada traduz de facto uma prolon-
A hipótese adiantada é mais do domínio do verosímil do que do ver-
ganda castidade aceite. Mas é ainda necessário, para que estes indica-
dadeiro.
dores façam sentido, que não tenha havido, na época, práticas contra-
Seria portanto inexacto pensar que basta passar da história-narra-
ceptivas largamente desenvolvidas entre as populações da Europa.
tiva à história-problema (ou, se se preferir, à história conceptualizante)
Como saber isso? Não por meio de testemunhos literários, que são
para entrar, ipso facto, no domínio científico do dernonstrávelvA his-
por natureza, nesse domínio por excelência do não-dito, muito raros.
tória conceptualizante é provavelmente superior, do ponto de vista do
Essencialmente através da medida dos intervalos intergenésicos, ou
conhecimento, à história-narrativa porque substitui a inteligibilidade
seja, .do espaçamento dos nascimentos das crianças durante a vida con-
do passado em nome do futuro por elementos de explicação expli-
jugal dos casais. É conhecida a técnica estatística que permite medir
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A HIBTORIA, HOJE A OFIOINA DA HISTORIA

citamente formulados, porque descobre e constrói factos históricos dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade
destinados a dar apoio à explicação proposta e alarga assim conside- histórica. Exige geralmente dados adicionais, pertencentes a um campo
ravelmente o domínio da história propriamente dita, ao recortá-Ia e diferente, e que nem estão forçosamente disponíveis, nem são forçosa-
especificá-lo. Max Weber talvez tenha seguido por um caminho errado mente claros. Geralmente acarreta hipóteses não verificadas, ou não
com a sua Ética Protestante, mas que posteridade não teve! Uma des- verificáveis.
coberta conceptual mede-se pelo campo de investigações que abre, Por isso, o problema colocado pela evolução recente da história,
pelo rasto que deixa ... e em particular pela utilização de procedimentos rigorosos de demons-
Mas ainda assim não se passa tão simplesmente para uma história tração, não é saber se a história como tal pode tornar-se ciência: dada
científica. Primeiro porque existem questões, conceitos, que não têm a indeterminação do seu objecto, a resposta a esta pergunta é indubi-
respostas claras (não ambíguas). Depois porque há questões que, em tavelmente negativa. O problema está em conhecer os limites no inte-
princípio, têm respostas claras e que, no entanto, não podem ser resol- rior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma disciplina
vidas quer por causa da falta de dados, quer pela sua natureza - seja que fundamentalmente não é científica. Do facto de esses limites serem
pelo carácter ambíguo dos indicadores ou pelo facto de estes não serem evidentes não se deve deduzir que a história deve regressar à sua fun-
susceptíveis de procedimentos de análise rigorosos. ção antiga de contadora de excelentes aventuras. Devemos antes acei-
De facto, como já se viu - e a este respeito poder-se-iam multipli- tar a redução das ambições pouco razoáveis da história total, para uti-
car os exemplos -, esses procedimentos adaptam-se ao manejo de indi- lizar ao máximo, dentro do nosso conhecimento do passado, as desco-
cadores claros (ou assim tornados), disponíveis em séries cronológicas bertas sectoriais e os métodos de algumas disciplinas, assim como as
e respondendo a questões não ambíguas geralmente elaboradas pelas hipóteses conceptuais que nascem dessa grande embrulhada contem-
ciências sociais contemporâneas mais desenvolvidas, como a demogra- porânea chamada ciências do homem. O preço a pagar, para essa recon-
fia ou a economia. Nesta medida, a história também é susceptível versão, é o estilhaçar da história em histórias, a renúncia do historiador
de resultados certos. Por exemplo; podem calcular-se as grandes variá- a um magistério social. Mas o ganho em conhecimento merece talvez
veis dos comportamentos demográficos da Europa ocidental desde o essas abdicações: a história oscilará provavelmente sempre entre a
século XVII. É possível medir a alta dos preços na França do século XVUl arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas; mas
ou o aumento brusco da produtividade agrária no século XIX. Isto equi- se essas provas forem mais seguras, os conceitos mais explicitados, o
vale a dizer que este tipo de história, caracterizado pela possibilidade conhecimento ganhará com isso e a arte da narrativa nada perderá.
de extra polar no passado questões muito específicas geralmente elabo-
radas Doutras disciplinas, é ao mesmo tempo muito rendível e muito
limitado. Permite chegar a resultados seguros, a uma boa descrição
do fenómeno localizado que foi escolhido como objecto de estudo.
Mas a interpretação desses resultados não apresenta o mesmo grau
de certeza que os próprios resultados. A interpretação é no fundo a
análise dos mecanismos (objectivos e subjectivos) pelos quais uma
probabilidade de comportamento colectivo - essa mesma que foi
revelada pelo tratamento dos dados - se encarna nos comportamentos
individuais numa dada época e o estudo da transformação desses
mecanismos. A interpretação consiste portanto em ultrapassar o nível

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