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As ruínas ....... ............... .... ..... ... ... .. ....... .. ... .. ... .. .. ..... ··· 122
Ordem do tempo 2
Capítulo 4 -Memória, história, presente .......................... .. 133 Presentismo pleno ou padrão? 1
As crises do regime moderno ............. ......... ... .. .. .......... . 136
A ascensão do presentismo .......... ......... .. ............. .. ........ . 140
As fendas do presente ............. .................. ..... ... : .. ....... . 149
Memória e história ...... ........... ... ..... .. ........ .... .. ... .. .. ..... . 157
Histórias nacionais.. .. ... ........ .. ....... .. ..... ...... ..... .... ..... ... 170
Comemorar .. ..... .... .............. .. ..... .......... ...... ... ...... . ··· ··· 183
O momento dos "Li eux de mémoire".... ....... ................... 185 Publicada em 2003, esta obra falava de "crise" do tempo, mas
evidentemente não da crise em que estamos mergulhados desde
Capítulo 5- Patrimônio e presente...... .. ............................ 193 2008. Longe de mim a ideia de me atribuir uma capacidade profética
História de uma noção .............. .. .. ............. ....... ........... 195 (mesmo retrospectiva)! Mas, entre a crise, primeiramente financeira,
Os Antigos .... ..... .. ..... .... .... .. .. ..... ....... .... ..... ... ... ..... . ···· 201 que se alastrou a partir dos Estados Unidos, e um mundo em que,
Roma .......................... .... ........ ... ... .... ..... ........... .. .... ... 209 reinando absoluto, o presente se impõe como único horizonte,
A Revolução Francesa ........ ... .... .................................. · 220 não é difícil perceber algumas correlações. Que palavras ouvimos
Rumo à universa lização .. .. ....... ..... ..... .... ...... ...... .. ...... . . 231 desde 2008? "Crise", "recessão", "depressão", mas também "mu-
O tempo do meio ambiente .............. ......... .............. .. .. . 238 tação (profunda)" e até "mudança de época". "Nada mais será
como antes", alguns proclamaram rapidamente. "Porém, as coisas
Conclusão - A dupla dívida ou o presentismo do presente .. .. 247 retomarão (subentendido, como antes!), proclamaram os outros (ou
os mesmos) com igual vigor; percebem-se algumas recuperações,
O autor ....... ......... ..................................... .. ........ ......... . 261 a retomada está próxima, já se vê uma saída, não, a recessão ainda
,In d'1ce rem1ss1vo
. . ......... .................................................... . não terminou ou está recomeçando, mais ameaçadora ainda e, de
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todo modo, o desemprego deve (ainda) aumentar, e os únicos pla-
nos possíveis são os de demissões coletivas". Na Europa, culpam-se
agora os déficits públicos, ao passo que a especulação financeira
1
O título original deste prefacio é "Présentisme plein ou par défaut?". Se "plein" é evidente - pleno,
"par défaut" não o é: " padrão" serve, aqui, como adjetivo que é muito usado em linguagem da
info rmática (by default), ou seja, na ausência de outro regime o presentismo funcionaria como
o " padrão" . Agradecemos aos colegas Matheus Pereira (UFOP) , José Otávio Nogueira (UnB) ,
Fern ando Nicolazzi (UFRGS), Marcos Veneu (Casa Rui Barbosa) e, principalmente, a Eliane
Mi s i:~k (F UR.G), que sugeriu a fó rm ula que apresentam os para o título do novo prefacio e que
fo i ratificada po r Franço is Hartog, bem como nos auxilio u em várias o utras qu estões ao longo
do tex to . (No ta elo reviso r gera l)
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESEI,!TISMO E EXPERIÊNCIAS DO TEMPO PREFÁCIO - PRESENTISMO PLENO OU PADRÃO?
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segue seu rumo (o que haveria de mais presentista do que essa es- Razão do valor tranquilizador de uma fórmula como "a retomada"
peculação?) . Ao imediatismo do tempo dos mercados não podem (retomar significa, de fato, repartir de onde se estava), diretamente
se ajustar nem o tempo da economia nem mesmo o tempo político ligada à nossa incapacidade coletiva de escapar ao que agora é
ou, antes, os tempos p·olíticos. Aquele, imperioso, dos calendários usual chamar, na França, de "court-termisme", ou seja, a busca do
eleitorais; aquele, conhecido desde a noite dos tempos, que consiste ganho imediato, e que eu prefiro denominar "presentismo". O
em " ganhar tempo" (decidindo adiar a decisão); aquele, recém- presente único: o da tirania do instante e da estagnação de um
-chegado, mas não menos exigente, da comunicação política (que presente perpétuo.
tem por unidade de cálculo o tempo midiático), em virtude do qual O que o historiador pode propor? A "retomada" não faz
os dirigentes políticos devem "salvar", por exemplo, o euro ou o evidentemente parte de seus atributos. Todavia, ele pode convidar
sistema financeiro - digamos, a cada dois meses - ou pelo menos a um desprendimento do presente, graças à prática do olhar dis-
proclamá-lo. E, mais profundamente ainda, as velhas democracias tanciado. Isto é, a um distanciamento. O instrumento do regime
representativas descobrem que elas não sabem muito bem como de historicidade auxilia a criar distância para, ao término da ope-
ajustar os modos e os ritmos da tomada de decisão a esta tirania do ração, melhor ver o próximo. Este era, em todo caso, o projeto
instante, sem arriscar comprometer aquilo que, justamente, cons- e o desafio de minha proposta.2
tituiu as democracias. A hipótese (o presentismo) e o instrumento (o regime de
Encheram nossos ouvidos com o mau capitalismo financeiro historicidade) são solidários, completam- se mutuamente. O re-
(de visão curta), em oposição ao bom capitalismo industrial dos gime de historicidade permite formular a hipótese e a hipótese
administradores de outrora ou de pouco tempo atrás. Contudo, leva a elaborar a noção. Pelo menos de início, um não anda sem
desde que os historiadores se debruçaram sobre a história do ca- o outro. "Por que, perguntaram- me, preferir o termo regime ao
pitalismo, eles têm reconhecido sua plasticidade. Se há uma certa de forma (de historicidade) "? E por que "regime de historicidade"
unidade do capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente de em vez de "regime de temporalidade"? Regime: a palavra remete
hoje, ela deve ser creditada, em primeira instância, à sua plastici- ao regime alimentar (regimen, em latim, diaita, em grego) , ao re-
dade a toda prova, concluía Fernand Braudel: à sua capacidade de gime político (politeia), ao regime dos ventos e ao regime de um
transformação e de adaptação. Para ele, que distinguia economia motor. São metáforas que evocam áreas bem diferentes, mas que
de mercado e capitalismo, este vai sempre onde está o maior lucro: compartilham, pelo menos, o fato de se organizarem em torno das
"Ele representa a zona do alto lucro". Considerando a história do noções de mais e de menos, de grau, de mescla, de composto e
capitalismo desde a Idade Média, o historiador belga Henri Pirenne de equilíbrio sempre provisório ou instável. Assim, um regime de
se espantara com a "regularidade realmente surpreendente das fases historicidade é apenas uma maneira de engrenar passado, presente
de liberdade econômica e das fases de regulamentação". Marc Bloch e futuro ou de compor um misto das três categoriais, justamente
acrescentava, em uma conferência de 1937, que, desde a abolição como se falava, na teoria política grega, de constituição mista (mis-
das dívidas na Atenas de Sólon (no século VI a.C.), "o progresso turando aristocracia, oligarquia e democracia, sendo dominante
econômico consistia em uma sequência de bancarrotas". de fato um dos três componentes) .
Sem querer transformar este prefácio em uma exposição sobre
a crise atual, constatamos que , uma vez superada às pressas a crise 2
Ver HARTOG, François. Sur la notion de régime d'historicité. Entretien avec F. Hartog. In:
financeira de 2008, reinou e reina por toda parte uma extrema DELA C RO IX, C hristi an; DOSSE, Fra nço is; GARCIA, Patrick (Dir.). Historicités. Paris: La
dificuldade para enxergar além. M ais se reage do que se age . Déco uvcrtc, 2009. p. 133- 151.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO
PREFÁCIO - PRESENTISMO PlENO OU PADRÃO?
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"Historicidade", por quê? De Hegel a Ricreur, passando por registrado nos almanaques dos contemporâneos; é construído pelo
Dilthey e Heidegger, o termo remete a uma longa e pesada histó- historiador. Não deve ser assimilado às instâncias de outrora: um
ria filosófica. Pode-se enfatizar seja a presença do homem para si regime que venha suceder mecanicamente a outro, independen-
mesmo enquanto história, seja sua finitude, seja sua abertura para temente de onde venha. Não coincide com as épocas (no sentido
o futuro (como ser-para-a-morte em Heidegger). Retenhamos aqui de Bossuet ou de Condorcet) e não se calca absolutamente nestas
que o termo expressa a forma da condição histórica, a maneira grandes entidades incertas e vagas que são as civilizações. Ele é
como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve um artefato que valida sua capacidade heurística. Noção , categoria
no tempo. É legítimo, observarão, falar de historicidade antes da formal, aproxima-se do tipo-ideal weberiano. Conforme domine a
formação do conceito moderno de história, entre o fim do século categoria do passado, do futuro ou do presente, a ordem do tempo
XVIII e o início do século XIX? Sim, se por "historicidade" se resultante não será evidentemente a mesma. Por essa razão, certos
entender esta experiência primeira de estrangement, de distância de comportamentos, certas ações, certas formas de historiografia são
si para si mesmo que, justamente, as categorias de passado, presente mais possíveis do que outras, mais harmônicas ou defasadas do
e futuro permitem apreender e dizer, ordenando-a e dando-lhe que outras, desatualizadas ou malogradas. Como categoria (sem
sentido. Assim, remontando bastante, até Homero, é a experiência conteúdo), que pode tornar mais inteligíveis as experiências do
que Ulisses faz diante do bardo dos feácios cantando suas façanhas: tempo, nada o confina apenas ao mundo europeu ou ocidental. Ao
ele se encontra repentinamente confrontado com a incapacidade contrário, sua vocação é ser um instrumento comparatista: assim o
de unir o Ulisses glorioso que ele era (aquele que tomou Traia) ao é por construção.
náufrago que perdeu tudo, até seu nome, que ele é agora. Falta-lhe O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto
justamente a categoria de passado, que permitiria reconhecer- se amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um
neste outro que é, no entanto, ele mesmo. É também, no início do artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico (tal
século V, a experiência (diferente) relatada por Santo Agostinho. como Napoleão, que se encontrou entre o regime moderno, trazido
Lançado em sua grande meditação sobre o tempo, no livro XI das pela Revolução, e o regime antigo, simbolizado pela escolha do
Confissões, ele se encontra inicialmente incapaz de dizer, não um Império e pelo casamento com Maria-Luisa de Áustria), ou a de
tempo abstrato, mas esse tempo que é ele, sob esses três modos: a um homem comum; com ele, pode-se atravessar uma grande obra
memória (presente do passado), a atenção (presente do presente) e (literária ou outra), tal como as Mémoires d'outre-tombe de Chate-
a expectativa (presente do futuro) . Podemos nos servir da noção de aubriand (onde ele se apresenta como o "nadador que mergulhou
regimes de historicidade antes ou independentemente da formulação entre as duas margens do rio do tempo"); pode-se questionar a
posterior do conceito moderno de história, tal como a delineou arquitetura de uma cidade, ontem e hoje, ou então comparar as
bem o historiador alemão Reinhart Koselleck. grandes escansões da relação com o tempo de diferentes sociedades,
Falar de (regimes de) temporalidade em vez de historicidade teria próximas ou distantes. E, a cada vez, por meio da atenção muito
o inconveniente de convocar o padrão de um tempo exterior, como particular dada aos momentos de crise do tempo e às suas expressões,
em Fernand Braudel, cujas diferentes durações se medem todas em visa-se a produzir m ais inteligibilidade .
relação a um tempo "exógeno", o tempo matemático, o da astro- R esta dissipar, na m edida do possível, alguns mal-entendidos;
nomia (que ele também chama de "tempo imperioso do mundo"). em primeiro lugar, não se deve confundir presentismo e presente.
Definamos o que é e o que não é o regime de historicidade. A proposta da hipó tese do presentism o não provém ipso fa cto de
Ele não é uma realidade dada. N em diretamente observável nem um inimi go o u de um denegridor do presente. N ão estamos nem
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REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTlSMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO 15
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no registro da nostalgia (de um regime melhor) nem naquele da está aberto para eles) . O presentismo pode, assim, ser um hori-
denúncia. Tampouco no de uma mera aquiescência à ordem pre- zonte aberto ou fechado: aberto para cada vez mais aceleração e
sente do tempo . Falar de um presente onipresente não dispensa, mobilidade, fechado para uma sobrevivência diária e um presente
pelo contrário , de se interrogar sobre possíveis saídas do presen- estagnante. A isso, deve-se ainda acrescentar outra dimensão de
tismo . Em um mundo dominado pelo presentismo, o historiador nosso presente: a do futuro percebido, não mais como promessa,
tem um lugar ao lado daqueles que Charles Péguy chamava de mas como ameaça; sob a forma de catástrofes, de um tempo de
"sentinelas do presente"; mais do que nunca. catástrofes que nós mesmos provocamos.
A construção do neologismo "presentismo" deu-se, de início, Deste modo, a crise na qual estamos nos debatendo, hesitantes,
em relação à categoria de futurismo (o futuro comandava). Para demanda aprofundar a reflexão. Certamente o presentismo não
mim, arriscar a denominação presentismo era primeiramente uma basta para dar conta dela (e não pretende isso), mas talvez ele venha
hipótese. Nosso modo de articular passado, presente e futuro não ressaltar os riscos e as consequências de um presente onipresente,
tinha algo de específico, agora, hoje, que faria com que nosso onipotente, que se impõe como único horizonte possível e que
presente diferisse de outros presentes do passado? E minha resposta valoriza só o imediatismo. Longe de toda nostalgia e das afirma-
foi sim, parece-me que há algo específico. O que levou à pergunta ções peremptórias, minha ambição ontem, assim como hoje, era
seguinte, que eu ainda não formulava nestes termos no livro: esta- dedicar-me, juntamente com outros e com algumas questões de
mos lidando com um presentismo pleno ou padrão? Será somente historiador, a entender a conjuntura. Para passar, segundo a bela
um momento de pausa, de estase, seguido de um futuro mais ou fórmula de Michel de Certeau, da "estranheza do que se passa hoje"
menos "glorioso", de tipo futurista- já que as probabilidades de à "discursividade da compreensão".
voltar a um regime de tipo "passadista" (no qual o passado co- Enfim, aquele que quiser fazer uma experiência presentista
manda) são limitadas?-, ou esse presente onipresente (como se diz basta abrir os olhos, percorrendo estas grandes cidades no mundo
onívoro) no qual nos encontramos e' um presentlsmo . p1eno.? Em para as quais o arquiteto holandês Rem Koolhaas propõe o con-
outras palavras, será um modo inédito de experiência do tempo e ceito de "Cidade genérica", associado ao de ]unkspace. Nelas, o
o delineamento de um novo regime de historicidade, sobretudo presentismo é rei, corroendo o espaço e reduzindo o tempo, ou
para um mundo ocidental, que, durante dois séculos, caminhou o expulsando. Liberada da servidão ao centro, a cidade genérica
e fez os outros caminharem para o futuro? Ainda não sabemos. não tem história, mesmo que busque com afinco se dotar de um
Longe de ser uniforme e unívoco, este presente presentista é vi- bairro-álibi, onde a história é resgatada como uma apresentação,
venciado de forma muito diferente conforme o lugar ocupado na com trenzinhos ou caleches. E se, apesar de tudo, ainda existir
sociedade. De um lado, um tempo dos fluxos, da aceleração e uma um centro, ele deve ser, "na qualidade de lugar mais importante"
mobilidade valorizada e valorizante; do outro, aquilo que Robert simultaneamente "o mais novo e o mais antigo", "o mais fixo e
Castel chamou de précaríaf, isto é, a permanência do transitório, o m ais dinâmico". Produto "do encontro da escada rolante e da
um presente em plena desaceleração, sem passado - senão de um refrigeração , concebido em uma incubadora de placas de gesso", o
modo complicado (mais ainda para os imigrantes, os exilados, os Junkspace ignora o envelhecimento: só conhece a autodestruição e
deslocados), e sem futuro real tampouco (o tempo do projeto não a renovação local, ou então uma precariedade habitacional ultrar-
r5pida. Os aeroportos se tornaram os b airros- modelo da Cidade
' " Précariat" , na obra de Castel, tem o sentido de trabalhador precarizado . Agradeço ao colega genérica, senão work sempre in progress de sua realização ("Pedimos
Henri que N ardi , do Instituto de Psicologia da U FRGS , e ex-orientando do professor Castel, a
explicação precisa. (Nota do revisor geral)
descu lpas pelos tra nstorn os momentaneamente ocasionados .. . ") .
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' Ana ximandro, Fragmento , B.1, "Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a
rorrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns
aos o utros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo" (SOUZA, José Cavalcante (Sei.). Os
< KOOLHAAS, Rem.j1111kspace: reperrser radicale111ent /'espace url!air1. Paris: Payot, 2011. p. 49, 82, 86, 95. prtl-.wrr!Ítiros. S:io Paulo: Abril C ultural, 1985. lOs Pensadores]. p. 16).
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Esse é realmente o sentido da história do rei Creso que, ao passar da Tempo e narrativa (1983 10) e concluído com A memorza, a história,
felicidade à infelicidade, paga, na quarta geração, o erro de seu ances- o esquecimento (2000), pode enquadrar comodamente o período,
tral Giges. 6 Aqui não exploraremos essa via, a da história e da justiça. mostrando um filósofo, que sempre se quis contemporâneo de seus
Em seguida, a ordem do tempo lembra A ordem do discurso, de contemporâneos, primeiramente levado a meditar sobre as aporias
Michel Foucault, breve texto programático que leva à aula inau- da experiência do tempo, antes de se mostrar preocupado com
gural ministrada por ele no College de France, em 1971, e que se "uma política da justa memória". Colocando "em contato direto
revela um convite à reflexão, à continuidade do trabalho, fora dali, a experiência temporal e a operação narrativa", Tempo e narrativa,
de outra forma, com outras questões. 7 Fazer com o tempo o que frisa Ricceur, "não leva em conta a memória". Era exatamente essa
Foucault havia feito anteriormente com o discurso, nisso buscando lacuna que ele pretendia preencher com esse segundo livro, explo-
pelo menos uma inspiração. Por fim, A Ordem do tempo é o pró- rando "os níveis médios" entre tempo e narrativa11 • Da questão da
prio título do livro substancial que o historiador KrzysztofPornian verdade da história à da fidelidade da memória, sem renunciar a
dedicou ao tempo: uma história do "próprio tempo", precisava o nenhuma delas.
autor, "abordado em uma perspectiva enciclopédica", ou ainda uma Antes disso, Michel de Certeau já lembrara com uma frase, en
história "filosófica" do tempo. 8 passant, que "sem dúvida a objetivação do passado, nos últimos três
O tempo passou a ser o centro das preocupações não faz muito. séculos, fizera do tempo o elemento impensado de uma disciplina
Livros, revistas, colóquios, onde quer que seja, são testemunhos; a que não deixava de utilizá-lo como um instrumento taxinôrnico" 12 .
literatura também trata do assunto, à sua maneira. "Crise do tempo", A observação convidava. à reflexão. Estas páginas servem para me
diagnosticaram imediatamente nossos generalistas do pensamento! É experimentar nesse campo, partindo de uma interrogação sobre
claro que sim, mas e então? O rótulo significa no máximo: "Aten- nosso presente.
ção, problema!". 9 O trabalho de Paul Ricceur, iniciado com a obra
As brechas
' DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: ensaio sobre a investigação de Her6doto.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998 . Sobre o caso de Creso, ver HAR TOG,
O próprio curso da história recente, marcado pela queda do
François. Myth into logos: the case o f Croesus. In: BUXTON, Richard. From myth to reason: muro de Berlim em 1989 e pela derrocada do ideal comunista
studies in the development ofgreek thought. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 185-195.
trazido pelo futuro da Revolução, assim como a escalada de
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
8 POMIAN, Krzysztof. L'Ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984. p. XII. Ver também, do mesmo múltiplos fundamentalismos, abalaram, de uma maneira brutal e
autor, "La crise de l'avenir", em Le Débat, n. 7, 1980, p. 5-17, retomado em Sur l'histoire. Paris: duradoura, nossas relações com o tempo 13 . A ordem do tempo
Gallimard, 1999. p . 233-262.
9 A partir de múltiplas reflexões, realizadas em diversos campos disciplinares, no entanto preocupadas
foi posta em questão, tanto no Oriente quanto no Ocidente.
com uma abrangência geral, elaborou-se: ver, por exemplo, SUE, Roger. Temps et ordre social. Como mistos de arcaísmo e de modernidade, os fenômenos
Paris: PUF, 1994; ELIAS, Norbert. Du temps [1987]. Tradução de M. Hulin, Paris: Fayard, 1996;
as reflexões de Paul Virilio, ao longo de vários livros há mais de quinze anos; GÜNTHER, Horst.
Le temps de l'histoire. Tradução de O. Mannonu. Paris: Maison des Sciences de L'Homrne, 1995;
CHESNEAUX,Jean. Habiter le temps: passé, présent,fotur: esquisse d'un dialogue possible. Paris: Bayard, 10
Publicação no Brasil: RICCEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1993-1995. 3 t.;
1996; LEDUC,'Jean. Les historiens et le temps: conceptions, problématiques, écriture. Paris: Seuil, 1999; RICCEUR, Paul. A mem6ria, a hist6ria, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.
LAIDI, Zaki. Le sacre du présent. Paris: Flamrnarion, 2000; JEANNENEY, Jean-Noel. L'Histoire 11
RICCEUR, Paul. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 1; RICCEUR, Paul. Mémoire:
va-t-elle plus vi te? Variations sur un vertige. Paris: Gallimard, 2001; BAIER, Lothar. Pas le temps:
approches historiennes, approche philosophique. Le Débat, n. 122, 2002, p. 42-44.
traité sur l'accélération. Tradução de M. H. Desart e P. Krauss . Arles: Actes Sud, 2002; KLEIN, 12
CERTEAU, Michel de. Histoire et psycanalyse entre science etfiction. Paris: Gallirnard, 1987. p. 89.
Étienne. Les tactiques de Chronos. Paris: Flamrnarion, 2003: após ter mostrado que se fala do tempo
"pratican1ente da mesma maneira que antes de Galileu" e demonstrado que a física moderna e o Ver LEDUC. Les historiens et /e temps, 1999.
tempo são cúmplices. É. Klein encerra seu livro com uma nota mais epicurista, ou seja, com um
11
P MIAN. La crise de l'aven ir, p. 233- 262; GAUCI--IET, Mareei. La rlémocratie coi'Lire el/e- 1n ~me,
convite "a confiar na ocasião do tnomento, no kaíros". Paris, Ca llitn:ml, 2002, p. 345- 359.
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20
fundamentalistas são influenciados, em parte, por uma crise do continuava retomando. Franz Rosenzweig, Walter Benjamin e Ger-
futuro, enquanto as tradições, às quais se voltam para responder shom Sholem também poderiam evocar uma experiência análoga
às infelicidades do presente, são, na impossibilidade de traçarem na Alemanha dos anos 1920, eles que procuram uma nova visão da
uma perspectiva do porvir, amplamente "inventadas" 14 . Como história, repudiando a continuidade e o progresso em proveito das
articular, nessas condições, o passado, o presente e o futuro? A descontinuidades e rupturas 17 •
história, escrevia François Furet em 1995, voltou a ser "esse túnel Em Le Monde d'hier [O Mundo de ontem], redigido antes de seu
no qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações suicídio, em 1942, Stefan Zweig queria testemunhar, ele também,
o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança rupturas: "[... ] entre nosso hoje, nosso ontem e nosso anteontem,
ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o in- todas as pontes estão rompidas" 18 . Mas já em 1946, por meio de um
divíduo democrático vê tremer em suas bases, no fim do século editorial com título sugestivo, "Face ao Vento", Lucien Febvre con-
XX, a divindade história: angústia que ele vai ter de conjurar. A vidava todos os leitores dos Annales a "fazer história", sabendo que se
essa ameaça da incerteza se une, no seu espírito, o escândalo de entrara a partir de então em um mundo "em estado de instabilidade
um futuro fechado" 15 . definitiva", onde as ruínas eram imensas; mas no qual havia "muito
Do lado europeu, todavia, fendas profundas se tinham aberto mais do que ruínas, e mais grave ainda: esta prodigiosa aceleração
da velocidade que, fazendo colidirem os continentes, abolindo os
muito antes: logo após a Primeira Guerra Mundial, também após
oceanos, suprimindo os desertos, coloca em contato brusco grupos
1945, mas de maneira diferente. Paul Valéry era um bom sismógrafo
humanos carregados de eletricidades contrárias". A urgência, sob
das primeiras, ele que, em 1919, evocava "o Harnlet europeu",
pena de não se compreender mais nada do mundo mundializado
olhando "de um imenso balcão de Elsinore", "milhões de espec-
de amanhã, já de hoje, era olhar, não para trás, em direção ao que
tros": "Ele pensa no tédio de recomeçar o passado, na loucura de
acabava de acontecer, mas diante de si, para frente. "Acabou o
querer inovar sempre. Ele oscila entre os dois abismos". Ou quando
mundo de ontem. Acabou para sempre. Se nós, franceses, temos uma
delimitava, em uma conferência de 1935, de maneira mais precisa
chance de sair disso- é compreendendo, mais rápido e melhor do que
ainda, essa experiência de ruptura de continuidade, dando a "todo outros, essa verdade óbvia. À deriva, abandonando o navio, eu lhes
homem" o sentimento de pertencer "a duas eras". "De um lado", digo, nadem com vontade". Explicar" o mundo ao mundo", responder
prosseguia, "um passado que não está abolido nem esquecido, mas as questões do homem de hoje, tal é, pois, a tarefa do historiador que
um passado do qual nós não podemos tirar quase nada que nos enfrenta o vento. Não se trata de fazer do passado tábula rasa, mas de
oriente no presente e nos possibilite imaginar o futuro. De outro "compreender bem em que ele se diferencia do presente" 19 . Em que
lado, um futuro de que não fazemos a menor ideia" 16 . Um tempo ele é passado. Conteúdo, tom, ritmo, tudo nas poucas páginas desse
desorientado, portanto, situado entre dois abismos ou entre duas manifesto sugere ao leitor que o tempo urge e que o presente manda20 •
eras, o qual o autor de Regards sur le monde actuel experienciara e
11
MOSES, Stéphane. L'ange de /'histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil, 1992.
14
No sentido entendido em HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. The irwention ciftradition. '" Z WEIG, Stefan. Le monde d'hier: souvenirs d'un Européen. Tradução de S. Niémetz. Paris: Belfond,
Cambridge: Cambridge University Press, 1983. 1993. p. 9.
15
FURET, François. Le passé d'une illusion: essai mr l'idée communiste au XXe siecle. Paris: Robert ''' FEBVRE, Lucien. Face au Vent, Manifeste des Annales Nouvelles. In: Combats pour l'histoire.
Laffont; Calrnann-Lévy, 1995. p. 808. Pari s: Armand Colin, 1992. p. 35, 40 e 41.
16 111
VALÉRY, Paul. Essais quasi politiqu es. In: CEuvres. Paris, Gallimard, 1957. (Bibliotheque de I"EB VR.E, Lucien. Vers une autre histoire (publicado em 1949, retomado em Combats pour
la Pléiade). t. 1. p. 993 (carta primeiramente em inglês em 1919) e p. 1063 (conferência na l'histoire, p. 437-438): "A história , que é um meio de organizar o passado para impedir o peso
universidade dos Am10les, 1935). Em 1932, ele retomava em uma conferência dada na mesma dc111asiado sobre os ombros dos homens [.. .]. Organizar o passado em função do presente: é o
esfera se u dügnóstico de 1919 sobre a confusão do Hamlet europeu. que se poderia denominar de função social da história".
INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO 23
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D esde os anos 1950, Hannah Arendt se mostrara uma perspicaz nossas cabeças", em particular o conceito moderno de história,
observadora das rachaduras do tempo, mas não era isso que chamava fundado na noção de processo 26 . Mais uma vez, uma experiência
mais atenção em seu trabalho naquela época. " Nossa herança não de tempo desorientado.
é precedida de nenhum testamento", havia escrito René Char em Em 1968 , o mundo ocidental e ocidentalizado era atraves-
Folhetos d' Hypnos, antologia de 194621 . Por meio desse aforismo sado por um espasmo que, entre outras coisas, questionava o
ele procurava dar conta da estranha experiência da Resistência, progresso do capitalismo, ou seja, duvidava do tempo, ele pró-
tomando-a como um tempo de entremeio, no qual um " tesouro" prio como um progresso, como um vetor em si de um progresso
fora descoberto e, por um instante, estivera entre as mãos, mas que prestes a abalar o presente. Para marcar esse momento, as palavras
ninguém sabia nomear ou transmitir. No vocabulário de Arendt, fenda e brecha vêm sob a pena dos observadores , mesmo que eles
esse tesouro era a capae1'dad e d e mstaurar
. " um mun d o comum22" . não deixem de observar que são onipresentes as imagens tomadas
Embora a libertação da Europa estivesse acontecendo, os membros das gloriosas revoluções do passado 27 . Nascidos, em sua maioria,
da Resistência não haviam conseguido redigir um "testamento" após 1940, os jovens revoltados de então podiam, pelo menos na
no qual seriam consignadas as maneiras de preservar e, se possível, França, voltar- se para as grandes figuras da Resistência e, ao mes-
de estender esse espaço público que eles haviam começado a criar mo tempo, para os ensinamentos do Livro vermelho do presidente
e no qual "a liberdade podia surgir". Ora, do ponto de vista do Mao, assim como para as lições dos comunistas vietnamitas, que
tempo, o testamento, na medida em que diz "ao herdeiro o que derrotaram a ex-potência colonial em Dien Bien Phu e, algum
será legitimamente seu, atribui um passado ao futuro" 23 . tempo depois, venceram os Estados Unidos da América. Em
Fazendo justamente dessa fórmula de Char a frase de abertura seu último romance, Olivier Rolin dá voz a seu narrador, que
de Between Past and Future (título mais preciso que sua tradução fala de si mesmo à sua jovem interlocutora: "É de lá, [dos anos
francesa, La Crise de la culturé4*), Arendt introduzia o conceito 1940- 1945], desse desastre que você vem, meu caro: sem ter
de "brecha (gap) entre o passado e o futuro" em torno do qual estado lá. Sua geração nasceu de um acontecimento . que ela não
se organizava o livro, como "estranho entremeio no tempo viveu 28 ." Por um momento, a crise dos anos 1970 (inicialmente
histórico, onde se toma consciência de um intervalo no tempo petrolífera) pareceu reforçar esses questionamentos. Alguns até
inteiramente determinado por coisas que não são mais e por se vangloriavam do "crescimento zero"! Acabava-se de sair dos
coisas que não são ainda" 25 . O tempo histórico parecia então " Trinta Gloriosos" do pós-guerra: anos de reconstrução, de
suspenso. Por outro lado, seu estudo pioneiro sobre As origens modernização rápida, da corrida ao progresso entre o Leste e o
do totalitarismo a havia levado a concluir que "a estrutura íntima O este, tendo como pano de fundo a Guerra Fria e a implementação
da cultura ocidental, com suas crenças, havia desmoronado sobre do desarmamento nuclear.
O tema dos "retornos a" (até tornar-se uma fórmula pronta-
21 C HAR, René . Feuillets d'Hypnos. In: CEuvres completes. Paris: Gallimard, 1983. (Bibliotheque de -para-pensar e para-vender) ia logo fazer sucesso. Após a subversão
la Pléiade) . p. 190. Essas anotações, escritas entre 1943 e 1944, são dedicadas a Albert Carnus. dos retornos a Freud e a Marx, vieram os retornos a Kant ou a
22 TASSIN, Étienne. Le trésor perdu : Hannah Arendt, l'intelligence de l'action politique. Paris, Payot-
Rivages, 1999. p. 32.
Deus, e muitos outros retornos relâmpagos que se consumiam
23 ARENDT, H annah. La crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972. p. 13 e 14.
24 Em português, o título fran cês corresponderia a "A crise da cultura" . N o Brasil, a obra se chama
21 ' A I~ENDT, Hannah. Les origines du totalitarisme. Paris: Gallimard, 2002. (Quarto) . p. 867.
Entre o passado e ofuturo (mais próxima do original em inglês: Between Past and Future) (5. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2000) . (Nota do revisor geral) " MOR.IN , Edgar; LEFORT, C laude; COUDRAY, J.-Marc. Mai 1968: La Bri!che. Paris: Fayard, 1968.
25 AR.ENDT. La crise de la w lture, p. 19. '" I\ O LI N , li vier. T\~re de papier. Paris: Seu iI, 2002. p. 36.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
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em suas próprias proclamações. Os progressos (tecnológicos), no e mais frequentemente, não desempenhou papel algum? Frente às
entanto, continuavam a galope enquanto a sociedade de consumo provações por que os judeus passaram, a memória do passado foi
não parava de crescer, exatamente como-a categoria do presente, da sempre essencial, mas por que os historiadores nunca foram seus
qual fazia seu alvo e que constituía, de alguma maneira, sua razão primeiros depositários 30 ?"
social. Apareciam na vida pública os primeiros passos da revolução Aqui, um pouco mais cedo, lá, um pouco mais tarde, essa vaga
informática, exaltando a sociedade da informação, mas também os atingiu praticamente todas as costas do mundo, senão todos os grupos
programas das biotecnologias. Logo viria o tempo, imperioso, se sociais: a velha Europa primeiro, mas também e muito os Estados
assim se pode dizer, da globalização: da World Economy, preconi- Unidos, a América do Sul após as ditaduras, a Rússia daglasnost e os
zando mobilidade crescente e apelando cada vez mais ao tempo real; ex-países de Leste europeu, a África do Sul após o Apartheid, salvo
mas também, simultaneamente, da World Heritage, sistematizada o restante da África, Ásia e Oriente Médio (com notável exceção
pela Unesco, tal como a convenção de 1972, "pela proteção do da sociedade israelense). Tendo culminado em meados dos anos
patrimônio mundial cultural e natural". 1990, o fenômeno seguiu diversos caminhos, variando em diferentes
De fato, os anos 1980 viram o desabrochar de uma grande contextos. Mas não há dúvida de que os crimes do século XX, seus
onda: a da memória. Com seu alter ego, mais visível e tangível, o assassinatos em massa e sua monstruosa indústria da morte são as
patrimônio: a ser protegido, repertoriado, valorizado, mas também tempestades de onde partiram essas ondas memoriais, que acabaram
repensado. Construíram- se memoriais, fez- se a renovação e a mul- unindo e agitando intensamente as sociedades contemporâneas. O
tiplicação de museus, grandes e pequenos. Um público comum, passado não havia "passado" e, na segunda ou terceira geração, ele
preocupado ou curioso pelas genealogias, pôs- se a frequentar os estava sendo questionado. Outras ondas, mais "recentes", como
arquivos. As pessoas passaram a interessar-se pela memória dos lu- a das memórias comunistas, vão avançar por muito tempo ainda,
gares, e um historiador, Pierre Nora, propôs em 1984 o "lugar de seguindo passos diferentes e ritmos defasados 31 .
memória". Organizadora do grande empreendimento editorial dos Memória tornou-se, em todo caso, o termo mais abrangente:
Lieux de mémoire [Lugares de memória], a noção resultava inicialmente uma categoria meta-histórica, por vezes teológica. Pretendeu-se
de um diagnóstico baseado no presente da França. fazer memória de tudo e, no duelo entre a memória e a história,
Ao mesmo tempo, era lançado oficialmente Shoah (1985) de deu-se rapidamente vantagem à primeira, representada por este
Claude Lanzmann, filme extraordinariamente forte sobre o teste- personagem, que se tornou central em nosso espaço público: a
munho e os "não-lugares" da memória. Pondo diante dos olhos do testemunha32 . Interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer e
espectad or "homens que se co1ocam na cond'1çao - d e testemun h a" 29 ,
o filme visava, de fato, a abolir a distância entre o passado e o pre-
30
YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: histoire }uive et mémoire }uive. Tradução de E. Vigne.
sente: fazer surgir o passado do presente. Já em 1982, o historiador Paris : La Découverte, 1984. p. 12; GOLDBERG, Sylvie Anne . La clepsydre: essai sur la pluralité
Y osefY erushalmi publicara seu livro Zakhor, logo célebre nos dois des temps dans le judafsme. Paris: Albin Michel, 2000. p. 52-55.
31
MAIER, Charles. Mémoire chaude, mémoire froide. Mémoire du fascisme, mémoire du
lados do Atlântico. Com ele, abriam-se os debates sobre história e
communisme . Le Débat, n. 122, 2002, p. 109-117. LOSONCSY, Anne-Marie. Le patrimoine
memória. "Por que, perguntava-se, enquanto o judaísmo através dos de l'oubli, Le parc-musée des statues de Budapest. Ethnologie Française, n. 3, 1999, p. 445-451,
tempos foi sempre fortemente impregnado pelo sentido da história, no qual o autor apresenta esse museu a céu aberto , um pouco distante e não realmente acabado,
reunú1do as estátuas da era comunista. C onservar para apagar.
a historiografia teve no máximo um papel ancilar para os judeus, " DULON G, R enaud. Le témoin oculaire: les conditio ns sociales de l'attestation personnelle. Paris: École
dcs Ha utes Études en Sciences Sociales, 1998; W IEVIOR.KA, Annette. L'êre du témoin. Paris:
Plon, 1998; HARTOG, Fra nço is. A testemunha e o historiador. In: Evid~ncia da hist6ria: o que
29 DEGUY, Michel. A u sujet de "Shoah", lefilm de Claude Lanz mann. Paris: Belin , 1990. p. 40. os historiadores IICC /11 . Belo Hori zonte: Autênti ca, 2011. p. 203-228.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO- ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 27
26
invocou-se o "dever de memória" e por vezes, também, começou- Pode-se delimitar melhor esse fenômeno? Qual é seu alcance?
33
-se a estigmatizar abusos da memória ou do patrimônio . Que sentido atribuir a ele? Por exemplo, no âmbito da história pro-
fissional francesa, o surgimento de uma história que se reivindica,
Do Pacífico a Berlim a partir dos anos 1980, "História do tempo presente" acompanhou
esse movimento. Para Renê Rémond, um de seus defensores mais
Em meu trabalho, não estudei diretamente esses eventos de
constantes, "a história do tempo presente é uma boa medicação
massa. Não sendo nem historiador do contemporâneo nem analista contra a racionalização a posteriori, contra as ilusões de ótica que a
da atualidade, levei minhas pesquisas para outros caminhos. Tam- distância e o afastamento podem induzi25 ". Ao historiador foi solici-
pouco são diretamente aqueles da teoria da história, mas me esforço, tado, algumas vezes exigido, que respondesse às demandas múltiplas
cada vez que o posso, por refletir sobre a história fazendo história. da história contemporânea ou muito contemporânea. Presente em
Não se trata então de propor depois de outros, melhor que outros, diferentes frentes, essa história encontrou-se, em particular, sob
uma explicação geral ou mais geral desses fenômenos históricos os holofotes da atualidade judiciária, durante processos por crimes
contemporâneos. Meu enfoque é diferente, outro meu propósito. contra a humanidade, que têm por característica primeira lidar com
Esses fenômenos, eu os apreendo obliquamente, ao me interrogar a temporalidade inédita do imprescritíveP6 •
sobre as temporalidades que os estruturam ou os ordenam. Por que Para fazer esta investigação, a noção de regime de historici-
ordem do tempo eles são sustentados? De -que ordem são portadores dade me parec~u operatória. Eu falara nela uma primeira vez em
ou sintomas? De que "crise" do tempo, os indícios? 1983, para dar conta de um aspecto - o mais interessante de meu
Para fazer isso, convém encontrar alguns pontos de entrada. ponto de vista - das propostas do antropólogo americano Marshall
Historiador da história, entendida como uma forma de história Sahlins, mas naquele momento ela não chamou muita atenção: a
intelectual, pouco a pouco fiz minha a constatação de Michel de minha pouco mais que a dos outros 37 • Seriam necessários outros
Certeau. O tempo tornou-se a tal ponto habitual para o historiador tempos! Recomeçando das reflexões de Claude Lévi-Strauss sobre
que ele o naturalizou ou o instrumentalizou. O tempo é impen- as sociedades "quentes" e as sociedades "frias", Sahlins buscava
sado, não porque seria impensável, mas porque não o pensamos efetivamente delimitar a forma de história que fora própria às ilhas
ou, mais simplesmente, não pensamos nele. Historiador que se
esforça para ficar atento ao seu tempo, observei ainda, como muitos
AUGÉ, Marc. Le temps en ruines. Paris: Galilée, 2003, em que ele insiste sobre o presente perpétuo
outros, o crescimento rápido da categoria do presente até que se de "nosso mundo violento, cujos destroços não têm tempo de se tomarem ruínas" (p. 10) . Ao
imponha a evidência de um presente onipresente 34 . O que nomeio que ele opõe um tempo de ruínas, espécie de "tempo puro, não datado, ausente de nosso mundo
de imagens, de simulacros, de reconstituições" (p. 10). O sentido que dou ao presentismo é
aqui "presentismo". mais amplo do que aquele, quase técnico, que conferiu George W. Stocking ao termo, em .seu
ensaio "On the limits of 'Presentism' and 'Historicism' in the Historiography of Behavioral
Sciences" (retomado em Race, culture and evolution: essays in the history of Anthropology. Chicago:
" KLEIN, Kerwin. On the emergence of memory in historical discourse. Representations, n. 69, 2000, P· T he Universiry ofChlcago Press, 1982. p. 2-12). A abordagem presentista é aquela que considera
127-150; Politiques de l'Oubli: Le Genre Humain, n. 18, 1988. Sobre o historiador como, simultaneamente, o passado tendo em vista o presente, enquanto o hlstoricista enxerga o passado por ele mesmo.
"perturbação-memória" e "salva-memória", ver LABORIE, Pierre. Les Français des années troublés. Pans:
Desclée de Brouwer, 2001. p. 53-71; ROBIN, Régine. La mémoire saturée. Paris: Stock, 2003. " l'lÉMOND , R ené . Écrire l'histoire du temps présent: en hommage à François Bédarida. Paris: CNRS,
1993. p. 33. ROUSSO, Henry. Pour une histoire du temps présent. In: La hantise du passé:
34 HARTOG, François. Temps et hlstoire: comment écrire l'histoire de .France? Annales, n. 1,
m tretiert 1111ec Philippe Petit. Paris: Textuel, 2001. p. 50-84.
1995, p. 1223-1227. Zaki Liidi descreve um "presente autárquico" (LAIDI. Le sacre du présent,
11
. 102-129). A partir de uma experiência dupla de medievalista e de observador do mov1mento ' Ver DUMOULIN, O livier. Le rôle social de l'historien: de la chaire au prétoire. Paris: Albin Michel,
;apatista, Jérôme Baschet fala de "presente perpétuo", em "L'hlstoire face au présent perpétuel, 2003. p. 11 -61.
11
quelques remarques sur la relarion. passé/futur" (H~'l...TOG, François; KEVEL, Jacques (D•r.) . IIAR'J'OG, François. Marshall Sa hlins et l'anthropologie de l'histoire. Annales ESC, n. 6, 1983,
Les usages poli tiques du passé. Paris: Ecole des Hautes Etudes En Sc1ences Soc~ales, 2001. P· 55-74). p. 125ú- 1263.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE
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do Pacífico. Tendo deixado, por assim dizer, a expressão de lado, r ·tornarei), ela "reage" a um "grau de historicidade" idêntico
sem elaborá-la muito, eu a reencontrei dessa vez não mais com os p:ua todas as sociedades. Mais precisamente, a noção devia poder
Selvagens e no passado, mas no presente e aqui; mais exatamente, l'ómecer um instrumento para comparar tipos de história diferen-
depois de 1989, ela impôs-se quase por si mesma como uma das tes, mas também e mesmo primeiramente, eu acrescentaria agora,
maneiras de interrogar uma conjuntura, em que a questão do tempo para colocar em foco modos de relação com o tempo: formas da
tornava-se pregnante, um problema: uma obsessão às vezes. ·xperiência do tempo, aqui e lá, hoje e ontem. Maneiras de ser
No intervalo, familiarizei-me com as categorias meta-históricas no tempo. Se, do lado da filosofia, a historicidade, cuja trajetória
da "experiência" e da "expectativa", como as trabalhara o histo- Paul Ricreur reconstituiu de Hegel até Heidegger, designa "a
riador alemão Reinhart Koselleck, com a intenção de elaborar condição de ser histórico 40 ", ou ainda "o homem presente a si
uma semântica dos tempos históricos. Interrogando as experiências mesmo enquanto história41 " aqui, estaremos atentos à diversidade
temporais da história, ele de fato buscava "como, em cada presente, dos regimes de historicidade.
as dimensões temporais do passado e do futuro haviam sido correla- Enfim, em 1994, ela me acompanhou em uma estadia em Berlim,
cionadas38". Exatamente isso era interessante investigar, levando em no Wissenschciftskolleg, quando os vestígios do Muro ainda não haviam
conta as tensões existentes entre campo de experiência e horizonte desaparecido e o centro da cidade resumia-se a obras e reformas, em
de expectativa e estando atento aos modos de articulação do pre- andamento ou vindouras, quando se discutia a reconstrução ou não
do Stadtschloss, o castelo real, e que as grandes fachadas dos prédios do
sente, do passado e do futuro. A noção de regime de historicidade
Leste, destruídas e marcadas por projéteis, tomavam visível um tempo
podia assim beneficiar-se do estabelecimento de um diálogo (nem
que, ali, escoara de outro modo. Seria evidentemente falso dizer que
que fosse por meu intermédio) entre Sahlins e Koselleck: entre a
ele se paralisara. Com seus grandes espaços vazios, suas obras e suas
antropologia e a história.
"sombras", Berlim parecia para mim uma cidade para historiadores,
Um colóquio, concebido pelo helenista Mareei Detienne,
onde, mais do que em outros lugares, podia aflorar o impensado do
comparatista mais que decidido, foi a oportunidade de retomá-la
tempo (não somente o esquecimento, o recalcado, o denegado).
e trabalhá-la juntamente com um antropólogo, Gérard Lenclud.
Mais do que em nenhuma outra cidade da Europa, talvez do
Era uma maneira de prosseguir, modificando um pouco, o diálogo
nmndo, Berlim deu trabalho, ao longo dos anos 1990, a milhares
intermitente, mas recorrente, fatigante às vezes, mas nunca abando-
de pessoas, do operário imigrante aos grandes arquitetos interna-
nado, entre antropologia e história que Claude Lévi-Strauss havia
cionais. Chance dos urbanistas e dos jornalistas, a cidade tornou-se
aberto em 1949. "Regime de historicidade", escrevíamos então,
um ponto de passagem obrigatório, até mesmo uma moda, um
podia ser compreendido de dois modos. Em uma acepção restrita,
" bom tema", um laboratório, um lugar de "reflexão". Ela suscitou
como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em
inúmeros comentários e múltiplas controvérsias; produziu massas de
uma acepção mais ampla, regime de historicidade serviria para
imagens, de falas e de textos, provavelmente alguns grandes livros
designar "a modalidade de consciência de si de uma comunidade
humana 39 ". Como, retomando os termos de Lévi-Strauss (aos quais
c N. Dodille. Paris: L'Harmattan, 1993. p. 29. Ver a apresentação do dossiê por DETIENNE,
Mareei. Co111parer l'inco111parab/e. Paris: Seuil, 2000. p. 61-80.
38
KOSELLECK, Reinhart. Le jutur passé. Tradução de]. Hoock e M.-CI. Hoock. Paris: École des "' R.J CCEUR. La 1né111oire, l'histoire, l'oubli, p. 480-498, e RICCEUR. Mémoire: approches historiennes,
Haures Études en Sciences Sociales, 1990. p. 307-329. ~ pproc h e philosophiqu e, p. 60-61.
39 Publicado nos documentos preparatórios ao colóquio, o texto foi retomado em !NSTITUT " LYOTAR.D, J ca n- François. Lcs lndicns ne cueillen t pas de fl eurs. Armales, n. 20, 1965, p. 65
FRANÇA !S DE BUCAREST. L'État des lieux en sciences sociales. Textos reuni dos por A. Dutu (~ rti go de /..nprusrr sn u vn,~e, de laudc Lév i-S tr~ u ss).
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 31
30
também42 • Sem esquecer os sofrimentos e as desilusões provocadas uma grande travessia nos faça chegar quase diretamente ao fim do
por essas mudanças, pois, lá mais do que em outros lugares, o tempo século XVIII europeu, uma pequena escala, intitulada "Ulisses não
era um problema, visível, tangível, ineludível. Que relações manter leu Santo Agostinho", permitirá abrir um espaço à experiência cristã
com o passado, os passados certamente, mas também, e muito, com do tempo, a uma ordem cristã do tempo e, talvez, a um regime
o futuro? Sem esquecer o presente ou, inversamente, correndo o cristão de historicidade.
risco de nada ver além dele: como, no sentido próprio da palavra, Em seguida, para este momento tão forte de crise do tempo
habitá-lo? O que destruir, o que conservar, o que reconstruir, o na Europa, início e fim da Revolução Francesa, Chateaubriand será
que construir, e como? Decisões e ações que implicam uma rela- nosso guia principal. Ele nos levará do Velho ao Novo Mundo, da
ção explícita com o tempo, que salta aos olhos a ponto de não se França à América e de volta. Viajante incansável, "nadador", como
querer ver? escreverá ao final das Mémoires d'outre-tombe, que se encontrou "na
De ambos os lados de um muro, que se tornaria pouco a pouco confluência de dois rios", oscila entre duas ordens do tempo e entre
um muro de tempo, tentou- se de início apagar o passado. A de- dois regimes de historicidade: o antigo e o novo, o regime moderno.
claração de Hans Scharoun - "Não se pode querer construir uma De fato, sua escrita jamais deixou de partir dessa mudança de regime
nova sociedade e ao mesmo tempo reconstruir os prédios antigos" c de voltar a esta brecha do tempo, aberta por 1789.
-podia, na verdade, valer para os dois lados 43 • Arquiteto renoma- Com Ordem do tempo 2, é nossa contemporaneidade que in-
do, Scharoun, que presidira a comissão de urbanismo e arquitetura terrogamos em segundo lugar, desta vez diretamente, a partir destas
imediatamente após a Guerra, construiu sobretudo o auditório da duas palavras mestras: memória e patrimônio. Muito solicitadas,
Berlíner Philharmoniker. Cidade emblemática, lugar de memória para abundantemente glosadas e declinadas de múltiplas maneiras, es-
uma Europa apreendida como um todo, entre amnésia e dever de sas palavras- chave não serão desdobradas aqui por si mesmas, mas
memória. Esta é a Berlim no limiar do século XXI. Nela, aos olhos tratadas unicamente como indícios, também sintomas de nossa
do flâneur-historiador, ainda se veem fragmentos, vestígios, marcas relação com o tempo- modos diversos de traduzir, refratar, seguir,
de ordens de tempo diferentes, como as ordens da arquitetura. contrariar a ordem do tempo: como testemunhas das incertezas ou
Assim, formada às margens das ilhas do Grande Pacífico, a de uma "crise" da ordem presente do tempo. Uma questão nos
noção aportou, ao final, em Berlim, no coração da história europeia acompanhará: estaria em formulação um novo regime de histori-
moderna. Foi nessa cidade que, retrabalhada, ela tomou finalmente cidade, centrado no presente? 44
forma para mim. Com o título Ordens do tempo 1, vamos das ilhas
Fidji à Esquéria, ou do Pacífico estudado por Sahlins ao mar das Histórias universais
travessias de Ulisses, o herói de Homero. Será um duplo exercício
de "olhar distanciado" e um primeiro ensaio da noção. Antes que Não faltaram ao longo da história as grandes "cronosofias",
m.isto de profecias e de periodizações, seguidas dos discursos sobre
42
a história universal - de Bossuet a Marx, passando por Voltaire,
Por exemplo , GRASS, Günther. Toute une histoire. Tradução de C. Porcell e B. Lortholary. Paris:
Seuil, 1997; NOOTEBOOM, Cees. Le jour des morts. Tradução de Ph. Noble. Arles: Actes Sud, Hegel e Comte, sem esquecer Spengler ou Toynbee. 45 Engendradas
2001. Em um regime diferente, TERRAY, Emmanuel. Ombres berlinoises: "oyage dans un autre
A llemagne. Paris: Odile Jacob, 1996; ROBIN, Régine. Berlin chantiers. Paris: Stock, 2001.
43
FRANÇOIS, Étienne. Reconstrucyion allemande. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). Patrimoine et " Vc r, a partir de um questionamento ft!osófico, as reflexões paralelas de BINOCHE, Bertrand.
passions identitaires. Paris: Fayard, 1998. p. 313 (citação de Scharoun); e DOLFF-BONEKAMPER, Apres l'histo ire, I' événement. Act11els Marx, n. 32, 2002, p. 139-155.
Gabi. Les monuments de l'histoire contemporaine à Berlin: rupture, contradictions ct cicotriccs. '" J> M IAN , L'Ordre d11 temps, p.1 01 - 163; LÓWITH, Karl. Histoire et sa/111: Les présupposés théologiq11es
In : DEBR.AY, Régis (Dir.). L'ab11s mommJel!tal. Paris: Fayard, 1999. p. 3ó3-370. dt• la philosophit• dt·l'histoirt' 11 953 1. Tradução de J.-F. Kcrvégan. Poris: Galli mard, 2002.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 33
32
por interrogações sobre o futuro, essas construções, tão diferentes por muito tempo o modelo das sete idades do mundo, que servia
quanto possam ter sido os pressupostos que as fundamentavam (quer ainda de arcabouço ao Discours sur l'histoire universelle [Discurso sobre
tenham privilegiado uma perspectiva cíclica ou linear), buscaram a história universa~ de Bossuet no final do século XVII. Colocando
fundamentalmente compreender as relações entre o passado e o diante dos olhos do Delfim "a ordem dos tempos", o autor retoma
futuro. Descobri-las e fixá-las: dominá-las, para compreender e "essa famosa divisão que fazem os cronologistas da duração do mun-
prever. Na entrada dessa longa galeria, em ruínas há muito tempo, do48". Adão inaugurava à primeira idade enquanto Jesus, a sexta.
pode-se inicialmente parar por um momento em frente à estátua Ela correspondia ao sexto dia, idade também da velhice, e devia
que apareceu no sonho de Nabucodonosor, o rei da Babilônia. durar até o fim do mundo 49 . Mas esse "tempo intermediário" era
Era uma estátua imensa, aponta a descrição, "cuja cabeça era ao mesmo tempo velhice e renovação à espera do sabá do sétimo
de ouro fino, o peito e os braços, de prata; o ventre e as coxas, de dia, que traria o repouso eterno na visão de Deus.
bronze; I as pernas, de ferro; os pés, parte ferro e parte argila". Eis Nessas tramas (à das idades e da sucessão dos impérios somou-
que uma pedra caiu não se sabe de onde e acabou pulverizando -se mais tarde o conceito de transferência (translatio) do império),
a estátua da cabeça aos pés. Recebido pelo rei, o profeta Daniel, por muito tempo presentes e eficientes na história ocidental, ope-
único capaz de interpretar o sonho, começa declarando: "Há um rou-se inicialmente com o humanismo uma divisão em Tempos
Deus nos céus que revela os mistérios e mostrou ao rei Nabuco- Antigos, Idade Média (Media Aetas) e Tempos Modernos. Depois
donosor o que acontecerá nos próximos dias". Cada metal e cada a abertura do futuro e do progresso se dissociou progressivamente
parte, explica ele, corresponde a uma monarquia: a uma primeira e cada vez mais da esperança do fim. Por temporalização do ideal
monarquia se sucederá uma segunda, depois uma terceira e uma da perfeição 50 • Passou- se então da perfeição à perfectibilidade e
quarta, antes que smja, por fim, a quinta, que será o reino de Deus ao progresso. Chegando a desvalorizar, em nome do futuro, o
para toda a eternidade46 . Tal é o significado da visão. passado, ultrapassado, mas também o presente. Não sendo nada
Datado de 164 a.C.-163 a.C., o livro de Daniel tem em vista mais do que a véspera do futuro, melhor senão "radiante", ele
as realezas babilônica, meda, persa e macedônica, com Alexandre e podia, até devia ser sacrificado.
seus sucessores. Os autores do livro combinam de maneira única um O evolucionismo do século XIX naturalizou o tempo, enquanto
esquema metálico com aquele que trata da sucessão dos impérios, já o passado do homem se prolongava cada vez mais. Os seis mil anos
presente nos historiadores gregos desde Heródoto. Mas desse misto da Gênese não passavam de um conto infantil. Teve-se assim, como
eles fazem algo completamente diferente, inscrevendo-o em uma operadores, os progressos da razão, os estágios da evolução ou a sucessão
perspectiva apocalíptica47 . Mais tarde, a identificação das monarquias dos modos de produção, e todo o arsenal da filosofia da história. Foi
sofreu variações, o povo medo desapareceu e os romanos fecharam também a idade de ouro das grandes filosofias da história, às quais se
o ciclo por muito tempo, mas o valor profético do esquema geral sucederam, nos anos 1920, as diversas meditações sobre a decadêncl.a
continuava incólume. e a morte das civilizações. A Decad~ncia do Ocidente: esboço de uma mor-
Uma outra estrutura, igualmente de grande alcance, foi a das fologia da história universal, de Spengler, mas também Valéry, já citado,
idades do mundo. No século V, Santo Agostinho retomou e ilustrou "desesperando-se" com a história e registrando o caráter mortal das
46 Daniel 2, 28-45. As referências bíblicas são da edição da Pléiade, publicada sob orientação de ' " BOSSUET, Jacques-Bén.igne. Discours sur /'histoire universelle. Paris: Garn.ier-Flammarion, 1966. p. 142.
Édouard Dhorme. '''' AUGUSTIN. La cité de Dieu, 22, 30, 5. LUNEAU, Auguste . L'Histoire du salut chez les Pêres de
47 MOMIGL!ANO, Arnaldo. Daniel et la théorie grecque de la succession des empires. In: I'Église. Paris: Beauchesne, 1964. p. 285-331 .
111
ContributioflS {1 /'h istoire dujudaisme. Tradução de P. Farazzi. N1m cs: Editora Éclat, 2002. p. 65-71. I<OSELLECK. Li•.fillur priSSé, em especial p. 315- 320.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 35
34
civilizações51 • A história universal conquistadora e otimista parecia ter O progresso, em seguida, é fortemente colocado em perspectiva. As
chegado ao fim. A entropia estava ganhando e acabaria por vencer. formas de civilização que éramos levados a imaginar "como escalonadas
Nesses mesmos anos, a história, ao menos aquela que ambi- no tempo" devem, preferencialmente, ser vistas como "desdobradas
cionava tornar-se uma ciência social, buscava seriamente outras no espaço". Assim, a humanidade "em progresso não lembra muito
temporalidades, mais profundas, mais lentas, mais efetivas. Em um personagem galgando uma escada, acrescentando, com cada
busca dos ciclos, atenta às fases e às crises, ela se fez história dos um de seus movimentos, um degrau novo em comparação a todos
preços 52 . Foi o primeiro programa de uma história econômica e aqueles cuja conquista está adquirida; ela evoca, antes, umjogador
social, como ele se formulou, na França, em torno dos primeiros cuja sorte é repartida em vários dados. [... ] É apenas de um tempo
Annales. Após a Segunda Guerra Mundial, três linhas aparecem a outro que a história é cumulativa, ou seja, que as contas se adi-
quanto ao tempo. A arqueologia e a antropologia fisica não param cionam para formar uma combinação favorável" 55 .
de mover e de fazer recuar no tempo o surgimento dos primeiros A essa primeira relativização, de princípio, precisa-se ainda
hominídeos. Conta-se agora em milhões de anos . A "revolução somar uma segunda, ligada à própria posição do observador. Para
neolítica", finalmente, passou-se ontem, a Revolução Industrial se fazer compreender, Lévi-Strauss apela então para os rudimentos
então! Entre os historiadores, Fernand Braudel propõe a todos os da teoria da relatividade: "A fim de mostrar que o tamanho e a
praticantes das ciências sociais a longa duração e convida a assumir velocidade do deslocamento dos corpos não são valores absolutos,
a responsabilidade pela "pluralidade do tempo social" 53 • Atenta às mas que dependem da posição de observador, lembra- se que, para
estruturas, preocupada com os níveis e os registros, cada um com um viajante sentado à janela de um trem, a velocidade e o tamanho
suas temporalidades próprias, a história se dá, por sua vez, como de outros trens variam conforme estes se desloquem no mesmo
"dialética da duração". Não há mais tempo único e, se o tempo sentido ou em sentido oposto. Ora, todo membro de uma cultura
é ator, é um ator multiforme, proteiforme, anônimo também, se é tão estreitamente solidário dela quanto esse viajante ideal o é de
é verdade que a longa duração é esta "enorme superficie de água seu trem56 ".
quase estagnada" que, irresistivelmente, "leva tudo consigo". O último argumento, enfim, que poderia parecer contradi-
A terceira linha, enfim, a mais importante para a nossa propos- zer o precedente: não existe sociedade cumulativa "em si e por
ta, é o reconhecimento da diversidade de culturas. A obra Raça e si": uma cultura isolada não poderia ser cumulativa. As formas de
história, de Claude Lévy- Strauss, financiada e publicada pela Unes- história mais cumulativas, com efeito, foram alcançadas por socie-
co, em 1952, é o texto de referência54 . Nessas páginas, ele começa dades "combinando seus jogos respectivos", voluntária ou invo-
por criticar o "falso evolucionismo", denunciado como atitude luntariamente. De onde a tese final do livro, o mais importante é
que consiste para o viajante ocidental em crer "reencontrar", por a distância diferencial entre culturas. É ali que reside sua "verdadeira
exemplo, a idade da pedra nos indígenas da Austrália ou de Papua. contribuição" cultural a uma história milenar, e não na "lista de
suas invenções particulares" 57 . Assim, agora que estamos inseridos
em uma civilização mundial, a diversidade deveria ser preservada,
51
VALÉRY, Paul. Regards sur !e monde actuel. In: CEuvres. Paris: Gallimard, 1960. (Bibliotheque
de la Pléiade). t. li, p. 921. mas com a condição de percebê-la menos como conteúdo do que
52
LABROUSSE, Ernest. Esquisse du mouvement des prix et des revenus en France au 18' siêcle. Paris:
Dalloz, 1933.
55
53
BRAUDEL, Femand. Histoire et sciences sociales: !a longue durée. Annales ESC, n.4, 1958, p. 725-753. LÉVI-STRAUSS . Race et histoire, p. 393-394.
54
LÉVI-STRAUSS, Claude . Race et lústoire. Unesco, 1952 (La Q uestion Raciale Devant la Science "' LÉVI-STRAUSS. Race et histoire, p. 397.
57
Modern e), retomado em Anthropologie stn1cturale deux. Paris: Plon, 1973. p. 377-43 1. LÉV I-STRAUSS. Race et histoire, p. 417.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTISMO E EXPERIENCIAS DO TEMPO iNTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 37
36
uma forma de esclarecer, quase do cerne, as interrogações de hoje hoj e? A análise focaliza-se assim em um aquém da história (como
sobre o tempo, marcado pela equivocidade das categorias: há relação gênero ou disciplina), mas toda história, seja qual for finalmente
entre um passado esquecido ou demasiadamente lembrado, entre seu modo de expressão, pressupõe, remete a, traduz, trai, enaltece
um futuro que quase desapareceu do horizonte ou entre um porvir ou contradiz uma ou mais experiências do tempo. Com o regime
ameaçador, um presente continuamente consumado no imediatismo de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das condições de
ou quase estático ou interminável, senão eterno? Seria também uma possibilidade da produção de histórias: de acordo com as relações
maneira de lançar uma luz sobre os debates múltiplos, aqui e lá, respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos
sobre a memória e a história, a memória contra a história, sobre o de história são possíveis e outros não.
jamais suficiente ou o já em excesso de patrimônio. O tempo histórico, se seguirmos Reinhart Koselleck, é pro-
Operatória no espaço de interrogação assim produzido, a no- duzido pela distância criada entre o campo da experiência, de um
ção valeria por e para esses movimentos de ida e retorno. Se desde lado, e o horizonte da expectativa, de outro: ele é gerado pela tensão
sempre cada ser tem do tempo uma experiência, não visamos aqui entre os dois lados 64 . É essa tensão que o regime de historicidade
considerá-la integralmente, indo do mais vivenciado ao mais ela- propõe- se a esclarecer, e é dessa distância que essas páginas se ocu-
borado, do mais íntimo ao mais compartilhado, do mais orgânico pam. Mais precisamente ainda, dos tipos de distância e modos de
ao mais abstrato 62 . A atenção, é preciso repetir, incide inicialmente tensão. Para Koselleck, a estrutura temporal dos tempos modernos,
e, sobretudo, sobre as categorias que organizam essas experiências m.arcada pela abertura do futuro e pelo progresso, caracteriza-se
e permitem revelá-las, mais precisamente ainda, sobre as formas ou pela assimetria entre a experiência e a expectativa. A partir do final
os modos de articulação dessas categorias ou formas universais, que do século XVIII, essa história pode esquematizar-se como a de um
são o passado, o presente e o futuro 63 • Como, conforme os lugares, desequilíbrio que não parou de crescer entre essas duas, sob o efeito
os tempos e as sociedades, essas categorias, de pensamento e ação ao da aceleração . De modo que a máxima "quanto menor a experiên-
mesmo tempo, são operacionalizadas e vêm tornar possível e per- cia, maior a expectativa" poderia resumir essa evolução. Ainda em
ceptível o deslocamento de uma ordem do tempo? De que presente, 1975, Koselleck interrogava- se sobre o que poderia ser um "fim"
visando qual passado e qual futuro, trata-se aqui ou lá, ontem ou ou uma saída dos tempos modernos. Isso não se revelaria por uma
máxima do gênero: "Quanto maior a experiência, mais prudente
62
e aberta é a expectativa" 65 ?
Sobre a noção de experiência, ver KOSELLECK, Reinhart. L'Expérience de l'histoire. Tradução
de A. Escudier. Paris: Gallimard; Se ui!, 1997. (Hautes Études), principalmente p. 201-204. Ora, não foi uma configuração suficientemente diferente que
63
Em "Le langage et l'expérience humaine", Érnile Benveniste propunha distinguir o "tempo se impôs desde então? Aquela, pelo contrário, de uma distância que
linguístico" e o "tempo crôníco". O primeiro é o "tempo da língua", pelo qual "se manífesta a
experiência humana do tempo", enquanto o segundo é "o fundamento da vida das sociedades"
se tornou máxima entre o campo da experiência e o horizonte da
(BENVENISTE, Émile. Pro hlemes du langage. Paris: Gallimard, 1966. p. 3-13) . O regime de expectativa, até o limite da ruptura. De modo que a produção do
historicidade participaria de um e de outro. Pode-se se reportar igualmente às reflexões de Norbert
tempo histórico parece estar suspensa. Daí talvez essa experiência
Elias sobre a noção de passado, presente e futuro: "Os conceitos de passado, presente e futuro
exprimem a relação que se estabelece entre uma série de mudanças e a experiência que disso faz contemporânea de um presente perpétuo, inacessível e quase imóvel
uma pessoa ou um grupo. Um instante determinado no interior de um fluxo contínuo apenas dá que busca, apesar de tudo, produzir para si mesmo o seu próprio
aparência de um presente em relação a um humano que vive, enquanto outros dão aparência de
um passado ou de um futuro . Na sua qualidade de simbolizações de períodos vividos, essas três
tempo histórico. Tudo se passa como se não houvesse nada mais do
expressões representam não somente uma sucessão , como o ano ou a dupla 'causa e efeito', mas
também a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana. Poder-se-
ia dizer qu e passado, presente e futuro constituem, ainda que se trate de três palavras diferentes, ,,., KOSELLECK. Le futur passé, p. 314.
um Útuco conceito" (ELI AS. D u temps, p. 86). ''~ KOSELLECK. Le_fi<tur passé, p. 326-327.
REGIMES DE HISTORICIDADE: PRESENTlSMO E EXPERI~NCIAS DO TEMPO INTRODUÇÃO - ÜRDENS DO TEMPO, REGIMES DE HISTORICIDADE 41
l
40
que o presente, espécie de vasta extensão de água agitada por um medieval; e é essa condição de porte à faux, que durou para além
incessante marulho. É conveniente então falar de fim ou de saída da sua morte, que me autorizou a constituir o caso Fustel. Quanto
dos tempos modernos, isto é, dessa estrutura temporal particular ou a Ulisses, aquele de Mémoire d'Ulysse [Memória de Ulisses], livro de
do regime moderno de historicidade? Ainda não sabemos. De crise, questionamentos sobre a fronteira cultural no mundo antigo, é
certamente. É esse momento e essa experiência contemporânea do para mim emblemático dessa perspectiva. Como viajante inaugural
tempo que designo presentismo. e homem-fronteira, ele é o que não cessa de colocar fronteiras e
Nem discurso sobre a história universal, nem história do tem- de atravessá-las, com o risco de se perder. Com o grupo formado
po, nem mesmo tratado sobre a noção de regime de historicidade: pelos que o seguiram, viajantes por uma razão ou outra, no espaço
estas páginas atêm-se então a momentos de história e em algumas da cultura grega, ele traça os contornos de uma identidade grega.
palavras do momento, elegem alguns personagens famosos e leem Com eles, construíram-se, no espaço e na longa duração de uma
ou releem vários textos, questionando todos do ponto de vista das cultura, esses itinerários gregos, atentos aos momentos de crise no
formas da experiência do tempo que os constituem ou os habitam, qual as percepções enevoam-se, infletem-se, reformulam-se.
sem que eles se deem conta às vezes. A investigação não busca enu- Hoje, com os regimes de historicidade, o objeto é outro, a
merar todos os regimes de historicidade que puderam ocorrer na conjuntura também. Trata-se de um novo itinerário, agora entre ex-
longa história das sociedades humanas. Produzida pela conjuntura periências do tempo e histórias, desenvolvendo-se em um momento
presente, a reflexão não para de colocá-la a distância, recuando no de crise do tempo. A perspectiva ampliou- se, o presente está mais
tempo, esforçando-se por voltar a ela de maneira mais satisfatória, diretamente presente, mas perdura a maneira de ver e de fazer, de
mas sem jamais ceder à ilusão de dominá-la. Mais uma vez, por con- avançar: o que se tornou minha maneira de trabalhar.
vicção intelectual e por gosto, optei pelo "movimento que desloca
as linhas", que privilegia os limites e os limiares, os momentos de ***
inflexão ou de reviravolta e as divergências.
Essa já era a dinâmica organizadora do meu livro O espelho de Meus agradecimentos vão para]ean-Pierre Vernant, que me encorajou
Heródoto. Colocado no limite da História ocidental, de qual lado do a escrever este livro efoi seu primeiro leitor. Obrigado a Maurice Olender,
limiar estava então Heródoto? Aquém ou além? Ainda não ou já que me propôs fazê-lo, assim como a Gérard Lenclud, Éric Michaud, ]ac-
historiador? Pai da história ou mentiroso? Pode-se dizer o mesmo ques Revel e Michael Werner. Obrigado, .finalmente, aos ouvintes do meu
quando, no espaço mais reduzido e também mais contido da his- seminário, que toleraram esses "regimes".
toriografia francesa, eu me deparei com Fustel de Coulanges. Com
ele, percorri um século de história. Nascido em 1830 e falecido
no ano do centenário da Revolução Francesa, ele foi historiador,
certamente, quase em excesso, mas sem deixar de se encontrar em
porte àfaux 66 : em relação a uma história-ciência da qual foi, no en-
tanto, um dos mais austeros promotores, no que concerne a uma
nova Sorbonne que criou para ele a primeira cátedra de História
66 Être en porte à ja11x : encontrar-se em uma posição instável, desequilibrada, ou entre posições
contraditórias. (Nota do revisor geral)
.I
I
CAPÍTULO 2
• "Na vida dos mortais há sempre um fato 1 que é símbolo dos tempos decorridos. I Obser-
v~ndo-o, podemos ser profetas, 1 quase sem erro, do volver das coisas I não nascidas que,
a~nda entesouradas, I acham-se nos fracos germes e começos. I Tais coisas o ovo e o fruto
sao do tempo." William Shakespeare, Henrique IV, Parte II (Ato III, cena 1) (Tradução de
Carlos Alberto Nunes, Teatro completo de Shakespeare- Dramas históricos, Rio de Janeiro:
Ediouro, s.d.).
42
REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO
HISTORIA MAGISTRA VITAE 43
"No que se refere àquilo que nós mesmos não podemos vivenciar, de-
, portanto ' formal; como mais tarde irá afirmar a máxima "tudo
n.. ·.. USO e,
'i~!~~~(
vemos recorrer à experiência de outros': encontramos na Grande enci-
. ~e ser comprovado a partir da história". 5 . , , ,
clopédia universal de Zedler, em 1735. 2 Assim, a história seria um cadi-
· Qualquer que seja o ensinamento que subJaZ a nossa formula, ha algo
nho contendo múltiplas experiências alheias, das quais nos apropriamos
· sua utilização indica de modo inegável. Seu uso remete a uma pos-
com um objetivo pedagógico; ou, nas palavras de um dos antigos, a his-
tória deixa-nos livres para repetir sucessos do passado, em vez de incor-
.~~lidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidades hu-
···. :anas em um continuum histórico de validade geral. A história pode
rer, no presente, nos erros antigos. 3 Assim, ao longo de cerca de 2 mil
· ~duzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou intelectual de seus con-
anos, a história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a
temporâneos e de seus pósteros, mas somente se e enquanto os pressu-
ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros.
Que ~nsinamentos podemos retirar do episódio de Charlottenburg,
?
postos para tal forem basicamente os mesmos: At~ s~culo X~III: o em-
prego de nossa expressão permanece como md1c10 mquestwnavel da
para aplicarmos o topos ao nosso exemplo? Graças à sua arte de argu-
constância da natureza humana, cujas histórias são instrumentos recor-
mentação, Raumer adverte o colega, em um espaço de experiência su-
rentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurí-
postamente contínuo, sobre o qual ele mesmo já se posicionara de forma
dicas ou políticas. Mas, da mesma forma, a perpetuação de nosso topos
irónica. A cena reafirma o papel da história como mestra da vida, com-
aludia a uma constância efetiva das premissas e pressupostos, fato que
provando ao mesmo tempo o quanto esse papel se tornara questionável.
tornava possível uma semelhança potencial entre os eventos terrenos.
Antes de abordarmos a questão sobre o quanto esse velho topos já se
E, quando uma transformação social ocorria, era de modo tão lento e
teria diluído na história em movimento que caracteriza a época moder-
em prazo tão longo, que os exemplos do passado continuavam a ser pro-
na, é preciso lançar um olhar sobre a questão de sua duração. Esta per-
veitosos. A estrutura temporal da história passada delimitava um espaço
dura quase ilesa até o século XVIII. Falta-nos, ainda hoje, uma descrição
contínuo no qual acontecia toda a experimentação possível.
de todas as transformações filológicas e semânticas por meio das quais a
expressão "história" [Historie] foi conceitualizada. Da mesma forma, fal-
ta-nos também uma história da expressão historia magistra vitae. Ela ori- I.
entou, ao longo dos séculos, a maneira como os historiadores compre-
Cícero, referindo-se a modelos helenísticos, 6 cunhou o emprego da ex-
enderam o seu objeto, ou até mesmo a sua produção. Embora tenha
pressão historia magistra vitae. A expressão pertence ao contexto da ora-
conservado sua forma verbal, o valor semântico de nossa fórmula variou
tória; a diferença é que, nesse caso, o orador é capaz de emprestar um
consideravelmente ao longo do tempo. Não raro, a própria historiogra-
sentido de imortalidade à história como instrução para a vida, de modo
fia desabonou o topos como fórmula cega, cujo alcance limitava-se aos
a tornar perene o seu valioso conteúdo de experiência. Além disso, o uso
prefácios das obras. Dessa maneira, torna-se ainda mais difícil esclarecer
da expressão está associado a outras metáforas, que reescrevem as tare-
a diferença que sempre existiu entre o mero emprego do lugar comum e
fas da história. Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae,
seu efeito prático. A despeito desses problemas, a longevidade de nosso
nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur
topos já é bastante esclarecedora. Ela alude em primeiro lugar à flexibili-
[A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da me-
dade da formulação, a qual permite, por sua vez, as mais diferentes con-
mória, a mensageira da velhice, por cuja voz nada é recomendado senão
clusões sobre seu significado. Vejamos o caso em que dois contemporâ-
a imortalidade do orador ).7 A tarefa principal que Cícero atribui aqui à
neos tomaram as histórias [die Historien] como exempla: o objetivo de
historiografia é especialmente dirigida à prática, sobre a qual o orador
Montaigne era mais ou menos o oposto daquilo que Bodin pretendia
exerce sua influência. Ele se serve da história como coleção de exemplos
demonstrar. A um, as histórias mostravam-se capazes de romper qual-
-plena exemplorum est historia [a história é cheia de exemplos] 8 -
quer generalização; a outro, elas ajudavam a encontrar regras gerais.4
a fim de que seja possível instruir por meio dela. Faz isso, sem dúvida,
Para ambos, entretanto, as histórias eram fonte de exemplos para a vida.
de forma ainda mais vigorosa do que o fez Tucídides, ao chamar a aten-
44 REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO
HISTORIA MAGISTRA VITAE 45
ção para o proveito que emanava de sua obra, quando legou para sem-
fonte de proveito, ao reunir em uma nova u~ida~e o pensa~~nto exem-
pre sua história como patrimônio, como um bem inextingüível, para que
, · No Methodus adfiacilem htstonarum
plar e o empmco. . cogmtwnem [Umd
se pudessem reconhecer os futuros casos semelhantes.
't do para conhecer facilmente a história], Bodm reserva ao topos. e
O círculo de influência de Cícero perdura até a experiência histórica
cristã. O corpus de sua obra filosófica não raro foi catalogado, nas biblio-
~~e~o um lugar privilegiado. Cícero faz referência às leis sagradas hls- ~a
tecas dos mosteiros, como coletânea de exemplos, sendo amplamente tó . or força das quais os homens conhecem o seu presente e s~o ca-
na, P ·1 m "nar 0 futuro e isso não de forma teo 1og1ca,• · mas s1m de
9 pazes de1u 1 ' . .
disseminado. Como se vê, a possibilidade de se interpretar a expressão
t de vista político prático.Is Seria cansat1vo enumerar a contl-
ao pé da letra sempre esteve presente, mesmo que a autoridade da Bíblia umpono . . · t' ·1
a repetiçãoi6 ou a ornamentação barrocai 7 desse pnnop10 a e os 1 u-
e dos Pais da Igreja suscitasse no início uma certa resistência contra a
:nistas tardios, como Mably.Is Versões variadas de nosso topos, desde
historia magistra pagã. Em seu difundido compêndio etimológico, Isido-
formas patéticas como futurorum magistra temporum [me~tr~ d~s tem-
ro de Sevilha fez uso constante do tratado De oratore, de Cícero, mas a
ros)I9 até algumas descuidadas instruções sobre 1m1taçao, po-
expressão historia magistra vitae, especificamente, foi suprimida de suas pos fut u h" · d
dem ser encontradas facilmente em meio a histórias e 1stona ores .
definições de história. Ele criou não pouca dificuldade aos apologetas do
É assim que Lengnich, um historiador de Da~zig, escreve que a histo-
cristianismo, ao transmitir como exemplares os eventos da história pro-
riografia nos apresenta "tudo aquilo que podena ser usado de novo em
fana, ou mesmo da história pagã. 10 Declarar uma história desse tipo,
uma oportunidade semelhante". 20 Ou então, par~ tomarmos 0 exemplo
cheia de maus exemplos, como mestra da vida vai além dos poderes de
de um homem ainda um pouco menos conheodo, o tenente-general
transmutação da historiografia da Igreja. Ao mesmo tempo Isidoro con-
Freiherrn von Hardenberg: ele adverte ao preceptor de seu filho famoso*
cede- se bem que algo disfarçadamente- uma influência educativa à
história pagã. 11 A história profana foi considerada legítima também por que não se deixe prender, pura e simplesmente, aos fatos:
Beda, uma vez que, para ele, também ela era capaz de fornecer exemplos, Todas as ações, passadas e presentes, assemelham-se entre si e sua ciên~ia
fossem repulsivos ou dignos de serem imitados. 12 Muito influentes, am- é em grande parte dispensável, mas podem tornar-se de grande proveito
bos os clérigos contribuíram para que também o motivo das máximas quando esse esqueleto for recoberto da carnação correspondente, de modo
que se possa então mostrar a' JUVentu
· d e qua I 'oi
t' o impulso para uma• tal
profanas conservasse um lugar, ainda que subalterno, ao lado da história
· como os meios
transformação, assim · pe1os qu a1's este ou aquele fim fm ai-
que era legitimada por seu conteúdo religioso. . · e1e nao- t en·a sido alcançado;
cançado, ou então, os motivos pelos quais , . . des-
, .
Também Melanchton fez uso dessa dupla via, uma vez que tanto os .
sa maneira prega-se antes ao enten d 1men to d o que à memona·' a h1stona
exemplos oriundos das histórias bíblicas quanto das histórias pagãs são ' . agradavel
torna-se mars , e mais · mteressan
· t e para 0 discípulo , de forma que
fontes para as transformações seculares, pois ambos, ainda que de ma- se pode instruí-lo de maneira quase imperceptível tanto na inteligê.ncia do.s
neiras diferentes, remetem aos preceitos divinos. 13 A concepção herdada · · pnvados
negocws · quanto na d o Est ad o, ass1·m como nas artes belll ac paczs
[artes da guerra e da paz]. 21
da Antigüidade a respeito da utilidade da historiografia permaneceu as-
sociada à experiência histórica cristã que se recortava sobre o horizonte Esse último testemunho, prestado por um pai preocupado con:
a edu-
das profecias de salvação eterna. Da mesma forma, o esquema linear cação correta de seu filho, é significativo porque nele as expectativa~ ~e
das conjeturas bíblicas e de suas concretizações não ultrapassou - até dagógicas de uma época esclarecida conjugam-se com a tarefa tradiciO-
Bossuet- os limites dentro dos quais é possível deixar-se instruir para nal da história.
o futuro a partir do passado. .
Malgrado a autopropaganda h1stonogra · ·fiICa, nao
- se pode subestimar
. , .
Com o desaparecimento das profecias apocalípticas, a velha história o caráter instrutivo prático da literatura histórica e política do_m1c1? ~a
como mestra impõe-se mais uma vez com grande vigor. Maquiavel, por época moderna.22 Os negócios jurídicos dependiam de deduçoes h1sto-
meio de sua exortação segundo a qual se deve não apenas admirar os
antigos, mas também imitá-los, 14 fortalece o princípio da história como • Freiherrn von Hardenberg era pai do poeta Novalis. [N.R.]
I
. 'Í
buhr anuncia sua História da época da Revolução Francesa sob esse título deve fazer em uma situação determinada (as circunstâncias modifi-
porque apenas a Revolução teria sido capaz de atribuir "unidade épica tudo de maneira dramática), mas sim as conseqüências e resultados
ao. toAdo':so Somente a história compreendida como sistema possibilita a das épocas e das nações." Tudo no mundo tem seu tempo e seu
existenoa de uma unidade épica, capaz de trazer à luz e ao mesmo tem- e seria preciso cumprir adequadamente as tarefas delegadas pelo
po de consolidar suas relações internas. flestino."s2 Um tal deslocamento de sentido, capaz de submeter a um
Humboldt vai finalmente resolver a disputa centenária entre história ,gmceito único de história [ Geschichte] um conjunto de efeitos univer-
e P?ética ao deduzir a singularidade da "história acima de tudo" [Ge- sais em seu caráter singular e inédito foi também uma das preocupações
s~ht~hte überhaupt] a partir de sua própria estrutura formal. Dando con- do jovem Ranke. Em 1824 ele escreve sua História dos povos românicos e
tmmdade ao p~ns~mento de Herder, Humboldt introduziu as categorias Jermânicos, declarando que ali ele "tratava apenas de histór~as [ Gesch.ic~
dAa f~rça e do direcwnamento, que necessariamente escapam das circuns- ,.,], e não da história [ Geschichte] ". Entretanto, o caráter smgular e me-
tancia.s ~u: lh~ são anteriores. Com isso, Humboldt nega qualquer pres- da história permanece, para Ranke, indiscutível. Uma vez que o
supo~Içao mgen~a quanto ao caráter modelar dos exemplos do passado, ·. $Cüntecimento [Geschehen] se mostra como conseqüência e produto do
extramdo a segumte conclusão geral: "O historiógrafo digno desse nome .etnbate entre forças singulares e genuínas, extingue-se a possibilidade de
d~ve representar cada singularidade como parte de um Todo, 0 que sig- : -~licação imediata de modelos históricos. Como prosseguiu então Ran-
mfica que ele deve também representar em cada uma dessas partes sin- : ke: ''Atribuiu-se à história a tarefa de apontar para o passado, de instruir
gulares a própri~ ~o~ma da história." 51 Com isso, Humboldt acaba por 'O mundo contemporâneo para proveito da posteridade: o presente tra-
reela~o~~r um cnte.no ~a representação épica em categoria histórica. ~ho não aspira a uma tarefa tão elevada, pretendendo apenas mostrar
A ~de~a d~ c~le~I~o smgular possibilitou outro avanço. Permitiu que cOmo as coisas realmente aconteceram." 53 Ranke resignava-se cada vez
se atnbmsse a histona aquela força que reside no interior de cada acon- · mais ao âmbito do passado, tendo abandonado temporariamente essa re-
tecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e im- signação ao assumir o cargo de redator do Historische-politische Zeit-
pulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente •. ·. schrift [Jornal histórico e político], quando recorreu ao velho topos da
ao quAal o hom~m pôde acreditar-se responsável ou mesmo em cujo no- Historia magistra vitae.s4 Entretanto, o seu visível fracasso parece ter de-
me ~ode acreditar estar agindo. O advento da idéia do coletivo singular, sabonado o recurso ao velho topos.
mamfestação que reúne em si, ao mesmo tempo, caráter histórico e lin- O fato de a perspectiva histórica ter renunciado à aplicação imediata
güístico, deu-se em uma circunstância temporal que pode ser entendida de seus ensinamentos não se deve à natureza dessa perspectiva em si, a
como a gr~nde ép?~a das singularizações, das simplificações, que se vol- despeito da tradição desse uso, sobretudo nas historiografias fundadas
tavam social e politicamente contra a sociedade estamental: das liberda- no direito naturatss Mais do que isso, por trás da relativização de todos
des fez-se a Li~erdade, das justiças fez-se a Justiça, dos progressos 0 Pro- os acontecimentos que destruíram a Historia magistrae ocultou-se uma
gresso, das mmtas revoluções "La Révolution': No que se refere à França, experiência de caráter geral, que dividiu também o campo de oposição
pode-se acrescentar que o lugar central que o pensamento ocidental atri- dos progressistas. Isso nos leva a um terceiro ponto de vista. Não é por
b~i.u à Gr~nd: Revolução, em sua singularidade, transferiu-se para a his- acaso que, nas mesmas décadas nas quais o conceito coletivo singular de
tona, no ambito da língua alemã. história [ Geschichte] começou a se impor, emergiu também o conceito
Foi a Revolução Francesa que colocou em evidência o conceito de his- de filosofia da história.s6 É esse o momento em que proliferaram as his-
tória [ Geschichte] da escola alemã. Tanto uma quanto o outro foram res- tórias conjeturais, hipotéticas ou presuntivas. Iselin, em 1764, Herder, em
pons~veis pela erosão dos modelos do passado, embora aparentemente 1774, e Koster, em 1775, lançaram as bases de uma "filosofia da história
os _e~tivessem a.colhendo. Johannes von Müller, seguindo o caráter prag- para eruditos"Y Ao fazê-lo, imitaram de certa maneira os procedimen-
~atlco dos ensmamentos de seus mestres em Gottingen, escreve em 179 6: tos dos autores ocidentais, retomando literalmente ou reformulando, a
O que se pode encontrar na história não é tanto instruções sobre 0 que partir da perspectiva da filologia histórica, os questionamentos propos-
1
54 REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO
HISTORIA MAGISTRA VITAE 55
~os pe~o~ prim~i~~s. Tiveram, entretanto, como perspectiva comum a pela história foi obra da filosofia da história de então, muito antes que o
estrmçao d~ Ideia do caráter modelar dos acontecimentos passad~s historicismo fizesse uso desse conhecimento. O substrato natural desa-
para ~eb~sl~dgmr em lugar disso a singularidade dos processos históricos ~ pareceu, e o progresso foi a primeira categoria na qual se deixa mani-
a possi I I ade de sua - A . .
. . progressao. constitmção da história [ Geschichte], festar uma certa determinação do tempo, transcendente à natureza e
no sentido que hoJe nos é corrente, teve origem em um mesmo , . imanente à história. A filosofia, ao transpor para o progresso a história
e t t d . e umco
ven o, anta o ponto de VIsta histórico quanto lingüístico. O ·_ compreendida singularmente como um todo unitário, fez com que o
menta da filosofia da história está associado exatamente a surgi nosso topos perdesse obrigatoriamente o sentido. Se a história se torna
A 1 .. esse processo.
que e que utihza a expressão filosofia da história disse Koste t um evento único e singular da educação do gênero humano, então cada
que s~ lem~rar de que "~ão ~e trata de uma ciência ~articular, co~oe: exemplo particular, advindo do passado, perderá força, necessariamente.
podena facilmente acreditar a primeira vista Pois ond Cada ensinamento particular conflui então no evento pedagógico geral.
t d . · e quer que se tra-
e e umda parte da .história, ou mesmo de toda uma ciência histórica A perfídia da razão impede que o homem aprenda diretamente a partir
t rata-se e nada mais nad d , da história, impelindo-o ao seu destino de forma indireta. Trata-se aqui
A h. t , . fil a menos o que da própria história em si."ss
Is ona e .a I osofia da história são conceitos complementares da conseqüência progressiva que nos leva de Lessing a Hegel. "O que a
por s~: ve.z, Impossibilitam que o ato de filosofar sobre a história ~e~~: experiência e a história nos ensinam é que os povos e os governos jamais
prece e~Cia. ~ssa perspectiva foi totalmente a pique no século XIX 59 aprenderam algo a partir da história, assim como jamais agiram segun-
tór~sul~If:mi,dade potencial e a capacidade de repetição peculiar ;s his- do ensinamentos que delas fossem extraídos." 62 Ou então, nas palavras
c . Iga as a natureza foram relegadas ao passado, a própria história de um experiente contemporâneo de Hegel, o abade Rupert Kornmann:
rOI reestruturada em fo d "É destino dos Estados, assim como do homem, tornar-se sábio apenas
- , . rma e uma grandeza não natural, a respeito da
qual nao e mais possív~l filosofar como até então se fazia a res eito da quando já passou a oportunidade de sê-lo." 63
:a~ureza. Natureza e história puderam desde então separar-sepconcei- Por trás de ambas as afirmações está não apenas uma reflexão filosó-
a mente,. e a. prova disso é que exatamente nessas décadas o anti o fica sobre a singularidade do tempo histórico, mas também, de forma di-
ramo da hzstona natura/is foi excluído do complexo das ciências histó;i- reta, a veemente experiência da Revolução Francesa, que parecia ultra-
cas, como se pode ler na Enciclopédia de Voltaire e na AI h passar e reorganizar toda a experiência anterior. O quanto esse novo
Adelung.6o , eman a, em tempo histórico fundamentava-se sobre a base constituída por tais expe-
Por trás dessa separa - d , riências, mostra-o o ressurgimento da Revolução de 1820 na Espanha.
. çao e carater aparentemente científico e histó
nco, pre~arada por Vico, oculta-se com certeza a descoberta d t - Logo após a eclosão dos tumultos, Goethe inspirou o Conde Reichhard a
po especificamente histórico. Se quisermos dizer d . e um em- uma reflexão que punha em evidência as perspectivas temporais: "O se-
d . _ essa maneira, trata-se nhor tem toda razão, prezado amigo, naquilo que diz sobre a experiên-
e uma temporahzaçao da história, que, a partir de então se d' t .
da era 1 · , , IS anCia cia. Para os indivíduos ela chega muito tarde, para os governos e povos
1
no agia natura . Ate o século XVIII, duas categorias do tempo -
t~ral asseguraram a seqüência e o cálculo dos eventos históricos: o ::~ ela não chega a existir. Isso se dá porque a experiência já vivida manifes-
ta-se concentrada em um único foco, ao passo que aquela ainda por se
vimento das estrelas e a seqüência natural de governantes e dinastias
concretizar estende-se ao longo de minutos, horas, dias, anos e séculos.
Kant, entr~ta~to, ao recusar qualquer marcação histórica a partir de da~
Em conseqüência disso, aquilo que é semelhante nunca par)ce sê-lo,
tas astrono~I~as fixas e censurar o princípio hereditário como irracio- pois, no primeiro caso, vê-se apenas o todo, e no segundo, apenas partes
na:, ren_uncia ~ c.ron~logia tradicional como fio condutor analítico de isoladas." 64 Passado e futuro jamais coincidem, não apenas porque acon-
co. oraçao tleolo.gi~a.. Como se não fosse a cronologia que tem que se tecimentos decorridos não podem se repetir. Mesmo se o fizessem, exa-
onentar pe a histona m . , .
gia "61 O b 1 . , as Sim, ao contrano, a história pela cronolo- tamente como no recrudescimento da Revolução de 1820 na Espanha, a
. esta e ecimento de um tempo determinado exclusivamente história que vem ao nosso encontro escaparia à nossa capacidade de
r
REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO
HISTORIA MAGISTRA VITAE 57
apreensão da experiência. Uma experiência acabada é tanto completa temer abandonar a busca de algo na história que nos fosse adequado. 70
quanto passada, ao passo que aquela que se realizará no futuro desfaz-se E logo os revolucionários forneceram, em um Dictionaire, as instruções
em uma infinidade de diferentes extensões temporais. segundo as quais não se deveria escrever mais nenhuma história, antes
É o futuro do tempo histórico, e não seu passado, que torna desse- que a Constituição fosse terminada.7 1 A capacidade de realização da Ge-
melhante o que é semelhante. Com isso, Reinhardt indicou, em sua tem- schichte destronou a velha Historie, "pois, em um Estado como o nosso,
poralidade peculiar, o caráter processual da história moderna, cujo fim é fundado na vitória, não existe passado. [Tal Estado] é uma criação na
imprevisível.
qual, assim como na criação do mundo, tudo o que existe provém das
Isso nos leva a uma outra variante do topos, que se modificou nessa mãos do criador e a partir daí, atingindo sua perfeição, passa a fazer par-
mesma direção. Integra a conjuntura da Historia magistra o fato de que te da existência". 72 São palavras triunfantes de um sátrapa de Napoleão.
o historiador não apenas instrua, mas também profira sentenças e juízos, Com isso, realiza-se a previsão de Kant, que provocativamente pergun-
sendo também obrigado a julgar. A história [Historie] iluminista entre- tara: "Como é possível uma história a priori? Resposta: quando o orácu-
gou-se a essa tarefa com demasiada ênfase, tornando-se, segundo a Enci- lo faz e molda, ele mesmo, as circunstâncias que previamente anuncia." 73
clopédia, um "tribunal integre et terrible". 65 Quase clandestinamente, a A supremacia da história como Geschichte, que coincide, paradoxal-
historiografia, que- já desde a Antigüidade- proferia juízos, tornou- mente, com sua capacidade de realização, oferece à nossa compreensão
se uma história [Historie] que executava ela mesma os veredictos. A obra dois aspectos do mesmo fenômeno. Se o futuro da história moderna
de Raynal, pagando seu tributo a Diderot, dá testemunhos disso. "A his- abre-se para o desconhecido e, ao mesmo tempo, torna-se planejável,
tória do mundo como julgamento do mundo." A fórmula de Schiller, então ele tem de ser planejado. A cada novo plano, introduz-se um novo
criada em 1784 e que rapidamente se expandiu, é despojada de qualquer elemento que não pode ser objeto da experiência. O aspecto arbitrário
nuança historiográfica. Tal fórmula almejava uma justiça imanente à his- da história cresce paralelamente à sua capacidade de realização. Um sus-
tória, justiça essa da qual fossem banidos todos os atos e fatos humanos. tenta a outra e vice-versa. Ambos compartilham da destruição do espa-
"Aquilo que se exclui no minuto imediato não pode ser recuperado nem ço tradicional da experiência, o qual, até então, parecia ser determinado
em uma eternidade."66
a partir do passado.
A expressão, que veiculava a idéia de um tempo punitivo,67 de um Um dos resultados colaterais dessa revolução histórica foi o fato de
Zeitgeist ao qual era necessário submeter-se, rapidamente se expandiu na que, a partir de então, também a escrita da história tornou-se menos
literatura jornalística. Seu uso fazia continuamente lembrar a inexorabi- falsificável do que manipulável. Quando a Restauração se instalou, proi-
lidade da escolha frente a qual a Revolução e a história põem o homem. biu, por decreto de 1818, aulas de história sobre o período entre 1789
Entretanto, a determinação resultante da filosofia da história, que com- e 1815.74 Exatamente ao negar a Revolução e suas conseqüências, a Res-
partilha seu sentido com a singularidade temporal da história, é apenas tauração parecia admitir tacitamente a impossibilidade de repetir os
um lado do processo que fez cessar as condições de existência da "historia eventos passados. Mas a tentativa de superar a anistia [Amnestie] por
magistra vitae". De um lado aparentemente oposto veio um ataque não meio de uma amnésia [Amnesie] foi em vão.
menos virulento. Sob tudo o que se disse até então, sob a singularização da história
Em quarto lugar, o iluminista conseqüente não tolerava qualquer in- [Geschichte], sob seu processo de temporalização, sob sua inevitável su-
clinação para o passado. O objetivo declarado da Enciclopédia era reela- premacia e sob sua capacidade de produção anuncia-se uma t~ans~orm~
borar o passado o mais rapidamente possível, de forma que um novo fu- ção da experiência que domina a época moderna. A Histone fm desti-
turo fosse inaugurado. 68 Antes conhecíamos exemplos, hoje conhecemos tuída de seu objetivo de atuar imediatamente sobre a realidade. Desde
apenas regras, disse Diderot. "Julgar o que acontece agora", completava então, a experiência parece ensinar justamente o contrário. Para um bre-
Sieyes, "segundo os critérios daquilo que já aconteceu, parece-me o mes- ve e despretensioso testemunho, chamemos o modesto e bem-avisado
mo que julgar o conhecido a partir do desconhecido!'69 Não deveríamos Perthes, que escreveu em 1823:
ss REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO HISTORIA MAGISTRA VITAE 59
Se cada partido governasse em seguida ao outro, tendo por tarefa organizar entre as velhas e as novas revoluções, a fim de promover, de maneira tra-
as instituições, então todos os partidos, por meio de uma história por eles dicional, a transição do passado para o futuro. Mas foi logo obrigado a
mesmos fabricada, tornar-se-iam mais justos e mais sábios. A história pro-
reconhecer que aquilo que escrevia durante o dia era ultrapassado pelos
duzida por outros raramente proporciona justeza e sabedoria políticas, uma
vez que ela também tem que ser escrita e estudada. É isso que a experiência acontecimentos da noite. A Revolução Francesa, desprovida de exemplos
nos ensinaJS anteriores, parecia-lhe conduzir a um futuro incerto. Colocando-se a si
mesmo em perspectiva histórica, Chateaubriand editou seu ultrapassa-
Com essa constatação, temos uma guinada dramática e completa no
do ensaio trinta anos depois, sem qualquer modificação, mas guarneci-
que se refere à capacidade de expressão de nosso topos- historia magis-
do de notas nas quais fazia prognósticos progressistas sobre a Constitui-
tra vitae. Não se pode mais esperar conselho a partir do passado, mas
ção.79 Desde 1789 constituiu-se um espaço de expectativa provido de
sim apenas de um futuro que está por se constituir. A frase de Perthes
pontos de fuga em perspectiva, o qual remete, ao mesmo tempo, às dife-
era moderna porque se despedia da velha Historie, sendo que o próprio
rentes etapas da Revolução. Kant foi o primeiro a prever esse sistema
Perthes, como editor, contribuiu bastante para isso. Os historiadores, que
moderno da experiência histórica, ao dotar as repetições das tentativas
se ocupavam então de reconstruir o passado sob um ponto de vista crí-
revolucionárias de um objetivo final temporalmente indefinido, mas
tico, assim como os progressistas, que estabeleciam conscientemente no-
com certeza finito. Segundo ele, a "instrução adquirida pela repetida ex-
vos modelos no auge do movimento, estavam de acordo quanto ao fato
perimentação" de princípios falhos aperfeiçoa os caminhos da revolu-
de que não se poderia tirar mais nenhum proveito de uma Historie que
ção.so Desde então, os ensinamentos históricos entram novamente na
instruía por meio de exemplos.
vida política - se bem que pela porta dos fundos dos programas de ação
Isso nos leva a nosso último ponto, que contém uma interrogação. De legitimados pela filosofia da história. Citem-se aqui os primeiros mes-
que consiste o caráter comum da nova experiência, que até aqui foi de- tres da aplicação revolucionária: Mazzini, Marx ou Proudhon. As cate-
terminada pelo processo de temporalização da história em sua singu- gorias da aceleração e do retardamento, evidentes desde a Revolução
laridade? Quando Niebuhr anuncia, em 1829, suas conferências sobre Francesa, modificam, em ritmo variável, as relações entre passado e fu-
os últimos quarenta anos, ele reluta chamá-las de "História da Revolu- turo, conforme o partido ou ponto de vista político. Aqui reside o cará-
ção Francesa", pois, segundo ele, "a revolução é ela própria um produto ter comum entre o progresso e o historicismo.
da época( ... ). Não possuímos uma palavra para designar a época em ge- Sobre o pano de fundo da aceleração pode-se compreender mais fa-
ral e, por essa falta, tendemos chamá-la de a época da Revolução."76 Sob cilmente também por que a escrita da história contemporânea, a "cróni-
essa insuficiência oculta-se o reconhecimento de que um tempo genuí- ca do tempo presente" foi para segundo plano, 81 assim como por que a
no da história manifestava-se, acima de tudo, como algo diferenciado e Historie renunciou sistematicamente a uma atualidade que se deixasse
passível de diferenciação. No entanto, a experiência necessária para que progressivamente modificar. 82 Em um mundo social no qual as altera-
se possa diferenciar o tempo em si é a experiência da aceleração e do ções se dão com veemência, as dimensões temporais, nas quais até então
retardamento. a experiência se desenvolvera e se acumulara, deslocam uma a outra; o
A aceleração, primeiramente compreendida como uma previsão apo- historicismo reagiu a isso - assim como a filosofia histórica do progres-
calíptica do encurtamento da distância temporal que antecede a chega- so- ao colocar-se em uma relação indireta com a história [ Geschichte].
da do Juízo Final, 77 transformou-se, a partir da segunda metade do sé- A escola histórica alemã, compreendendo-se como uma ciência que tem
culo XVIII, em um conceito histórico relacionado à esperança.7 8 Mas, por objeto o passado, logrou elevar a história [Geschichte] à categoria de
com os processos de disseminação da técnica e a Revolução Francesa, uma ciência da reflexão, fazendo uso pleno do duplo sentido da palavra
essa antecipação subjetiva de um futuro desejado- e que, por isso, deve "Geschichte". O caso isolado deixa de ter caráter político-didático. 83 Mas
ser acelerado- adquiriu, inesperadamente, um rígido teor de realida- a história [ Geschichte], como totalidade, coloca aquele que a apreende de
de. Em 1797, Chateaubriand, então como emigrante, esboça um paralelo maneira compreensiva em um "estado propício à formação" [Zustand
6o REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO
CAPÍTULO 3
der Bildung] que deve influir no futuro. Como sublinha Savigny, a histó-
ria "não é mais uma mera coleção de exemplos, mas sim o único cami- Critérios históricos do
nho para o verdadeiro conhecimento de nossa própria situação". 84 Ou conceito moderno de revolução
ainda, nas palavras de Mommsen, que procurou vencer o abismo entre
passado e futuro: a história não é mais mestra que nos forneça uma arte
política terapêutica, ela é "instrutiva" apenas na medida em que "pode Poucas palavras foram tão largamente disseminadas e pertencem de ma-
conduzir e entusiasmar os ânimos em direção a uma recriação autôno- neira tão evidente ao vocabulário político moderno quanto o termo "re-
ma e independente". 85 Cada exemplo do passado, ainda que seja ensina- volução". Trata-se de uma dessas expressões empregadas de maneira en-
do, chega sempre muito tarde. O historicismo é capaz de se relacionar fática, cujo campo semântico é tão amplo e cuja imprecisão conceituai é
com a Geschichte apenas de maneira indireta. 86 Em outras palavras: o tão grande que poderia ser definida como um clichê. No entanto, claro
historicismo dissocia-se de uma história que põe continuamente em xe- está que o conteúdo semântico de "revolução" não se reduz a seu empre-
que as condições de suas (dele) possibilidades como ciência histórica go potencial como lugar-comum. Revolução alude muito mais a desor-
prática. A crise do historicismo coincide sempre com ele próprio, o que dem, golpe ou guerra civil, assim como a uma transformação de longo
não o impede de sobreviver enquanto houver uma história [ Geschichte]. prazo, ou seja, a eventos e estruturas que atingem profundamente o nos-
Henry Adams foi o primeiro a tentar delimitar esse dilema de um so quotidiano. É evidente também que a ubiqüidade do termo "revolu-
ponto de vista metodológico, ao desenvolver uma teoria do movimento ção", como lugar-comum, está estreitamente ligada a seu sentido pontual
na qual progresso e história eram tematizados ao mesmo tempo, definin- bastante concreto. Uma alude ao outro e vice-versa. Nos estudos de ca-
do um e outra por meio de investigações sobre as estruturas temporais ráter semântico que se seguem, proponho-me a elucidar essa relação. 1
históricas. Adams estabeleceu uma "lei da aceleração", como ele a chama- Primeiramente é preciso reiterar que o uso e a extensão do termo são
va, por força da qual os critérios se alteravam continuamente, uma vez variáveis, do ponto de vista lingüístico. Quase todo jornal fala da Segun-
que a aproximação acelerada do futuro faria diminuir a distância em re- da Revolução Industrial, ao passo que a historiografia ainda não chegou
lação ao passado. A população aumentaria incessantemente, produzindo a um acordo quanto à determinação dos inícios assim como das carac-
gerações sempre mais jovens, as velocidades geradas pela técnica aumen- terísticas específicas da Primeira. A Segunda Revolução Industrial não
tariam em progressão geométrica, se comparadas aos critérios anteriores, apenas livrou o trabalho humano do esforço físico, mas também trans-
assim como o nível de produção da economia indicaria índices seme- feriu processos intelectuais a máquinas capazes de trabalhar de forma
lhantes, da mesma forma que a eficácia da ciência. Também a expectativa autônoma. O conceito de Segunda Revolução Industrial compreende a
de vida da população elevar-se-ia, estendendo assim o intervalo existente cibernética, a física atômica e a bioquímica. Tal revolução ultrapassou a
entre mais e diferentes gerações. A partir desses exemplos e de outros se- Primeira por uma extensa margem, uma vez que ali se tratava ainda de
melhantes, que poderiam suceder-se infinitamente, Adams concluiu que aumentar a produtividade humana para além do limite das necessidades
nenhum ensinamento seria correto, com exceção daquele segundo o qual tradicionais, graças ao capital, à técnica e à divisão de trabalho. Nesse
a única coisa que um professor de história poderia esperar, em lugar de caso, critérios gerais de distinção não são suficientes.
instruções sobre como agir, seria, no máximo, instruções sobre como Da mesma forma, é possível ler notícias sobre os programas marxis-
reagir: "All the teacher could hope was to teach (the mind) reaction." 87 tas para uma revolução universal, formulados por Marx e Lenin, e de-
pois impressos por Mao Ze Dong na bandeira do Partido Comunista
Chinês. Na década de 1960, fez parte da situação política interna da Chi-
Tradução de Wilma Patrícia Maas na o conceito de Revolução Cultural, conceito que tem por tarefa incutir
Revisão de Marcos Valéria Murad na mentalidade chinesa o movimento revolucionário, imprimindo, por
assim dizer, a revolução no próprio corpo das massas. Em todos os lu-
\ -
Sabemos como se formaram as idéias centrais do "materialismo
Capítulo7
histórico". Marx nos explicou que, em 1842-1843, quando era um jovem
hegeliano de esquerda que escrevia na Gazeta Renana, teve que tratar,
numa série de quatro artigos, do problema dos roubos de lenha que se ha-
viam convertido num delito muito freqüente. Surpreendidos pela situa-
ção, os membros da assembléia renana decidiram convertê-los em "roubo
MARX E O qualificado", o que implicava penas de uma dureza desproporcional. Para
um jovem educado nos princípios dá racionalidade hegeliana, a descober-
"MATERIALISMO HISTÓRICO"
ta de que o estado e as leis estavam a serviço de outros interesses particu-
lares - da defesa de uma propriedade privada surgida da usurpação dos
bens comunais dos camponeses - tornar-se-ía perturbadora.
Pouco depois, Engels lhe enviou o "Esboço de crítica da economia
Karl Marx (1818-1883), de uma família de classe média e de origem política", destinado ao único número publicado dos Anais franco-alemães,
judia, estudou direito e filosofia na universidade de Berlim, onde recebeii onde denunciava "o sistema de fábrica e a escravidão moderna" e prome-
a influência da esquerda hegeliana - sobretudo da crítica da religião de tia: "expor amplamente a repugnante imoralidade do sistema e divulgar,
Bauer, o inspirador de sua tese de doutorado - , do humanismo radical de sem concessões, a hipocrisia dos economistas" (trabalho que concluiria no
Feuerbach e de Moses Hess, que foi o primeiro a propor a aliança da revo- estudo sobre A situação da classe operária na Inglaterra, publicado em
lução filosófica alemã com a revolução política proposta pelo socialismo 1845). Isto despertou o interesse de Marx pela ecònomia.2
francês. Em contraste com a educação acadêmica de orientação filosófica,
Friedrich Engel? (1820-1895), filho de um rico fabricante de tecidos que New York: Harper and Row, 1970; o desafortunadamente inacabado de Auguste
esteve somente um ano na universidade de Berlim, na época em que fazia Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels. Leur vie et leur oeuvre, cujo último volume
o serviço militar, teria uma formação de caráter essencialmente econômi- parece ser o IV; La formation du matérialisme historique, 1845-1846. Paris: PUF,
1970; MAYER, Gustav. Friedrich Engels, una biografia. México: Fondo de Cultura
co, baseada mais na expériência vivida do que no estudo. Tinha um conhe- Económica, 1978. Sobre os anos de formação, McLELLAN, David. Marxy losjóve-
cimento direto dos males sociais causados pela industrialização - que de- nes hegelianos. Barcelona: Martinez Roca, 1969; ROSSI, Mario. La génesis del mate-
nunciou pela primeira vez em "Cartas de Wuppertal", escrita aos dezenove rialismo histórico. Madrid: Comunicación, 1971.3 v.; KAGI, Paul .La génesis dei ma-
terialismo histórico. Barcelona: Península, 1974; MARKOVITS, Francine. Marx en el
anos. Estava familiarizado com o funcionamento do capitalismo - que
, jardin de Epicuro.Barcelona: Madrágora, 1975. O tema da relação do pensamento
aprendeu no coração do sistema ao ser enviado a Manchester pela família de Marx com o de Hegel segue suscitando um conjunto de polêmicas. Entre as mais
- e, a isso, acrescentou o estudo da economia política clássica e a experiên- recentes destaca-se, ALTHAUS, Horst. Hegel. Naissance d'une philosophie. Une bio-
graphie intellectuelle. Paris: Seuil, 1999. p. 570 et seq. E as provocadoras formulações
cia do trato com os dirigentes operários britânicos. É justamente de Engels
de McGREGOR, David. Hegel and Marx after the fall of communism. Cardiff: Uni-
que procedem os elementos fundamentais da crítica da economia política versity of Wales Press, 1998. As "Briefe aus dem Wuppertal" de Engels se encontram
que Marx" desenvolveu posteriormente.1 em Marx Engels Werke (daqui em diante MEW), Berlin, Dietz, I, p. 413-432.
2Ô7
Embora Engels tenha dedicado alguma atenção à história em livros
como o Anti-Dühring (1878) e A origem da família, da propriedade priva-
Este texto, onde se pode ver que o tema da "luta de classes" - das fa-
da e do estado (1884)20 ou nas cartas dos últimos anos de vida, às quais re-1
ses de "revolução social" - não recebe muita atenção, será o último em que
as reflexões teóricas sobre a história aparecem nas obras publicadas por ferir-me-ei mais adiante, a realidade é que o texto do prefácio de Marx de
Marx que dedicaria os anos centrais da vida à análise crítica da economia 1859 permaneceria como documento essencial, suposto guia metodológi-
capitalista. Num árduo trabalho de busca, que culminaria no edifício ina- co de uma "teoria marxista da história" que, em boa medida, estava por
cabado de O capital, com a seqüela das Teorias sobre a mais valia, Marx construir, e que, por isso mesmo, é inútil estudar, sem esquecer que, para;
'atua como um pesquisador, sem conformar-se com esquemas abstratos. Marx, o materialismo histórico era muito mais um método do que uma
Fez isso inclusive no capítulo "de história" que integra o primeiro livro de teoria. A conseqüência disto foi que a maior parte dos estudos sobre "a teo-
O Capital. O capítulo vinte e quatro sobre "A chamada acumulação origi- ria da história" de Marx não foi muito além de discussões teológicas em
nária" é, seguramente, a melhor demonstração de Marx como historiador torno do prefácio à Contribuição, sem confrontá-lo, como seria necessário,
que temos. Nele, estuda a expropriação dos camponeses e a gênese de um com outras formulações marxistas.21
"mercado interno para o capital industrial" na Grã-Bretanha, mostrando
que, por detrás do processo, não existem somente as conseqüências inevi-
táveis da evolução econômica, mas a coerção exercida pelas classes domi- 20 No Anti-Dühring (MEW, 20, p. 1-303) definirá a contribuição do materialismo
nantes através do estado, mediante "uma legislação terrorista e grotesca" e histórico como o descobrimento de que toda a1 história passada consiste na his-
tória da luta de classes e que estas classes em luta são, em cada caso, produto das
a forma como esta violência permitiu estabelecer as condições "naturais"
relações de produção e de troca, em uma palavra, da situação econômica da épo-
a que o trabalhador assalariado permaneceria submetido.18 ca. Em A origem da família (MEW, 21, p. 25-173) trata de dar uma interpretação
Marx dedicou os principais anos da vida ao projetç de elucidar o materialista da pré-história e da história antiga, estabelecendo mudanças qUe o
funcionamento da economia capitalista da época, mostrando, ao mesmo levam a dizer que as instituições sociais sob as quais vivem os homens de uma
época histórica e de um pàls determinado dependem da produção de meios de
tempo, que os conceitos com que os economistas a legitimavam tinham
subsistência e da produção de homens, isto é, da propagação da espécie, o que
sido "construídos socialmente", o que obrigou a uma análise não somente quer dizer que dependem do grau de desenvolvimento do trabalho, por um lado,
do pensamento econômico, mas também da realidade cotidiana. Numa e do da família, por outro.
carta a Danilson, de abril de 1879, afirmou que não podia acabar o volu- 21 William H. Shaw dedica-se a definir os conceitos fundamentais do texto canóni-
me II de O Capital antes què terminasse a crise que a economia inglesa so- co -"forças produtivas", "relações de produção"- já que Marx não os definiu nun-
fria: "É necessário observar o curso atuaTdos acontecimentos até que che- ca com precisão, sustentando, em tróca, que "o conflito entre forças produtivas e
guem à maturidade antes de poder 'consumi-los produtivamente', quero relações dê produção", que seria segundo ele o mecanismo essencial da história
marxista, não tem nada a ver com a luta de classes: "A luta de classes em qualquer
dizer,'teoricamente'".19 formação social é diferente da contradição entre desenvolvimento das forças pro-
dutivas e o contexto social, que propõe o caminho para uma nova etapa social".
A iriteração entre os dois fatores se observa "através de um cuidadoso estudo de
. Progreso, 1989 (uma edição quase póstuma, como se vê pela data, em uma coleção cada modo de produção" (SHAW, Wiilim H. Marx's theory of history. Stanford:
que continuava se apresentando em 1989-com estas palavras: "Somente estudando Stafford University Press, 1978, citações literais das p. 91 e 154). Helmut Fleis-
as obras de C. Marx, F. Engels e V. I, Lenin é possível compreender o mundo con- cher, é mais flexível e interpreta a teoria marxista como uma combinação de um
^ temporâneo e os processos que nele ocorrem."). modelo de etapas de desenvolvimento que tem um caráter mecanicista e de uma
18 Em MEW, 23, p. 741-791. Capítulo que contém muitas outras questões que, infe- concepção da história que aceita a contingência que "consiste no fato de que a
lizmente, não parecem haver sido percebidas pelos que se limitam a estudar a visão realização do possível é sempre uma questão de iniciativas livres e sínteses criati-
de história de Marx nos textos "teóricos". vas, cuja qualidade e êxito não estão garantidos de antemão", o que de algum
19 Em MEW, 34, p. 370-375 (citação da p. 371). modo poderia ser exemplificado com o fracasso do "socialismo real". (FLEIS-
"apresentar um caráter menos definido ouxseguir uma ordem de acon-
A insatisfação pelos resultados alcançados com métodos historio-
tecimentos diferente".22
gráficos de fundamentos tão débeis foi o que levou, desde meados do sé-
culo XX, a-estudar um conjunto de textos marxistas desconhecidos ante- O mais desconhecido é o Marx das "cartas russas" não enviadas e
riormente, como os dos Grundrisse, ou que tinham passado inadvertidos, que seriam silenciadas pelos "marxistas" durante anos. É o Marx que, em
como o de algumas cartas, quê nos revelam um Marx cheio de dúvidas, de 1878, denuncia a tentativa de extrapolar os resultados da análise que havia
vacilações e até de contradições. feito no capítulo vinte e quatro de O capitàl, que "não pretendia outra coi-
Como disse Kiernan, Marx teve que pagar "pelo fracasso da ten- sa senão traçar o caminho pelo qual surgiu a ordem econômica capitalis-
tativa de elaborar o método de maneira mais compreensível e pelo fato ta na Europa Ocidental, do seio do regime econômico feudal" e que pro-
de*que a maior parte das reflexões sobre o tema não tivessem sido pu- testava contra a tentativa de "metamorfosear meu esboço histórico da gê-
blicadas", impedindo que se percebesse como evoluiu seu pensamento nese do capitalismo no ocidente europeu numa teoria histórico-filosóficà
depois da Contribuição. Verifica-se isto no que se refere à influência do da marcha geral que o destino impõe a qualquer povo, sejam quais forem
desenvolvimento do capitalismo sobre formas»econômicas e sociais an- as circunstâncias historieis em que se encontre". Marx traça, então, um pa-
teriores, muito especialmente no tocante ao campo e aos camponeses. O ralelo entre a antiga Roma e o sul escravista dos Estados Unidos para mos-
momento crucial da mudança encontramos na carta que Marx enviou a trar que "acontecimentos notavelmente análogos, mas que tiveram lugar
Engels em 25 de março de 1868, comentando que a leitura dos livros de em meios históricos diferentes, conduzem a resultados muito diversos". E
Maurer o havia feito compreender que o velho sistema germânico de conclue: "Estudando separadamente cada uma das formas de evolução e
posse da terra havia sobrevivido em seu próprio meio "até há poucos
comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave do fenôme-
anos", o que o levava a olhar com outros olhos em direção ao passado,
no, mas nunca seria possível alcançá-lo mediante o passaporte universal de
onde se podia "encontrar o mais novo no mais velho". Estava claro que
uma teoria histórico-filosóficà geral cuja virtude suprema consiste em ser
as formas pré-capitalistas podiam sobreviver em meio ao capitalismo e
supra-histórica". O que, como se pode ver, nos remete outra vez à exigên-
que o que as destruía não eram razões econômicas, mas a ação política
cia de rigor empírico formulada em A ideologia alemã.21
deliberada do estado. Com referência à expropriação dos camponeses,
tal como a analisara no capítulo vinte e quatro do primeiro volume de
O capital, Marx nuançou suas idéias na tradução francesa, publicada en- 22 KIERNAN, Victor. History. In: McLELLAN, David (Ed.). Marx: the first hundred'
tre 1872 e 1875, dizendo que o processo, que se realizou por completo years. London: Frances Pinter, 1983. p. 57-102 (citação da p. 80). O texto de Kier-
somente na Inglaterra, está sendo seguido por outros países da Europa, nan é üma das visões mais ponderadas e inteligentes da evolução das idéias histó-
ricas do marxismo até a atualidade; WHITE; J. D. Karl Marx and the intellectual ori-
e que, segundo as circunstâncias locais, poderia mudar, se reduzir, gins of dialectical materialism. London: Macmillan, 1996. p. 203-210 e 363-364.
23 Carta a Kugelman de de abril de 1871, tmMEW, 33, p.209; carta definsde 1877
CHER, Helmut. Marxism and history. London: Allen Lane, 1973). G. A. Cohen é ao diretor da revista russa Otechesvennie Zapiski, MEW, 19, p. 107-112. Sobre esta
um filósofo que começa seu estudo com o texto canónico, anuncia que defende carta, que não foi enviada, destaca-se WADA, Haruki. Marx and revolutionary Rus-
uma "concepção tradicional" do materialismo histórico e se dedica também a sia. In: SHANNIN, Theodor (Ed.). Late Marx and the Russian road. Marx and "the
analisar os conceitos de forças produtivas, relações de produção, as relações en- periferies of capitalism". London: Routledege and Kegan Paul, 1983. p. 40-75 (sobre
tre base e superestrutura, etc. de uma forma que combina o rigor analítico com ( a carta, adoto a data de Mfcda, p. 56-60). E significativo que os compiladores das
uma notável clareza de exposição. COHEN, G. A. Karl Marx's theory of history. A Obras escogidas de Marx e de Engels publicadas em Moscou por Ediciones Progre-
defence. Oxford: Clarendon Press, 1978. so (que utilizo na edição em língua francesa de 1970, em três volumes) não consi-
deraram importante incluí-la.
Nos últimos anos de vida, em cartas sobre a concepção da história,
Marx escreveu as "cartas russas" depois de alguns anos de aprendi- Engels dedicou mais interesse a estas questões, mostrando o receio ante o
zado da língua russa para poder ler acerca da situação naquele país. Leu tra- fato de que os jovens usassem o marxismo como um sistema para encon-
balhos de Tchernichevsky sobre a comunidade camponesa e suas opiniões trar respostas históricas fáceis, deduzidas automaticamente de um esque-
sobre os "narodniki" que em 1867 eram bastante negativas, começaram a ma prévio, sem necessidade de pesquisa. Em 1890, escreveu que "o méto-
mudar. Em 16 de fevereiro de 1881, Vera Zasulich escreveu-lhe uma carta, do materialista torna-se contraproducente se, em lugar de adotá-lo como
pergun.tando se pensava, como boa parte de seus discípulos russos, que a fio condutor do estudo histórico, é empregado como esquema rígido e
comunidade camponesa russa era uma forma de organização arcaica, con- imóvel para classificar os fatos históricos". Meses mais tarde, dizia a Con-
denada a desaparecer. O tema levou Marx a escrever quatro esboços de uma rad Schmidt: "Nossa concepção-da história não é nenhuma ferramenta de
•resposta que não chegou a enviar, mostrando que considerava seriamente a construção à maneira de Hegel, mas é, antes de tudo, uma orientação ao
possibilidade de que a Rússia se encontrava, se o desenvolvimento capita- estudo e através dele. Antes que se empreenda a tarefa de estabelecer as
lista não continuasse avançando muito mais, frente "à melhor oportunida- Correlações no campo das concepções políticas, estéticas,filosóficas,reli-
de que a história já ofereceu a uma nação" para passar a uma sociedade sem giosas, de direito privado, etc.", toda a história deve ser estudada de novo,
classes sem sofrer previamente as "cruéis leis do capitalismo". Ê evidente
as condições existentes nas distintas conformações da sociedade devem ser
que isso implicava uma visão da história que dificilmente podia encaixar-
objeto de um especial interesse na pesquisa. E acrescentou: "Até agora nada
se no esquema de 1859 - um esquema que podia ser qualificado, a partir da
foi feito neste campo, já que somente poucos se dedicaram a isso seria-
nova perspectiva mais aberta, de uma "teoria histórico-filosófica geral" - já
mente". E ainda, em 1894, um ano antes de sua morte, dizia que "A evolu-
que essas novas formulações admitiam a existência de diversas vias de evo-
ção política, jurídica, filosófica, religiosa, literária, artística, etc. baseia-se
lução, ainda que todas acabassem conduzindo ao mesmo ponto final, e
na evolução econômica. Porém, todas interagem e agem em relação à base
obrigavam a levar em consideração "as circunstâncias históricas" e o "meio
econômica. Não é certo, assim, que a situação econômica seja a única cau7
histórico", conceitos que dificilmente poderiam reduzir-se, apenas às forças
produtivas e às relações de produção.
sa ativa e todas as outras um efeito puramente passivo. Trata-se, antes de
Engels descobriu, entre os papéis de Marx, depois de sua morte, o tudo, de uma ação que muda sobre a base fundamental da necessidade
rascunho da carta ao diretor do Otechestvennie Zapiski, publicando-o na econômica que, em definitivo, se impõe constantemente".24
Rússia, não sem dificuldades; os rascunhos da carta a Vera Zasulich tive- Faz-se, habitualmente, uma leitura "teórica" destes textos, relacio-
ram destino mais estranho: tanto a própria destinatária, como Plekhanov nados com o testemunho posterior de Kautsky: "A exatidão mais ou me-
a silenciaram e Riazánov, ao publicá-los muitos anos depois, considerou nos absoluta da concepção materialista da história não depende das car-
que não tinham importância alguma, que eram como um erro de Marx. O tas e dos artigos de Marx e Engels; somente pode ser provada pelo estudo
próprio Engels não parece haver percebido o significado da evolução de _ da própria história (...). esta era também a opinião de Marx e Engels; o sei
Manç, pois, quando em 1894 aconselhou algumas leituras sobre os méto- por conversas privadas com este último e tenho prova disso no fato de
dos do materialismo histórico a Starkenburg, limitou-se a recomendar o
que ele havia escrito em o Anti-Dühring ou em Ludwig Feuerbach e a citar,
24 As citações correspondem, respectivamente, a uma carta a Paul Ernst, de 5 de ju-
como exemplo supremo e mostra mais acabada do método, O 18 Brumá- nho de 1890 (MEW, 37, p. 411-413), outra a Conrad Schmidt, de 5 de agosto do
rio, como se a? idéias de Marx sobre estas questões não houvessem evoluí- mesmo ano (MEW, 37, p.'435-438) e, finalmente, a uma carta de 25 de janeiro de
do minimamente desde os textos publicados em meados do século. 1894 a W. Borgius - ou a Starkenburg, pseudônimo de Borgius - (MEW, 39, p. 205-
207).
uma semana antes de iniciar o congresso do partido, a carta que escreve-
que, embora pareça estranho a muitos, eles falavam pouco e raramente de ra a Ernst em junho.27
sua teoria, dedicando a maior parte do tempo em aplicar a teoria ao estu- Ainda mais revelador da ambígua posição que Engels mantinha
do dos fatos".25 O que ocorre é que a interpretação correta das cartas deve ngsses momentos é o extenso prefácio que escreveu, entre 14 de fevereiro
ser feita também em perspectiva política e com referência ao que aconte- e 6 de março de 1895, poucos meses antes de morrer, para uma nova edi-
cia no Partido Social-democrata alemão nos primeiros anos noventa, ção de As lutas de classes na França, de Marx. Engels redigira o texto em
quando o partido expandia-se, em que parecia existir a possibilidade de Londres, submetido à pressão de amigos do Partido Social-democrata que
um triunfo pela via parlamentar. É nécessário lembrar que Marx e Engels temiam que uma formulação demasiado "^evolucionária'' pudesse tornar-
não eram dirigentes do partido. As complexas relações que mantinham se uma provocação inoportuna no momento em que, em Berlim, se discu-
com ele se revelam nas críticas que Marx fez ao programa de Gotha de
tia a possibilidade de decretação de nbvas leis coercitivas contra os socia-
1875, as quais não puderam ser publicadas até 1891 e ainda, assim, com
listas. Mas, o pior foi que Liebknecht se aproveitou e publiçou fragmentos
cortes. Depois da morte de Marx, no entanto, Engels parece ter-se adap-
deste prefácio, escolhidos por ele mesmo, no Vorwärts, com o título de
tado melhor à evolução do partido, embora não sem problemas de cons-
"Como se fazem as revoluções hoje". Engels queixou-se a Kautsky, dizendo
ciência, como demonstram as poucas correções que fez em 1891 ao pro-
grama de Erfurt.26
que aparecera como "um pacífico adorador da legalidade a qualquer pre-
ço", e escreveu a Lafargue: "Liebknecht acaba de fazer-me uma velhacaria.
Neste contexto, as cartas de Engels de 1890 "sobre a teoria da his-
Tomou de minha introdução os artigos de Marx sobre a França de 1848-
tória" aparecem sob uma nova luz, pois foram escritas no momento em
que os congressos de Halle e de Erfurt iriam ocorrer, quando o Partido
1850, tudo o que podia lhe servir para apoiar a tática pacífica e antivioleri-
Social-democrata iniciava a reviravolta em direção ao parlamentarismo, ta que defende há algum tempo. .Mas eu a defendo somente para a Alema-
tendo, em suas fileiras, grupos de jovens esquerdistas que atacavam esta nha de hoje e ainda assim com reservas. Contudo, ria França, Bélgica, Itália,
política baseando-se nos escritos de Marx e de Engels - Mehring disse que Áustria, a tática não deveria ser observada em seu conjunto e, para Alema-
"interpretavam o Manifesto comunista de maneira demasiado unilateral e nha, pode tornarrse inaplicável amanhã". Não é difícil entender que o tex-
formalista" - , o que obrigou Engels a redefinir a doutrina para adaptá-la to produzisse confusão.'Nele, encontramos, para começar, uma tendência
às necessidades políticas do momento. Estes jornalistas de esíquerda eram para explicar os acontecimentos históricos em termos da evolução econô-
os "jovens" que Engels denunciou pelo uso que faziam do "método mate- mica imediata, contrastando com a sutileza Com que se expressava o Marx
rialista" como "um esquema fixo e imóvel". A pessoa a quem foi dirigida velho. Há, além disso, o reconhecimento de "que as esperanças revolucio-
a carta de 5 de junho de 1890 é justamente Paul Ernst, um dos esquerdis- nárias que ele e Marx tinham em 1848 eram errôneas e que, em fins do sé-
tas que, em 16 de setembro, publicou, no Volksstimme de Magdeburg, um culo* a forma em que então pensavam que a revolução podia realizar-se, já
artigo" em que desafiava Engels à demonstrar em que diferiam as idéias não era válida, pois a evolução histórica havia "mudado totalmente as con-
dos esquerdistas das que Marx e ele mesmo sempre haviam defendido.
Foi então que "Engels publicou, no Berliner Volksblatt de 5 de outubro,
27 Sobre o debate com Os "jovens", MEHRING, Franz. Storia delia socialdemocrazia te-
desça. Roma: Riuniti, 1974. III, p. 1374-1380, e MAYER, Gustav. Friedrich Engels.
25 KAUTSKY, C. La doctritia socialista. Buenos Aires: Claridad, 1966. p. 21. Una biogfáfid. México: Fpndo de Cultura Económica, 1979. p. 837 et seq.; o texto
26 Utilizei, neste caso, a excelente tradução de Jordi Monés e Neus Faura, Karl Marx e da "Contestação" de Engels em MEW, 22, p. 80-85. Uma revisão recente do papel
Freidrich Engels. Crítica deis programes de Gotha i-Erfurt. Barcelona: Ed. 62,1971. v de Engels em LABICA, George; BUEY, Francisco Fernández et al. Engels y el mar-
xismo. Madrid: Fundação de Investigações Marxistas, 1998.
deles que se deduz a política socialista nas diversas esferas de atividade e,
dições em que o proletariado deve combater". Na Alemanha, concreta-
não, de leis de desenvolvimento histórico supostamente inevitáveis".29
mente, a utilização, por parte do Partido Socialista, das possibilidades da-
O mais grave, do ponto de vista da evolução do materialismo hisr
das pelo sufrágio universal colocara, nas mãos da classe operária, um ins-
tórico, foi a participação de Engels na codificação do "marxismo", um cor-
trumento para combater de dentro as próprias instituições do estado.28
pus de pensamento que não existia por ocasião da morte de Marx. Nos úl-
O resultado do apoio que Engels deu à política da social-democra-
timos anos de vida, Engels escreveu abundantemente e se converteu num
çia foi que, com sua morte, um homem que tinha toda sua confiança,
divulgador do pensamento de. Marx, o que fazia com muita clareza, dan-
como era Eduard Bernstein (1850-1932), defendeu abertamente, numa sé-
do.-lhe um tom de "ciência". Suas obras de síntese, e em especial Socialismo
rie de artigos que reuniu em 1899 no livro As premissas do socialismo e as
tarefas da social democracia, a conveniência de revisar a doutrina política
utópico e socialismo científico, foram a referência essencial para o marxis-
dos socialistas, defendendo um socialismo evolucionista que conquistaria mo ortodoxo, que Engels legitimava "como uma ciência objetiva e sistemá-
o estado pela via parlamentar "para utilizá-lo como alavanca da reforma tica", de maneira que Jacoby pôde chegar a dizer "que os textos básicos de
social até que chegue a um caráter completamente socialista". Isto obriga- Lenin, Stalin e Mao se baseiam quase exclusivamente em Engels".30
va a revisar ou abandonar determinados postulados do marxismo, in-
cluindo a interpretação materialista da história. O escândalo que o livro de' 29 MEHRING, Franz. Storia delia socialdemocrazia tedesca. Roma: Riuniti, 1974, passim;
Bernstein produziu, dando lugar a uma réplica de Karl Kautsky, era injus- GUSTAFSON, Bo. Marxismo y revisionismo. Barcelona: Grijalbo, 1975; BERNSTEIN,
Eduard. Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgabe der Sozialdemokratie.
tificado, pois a única coisa que fez foi formular a necessidade de adequar a
Berlim: Dietz, 1973 (existe uma tradução espanhola no México, Século XXI, 1982);
doutrina à práxis política reformista do partido alemão. Neste sentido, STEENSON, Gary P. Karl Kautsky, 1854-1938. Marxism in the classical years. Pitts*
Bernstein tinha razão, não fazendo nada mais do que anunciar o caminho burgh: University of Pittsburgh Press, 1991. Sobre a prática política dos partidos da
que acabaram seguindo todos os partidos social-democratas, deixando fi- Segunda Internacional, em termos gerais, BRAUNTHAL, Julius. Geschichte der Inter-
nationale. Berlim: Dietz, 1978. As novas visões do capitalismo que correspondem a.
nalmente de lado cr marxismo e optando por terceiras vias reformistas. este estágio em HILFERDING, Rudolf. El capital financiero. Madrid: Tecnos, 1963,
Mas, em princípios do século XX, aos partidos da Segunda Internacional que introduz o tema do imperialismo, que Rosa Luxemburgo usará para explicar em
convinha conservar formalmente os aspectos revolucionários dos progra- La acumulación de capital porque o capitalismo havia conseguido evitar até aquele
momento a ameaça da crise. Uso o manifesto anti-revisionista de Kautsky na velha
mas a fim de não decepcionar a militância que, em caso contrário, podia
versão de Pablo Iglesias e J. A. Meliá, Carlos Kautsky, La doctrina socialista. Nicola
escapar das suas mãos. A simbiose de uma jetórica revolucionária e uma D'Elia - "II 'modelo inglese' nella battaglia revisionistica di Bernstein (1890-1895)",
prática reformista seria usada pelo Partido Social-democrata alemão em em Passato epresente, XVII (1999) n. 48, p. 29-54, sustenta que o propósito de Berns-
1918 para isolar e combater os espartaquistas, convertendo-se, posterior- tein era adaptar-se ao modelo britânico que havia permitido a aliança do movimen-
to operário e o liberalismo na luta contra a reação. Que não era, portanto, uma alter-
mente, numa estratégia para concorrer com o Partido Comunista até os nativa teórica ao marxismo, senão uma adaptação às necessidades de um partido que
anos da guerra fria, quando o programa de Bad Godesberg, de 1954, omi- agora mobilizava massas e tinha um peso parlamentar considerável.
tirá qualquer referência à evolução social para falar somente dos "valores 30 JACOBY, Russell. Dialectic ofdefeat. Contours of western marxism. Cambridge: Cam-
fundamentais do socialismo" que são liberdade e justiça, dizendo que "é bridge University Press, 1981. p. 52-53; sobre a questão, é interessante o livro de
Montserrát Galeeran HUGUET. La invención dei marxismo (Estúdio sobre la forma-
cíón dei marxismo en la socialdemocracia alemana definalesdei s. XIX). Madrid: Iepa-
28 A introdução de 1895 em MEW, 22, p. 509-527; carta de protesto a Kautsky, MEW, la, 1997. Para compreender a importância que teve como "manual" Socialismo utópi-
39, p. 452. A carta a Lafargue em ENGELS, Friedrich; LAFARGUE, Paul; LAFAR- co y socialismo científico, veja-se que o próprio Engels reconheceu, no prefácio à edi-
GUE, Laura. Correspondance. Paris: Editions Sociales, 1956-1959.111, p. 404. ção inglesa de 1892, que "nenhuma outra obra socialista, nem nosso "Manifesto co-
munista" de 1848, nem "O capital" de Marx, foi traduzida tão freqüentemente".
Assim, contribuiu para transformar o que havia sido concebido Capítulo 8
como um método de análise da realidade numa "doutrina científica" que
Lafargue, Kautsky e Plekhanov acabaram de codificar. Esta ciência, que
permitia anunciar aos militantes que tinha "as leis da história" a seu favor
ç que, por conseguinte, o triunfo da causa era inevitável, seria explicada
aos membros do movimento operário em compêndios de fácil assimila-
ção, como os de Labriola (1843-1904) ou Plekhanov (1856-1918), que, ao HISTORICISMO E NACIONALISMO
mesmo tempo que difundiam o conhecimento de alguns conceitos bási-
cos, prosseguiam o processo que haveria de fossilizar a ferramenta de aná-
lise e de crítica, convertendo-a em um cânone de verdades estabelecidas
que proporcionava todas as respostas. Isto permitia, por outro lado, elabo-
rar corpus especializados de doutrina, de maneira que tanto Labriola
como PlekhanoVfizeramo que Marx e Engels haviam-se negado sempre a Se a França da Restauração utilizou a história para assimilar a he-
fazer: oferecer uma visão especializada da concepção materialista da histó- rança da Revolução e colocar as bases da nova sociedade burguesa, na Ale-
ria, reduzida ã um conjunto de afirmações esquemáticas que dificilmente manha a situação seria muito diferente. As conseqüências que esse ponto
podiam servir de guia para a pesquisa.31 de partida teria na evolução da história seriam transcendentais a partir do
O esquematismo das codificações explica a ausência de pesquisa momento em que a "história científica", elaborada nas universidades ale-
histórica marxista nestes anos. Algo que Hilferding quis justificar, erronea- mãs por pesquisadores que eram funcionários do estado, converteu-se
mente, pela desconexão do marxista em relação áo mundo acadêmico: num modelo imitado no mundo inteiro.
"excluído das universidades, que proporcionam o tempo necessário para
A Alemanha do início do século XIX tinha dois problemas funda-
as pesquisas científicas, vê-se obrigado a realizar o trabalho científico so-
mentais quer influenciaram decisivamente na orientação assumida por
mente nós poucos momentos de descanso que lhe deixam as horas de luta
seus historiadores: o desejo de realizar a unificação política a partir do mo-
política".32 E, com o triunfo da revolução bolchevique de 1917, como vere-
saico das diversas unidades que a compunham (um caos de estados, cida-
mos mais adiante, as coisas não fariam senão piorar.
des livres e feudos que o congresso de Viena reduzira a 39) e o de empreen-
der o caminho da modernização sem correr riscos revolucionários.
Os intelectuais alemães trabalhavam, desde fins do século XVIII,
pára estabelecer as bases de uma cultura nacional calcada na unidade da
língua. Recuperaram todo o tesouro de mitos e poesias transmitidos pela
cultura popular até então menosprezada, como o fez Jacob Grimm, "estu-
31 LABRIOLA, Antonio. La concepción materialista de la. historia. Barcelona: Editorial dioso do folclore germânico e das leis antigas; as duas coisas, para ele, par-
71/2,1979; PLEKHANOV, G. Essai sur le développement de la conception moniste de
tem de um mesmo trabalho".1 No terreno artístico, a recuperação seria fei-
l'histoire. Moscou: Editions en langues étrangères, 1956; El materialismo histórico.
Madrid: Akal, 1975, etc. Sobre o autor: BARON, Samuel H. Plekhanov. El padre dei
marxismo ruso. Madrid: Século XXI, 1976.
1 BURROW, J. W. The crisis of reason. European thought, 1848-1914. New Haven: Yale
32 HILFERDING, Rudolf. El capitalfinanciem.Madrid: Tecnos, 1963. p. 10-11. University Press, 2000. p. 114.
ta através da paisagem, às vezes carregada de um discurso nacionalista
mais ou menos explícito, como no caso de Caspar David Friedrich. No Os dirigentes da sociedade perceberam, desde o início, a necessida-
de de fechar as portas às idéias subversivas e de ajudar a criar um consén-
campo da história, a avaliação de um passado clássico comum seria enri-
so social baseado na luta nacionalista. A ação iniciou-se com a reforma
quecida com a recuperação das crônicas medievais, que acrescentaram uni
educacional de Huínboldt e continuou nas universidades prussianas - em
elemento "nacional", havendo também, e isso foi muito importante para a
especial a de Berlim, fundada em 1810 - que ofereciam aos intelectuais
consolidação da "história científica", o desenvolvimento de métodos de
bem-estar econômico e promoção social, recebendo deles, em troca, as ar-
crítica erudita que tinham origem, principalmente, no campò da filologia.
mas ideológicas para fazer frente à subversão sob a forma de uma cultura
A dimensão política do projeto é fundamental para entender sua nacional que se apresentava dissociada do terreno da política e renuncia-
evolução. A ameaça revolucionária ensinou aos políticos prussianos que era va às funções de crítica social assumidas pelos intelectuais da Ilustração,
melhor antecipar-se, e ceder alguma coisa de antemão - fazer uma limita- encarregando-se de preparar a população para reverenciar o estado ao
da "revolução pelo alto" - do que arriscar perder tudo. A derrota para Na- "qual proporcionavam legitimação.3
poleão conduziu ao início efetivo das reformas que levaram à abolição for- O que se denomina "historicismo" é difícil de definir. "Para uns -
mal do feudalismo por obra de homens como Stein ou Hardenberg, con- diz Thomas Nipperdey - o historicismo é método, ou mais exatamente
vencidós da necessidade de "introduzir os princípios democráticos no esta- metodologia, teoria da ciência; para outros, é uma visão de mundo funda-
do monárquico". Reformas muito limitadas no entanto, pois mesmo que da metafisicamente, com implicações políticas."4 Uma característica que o
permitissem a livre utilização da terra e abolissem a servidão, mantinham a define é a rejeição do universalismo da Ilustração, substituído por uma vi-
prestação de serviços e as obrigações por parte dos camponeses, caso qui- são em que cada nação é considerada como uma totalidade orgânica que
sessem conservar terras que eram consideradas como propriedade dos se-K tem leis próprias de evolução.5 A escola histórica de direito, com homens
nhores. Isto explica porque eles se rebelaram ao descobrir que a liberação
os submetia a um regime mais duro que o anterior. A situação haveria de 3 STERN, -Fritz. The failure of illiberalism. Essays on the politicai culture of modem
piorar ainda mais quando se permitiu aos grandes proprietários apropria- Germany. New York: Knopf, 1972. p. 5-14.
rem-se de uma parte cada vez maior da terra, manter a própria polícia ru- 4/ De fato, conclui, as interpretações são tão diversas que "se tem a impressão de que
determinadas correntes da ciência da história chamam historicismo ao que não lhes
ral e controlar os órgãos de governo local. Este seria o paradoxo de uma
agrada de sua tradição e que historicismo se converteu, assim, num conceito inimi-
modernização política que tornaria possível o desenvolvimento industrial, go, delimitado e polêmico que não tem quasevsignificado analítico", NIPPERDEY,
ao mesmo tempo que conservava os privilégios sociais da nobreza.2 Thomas. Sociedad, cultura, teoria. Buenos Aires: Alfa, 1978. p. 80-81. Uma versão le-
gitimadora é, por exemplo, a de Meinecke, que o interpreta com uma continuação
da Ilustração, que não teria feito outra coisa senão substituir a generalização por um
processo de observação individualizadora (MEINECKE, Friedrich. El historicismo y
2 HAMEROW, T. S. Restoration, revolution, reaction. Economic and politics in Ger- su génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1983. p. 12 (a edição original ale-
many, 1815-1871. Princeton: Princeton University Press, 1972; BLUM, Jerome. The 1 mã é de 1936). Uma interessante revisão do historicismo encontrar-se-a em CAR-
end of old order in niral Europe. Princeton: Princeton University Press, 1978; GERS- RERAS, Juan José. Razán de historia. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 39-58.
CHENKRON, Alexander. Bread and democracy in Germany. Berkeley: University of
5 Esta evolução pode ser observada, por exemplo, nas idéias sobre a história de Wi-
California Press, 1943; BERDAHL, Robert M. The politics of the Prussian nobility.
lhelm von Humboldt, que passaria de formulações "ilustradas" que buscavam as leis
The development of a conservative ideology, 1770-1848. Princeton: Princeton Uni-
dó progresso a outras, posteriores, que defendiam que era necessário avaliar cada
versity Press, 1988; SCHULZE, Hagen. The course of German nationalism. From
época em sua individualidade. PÉREZ, Jorge Navarro. La filosofia de la historia de Wi-
Frederick the Great to Bismarck, 1763-1867. Cambridge: Cambridge University
lhelm von Humboldt. Valência: Institució Alfons el Magnànim, 1996 e HUMBOLDT,
Press, 1991; BLACKBOURN, David. The long nineteenth centtiry (The Fontana his- Wilhelm von. Escritos defilosofiade la historia. Ed. J. Navarro. Madrid: Tecnos, 1997.
tory of germatty). London: Harper Collins, 1997. etc.
como K. von Savigny, Gustav F. Hugo e Karl F. von Eichhorn, combatia as
\exemplo de trabalho erudito pelo modo com que fazia a crítica das fontes,
formulações do jusnaturalismo que pressupunham a existência de princí- *com um "ceticismo construtivo". Politicamente, Niebuhr era uma espécie
pios legais comuns para todo o mundo e defendia a peculiaridade indh#l rara de conservador-liberal que queria a liberação dos servos, mas que,
dual e histórica das leis de cada povo. A história, por seu lado, não deveria; ^-aterrorizado pelas reivindicações agrárias da revolução e pela ascensão das
ocupar-se de estágios de desenvolvimento social, nem de "séculos" da cul- camadas populares em geral, pensava que a história podia dar lições para
tura humana, mas das nações Consideradas organicamente e os fatos estu- prevenir possíveis catástrofes sociais.7
dados pelo historiador deveriam ser analisados individualmente, no con- O homem comumente considerado fundador do historicismo e que,
texto nacional, sem buscar leis ou regularidades gerais que os explicassem. de fato, seria o divulgador dós novos métodos "científicos" da história, é
O interesse político do projeto explica porque Stein um dos dirigentes do Leopold von Ranke (1795-1886). Procedente de uma família de pastores lu-
reformismo prussiano, fosse, após retirar-se da política, o fundador da so- teranos, publicou Histórias dos povos românicos e germânicos de 1494 a
ciedade encarregada de publicar as fontes da história alemã nos Monuc 1514, em 1824, quando ainda não tinha trinta anos. Com a obra, alcançou
menta Germaniae histórica, qualificados como "o principal produto dot uma reputação que lhe abriria as portas da universidade de Berlim, onde
novo espíritó do nacionalismo".6 auxiliaria a combater as idéias hegelianas. Esse seu primeiro livro continha,
As preocupações políticas conservadoras são bem visíveis no pensa- no apêndice, uma "crítica ãos historiadores modernos", dirigida contra a fi-
mento do introdutor dos métodos críticos da filologia na historiografia losofia histórica da Ilustração, que já mostrava as grandes linhas da cruza-
alemã: o "Tácito prussiano", Barthold Georg Niebuhr (1776-1831). Nie- da metodológica que deveria manter ao longo da vida. No entanto, uma
buhr, filho de um grande explorador dinamarquês, seria sucessivamente frase do prefácio desse mesmo livro iria criar um equívoco que ainda per-
banqueiro e diplomata a serviço da Prússia, antes de tornar-se professor siste. O jovem historiador, fazendo um exercício de modéstia, dizia que,
universitário e nos deixar um modelo do novo método nos dois volumes ainda que a história tenha "a missão de julgar o passado e de instruir o pre-
da História de Roma (1811-1812), que escrevera "com o sentimento de um sente em beneficio do futuro", o livro não tinha esta pretensão, contentan-
do-se em "mostrar as coisas tal e como se passaram". Afrase- Er will bloss
contemporâneo" segundo ele mesmo disse a Goethe, e que se tornaria um
zeigen wie es eigentlich gewesen" - foi tirada do contexto injustificadamen-
te e interpretada como uma declaração metodológica, sendo, desde então,
6 SEELEY, J. R. Life and times ofStein. New York: Haskell, 1969.3 v. (reprint); RITTER, repetida com entusiasmo pelos exércitos de historiadores acadêmicos que
Gerhard. Freiherr von Stein. Eine politische Biographie. Frankfurt: Fischer, 1983;
acreditaram que ela legitimava a incapacidade, moral ou intelectual, deles
FEHRENBACH, Elisabeth. Sociedad tradicional y derecho moderno. Buenos Aires:
Alfa, 1980; GOOCH, G. P. History and historians in the nineteenth century. Boston: pensarem por conta própria. O ertgano chegou ao extremo de apresentar
Beacon Press, 1968. p. 60-71 (citação da p. 67); GRELLE, Francesco. L'archeologia como um dos grandes méritos de Ranke, como diz Gooch, o ter "separado
dello stato in Savigny e Mommsen. In: GERLONI, B. de (Ed.). Problemi e metodi del-
la storiografia tedesca contemporânea. Torino: Einaudi, 1996. p. 133-142. No terreno
da economia, a influência do historicismo seria mais tardia mas muito duradoura, 7 WHITE, Barthold C. Barthold Georg Niebuhr. Una vida entre la política y la ciência.
estando marcada pela vontade de abandonar os métodos dedutivos da escola clássi- Barcelona: Alfa, 1987; GOOCH, G. P. History and historiam in the nineteenth cen-
ca para fundamentar o conhecimento econômico no estudo comparativo de casos tury. Boston: Beacon Press, 1968. p. 1423; PFEIFFER, Rudolf. History of classical
históricos isolados;, como proporiam inicialmente Roscher, Hildebrand e Knies, scholarship, 1300-1850. Oxford: Clarendon Press, 1976; MOMIGLIANO, Arnaldo.
acompanhados pelos membros da "nova escola histórica", especialmente Schmoller. Niebuhr and the agrarian problems1 of Rome. In: History and theory, beiheft 21
Sobre isto, veja-se SCHUMPETER, Joseph A. History of economic analysis. London: (1982), p. 3-15. Niebuhr participaria ativamente nos grandes empreendimentos de
Allen and Unwim, 1963. p. 807-819 e PRIBRAM, Joseph Karl. A history of economic , erudição histórica de seu tempo, como o "Corpus inscriptionum graecarum" ou o
reasoning. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1983. p. 209-224. "Corpus scriptorum historiae byzantinae".
o estudo do passado, tanto quanto possível, das paixões do presente para es-
nário ideológico do estado prussiano, útil, serviçal e consciente do papel
crever as coisas tal e como foram". Deixando de lado que o próprio Ranke
que lhe correspondia desempenhar.
repetiu uma ou outra vez que a missão da história "não consiste tanto em
Sua visão da história tinha um fundamento teológico, onde Deus
reunir e buscar fatos como em entendê-los e explicá-los", sua biografia e sua
era o primeiro motor que articula as peças de uma sociedade dispersa em
obra - muito mais invocada que lida, salvo alguns breves textos programá-
indivíduos e de um universo fragmentado em povos, assumindo a função
ticos - desmentem o mito do "wie es eigenüich gewesén".8 que o progresso exercera para os ilustrados. Nos momentos decisivos da
Ranke não foi precisamente um homem que permaneceria à mar- história - diria - aparece o que costumamos chamar "o destino" e que é,
gem da política. Depois da revolução de 1830, o governo prussiano publi- na realidade, "o dedo de Deus". Como escreveu, em 1873, ao filho Otto:
cou uma revista para combater as idéias revolucionárias, a Revista históri- "Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demons-
ca-política, que foi dirigida por Ranke e, na qual Savigny colaborou ativa- trar, mas que sempre se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim Como
mente. Tornou-se nobre em 1865 e, neste mesmo ano, começou a publica- na sucessão dos tempos, os indivíduos importantes ocupam seu lugar: as-
ção de sua obra completa em 54 volumes. Amigo de Frederico Guilherme sim é como os há de conceber o historiador". A atividade dos homens ca-
da Prússia e de Maximiliano de Baviera, viveu o suficiente para contem- naliza-se através das nações, que são o componente fundamental da socie-
plar a universalização de sua fama e ver os discípulos ocuparem a maior dade: cada uma delas é diferente e peculiar de maneira que as generaliza-
parte das cátedras de história das universidades alemãs. Merecera-o, gra- ções não servem: "cada país tem a própria política".10
ças à uma vida dedicada a combater a revolução, a prevenir a sociedade Seus livros falam sempre dos estados e das relações que se estabele-
contra os males que a Ilustração desencadeara e a sustentar que a finalida- cem entre eles por meio da diplomacia e da guerra. Quando estuda a mo-
de suprema da história era "a de abrir o caminho para uma política sadia narquia espanhola dos séculos XVI e XVII, por exemplo, começa com os re-
e acertada, dissipando as sombras e os enganos que, nos tempos em que tratos pessoais dos reis, dedica-se à corte e aos ministros, à organização do
vivemos, obscurecem e fascinam as mentes dos melhores homens".9 Nada governo e à administração, à fazenda e "à situação pública", interpretada de
maneira convencional com afirmações como a de que a pobreza de Caste-
que se assemelhe a "explicar as coisas tal e como aconteceram" e, muito
la foi causada pelo catolicismo, pela "concepção hierárquica do mundo" e
menos ainda, ao "diyórcio das paixões do presente". Ranke foi um funcio-
pelo gosto dos espanhóis por "passar a vida alegremente e sem esforço". De-
pois desta análise do estado, Ranke passa a toa segunda parte, dedicada à
8 GQOCH, G. P. History and historians in the nineteenth century. Boston: Beacon ação da monarquia espanhola no mundo que, como era de se preVer, se li-
Press, 1968. p. 7297 (citação das p. 96-97). Este capítulo foi publicado, também, em mita a falar das guerras que a mesmá travou contra outros estados."
língua castelhana, em RANKE, Leopold von. Pueblos y estados en la historia moder-
na. México: Fondo de Cultura Económica, 1979 (que é, na realidade, uma antolo- De fato, Ranke não entende as nações a não ser no seio dos estados:
gia de diversas obras de Ranke). Ö tema do "wie es eigentlich gewesen", como ex- era contrário, diz Wolfgang J. Mommsen, às idéias contemporâneas de na-
pressão de modéstia do jovem Ranke e não como norma para os historiadores, apa-
rece ainda num intercâmbio de cartas entre Fritz Stern e E. H. Gombrich em New
York Review of books, p. 49,24 Feb. 2000. 10 IGGERS, Georg G. The German Conception of history. Middletown: Wesleyan Uni-
versity Press, 1968. p. 65-74. A carta de Ranke em Pueblos y estados, p. 525.
9 RANKE, Leopold von. Pueblos y estados en la historia moderna. México: Fondo de
Cultura Económica, 1979. p. 516-517. Neste texto, que corresponde a sua aula de 11 RANKE, Leopold von. La monarquia espanola de los siglas XVIy XVII. México: Le-
posse da cátedra de Berlim, em 1836, referindo-se ao golpe de La Granja que aca- yenda, 1946 (citação da p. 208). KRIEGER, Leonard. Ranke. The meaning of histõry.
bara de realizar-se na Espanha, o qualifica de "imenso infortúnio". Condenava por Chicago: Chicago University Press, 1977. p. 107-115, nos diz que há uma grande
distância entre os formulações teóricas de Ranke e as obras que escreveu.
princípio um atentado à ordem estabelecida, já que é difícil que tivesse idéia do que
realmente havia acontecido.
ção, seja as que se baseavam em critérios étnicos e culturais, seja na vonta-
de dos cidadãos. Pensava que o acontecimento mais importante de seu to Droysen, Heinrich von Sybel ou Mommsen estiveram do lado do libe-
tempo tinha sido "a renovação e o novo desenvolvimento das nacionalida- ralismo, inclusive depois da amarga detepção pelo fracasso de 1848, ou-
des" e a integração das mesmas no marco dos estados, que se apoiavam tros, como Treitschke, não fariam mais do que prosseguir a obra de sacra-
agora na consciência de identidade nacional dos súditos, exigindo-se que lização do estado, identificado como "o povo unido pela lei e considerado
fossem educados com um tipo de história que não falasse de progresso, de como uma potência independente" que tem o direito de "fazer prevalecer
modos» de subsistência ou de luta de classes, mas somente de povos, no pelas armas sua vontade contra a vontade estrangeira". Afinalidadedas ná-
sentido de coletividades humanas interclassistas, fundamentadas no senti- ções-estado era a guerra: "A guerra não é só uma necessidade prática: é
mento da nacionalidade compartilhada.12 ^ tafnbém uma necessidade teórica, uma exigência da lógica. O conceito de
Ranke falou sempre com reverência do poder e com respeito dos di- estado implica o conceito de guerra, já que a essência do estado é a potên-
rigentes, atribuindo os motivos mais elevados a seus atos. O historiador cia. O estado é o povo organizado em potência soberana".
preparava, assim, o caminho em direção à submissão absoluta dos cida- 'johan Gustav Droysen (1808-1884), que tinha estudado em Berlim
dãos ao poder, sem discussões nem crítica, já que o estado encarna a na- com Hegel e com o filólogo August Boeck, publicou, em 1833, História de
ção e esta não faz senão observar as pautas fixadas pelo dedo de Deus. Alexandre Magno, a primeira parte dò que deveria ser uma História do he-
Como dirá A. J. P. Taylor, estes homens "viam o estado, fosse quem fosse o lenismo. Envolvido politicamente no liberalismo moderado - foi membro
governante, como parte da ordem divina das coisas, acreditando ter o de- do Parlamento de Frankfurt em 1848 - , orientou-se, posteriormente, em
ver de submeter-se a esta ordem", de forma que acabaram justificando to- dirèção à história da política contemporânea e escreveu uma História da
dos seus atos: "Ranke explicou a revogação do Édito de Nantes; seus suces- política prussiana, publicada postumamente, em 1886. A fama acadêmica
sores explicaram as câmaras de gás".13 de Droysen baseia-se, no entanto, em História. Sobre enciclopédia e meto-
dologia da história, onde retiniu seus cursos de metodologia da história.
Os discípulos de Ranke envólveram-se na política de maneira ainda
Droysen colocava-se contra o positivismo que pretendia buscar causas
mais explícita que ele, comprometendo-se num e noutro campo. Enquan-
"científicas" dos fatos e leis "naturais" da história, antecipando, até certo
ponto, as posturas de Dilthey.14
12 MOMMSEN, Wolfgang J. Le trasformazioni dell'idea di nazione nella scienza storica Também era discípulo de Ranke o suíço de língua alemã Jacob Burc-
tedesca dei XIX e XX secòlo. In: GERLONI, B. de (Ed.). Probkmi e metodi delia storio-
khardt (1818-1897), que começaria estudando teologia e se mudaria para
grafia tedesca. Torino: Einaudi, 1996. p. 5-28. RANKE, Leopold von. Puebbs y estados
en la historia moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979. p. 95,89-93 e 520. à Itália em 1846 para investigar sua cultura e fugir da revolução (o que
13 Meinecke, Historism, p. 500, e TAYLOR, A. J. P. "Ranke", en Europe: grandeur and
mais temia era "a passagem da história às mãos das massas"). Burckhardt
decline. Harfnondsworth: Penguin, 1969. p. 119. Enquanto os historiadores recusa- escreveu um tipo de história diferente, onde o grande protagonista já não
ram enfrentar-se com o problema de sua cumplicidade com o nazismo - falaremos era o estado, mas este compartilhava o papel central com a religião e, prin-
desta questão mais adiante - , existem alguns estudos interessantes acerca da forma cipalmente, com a cultura; uma cultura definida como "o conjunto dos de-
como o saber acadêmico se acomodou, como DOW, James R; LIXFELD, Hannjost
(Ed.). The nazification of an academic discipline. Folklore in the Third Reich. Bloo-
mington: Indiana University Press, 1994. Sobre a arqueologia alemã, SCHNAPP, - 14 SOUTHARD, Robert. Droysen and the Prussian school of history. Lexington: The
Alain. Archeologie, archeòlogues et nazisme. In: ÖLENDER, M. (Ed.). Le racismè. University Press of Kentucky, 1995; MACLEAN, Michael J. Johan Gústav Droysen
Mythes et sciences. Bruxelas: Complexe, 1981. p. 289-315. Um historiador acadêmi- 1 and the development of historical hermeneutics. History and theory, XXI, n. 3, p.
co de prestígio como Gunther Franz introduziu formulações volkisch de clara filia- 347-365,1982. Utilizo Histórica na tradução publicada em Barcelona: Edkions 62,
ção nazista ao final de seu estudo sobre as revoltas camponesas do século XVI (Def 1986, com um prefácio de Emílio Lledó.
deutsche Bauernkrieg. Munich: Oldenbourg, 1933), as quais desapareceram das edi-
ções posteriores a 1945, sem que o resto do livro mudasse substancialmente.
senvolvimentos espirituais que se produzem espontaneamente e que não Treitschke (1834-1896), que Gooch apresenta como "o mais jovem, í>
reivindicam uma validade coercitiva universal", sendo um elemento de crí- maior e o último dos membros da escola prussiana". Partidário de uma po-
tica do estado e da religião. Sua obra fundamental, A civilização do renas- lítica de conquistas por parte da Prússia e considerado mais um publicista
cimento na Itália (1860), iniciava uma formulação inovadora da história político do que um pesquisador - o próprio Ranke não se mostrou favo-
da cultura, que, apesar de ter como pano de fundo uma visão pessimista rável a que fosse nomeado professor em Berlim - dedicou-se a escrever a
do futuro, ia mais além da mera descrição dos produtos artísticos ou da ambiciosa História da Alemanha.no século XIX, cujos cinco volumes, pu-
consideração do rétorno à antiguidade, articulando uma nova visão global blicados entre 1879 e 1894, não lhe permitiram chegar mais do que até
que incluía aspectos tão diversos como o desenvolvimento da individuali- 1847. A obra era uma justificativa dos atos políticos da Prússia e uma glo-
dade pessoal, o descobrimento da beleza da paisagem ou "o espírito geral rificação da grandeza de uma Alemanha destinada a se tornar uma potên-
de dúvida".15 k - cia dominante, numa linha de pensamento que se manifestaria de acordo
Theodor Mommsen (1817-1903) foi o mais famoso dos membros com suas conferências universitárias, nas quais lançava "ataques desmedi-
da "escola prussiana". Tinha um conhecimento excepcional de todas as téc- dos contra a França e a Inglaterra, contra os socialistas, os judeus, o paci-
nicas auxiliares da investigação histórica - em especial da epigrafia, o que fismo e o governo parlamentar".17
o levaria a dirigir o monumental Corpus inscriptionum latinarum - , da fi- Paradoxalmente, estes homens, que se negavam a aceitar a existên-
lologia, da história do direito e uma capacidade excepcional de escritor, o cia de leis históricas gerais acima das realidades nacionais, seriam os cria-
que explica que sua principal obra, História romana - livro escrito com a dores de métodos de pesquisa que se difundiriam universalmente até se-
agilidade e a paixão de um relato de fatos contemporâneos - , lhe valeria o rem admitidos como norma científica da profissão e que seriam conside-
Prêmio Nobel de Literatura em 1902. Mommsen era um liberal: "um ho-
rados, sem fundamento algum, como equivalentes, no campo da história,
mem de 1848 - disse Nicolet - , profundamente marcado pela dupla crise,
aos métodos de investigação das ciências da natureza.18
política e nacional que estremeceu a Alemanha". Sentia vocação de políti-
O "método científico" difundido pelos seminários universitários ale-
co, mas se dedicou à história porque a atividade política lhe estava negada
mães foi assimilado pelos historiadores de outros países que, também, con-
numa Alemanha controlada pelo alto e pervertida por baixo por um abje-
to conformismo.16
Quem melhor pode ser considerado como discípulo de Ranke, no 17 Gooch, que não parece entender que Droysen e Mommsen dificilmente podem ser as-
que se refere a oferecer um apoio incondicional ao poder, é Henrich von sociados a Treitschke, considerava a Iíistoriade Álemania em el siglo XIX como "uma
das maiores obras históricas do século" (p. 142). Claro que escreveu isto em 1913. Na
introdução do último volume da edição norte-americana -Treitschke's history of Ger-
many in theNiniteenth century. New York: Robert M. McBride, 1915-1919.7 v. - , que
15 Utilizo La civilization del Renacimiento en Italia numa edição inglesa (London;
apareceria em Nova York em 1919, William H. Dawson dizia: "hoje todo o mundo
Phaidon, 1995). As citações são de BURCKHARDT, Jacob. Sullo Studio delia storia-
pode Ver que foi uma calamidade para a Alemanha que o historiador que incentivou
(Lezioni e conferenze, 1868-1873). Torino: Einaudi: 1998. p. 72 e 169. GOSSMAN,
os compatriotas a menosprezar os interesses e direitos de outros países (...) e numa
Lionel. Basel in the age of Burckhardt. A study of unseasonable ideas. Chicago: Uni-
disposição fatal para pôr a Alemanha "antes de qualquer outra coisa no mundo", te-
versity of Chicago Press, 2000; FLAIG, Egon. Concezione della storia antica e os-
nha sido exaltado como uma espécie de herói supremo nacional" (v. VII, p. XI).
sessione politica in Jacob Burckhardt e Theodor Mommsen. In: GERLONI B. de.
Problemi e metodi della storiografia tedesca. Torino: Einaudi, 1996. p. 143-173. 18 BURROW, J. W. The crisis of reason... New Haven: Yale University Press, 2000. p. 135.
Também NOVICK, Peter. Thai noble dream. Cambridge: Cambridge University
16 Sigo a introdução de Claude Nicolet à edição da Histoire romaine de Paris: Robert Laf-
Press, 1998. p. 21-31. Frederick Jackson Turner sustentava que Ranke havia aplicado
font, 1985. Existe uma tradução castelhana, publicada em Madri por Turner ém 1983A
à história "este estudo indutivo dos fenômenos que produziu uma revolução em nos-
(8 volumes). Há uma interessante análise da Historia de Roma no livro, já citado, de
so conhecimento do mundo externo" (p. 28-29).
CARRERAS, Juan José. Razón de historia. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 15-39.
cordavam com os colegas prussianos na preocupação em consolidar o con-
senso social em torno de liberdades que não implicassem a conquista da de- mia, que a senhorita Harriet Martineau - filha de um comerciante arrui-
mocracia, contra o que acreditavam as massas populares quando deram nado, surda, feia e virtuosa - explicaria ao grande público através de nove-
apoio às revoluções liberais. Porque, como dizia Benjamin Constant, o linhas sentimentais e educativas. Uma época em que o radicalismo parecia
grande teórico do liberalismo doutrinário, "nossa constituição atual reco- limitado aos versos dos poetas — de Blake a Shelley- e à literatura popular
nhece formalmente o princípio da soberania do povo, quer dizer a supre- de crítica do capitalismo que não mereceu a atenção que habitualmente se
macia da vontade geral sobre toda vontade particular". Porém, acrescenta- presta à cultura acadêmica, incluindo a de mais baixo nível.21
va imediatamente, era necessário defini-la e limitá-la, porque "quando se O primeiro dos grandes historiadores britânicos desde Gibbon foi
estabelece que a soberania do povo é ilimitada, cria-se e lança-se ao acaso, Thomas Babbington Macaulay (1800-1859) que, mesmo estando mais
na sociedade humana, um grau de poder demasiadamente grande em si próximo dos historiadores escoceses do século XVIII do que dos prussia-
nos do XIX, soube, como estes últimos, ajudar a reforçar o consenso so-
mesmo e que se torna um mal sejam quais forem as mãos em que cáir".19
cial em tempos difíceis. Distinguiu-se como político na época em que se
Os historiadores liberais do século XIX defendiam uma idéia de or-
preparava a reforma eleitoral de 1832, foi membro do Conselho Supremo
ganização do estado que negava, o direito de participação na política ao
da índia e ministro da Guerra num governo whig, até que decidiu renun-
conjunto da população. Carlyle dizia que o sufrágio universal era "uma
ciar à carreira política para dedicar-se plenamente à história, publicando,
forma diabólica de igualar Judas e Jesus Cristo"; Odilon Barrot sustentava
em 1849, os dois primeiros volumes de sua História da Inglaterra, com um
que era "o mais perigoso e despótico áBsurdo que havia jamais saído de êxito extraordinário. Macaulay é um dos maiores representantes da cha-
um cérebro humano". Os pobres não tinham tempo para dedicar-se à po- mada "interpretação whig" da história, que reconstrói o passado para
lítica, nem dispunham dos conhecimentos necessários para fazê-lo. "Só a mostrá-lo como uma ascensão permanente em direção às formas da li-
propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos", berdade constitucional inglesa, explicando as lutas políticas era termos da
dizia Constant, pensando exclusivamente na propriedade da terra.20 Por situação parlamentar na Grã-Bretanha no século XIX, isto é: em termos
trás de argumentos pretensamente racionais, havia outro, inconfesso: o de reformistas whigs lutando contra tories, defensores do status quo. Sua
medo que os cidadãos sem propriedades, sendo maioria, usassem o direi- visão de mundo, impregnada da concepção do progresso da escola esco-
to ao voto, se concedido, para desapropriar os que as tinham. Macaulay di- cesa, inspirou sua História da Inglaterra, d^qual publicou outros dois vo-
ria que o sufrágio universal era "incompatível com a existência da civiliza- lumes em 1855, enquanto o quinto apareceria postumamente, em 1861.
ção", já que "o populacho o empregaria para expropriar qualquer um que Por mais que a intenção fosse ir da revolução de 1688 à reforma eleitoral
tivesse um bom casaco sobre os ombros e um bom teto sobre a cabeça". de 1832, completando o ciclo "da revolução que trouxe a harmonia entre
Na Grã-Bretanha do início do século XIX, uma época sem grandes a coroa e o parlamento à revolução que trouxe a harmonia entre o parla-
historiadores, caberia principalmente à economia exercer a função de ex- mento e a nação", a lentidão com que se documentava e com que corrigia
plicar e inculcar as regras de uma sociedade estável. É uma época em que o texto fez que não chegasse a escrever mais do que a parte corresponden-
Malthus, Ricardo e Stuart Mill codificam as verdades "eternas" da econo-
21 A observação sobre a falta de grandes historiadores é feita por HARRIS, R. W. Ro-
manticism and the Social Order, 1780-1830. London: Blandford Press, 1969. p. 11.
19 CONSTANT, Benjamin. Principes de politique. In: Écrits politiques. Paris: Galli- No que se refere à literatura popular alternativa, basta remetér-se, entre outros, aos
mard, 1997. p. 310-311. trabalhos de E. P. Thompson e de I. Prothero.
20 CONSTANT, Benjamin. Principes de politique. In: Écrits politiques- Paris: Galli-
mard, 1997. p. 367.
te ao período que vai de 1685 a 1702. O ponto de partida mostrava-se
coerente com a intenção de mostrar que o acordo estabelecido entre a das Duas Sicílias, morreu quando ele tinha três anos e o segundo casamen- •'
monarquia e o parlamento, em 1688, havia pèrmitido evitar os riscos do to da mãe;, com quem seria lorde Granville, permitiu-lhe ascender aos
meios aristocráticos britânicos, ter contato com os políticos whigs e uma
radicalismo e construir um sistema político estável, condição do progres-
amizade especial com Gladstone. Estudou na Alemanha, já que a condição
so britânico: "Sob os auspícios de aliança tão estreita entre a liberdade e a
de católico impedia que o aceitassem em Cambridge - no fim da vida, no
ordem, a prosperidade, a riqueza e o bem-estar-cresceram tanto que não
entanto, seria nomeado "Regius professor" desta universidade - , e foi o in-
se tem exemplo de progresso parecido nos anais da espécie humana". Ma-
trodutor dos novos métodos da erudição germânica na Grã-Bretanha. Em-
caulay acabava a primeira parte, escrita sob influência dos fatos de 1848,
bora tenha escrito pouco, paralisado por um esforço de perfeccionismo
com uma apologia à estabilidade social britânica em meio a uma Europa que procedia possivelmente de ter tomado ao pé da letra as exigências do
sacudida pelas revoluções. Este defensor do liberalismo e da industriali- método prussiano, teve um papel decisivo em preparar o que queria que
zação, indiferente em matéria religiosa, era um homem de considerável fosse um monumento da "nova história científica", a Cambridge Modem
cultura e um bom escritor que pôde oferecer à sociedade britânica de History, uma obra coletiva a cujos colaboradores Acton propôs o seguinte
meadps do século XIX o tipo de análise do passado que deveria confirmar programa: "Nosso esquema pede que nada revele o país, a religião ou o
sua confiança no caminho empreendido.22 ' partido a que pertencem os autores. Isto é essencial, não somente porque
Desaparecido o perigo de uma revolução com o fracasso do cartis- a imparcialidade é a característica da história legítima, mas porque o tra-
mo, o combate ideológico parece perder força na Grã-Bretanha. Entre balho será realizado por homens que se reuniram com o único objetivo de
Macaulay e lorde Acton (1834-1902), que já é um representante da "ciên- aumentar o conhecimento exato". A falácia acadêmica da imparcialidade
proclamava-se assim solenemente. O passado estava nos documentos, es-
cia histórica" à maneira da Alemanha, o otimismo whig evaporou-se e
perando que os historiadores recolhessem os fatos, os polissem, dando1
não fica mais que o vazio - a ausência de idéias^ elevada à virtude - que
lhes forma narrativa e os apresentassem ao público. Acton morreu sem
será característico da historiografia acadêmica britânica de princípios do
chegar a ver o primeiro volume da história de Cambridge, que não corres-
século XX.
ponderia às grandes esperanças nela depositadas: "o plano estava viciado
Acton nasceu em Nápoles, de uma família católica e continuou sen- por um enfoque positivista e atomizado do^ temas, sendo as contribuições
do, em toda a vida, um católico liberal; o pai, primeiro ministro do reino de valor muito desigual".23
Quando alguém alheio ao sacerdócio acadêmico dos historiadores
22 Sobre os historiadores "whigs" do século XIX, BURROW, J. W. A liheral descent. profissionais tentou discutir o consenso estabelecido, como o fez Henry
Victorian historians and the English past. Cambridge: Cambridge University Press,
1981. Não é possível ocupar-se aqui de outras figuras do grupo, como Stubbs, Free-
man e Froüde, nem de seus antagonistas, como Carlyle. Sobre estes, PARKER, • 23 A fonte essencial deste parágrafo foi HILL, Roland. Lord Acton. New Haven: Yale Uni-
Christopher. The English historical tradition since 1850. Edinburgh: John Donald, versity Press, 2000 (uma citação literal das p. 396-397). O texto da "Letter to'contri-
1990. A Historia de Inglaterra utilizada, na tradução castelhana, intitula-se de His- butors to the Cambridge Modern History", em Essays in the liberal interpretation of
toria de la revoluciónde Inglaterra (Madrid: Hernando, 1905-1908,4.) e Historia dei history. M. por W. H. McNeill. Chicago: Chicago University Press, 1967. p. 397. De
reinado de Guillermo III, (Madrid: Hernando, 1905-1913,4.). Seus Critical and his- maneira semelhante, expressava-se na "Aula inaugural sobre o estudo da história"
torical essays na edição de A. J. Grieve. London: Dent, 1916,2 v. (em II, p. 197 pode- dada em Cambridge em 1895, ao ser nomeado "Regius professor", na qual dizia que
se ver, por exemplo, a defesa que Macaulay faz da industrialização). De seu estilo, o melhor era que a personalidade do historiador não se manifestasse em nada na
obra (ACTON, Lord. Lectures on modern history. London: Collins, 1960. p. 2627).
talvez demasiadamente enfático, diria Lytton Strachey que era "um dos produtos
mais notáveis da revolução industrial".
Thomas Buckle (1821-1862) na inacabada História da civilização na Ingla- res. O manual de referência dos historiadores norte-americanós era a In-
terra, um livro de filiação positivista que agradou a Darwin e a Stuart Mill, trodução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos25 e a pretensão de al-
todo o estamento, com Acton à frente, lançou-se contra. Quando a tenta- cançar a objetividade e a certeza baseava-se na confiança que lhes davam
tiva foi realizada por um, membro da própria profissão, como James E. os métodos "científicos" utilizados, supostamente similares aos das ciên-
Thorold Rogers (1823-1890), professor de economia na universidade de cias naturais. Assim, conseguiram alcançar boa .reputação profissional,
Oxford, resultou em seu afastamento durante muitos anos do ensino. É numa sociedade para cuja estabilidade contribuíam, prestando apoio a um
que Rogers acreditava haver descoberto "que uma grande parte da econo- consenso conservador, nacionalista e racista.26
mia política que circula usualmente sob o apoio das autoridades da ciên-
Somente uma voz original seria ouvida no panorama norte-ameri-
cia não é mais que um conjunto de logomaquias, sem relação alguma com
cano emfinsdo século: a de um historiador que iniciaria, só e por sua çpn-
os fatos da vida social" e que os trabalhadores faziam bem em desconfiar
ta, o caminho que depois continuariam os "new historians" ou historiado-
dela, já que os economistas costumavàm pertencer às classes afortunadas,
res progressistas. Enfrentando os "objetivistas" acadêmicos, Frederick Jack-
ignorando quase tudo sobre o trabalho e as condições de vida dos operá-
son Turner (1861-1932) escreveu, em 1891, em "O significado da história",
rios. Nada pode ser mais revelador dos condicionamentos sociais assumi-
que está voltava a ser escrita em cada época, de acordo com as próprias
dos pela ciência acadêmica que o fato de que, na Inglaterra, não tenha sido
condições: o objeto real do historiador era o presente e seu trabalho devia
publicado nenhum livro de história sobre a "revolução industrial" até
dirigir-se a um público amplo. Em 1893, Turner publicou ensaio sobre "O
1884, quando já há mais de meio século o conceito era usado por france-
ses e alemães - e inclusive, então, esta denominação era aceita com muitàs significado da fronteira na história norte-americana" em que negava-a teo-
reticências: os historiadores britânicos não queriam ouvir falar de revolu- ria "germinal" que dizia que a sociedade norte-americana surgira no Les-
ções nem no terreno da tecnologia.24 te, de sementes culturais trazidas da Europa pelos imigrantes ingleses, sus-
tentando, em troca, que suas características derivavam da existência de
Na América do Norte de fins do século XIX, ocorreu um processo
semelhante de difusão dos métodos da erudição alemã, associado à preten- uma fronteira de terras livres em direção ao Oeste do país - Turner nunca
são de objetividade que não era outra coisa que a simples aceitação da or- faria menção aos indígenas que já as habitavam previamente - , cuja con-
dem estabelecida e acompanhada pela profissionalização dos historiado- quista, que punha o homem em contato com a natureza, havia forjado o
Florestan Fernandes
* Na edição de 1848: pela. (N. Ed.) * Na edição de 1848: porém. (N. Ed.)
ria da revolta das modernas forças produtivas contra as moder- encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto o seu
nas relações de produção, contra as relações de propriedade que trabalho aumenta o capital. Estes operários, que têm de se
são as condições de vida da burguesia e da sua dominação. vender à peça, são uma mercadoria como qualquer outro artigo
Basta mencionar as crises comerciais que, na sua recorrência pe- de comércio, e estão, por isso, igualmente expostos a todas
riódica, põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mer-
existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises comerciais cado.
é regularmente aniquilada uma grande parte não só dos produ- O trabalho dos proletários perdeu, com a extensão da ma-
tos fabricados como * das forças produtivas já criadas. Nas cri- quinaria e a divisão do trabalho, todo o carácter autónomo e,
ses irrompe uma epidemia social que teria parecido um portanto, todos os atractivos para os operários *. Ele torna-se um
contra-senso a todas as épocas anteriores — a epidemia da mero acessório da máquina ao qual se exige apenas o manejo
sobreprodução. A sociedade vê-se de repente retransportada a mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Os custos
um estado de momentânea barbárie; parece-lhe que uma fome, que o operário ocasiona reduzem-se por isso quase só aos meios
uma guerra de aniquilação ** universal lhe cortaram todos os de vida de que carece para o seu sustento e para a reprodução
meios de subsistência; a indústria, o comércio, parecem aniqui- da sua raça. O preço de uma mercadoria, portanto também do
lados. E porquê? Porque ela possui demasiada civilização, de- trabalho (40) é, porém, igual aos seus custos de produção. Na
masiados meios de vida, demasiada indústria, demasiado mesma medida em que cresce a repugnância [causada] pelo tra-
comércio. As forças produtivas que estão à sua disposição já não balho decresce portanto o salário. Mais ainda: na mesma medi-
servem para promoção *** das relações de propriedade burgue- da em que aumentam a maquinaria e a divisão do trabalho, na
sas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas mesma medida sobe também a massa ** do trabalho, seja pelo
relações, e são por elas tolhidas; e logo que triunfam deste acréscimo das horas de trabalho seja pelo acréscimo do traba-
tolhimento lançam na desordem toda a sociedade burguesa, lho exigido num tempo dado, pelo funcionamento acelerado das
põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As rela- máquinas, etc.
ções burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a A indústria moderna transformou a pequena oficina do
riqueza por elas gerada. — E como triunfa a burguesia das cri- mestre patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial.
ses? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de Massas de operários, comprimidos na fábrica, são organizadas
forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mer- como soldados. São colocadas, como soldados rasos da indús-
cados e pela exploração mais profunda de **** antigos merca- tria, sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais
dos. De que modo, então? Preparando crises mais omnilaterais subalternos e oficiais. Não são apenas servos [Knechte] da classe
e mais poderosas, e diminuindo os meios de prevenir as crises. burguesa, do Estado burguês; dia a dia, hora a hora, são feitos
As armas com que a burguesia deitou por terra o feudalismo servos da máquina, do vigilante, e sobretudo dos *** próprios
viram-se agora contra a própria burguesia. burgueses fabricantes singulares. Este despotismo é tanto mais
Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem mesquinho, mais odioso, mais exasperante, quanto mais aberta-
a morte; também gerou os homens que manejarão essas armas — mente proclama ser o provento o seu **** objectivo.
os operários modernos, os proletários. Quanto menos habilidade e exteriorização de força o traba-
Na mesma medida em que a burguesia, i. é, o capital se lho manual exige, i. é, quanto mais a indústria moderna se de-
desenvolve, nessa mesma medida desenvolve-se o proletariado, senvolve, tanto mais o trabalho dos homens é desalojado pelo
a classe dos operários modernos, os quais só vivem enquanto das mulheres *. Diferenças de sexo e de idade já não têm qual-
* Na edição de 1848 acrescenta-se: mesmo. (N. Ed.). * Na edição de 1848: o operário. (N. Ed.)
** Na edição de 1848 acrescenta-se: guerra de devastação. (N. Ed.) ** Na edição de 1888: carga. (N. Ed.)
*** Na edição de 1848 acrescenta-se: da civilização burguesa e. (N. Ed.) *** Na edição de 1848: do. (N. Ed.)
**** Nas edições de 1848 e 1872: dos. (N. Ed.) **** Nas edições de 1848, 1872 e 1883 acrescenta-se: último. (N. Ed.)
quer validade social para a classe operária. Há apenas instrumen- Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não
tos de trabalho que, segundo a idade e o sexo, têm custos di- apenas se multiplica; é comprimido em massas maiores, a sua
versos. força cresce, e ele sente-a mais. Os interesses, as situações de
Se a exploração do operário pelo fabricante termina na vida no interior do proletariado tornam-se cada vez mais seme-
medida em que recebe o seu salário pago de contado, logo lhe lhantes, na medida em que a maquinaria vai obliterando cada
caem em cima as outras partes da burguesia: o senhorio, o vez mais as diferenças do trabalho e quase por toda a parte faz
merceeiro, o penhorista [Pfandleiher] **, etc. descer o salário a um mesmo nível baixo. A concorrência cres-
Os pequenos estados médios [Mittelstände] até aqui, os pe- cente dos burgueses entre si e as crises comerciais que daqui
quenos industriais, comerciantes e rentiers ***, os artesãos e decorrem tornam o salário dos operários cada vez mais oscilante;
camponeses, todas estas classes caem no proletariado, em parte o melhoramento incessante da maquinaria, que cada vez se de-
porque o seu pequeno capital não chega para o empreendimento senvolve mais depressa, torna toda a sua posição na vida cada
da grande indústria e sucumbe à concorrência dos capitalistas vez mais insegura; as colisões entre o operário singular e o
maiores, em parte porque a sua habilidade é desvalorizada por burguês singular tomam cada vez mais o carácter de colisões de
novos modos de produção. Assim, o proletariado recruta-se de duas classes. Os operários começam por formar coalisões *
todas as classes da população. contra os burgueses; juntam-se para a manutenção do seu salá-
O proletariado passa por diversos estádios de desenvolvi- rio. Fundam eles mesmos associações duradouras para se
mento. A sua luta contra a burguesia começa com a sua exis- premunirem para as insurreições ocasionais. Aqui e além a luta
tência. irrompe em motins.
No começo são os operários singulares que lutam, depois os De tempos a tempos os operários vencem, mas só transito-
operários de uma fábrica, depois os operários de um ramo de riamente. O resultado propriamente dito das suas lutas não é o
trabalho numa localidade contra o burguês singular que os explora êxito imediato, mas a união dos operários que cada vez mais se
directamente. Dirigem os seus ataques não só contra as relações amplia. Ela é promovida pelos meios crescentes de comunica-
de produção burguesas, dirigem-nos contra os próprios instrumen- ção, criados pela grande indústria, que põem os operários das
tos de produção; aniquilam as mercadorias estrangeiras concorren- diversas localidades em contacto uns com os outros. Basta, po-
tes, destroçam as máquinas, deitam fogo às fábricas, procuram rém, este contacto para centralizar as muitas lutas locais, por
recuperar **** a posição desaparecida do operário medieval. toda a parte com o mesmo carácter, numa luta nacional, numa
Neste estádio os operários formam uma massa dispersa por todo luta de classes. Mas toda a luta de classes é uma luta política.
o país e dividida pela concorrência. A coesão maciça dos operá- E a união, para a qual os burgueses da Idade Média, com os
rios não é ainda a consequência da sua própria união, mas a con- seus caminhos vicinais, precisavam de séculos, conseguem-na os
sequência da união da burguesia, a qual, para atingir os seus proletários modernos com os caminhos-de-ferro em poucos anos.
objectivos políticos próprios, tem de pôr em movimento o proleta- Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em
riado todo, e por enquanto ainda o pode. Neste estádio os prole- partido político, é rompida de novo a cada momento pela con-
tários combatem, pois, não os seus inimigos, mas os inimigos dos corrência entre os próprios operários. Mas renasce sempre, mais
seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprietários forte, mais sólida, mais poderosa. Força o reconhecimento de
fundiários, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. interesses isolados dos operários em forma de lei, na medida em
Todo o movimento histórico está, assim, concentrado nas mãos da que tira proveito das cisões da burguesia entre si. Assim [acon-
burguesia; cada vitória assim alcançada é uma vitória da burguesia. teceu] em Inglaterra com a lei das dez horas ( 41).
De um modo geral, as colisões da velha sociedade promo-
vem, de muitas maneiras, o curso de desenvolvimento do pro-
* Na edição de 1848 acrescenta-se: e crianças. (N. Ed.) letariado. A burguesia acha-se em luta permanente: de começo
** Nas edições de 1848, 1872 e 1883: prestamista [Pfandverleiher]. (N. Ed.)
*** Em francês no texto: os que possuem ou vivem de rendimentos. (N. Ed.)
**** Na edição de 1848 acrescenta-se: para si. (N. Ed.) * Na edição de 1888 acrescenta-se: (Trade-Unions). (N. Ed.)
contra a aristocracia; mais tarde, contra os sectores da própria O lumpenproletariado, esta putrefacção passiva das camadas
burguesia cujos interesses entram em contradição com o progres- mais baixas da velha sociedade, é aqui e além atirado para o
so da indústria; sempre, contra a burguesia de todos os países movimento por uma revolução proletária, e por toda a sua si-
estrangeiros. Em todas estas lutas vê-se obrigada a apelar para tuação de vida estará mais disposto a deixar-se comprar para
o proletariado, a recorrer à sua ajuda, e deste modo a arrastá-lo maquinações reaccionárias.
para o movimento político. Ela própria leva, portanto, ao pro- As condições de vida da velha sociedade estão aniquiladas
letariado os seus elementos * de formação próprios, ou seja, já nas condições de vida do proletariado. O proletário está des-
armas contra ela própria. provido de propriedade; a sua relação com a mulher e os filhos
Além disto, como vimos, sectores inteiros da classe domi- já nada tem de comum com a relação familiar burguesa; o tra-
nante, pelo progresso da indústria, são lançados no proletaria- balho industrial moderno, a subjugação moderna ao capital, que
do, ou pelo menos vêem-se ameaçadas nas suas condições de é a mesma na Inglaterra e na França, na América e na Alema-
vida. Também estes levam ao proletariado uma massa de ele- nha, tirou-lhe todo o carácter nacional. As leis, a moral, a reli-
mentos de formação **. gião são para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos
Por fim, em tempos em que a luta de classes se aproxima quais se escondem outros tantos interesses burgueses.
da decisão, o processo de dissolução no seio da classe dominan- Todas as classes anteriores que conquistaram a dominação
te, no seio da velha sociedade toda, assume um carácter tão procuraram assegurar a posição na vida já alcançada, submeten-
vivo, tão veemente, que uma pequena parte da classe dominan- do toda a sociedade às condições do seu proveito. Os proletá-
te se desliga desta e se junta à classe revolucionária, à classe rios só podem conquistar as forças produtivas sociais abolindo
que traz nas mãos o futuro. Assim, tal como anteriormente uma o seu próprio modo de apropriação até aqui e com ele todo o
parte da nobreza se passou para a burguesia, também agora uma modo de apropriação até aqui. Os proletários nada têm de seu
parte da burguesia se passa para o proletariado, e nomeadamente a assegurar, têm sim de destruir todas as seguranças privadas *
uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram elevar-se e asseguramentos privados.
a um entendimento teórico do movimento histórico todo. Todos os movimentos até aqui foram movimentos de mino-
De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia rias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o
só o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As movimento autónomo da maioria imensa no interesse da maio-
demais classes vão-se arruinando e soçobram com a grande in- ria imensa. O proletariado, a camada mais baixa da sociedade
dústria; o proletariado é o produto mais característico desta. actual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir
Os estados médios [Mittelstände] — o pequeno industrial, pelos ares toda a superstrutura [Überbau] das camadas que for-
o pequeno comerciante, o artesão, o camponês —, todos eles mam a sociedade oficial.
combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletaria-
existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, do contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O pro-
mas conservadores. Mais ainda, são reaccionários ***, procuram letariado de cada um dos países tem naturalmente de começar
fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionários, por resolver os problemas com a sua própria burguesia.
são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proleta- Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do
riado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas proletariado, seguimos de perto a guerra civil mais ou menos
os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se co- oculta no seio da sociedade existente até ao ponto em que re-
locarem na do proletariado. — benta numa revolução aberta e o proletariado, pelo derrube vio-
lento da burguesia, funda a sua dominação.
Toda a sociedade até aqui repousava, como vimos, na opo-
* Na edição de 1888 acrescenta-se: políticos e gerais. (N. Ed.)
** Na edição de 1888: elementos de esclarecimento e de progresso. (N. Ed.) * Nas edições de 1848, 1872 e 1883: toda a segurança privada até aqui.
*** Nas edições de 1848, 1872 e 1883 acrescenta-se: pois. (N. Ed.) (N. Ed.)
sição de classes opressoras e oprimidas. Mas para se poder opri-
mir uma classe, têm de lhe ser asseguradas condições em que
possa pelo menos ir arrastando a sua existência servil. O servo
[Leibeigene] conseguiu chegar, na servidão, a membro da comu-
na, tal como o pequeno burguês [Kleinbürger] a burguês
[Bourgeois] sob o jugo do absolutismo feudal. Pelo contrário,
o operário moderno, em vez de se elevar com o progresso da
indústria, afunda-se cada vez mais abaixo das condições da sua
própria classe. O operário torna-se num indigente [Pauper] e o
pauperismo [Pauperismus] desenvolve-se ainda mais depressa *
do que a população e a riqueza. Torna-se com isto evidente que
a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo
a classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como
lei reguladora as condições de vida da sua classe. Ela é inca-
paz de dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo
a própria existência no seio da escravidão, porque é obrigada a
deixá-lo afundar-se numa situação em que tem de ser ela a II
alimentá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade não
pode mais viver sob ela [ou seja, sob a dominação da burgue- Proletários e comunistas
sia], i. é, a vida desta já não é compatível com a sociedade.
A condição essencial ** para a existência e para a domina-
ção da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de Em que realção se encontram os comunistas com os prole-
privados, a formação e multiplicação do capital; a condição do tários em geral?
capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado repousa Os comunistas não são nenhum partido particular face aos
exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso outros partidos operários.
da indústria, de que a burguesia é portadora, involuntária e sem Não têm nenhuns interesses separados dos interesses do
resistência, coloca no lugar do isolamento dos operários pela proletariado todo.
concorrência a sua união revolucionária pela associação. Com o Não estabelecem nenhuns princípios particulares * segundo
desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo dos pés os quais queiram moldar o movimento proletário.
da burguesia a própria base sobre que ela produz e se apropria Os comunistas diferienciam-se dos demais partidos proletá-
dos produtos. Ela produz, antes do mais, o seu *** próprio rios apenas pelo facto de que, por um lado, nas diversas lutas
coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmen- nacionais dos proletários eles acentuam e fazem valer os inte-
te inevitáveis. resses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado
todo, e pelo facto de que, por outro lado, nos diversos estádios
de desenvolvimento por que a luta entre o proletariado e a bur-
guesia passa, representam sempre o interesse do movimento
total.
Os comunistas são, pois, na prática [praktisch], o sector mais
decidido, sempre impulsionador, dos partidos operários de todos
* Nas edições de 1848, 1872 e 1883: rapidamente. (N. Ed.)
** Nas edições de 1848, 1872 e 1883: mais essencial. (N. Ed.)
*** Nas edições de 1848 e 1872: os. (N. Ed.) * Na edição de 1888: sectários. (N. Ed.)
os países; na teoria, eles têm, sobre a restante massa do prole- Ou falais da moderna propriedade privada burguesa?
tariado, a vantagem da inteligência das condições, do curso e dos Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletá-
resultados gerais do movimento proletário. rio, lhe cria propriedade? De modo nenhum. Cria o capital,
O objectivo mais próximo dos comunistas é o mesmo do i. é, a propriedade que explora o trabalho assalariado, que só
que o de todos os restantes partidos proletários: formação do pode multiplicar-se na condição de gerar novo trabalho assala-
proletariado em classe, derrubamento da dominação da burgue- riado para de novo o explorar. A propriedade, na sua figura
sia, conquista do poder político pelo proletariado. hodierna, move-se na oposição de capital e trabalho assalariado.
As proposições teóricas dos comunistas não repousam de Consideremos ambos os lados desta oposição.
modo nenhum em ideias, em princípios, que foram inventados Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição não
ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo. só puramente pessoal, mas social. O capital é um produto co-
São apenas expressões gerais de relações efectivas de uma munitário e pode apenas ser posto em movimento por uma ac-
luta de classes que existe, de um movimento histórico que se tividade comum de muitos membros, em última instância apenas
processa diante dos nossos olhos. A abolição de relações de pela actividade comum de todos os membros da sociedade.
propriedade até aqui não é nada de peculiarmente característico O capital não é, portanto, um poder pessoal, é um poder
do comunismo. social.
Todas as relações de propriedade estiveram submetidas a Se, portanto, o capital é transformado em propriedade comu-
uma constante mudança histórica, a uma constante transforma- nitária, pertencente a todos os membros da sociedade, a proprie-
ção histórica. dade pessoal não se transforma então em propriedade social. Só
A Revolução Francesa, p. ex., aboliu a propriedade feudal se transforma o carácter social da propriedade. Perde o seu ca-
a favor da burguesa. rácter de classe.
O que distingue o comunismo não é a abolição da proprie- Vejamos agora o trabalho assalariado:
dade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. O preço médio do trabalhado assalariado é o mínimo do
Mas a moderna propriedade privada burguesa é a expressão salário, i. é, a soma dos meios de vida que são necessários para
última e mais consumada da geração e apropriação dos produ- manter vivo o operário como operário. Aquilo, portanto, de que
tos que repousam em * oposições de classes, na exploração de o operário se apropria pela sua actividade chega apenas para
umas ** pelas outras ***. gerar de novo a sua vida nua. De modo nenhum queremos abolir
Neste sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria esta apropriação pessoal dos produtos de trabalho para a nova
numa única expressão: supressão [Aufhebung] da propriedade geração da vida imediata — uma apropriação que não deixa
privada. nenhum provento líquido capaz de conferir poder sobre traba-
Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que quereríamos lho alheio. Queremos suprimir apenas o carácter miserável des-
abolir a propriedade adquirida pessoalmente, fruto do trabalho ta apropriação, em que o operário só vive para multiplicar o
próprio — a propriedade que formaria a base de toda a liber- capital, só vive na medida em que o exige o interesse da classe
dade, actividade e autonomia pessoais. dominante.
Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo pró- Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio
prio! Falais da propriedade pequeno-burguesa, pequeno-campo- para multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista
nesa, que precedeu a propriedade burguesa? Não precisamos de o trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar, enrique-
a abolir, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e abole-a dia- cer, promover o processo da vida dos operários.
riamente. Na sociedade burguesa domina, portanto, o passado sobre o
presente, na comunista o presente sobre o passado. Na socieda-
* Nas edições de 1848, 1872 e 1883: nas. (N. Ed.) de burguesa o capital é autónomo e pessoal, ao passo que o
** Na edição de 1888: maioria. (N. Ed.) indivíduo activo não é autónomo nem pessoal.
*** Na edição de 1888: minoria. (N. Ed.) E à supressão desta relação chama a burguesia supressão da
personalidade e da liberdade! E com razão. Trata-se certamente Todas as objecções dirigidas contra o modo de apropriação
da supressão da personalidade burguesa, da autonomia burgue- e de produção comunista dos produtos materiais foram igualmen-
sa e da liberdade burguesa. te alargadas à apropriação e à produção dos produtos espirituais.
Por liberdade entende-se, no interior das actuais relações de Tal como, para o burguês, o cessar da propriedade de classe é
produção burguesas, o comércio livre, a compra e venda livres. o cessar da própria produção, também para ele o cessar da cul-
Mas se cai o tráfico, cai também o tráfico livre. O palavrea- tura de classe é idêntico ao cessar da cultura em geral.
do acerca do livre tráfico, como todas as demais tiradas da nossa A cultura [Bildung] cuja perda ele lamenta é, para a enor-
burguesia * sobre a liberdade, só têm em geral sentido face ao me maioria, a formação [Heranbildung] para máquina.
tráfico constrangido, face ao burguês subjugado da Idade Mé- Mas não disputeis connosco enquanto medirdes pelas vos-
dia, mas não face à supressão comunista do tráfico, das relações sas representações burguesas de liberdade, de cultura, de direi-
de produção burguesas e da própria burguesia. to, etc., a abolição da propriedade burguesa. As vossas próprias
Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade pri- ideias são produtos das relações de produção e propriedade
vada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada burguesas, tal como o vosso direito é apenas a vontade da vos-
está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela exis- sa classe elevada a lei, uma vontade cujo conteúdo está dado nas
te precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. condições materiais de vida da vossa classe.
Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma proprieda- A representação interesseira, na qual transformais as vossas
de que pressupõe como condição necessária que a imensa maio- relações de produção e de propriedade de relações históricas
ria da sociedade não possua propriedade. transitórias no curso da produção em leis eternas da Natureza e
Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa da razão, partilhai-la com todas as classes dominantes já desa-
propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos. parecidas. O que compreendeis para a propriedade antiga, o que
A partir do momento em que o trabalho já não possa ser compreendeis para a propriedade feudal, já não podeis com-
transformado em capital, em dinheiro, em renda, em suma, num preender para a propriedade burguesa. —
poder social monopolizável, i. é, a partir do momento em que Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com
a propriedade pessoal já não possa converter-se em proprieda- este propósito infame dos comunistas.
de burguesa, a partir desse momento declarais que a pessoa é Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? So-
suprimida. bre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desen-
Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não entendeis volvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu
mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário burguês. E esta complemento na ausência forçada da família para os proletá-
pessoa tem certamente de ser suprimida. rios e na prostituição pública.
O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar A família dos * burgueses elimina-se naturalmente com o
de produtos sociais; tira apenas o poder de, por esta apropria- eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o
ção, subjugar a si trabalho alheio. desaparecer do capital.
Tem-se objectado que com a supressão da propriedade pri- Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das
vada cessaria toda a actividade e alastraria uma preguiça geral. crianças pelos pais? Confessamos este crime.
De acordo com isso, a sociedade burguesa teria há muito de Mas, dizeis vós, nós suprimimos as relações mais íntimas ao
ter perecido de inércia; pois os que nela trabalham não ganham, pormos no lugar da educação doméstica a social.
e os que nela ganham não trabalham. Toda esta objecção vai dar E não está também a vossa educação determinada pela so-
à tautologia de que deixa de haver trabalho assalariado assim ciedade? Pelas relações sociais em que educais, pela intromis-
que deixar de haver capital. são mais directa ou mais indirecta da sociedade, por meio da
escola, etc.? Os comunistas não inventam o efeito da sociedade
III
Literatura socialista e comunista
1. O socialismo reaccionário
a) O socialismo feudal
* Na edição de 1888: Por fim, quando os pertinazes factos históricos dis- * Na edição de 1848 acrescenta-se: acerca da sociedade verdadeira. (N. Ed.)
siparam a embriaguês do autoembuste, esta forma de socialismo degenerou numa ** Na edição de 1848: este. (N. Ed.)
deplorável ressaca. (N. Ed.) *** Na edição de 1848: do seu. (N. Ed.)
tence a nenhuma classe, que nem sequer pertence à realidade, A sua manutenção é a manutenção das situações alemãs
que pertence apenas ao céu nebuloso da fantasia filosófica. existentes. Da dominação industrial e política da burguesia teme
Este socialismo alemão, que tomou tão a sério, e tão sole- o declínio seguro, por um lado, em consequência da concentra-
nemente, os seus canhestros exercícios escolares, e que, qual ção do capital, por outro lado, pelo advento de um proletariado
vendedor de feira, tão alto os trombeteou, foi entretanto perden- revolucionário. O socialismo «verdadeiro» pareceu-lhe matar
do pouco a pouco a sua inocência pedante. dois coelhos com uma cajadada. Espalhou-se como uma epide-
A luta da burguesia alemã, nomeadamente da prussiana, mia.
contra os feudais e a realeza absoluta — numa palavra, o mo- A veste tecida de especulativas teias de aranha, bordada a
vimento liberal — tornou-se mais séria. flores de retórica de belos espíritos, embebida no orvalho sufo-
Foi assim oferecida ao socialismo «verdadeiro» a tão dese- cantemente sentimental da alma, em que os socialistas alemães
jada oportunidade de contrapor ao movimento político as reivin- envolveram a sua meia dúzia de ossudas «verdades eternas», esta
dicações socialistas, de arremessar contra o liberalismo, contra veste extravagante só veio multiplicar o [bom] escoamento da
o Estado representativo, contra a concorrência burguesa, a liber- sua mercadoria entre este público.
dade burguesa de imprensa, o direito burguês, a liberdade e a Pelo seu lado, o socialismo alemão reconheceu cada vez
igualdade burguesas, os anátemas legados, e de pregar à massa mais a sua vocação para ser o representante presumido desta
popular que nada tinha a ganhar, antes tudo a perder, com este Pfahlbürgerschaft ( 38).
movimento burguês. O socialismo alemão esqueceu em devido Proclamou a nação alemã como a nação normal e o
tempo que a crítica francesa, da qual era um eco sem espírito, Spießbürger * (48) alemão como o homem normal. Deu a todas
pressupunha a sociedade burguesa moderna com as correspon- as infâmias deste [Spießbürger] um sentido socialista, oculto,
dentes condições materiais de vida e a adequada constituição superior, pelo qual elas significavam o seu contrário. Ao entrar
política, pressupostos esses por cuja conquista se tratava então em cena directamente contra a orientação «grosseiramente
de lutar na Alemanha. destrutiva» do comunismo, ao anunciar a sua sublimidade im-
Serviu aos governos alemães absolutos — com o seu cor- parcial acima de todas as lutas de classes, tirou a sua última con-
tejo de padres, mestres-escolas, fidalgotes e burocratas — de sequência. Com muito poucas excepções, o que na Alemanha
espantalho desejado contra a burguesia ameaçadoramente ascen- circula de escritos pretensamente socialistas e comunistas per-
dente. tence ao âmbito desta literatura porca e debilitante **.
Formou o doce complemento dos amargos golpes de chicote
e balas de espingarda com que esses mesmos governos cuida-
ram * das insurreições de operários alemães. 2. O socialismo conservador
Se o socialismo «verdadeiro» desta maneira se tornou uma ou [socialismo] burguês
arma na mão dos governos contra a burguesia alemã, represen-
tou também imediatamente um interesse reaccionário — o inte- Uma parte da burguesia deseja remediar os males sociais
resse da Pfahlbürgerschaf ** alemã. Na Alemanha é a pequena para assegurar a existência da sociedade burguesa.
burguesia [Kleinbürgertum], legada pelo século XVI, que desde A ela pertencem: economistas, filantropos, humanitários,
esse tempo, de formas diversas, está sempre a vir ao de cima, melhoradores da situação das classes trabalhadoras, organizado-
que constitui a base social propriamente dita das situações
existentes.
* Na edição de 1888: pequeno filisteu. (N. Ed.)
* Ao reproduzirem esta Secção em 1850 na Neue Rheinische Zeitung. ** A tempestade revolucionária de 1848 varreu toda esta orientação sór-
Politisch-ökonomische Revue, Marx e Engels substituíram por: responderam. Cf. dida e tirou aos seus defensores o apetite para continuarem a brincar ao socia-
MEGA2, vol. I/10, p. 986. (N. Ed.) lismo. O principal representante e o tipo clássico desta orientação é o senhor Karl
** Na edição de 1888: filisteus. (N. Ed.) Grün. (Nota de Engels à edição alemã de 1890.)
res da caridade, protectores dos animais, fundadores de ligas 3. O socialismo e comunismo
anti-alcoólicas, reformadores ocasionais dos mais variados. crítico-utópicos
E também este socialismo burguês foi elaborado em sistemas
completos. Não falamos aqui da literatura que em todas as grandes
Como exemplo mencionamos a Philosophie de la misère, de revoluções modernas exprime as reivindicações do proletariado
Proudhon. (escritos de Babeuf, etc).
Os burgueses socialistas querem as condições de vida da As primeiras tentativas do proletariado para impor directa-
sociedade moderna sem as lutas e perigos delas necessariamen- mente o seu interesse de classe próprio, num tempo de agita-
te decorrentes. Querem a sociedade existente deduzidos os ele- ção geral, no período de derrube que pôs termo à sociedade
mentos que a revolucionam e dissolvem. Querem a burguesia feudal, falharam necessariamente por não estar ainda desenvol-
sem o proletariado. A burguesia, naturalmente, representa-se o vida a figura do próprio proletariado e por faltarem ainda as
mundo em que domina como o melhor dos mundos. O socia- condições materiais da sua libertação, que só são precisamente
lismo burguês elabora, a partir desta representação consoladora, o produto da época burguesa. A literatura revolucionária que
um meio sistema ou um sistema completo. Quando exorta o acompanhou estes primeiros movimentos do proletariado é, pelo
proletariado a realizar estes sistemas e * a entrar na nova Jeru- conteúdo, necessariamente reaccionária. Prega um ascetismo
salém, no fundo só lhe pede que fique na sociedade actual, mas geral e um igualitarismo grosseiro.
que se desfaça das odiosas representações que faz dela. Os sistemas propriamente socialistas e comunistas, os siste-
Uma segunda forma, menos sistemática mas mais prática, mas de Saint-Simon, Fourier, Owen, etc., surgem no primeiro
[deste] socialismo procurou tirar à classe operária o gosto por período, ainda não desenvolvido, da luta entre proletariado
todos os movimentos revolucionários, mostrando-lhe que só lhe e burguesia que atrás descrevemos (v[er] Burguesia e Proleta-
poderia ser útil, não esta ou aquela alteração política, mas uma riado).
alteração nas relações materiais de vida, nas relações económi- Os inventores destes sistemas vêem, decerto, a oposição das
cas. Por alteração das relações materiais de vida este socialis- classes bem como a actuação dos elementos dissolventes na
mo não entende, de modo nenhum, a abolição das relações de própria sociedade dominante. Mas do lado do proletariado não
produção burguesas, só possível pela via revolucionária, mas avistam nenhuma actividade histórica, nenhum movimento polí-
melhoramentos administrativos que se processem sobre o terre- tico que lhe seja peculiar.
no destas relações de produção, portanto que nada alterem na Como o desenvolvimento da oposição de classes acompanha
relação de capital e trabalho assalariado, mas que no melhor dos o desenvolvimento da indústria, tão-pouco encontram as condições
casos reduzam à burguesia os custos da sua dominação e lhe materiais para a libertação do proletariado, e procuram uma ciên-
simplifiquem o orçamento de Estado. cia social, leis sociais, para criarem tais condições.
O socialismo burguês só alcança a sua expressão correspon- Para o lugar da actividade social tem de entrar a sua acti-
dente quando passa a ser mera figura de retórica. vidade inventiva pessoal; para o lugar das condições históricas
Comércio livre! no interesse da classe trabalhadora; protec- da libertação, [condições] fantásticas; para o lugar da organiza-
ção alfandegária! no interesse da classe trabalhadora; prisões ção do proletariado em classe processando-se gradualmente, uma
celulares! no interesse da classe trabalhadora: esta é a última organização da sociedade urdida por eles próprios. A história
palavra do socialismo burguês, e a única dita a sério. mundial vindoura resolve-se para eles na propaganda e na exe-
O socialismo da burguesia ** consiste precisamente na afir- cução prática dos seus planos de sociedade.
mação de que os burgueses são burgueses — no interesse da Estão decerto conscientes de defender nos seus planos prin-
classe trabalhadora. cipalmente o interesse da classe trabalhadora como a classe mais
sofredora. Só deste ponto de vista de a classe mais sofredora o
* Nas edições de 1848, 1872 e 1883: para. (N. Ed.) proletariado existe para eles.
** Na edição de 1848: o seu socialismo. (N. Ed.)
A forma não desenvolvida da luta de classes assim como a proletariado ativeram-se às velhas intuições dos mestres. Por isso
sua própria situação de vida implicam, porém, que eles creiam procuram consequentemente embotar de novo a luta de classes
estar muito acima daquela oposição de classes. Querem melho- e mediar as oposições. Continuam ainda a sonhar com a reali-
rar a situação de vida de todos os membros da sociedade, mes- zação, a título experimental, das suas utopias sociais, com a
mo dos mais bem colocados. Por isso apelam continuamente à instituição de falanstérios isolados, com a fundação de colónias
sociedade toda sem diferença, e de preferência à classe domi- no país, com o estabelecimento de uma pequena Icária * — edi-
nante. É só preciso entender o seu sistema para reconhecer nele ção de formato reduzido da nova Jerusalém —, e para a cons-
o melhor plano possível para a melhor sociedade possível. trução de todos estes castelos no ar têm de apelar à filantropia
Rejeitam, por isso, toda a acção política, nomeadamente toda dos corações e bolsas burgueses. A pouco e pouco vão caindo
a acção revolucionária, querem atingir o seu objectivo por via na categoria dos socialistas reaccionários ou conservadores acima
pacífica e procuram, com pequenos experimentos naturalmente descritos, e deles se diferenciam apenas por um pedantismo mais
condenados ao fracasso, abrir pela força do exemplo o caminho sistemático, pela superstição fanática nos efeitos milagreiros da
ao novo evangelho social. sua ciência social.
A * descrição fantástica da sociedade futura brota ** Por isso se opõem com exasperação a todo o movimento
— num tempo em que o proletariado ainda está sumamente político dos operários, movimento que só podia decorrer de uma
pouco desenvolvido, e por isso, apreende a sua própria posição descrença cega no novo evangelho.
de um modo ainda fantástico — da sua primeira aspiração, cheia Os owenistas, em Inglaterra, ou fourieristas, em França, rea-
de imagens vagas, de uma reconfiguração geral da sociedade. gem ali contra os cartistas, aqui contra os reformistas (49).
Mas os escritos socialistas e comunistas consistem também
em elementos críticos. Atacam todos as bases da sociedade exis-
tente. Por isso forneceram material altamente valioso para o
esclarecimento dos operários. As suas proposições positivas so-
bre a sociedade futura, p. ex., supressão da oposição entre ci-
dade e campo, da família, do proveito privado, do trabalho
assalariado, a proclamação da harmonia social, a transformação
do Estado numa mera administração da produção — todas es-
tas suas proposições exprimem meramente o desaparecimento da
oposição de classes que só agora começa a desenvolver-se, que
eles não conhecem senão na sua primeira indeterminidade sem
figura. Por isso mesmo estas proposições têm ainda um sentido
puramente utópico.
A significação do socialismo e comunismo crítico-utópicos
está na proporção inversa do seu desenvolvimento histórico. Na
medida em que se desenvolve e configura a luta de classes,
perde esta elevação fantástica acima dela, esta luta fantástica
contra ela, todo o valor prático, toda a justificação teórica. Se,
por isso, os autores destes sistemas foram, em muitos aspectos, * Falanstérios eram colónias Socialistas segundo o plano de Charles
revolucionários, os seus discípulos formaram sempre seitas reac- Fourier; Icária foi o nome dado por Cabet à sua Utopia e mais tarde à sua
cionárias. Perante o desenvolvimento histórico continuado do colónia Comunista Americana. (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.)
Colónias no país [Home-Kolonien] era o que Owen chamava às suas socie-
dades comunistas modelo. Falanstérios era o nome dos palácios sociais planea-
* Na edição de 1848: esta. (N. Ed.) dos por Fourier. Icária se chamava o país utópico da fantasia cujas instituições
** Nas edições de 1848 e 1888: corresponde à. (N. Ed.) comunistas Cabet descreveu. (Nota de Engels à edição alemã de 1890.)
Na Suíça apoiam os radicais, sem deixar de reconhecer que
este partido é composto por elementos contraditórios, em parte
socialistas democráticos no sentido francês, em parte burgueses
radicais.
Entre os Polacos os comunistas apoiam o partido que faz
de uma revolução agrária condição da libertação nacional, aque-
le mesmo partido que deu vida à insurreição de Cracóvia de
1846 ( 50).
Na Alemanha o Partido Comunista luta, assim que a bur-
guesia entra revolucionariamente em cena, em conjunto com a
burguesia contra a monarquia absoluta, a propriedade feudal da
terra e a pequena burguesice [Kleinbürgerei].
Mas nem por um instante deixa de formar nos operários
uma consciência o mais clara possível sobre a oposição hostil
entre * burguesia e proletariado, para que os operários alemães
IV possam virar logo as condições sociais e políticas, que a bur-
guesia tem necessariamente de originar com a sua dominação,
Posição dos comunistas para com os di- como outras tantas armas contra a burguesia, para que, depois
versos partidos oposicionistas do derrube das classes reaccionárias na Alemanha, comece logo
a luta contra a própria burguesia.
Para a Alemanha dirigem os comunistas a sua atenção prin-
De acordo com a secção II é evidente a relação dos comu- cipal, porque a Alemanha está em vésperas de uma revolução
nistas para com os partidos operários já constiuídos, portanto, a burguesa e porque leva a cabo este revolucionamento em con-
sua relação para com os cartistas em Inglaterra e os reforma- dições de maior progresso da civilização europeia em geral e
dores agrários na América do Norte. com um proletariado muito mais desenvolvido do que a Ingla-
Lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe terra no século XVII e a França no século XVIII, porque a revo-
operária, mas no movimento presente representam simultanea- lução burguesa alemã só pode ser, portanto, o prelúdio imediato
mente o futuro do movimento. Em França os comunistas jun- de uma revolução proletária.
tam-se ao partido socialista-democrático * contra a burguesia Numa palavra, por toda a parte os comunistas apoiam todo
conservadora e radical, sem por isso abdicarem do direito de o movimento revolucionário contra as situações sociais e polí-
assumir uma atitude crítica perante as frases e as ilusões pro- ticas existentes.
venientes do legado revolucionário. Em todos estes movimentos põem em relevo a questão da
propriedade, seja qual for a forma mais ou menos desenvolvida
que ela possa ter assumido, como a questão fundamental do
* O partido então representado no Parlamento por Ledru-Rollin, na litera- movimento.
tura por Louis Blanc, na imprensa diária pelo Réforme (50 ). O nome Social-De- Por fim, por toda a parte os comunistas trabalham na liga-
mocracia significava, nestes seus inventores, uma secção do partido Democrático ção e entendimento dos partidos democráticos de todos os paí-
ou Republicano mais ou menos tingida de Socialismo. (Nota de Engels à edi- ses.
ção inglesa de 1888.)
O partido que então em França se chamava socialista-democrático era o Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e
representado politicamente por Ledru-Rollin e literariamente por Louis Blanc; era, propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser
pois, abissalmente diferente da social-democracia alemã dos nossos dias. (Nota
de Engels à edição alemã de 1890.) * Na edição de 1848: de. (N. Ed.)
alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui.
Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comu-
nista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas
cadeias. Têm um mundo a ganhar.
Karl Marx (1818-1883) libertários da Revolução Francesa foram levados à Prússia feudal e militarizada. A dominação
napoleônica marcou culturalmente essa parte da Prússia. Até o final de 1830 a classe média
de Trèves suportava mal a ocupação prussiana, havendo forte nostalgia pelo governo de
Marly de Almeida Gomes Vianna220 Napoleão, e bastante receptividade às ideias francesas liberais, em especial as do conde de
Saint Simon (Claude-Henry de Rouvroy). Seguramente por isso Marx não foi contaminado pelo
Ramón Peña Castro221 nacionalismo alemão, tendo muito maior afinidade com as posições humanistas da
intelectualidade de sua região. Não foi, portanto, por acaso que, em Berlim, onde iria
Nós não conhecemos senão uma ciência, a ciência da História.
continuar seus estudos universitários (iniciados em Bonn), se tivesse inclinado à versão liberal
Karl Marx das ideias de Hegel sobre o Estado.
O pai de Marx, Hirschel Marx, era um próspero advogado, livre-pensador, liberal,
admirador dos filósofos racionalistas. Com a volta do domínio prussiano à região, e sendo
1 O autor e sua época Frederico Guilherme III um antissemita, Hirschel mudou seu nome judeu para Heinrich e
converteu-se ao protestantismo – isto antes do nascimento de Marx. A mãe de Karl era
Há discussões a respeito da especialidade de Marx: seria filósofo, ou sociólogo, economista,
Henriette Pressburg, uma holandesa bastante conservadora. O casal Heinrich e Henriette teve
político, ou historiador? Marx era, em primeiro lugar, um revolucionário e foi em função da
nove filhos, dos quais Karl foi o terceiro.
revolução que teve que trabalhar principalmente no campo da História, para entender,
explicar e transformar uma sociedade desumana, a capitalista. Toda a obra de Marx está Marx estudou no ginásio do Estado, atingido pela repressão aos liberais, com quem Marx
impregnada da História, da qual nunca se afasta – por isso sua frase, colocada como epígrafe. simpatizava. Terminou seu curso secundário em 1835, com 17 anos. No ginásio, ficou amigo
Considerado por muitos como economista, depois de seus estudos sobre o capital, trabalho de Edgar von Westphalen, filho do Barão Ludwig von Westphalen, homem bastante culto e seu
assalariado, preço, lucro e outras categorias econômicas, lembramos que Marx nunca futuro sogro. No ano de 1836, Marx ficou noivo, secretamente, de Jenny von Westphalen,
escreveu sobre uma “economia marxista”; o que fez foi uma crítica à economia – e à sociedade noivado oficializado em março de 1837.
– capitalista. Terminado o ginásio Marx foi estudar na Universidade de Bonn (direito, história, filosofia,
Não sendo este trabalho biográfico, optamos por dar sucintos dados da vida de Marx, para arte e literatura), onde esteve nos últimos meses de 1835 e parte de 1836. Lá, levou uma vida
fixar-nos depois em seus principais conceitos e em seu método de trabalho, que tornaram sua boêmia: frequentou um círculo de poetas, envolveu-se em grandes bebedeiras e chegou até a
obra fundamental e plenamente válida no século XXI. bater-se num duelo. Em outubro de 1836, preocupado com o comportamento do filho em
Bonn, o pai de Marx mandou-o estudar em Berlim, em cuja universidade as ideias de Hegel,
Nascido em 1818, Marx viveu um dos mais ricos períodos da história da humanidade. Se
que morrera em 1831, predominavam. Marx ligou-se aos chamados hegelianos de esquerda e
tomarmos o Congresso de Viena, em 1815, até sua morte, em 1883, podemos dizer que foi
em 1837 dedicou-se ao estudo da Filosofia, frequentando o clube dos jovens hegelianos, o
contemporâneo da Revolução Constitucionalista Espanhola de 1820-1823, esmagada pela
Doktorklub, que tinha Bruno Bauer como líder. Marx tornou-se amigo de Bruno Bauer e, tal
Santa Aliança; das revoluções de Nápoles e do Piemonte, também derrotadas pela mesma
como ele, queria tornar-se professor em Bonn. Pensando nisso, entre 1838 e 1840 preparou
organização reacionária; do fracasso dos dezembristas russos, em 1825, violentamente
sua tese de doutorado.
reprimidos pelo tzar; viveu a unificação da Alemanha e da Itália e os movimentos de
independência das colônias americanas. Em 1840, com a morte de Frederico Guilherme III, subiu ao trono Frederico Guilherme IV,
ainda mais reacionário que seu antecessor, fato que atingiu a universidade. Tendo que
Mas foi principalmente a situação na Inglaterra e na França que mais exemplarmente
defender a tese, em Berlim, com um professor conservador, Marx resolveu ir defendê-la na
marcaram o período: o imenso fortalecimento econômico-industrial da Inglaterra, um
Universidade de Iena, onde se doutorou a 15 de abril de 1841. Sua tese, dedicada ao Barão
“modelo” de capitalismo – e a consequente situação da classe operária – e os acontecimentos
Von Westphalen, discutia A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro.
franceses, que expressaram, no plano político, a consolidação de uma burguesia que há muito
Para Marx, Epicuro opunha-se ao determinismo de Demócrito, buscando um espaço de
já deixara de ser revolucionária.
liberdade na natureza.
A infância de Marx foi vivida no período que corresponde ao reacionarismo que se seguiu ao
Apesar de sua tese ser considerada brilhante, o título não valeu a Marx o cargo a que
Congresso de Viena, com a formação da Santa Aliança da qual Frederico Guilherme III da
almejava: não só não conseguiu a cátedra – por ser hegeliano de esquerda, de quem o governo
Prússia fazia parte. A burguesia entrara numa etapa de consolidação reacionária de seu poder
não queria nem ouvir falar –, como, em outubro de 1841, o próprio Bruno Bauer foi afastado
e na luta por essa consolidação e domínio absoluto chocava-se com as pretensões
da Universidade de Bonn.
revolucionárias e democráticas do proletariado e dos setores mais avançados da sociedade. O
massacre de operários nas jornadas de julho de 1848, na França, pela burguesia republicana,
deixou claro que esta temia mais ao proletariado do que a qualquer outra coisa. Mas esse 2 Percursos e diálogos
período foi também o da afirmação do proletariado como classe, da criação de suas
organizações políticas mais avançadas, de sua unidade internacional, da afirmação de seu Em busca de trabalho, Marx voltou-se para o jornalismo e enviou um primeiro artigo para
papel histórico universal como criador de uma nova sociedade. Marx foi o teórico do os Anais Alemães, dirigidos por Arnold Ruge. Era um artigo contra a censura e por ela foi
proletariado. vetado... Marx passou a escrever então para a Gazeta Renana, de Colônia, onde, num debate
Marcado por sua época, sofreu a influência racionalista das ideias da Revolução Francesa sobre a liberdade de imprensa, disse: “A liberdade número um para a imprensa consiste em
em sua cidade natal; do que havia de mais avançado na Filosofia – as concepções de Georg não ser ela uma indústria”222. Em outubro de 1842 Marx mudou-se para Colônia e assumiu a
Wilhen Fredrich Hegel, fundamentalmente a dialética; das ideias materialistas de Ludwig direção do jornal. Nesse mesmo ano pesquisou para um artigo sobre a lei do “roubo” de lenha,
Feuerbach sobre a religião; dos economistas clássicos ingleses, em especial Adam Smith e que o levou à compreensão da crueldade inerente à propriedade privada. E depois de escrever
David Ricardo e do movimento operário francês. Marx apropriou-se do que havia de mais um violento artigo contra o tzar Nicolau I, em janeiro de 1843, o governo da Prússia, a pedido
avançado na cultura e na atividade política de sua época e transformou revolucionariamente do tzar, fechou o periódico.
tais conhecimentos: materializou a dialética hegeliana; descobriu a fonte do mais valor Pouco antes desse acontecimento, um jornal de Augsbug acusou a Gazeta Renana de ser
produzido na economia e teorizou sobre o movimento revolucionário, a partir de sua práxis. comunista, ao que Marx respondeu que conhecia mal o comunismo, mas que, prometia, iria
Karl Marx nasceu a 5 de maio de 1818, em Trier (Trèves), cidade situada ao sul da Prússia, estudá-lo. Já lera os socialistas utópicos, como Saint Simon e Charles Fourrier.
na fronteira com a França. A cidade de Trier fora ocupada por tropas francesas de Napoleão Fechada a Gazeta Renana, Marx combinou com Ruge editar um jornal no exterior – pois na
depois da derrota da Prússia em Iena (1806) e dos tratados de Tilsit (1807), que obrigaram Prússia a censura tornava impossível o empreendimento – e tornou-se o redator dos Anais
Frederico Guilherme III a ceder território aos franceses. Até 1915 Trèves pertenceu à França Franco-alemães, que publicou um único número. Contando com esse trabalho, casou-se com
Jenny em junho de 1843, e em outubro mudou-se com ela para Paris. Lá, Marx tornou-se objetivos: esclarecer suas ideias para eles mesmos.
amigo do poeta Heinrich Heine, ao mesmo tempo em que lia muito Jean-Jacques Rousseau, Para Marx e Engels o materialismo mecanicista via a consciência humana como mera
Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu) e Nicolau registradora de impressões recebidas do mundo exterior. Analisava o ser humano como ser
Maquiavel. biológico, sem levá-lo em conta como ser social, e para Marx o homem não pode ser concebido
Nessa época Marx começou a criticar Hegel, a partir do materialismo de Ludwig fora de sua relação com os outros homens, fora da vida social e esta é eminentemente
Feuerbach, mas também criticando o materialismo do próprio Feuerbach, que considerou PRÁTICA. O homem existe em constante atividade, produzindo circunstâncias novas dentro
contemplativo. Escreveu a Ruge sobre isso: “O erro de Feuerbach foi repudiar Hegel daquelas que lhe foram impostas.
totalmente, quando o que ele deveria fazer era retirar a revolucionária dialética hegeliana do As circunstâncias fazem o homem na mesma medida em que este faz as circunstâncias. [...] O
mundo das ideias para colocá-la no mundo da realidade”223. Paulatinamente, Marx passará
conhecimento é um momento necessário da transformação do mundo pelo homem e da transformação
do homem por ele mesmo. A tarefa de interpretar o mundo faz parte da tarefa maior de modificá-lo227.
de hegeliano de esquerda a comunista. Foi nessa época que, em Paris, ele entrou em contato
com o movimento operário socialista. Era preciso criar uma concepção materialista prática, e não teórico-contemplativa. Ao
Em 1843, Marx escreveu a Crítica à filosofia do direito em Hegel, em que mostrava que as amadurecimento das ideias teóricas de Marx juntou-se não só a observação, como a
considerações de Hegel sobre o direito eram inócuas porque não indicavam os meios práticos, convivência com a atividade revolucionária do movimento operário.
materiais e sociais, para superar os problemas humanos que ele abordava: “O poder material
só pode ser vencido pelo poder material”. E: “A teoria também se transforma numa força Retorno
material quando se apodera das massas”224 e as massas capazes de promover mudanças
seriam as operárias. Para Marx, a filosofia mostrara a desumanidade do mundo atual e A 24 de fevereiro de 1848 uma sublevação na França derrubou o rei burguês Luís Felipe e o
Feuerbach demonstrara que a religião era uma solução ilusória para sua superação, uma representante do governo provisório instituído convidou Marx a voltar a Paris. Ao mesmo
alienação. O marxismo é, fundamentalmente, um humanismo e, para Marx, também a filosofia tempo, o pânico do rei belga pelos acontecimentos em França acabou por expulsar Marx da
mostrara-se impotente para, por si mesma, superar a desumanidade e acabar com a alienação. Bélgica e a 6 de março este chegava de volta a Paris. Lá, Bakunin e Von Bornstedt (que
Era preciso dispor de uma arma material para fazer prevalecer o humanismo. E Marx afirma: mostrou mais tarde ser um aventureiro) elaboravam um plano para invadir a Alemanha, a que
Marx se opôs. O intento, como era de se esperar, foi um total fracasso.
tal arma, na sociedade atual, é a luta de classes e seu agente, o proletariado225.
Na Alemanha, Frederico Guilherme IV, assustado com a situação europeia, acabou por
Em novembro de 1842, em visita à redação da Gazeta Renana, em Colônia, Friedrich Engels propiciar uma certa – e breve – democratização e Marx e Engels resolvem então voltar para lá.
conheceu Marx, mas a amizade dos dois só se consolidou no reencontro deles em Paris, no A 10 de abril de 1848 instalaram-se em Colônia.
final de 1844. Uma amizade e uma parceria intelectual das mais sólidas e, da parte de Engels,
de inigualável generosidade.
Em fevereiro de 1844, no único número dos Anais Franco-alemães, que saiu à luz, além da Colônia
Introdução à Crítica à filosofia do direito de Hegel, havia outro artigo de Marx – Sobre a A 1º de maio de 1848 saiu a Nova Gazeta Renana, mas, no final do ano, o governo
questão judaica. Bruno Bauer havia escrito criticando os judeus por buscarem apenas sua suspendeu temporariamente a publicação e Marx foi processado. Embora o tribunal de
liberdade religiosa, quando deveriam lutar pela liberdade de todos os homens. Marx, Colônia o tenha absolvido, ele foi expulso da Alemanha, voltando a Paris em maio de 1849,
concordando, acrescentava que a emancipação política não era ainda a emancipação humana, onde pôde permanecer apenas até agosto. Seguiu então para Londres, onde viveu até sua
pois esta exige a transformação do sistema social de produção e distribuição da riqueza e que, morte.
em última análise, a liberdade política depende da liberdade econômica. O homem só será
O ano de 1848 foi decisivo para Marx, que acompanhou a atuação do movimento operário
livre quando puder exercer uma atividade criadora, sem as pressões da propriedade privada e
nas jornadas revolucionárias daquele ano. O fantasma do comunismo rondava a Europa.
do dinheiro.
Tanto o judaísmo como o cristianismo, para Marx, são ideologias impotentes para combater
a exploração do homem pelo homem. A fim de libertar o homem de suas ilusões religiosas é 3 Conceitos-chave
preciso mudar o mundo que tornou necessárias tais ilusões, mudar a estrutura social e
econômica da sociedade. Para Marx, “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da Conceito básico de Marx é o do materialismo-histórico, que implica em toda sua visão de
verdadeira angústia e um protesto contra a verdadeira angústia. A religião é o suspiro da mundo, sua concepção do materialismo, da história e da práxis.
criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma Marx foi o primeiro a tratar cientificamente uma relação social como historicamente
situação sem espírito. É o ópio do povo”226. determinada, e observando a construção de sua teoria podemos observar seu método. A partir
do material empírico de que dispunha, Marx construiu abstrações conceituais – modelos – a
Os Anais foram publicados na Alemanha e Ruge, achando que Marx fora extremamente serem aplicados a uma situação histórica determinada, tendo como premissa que os objetos,
radical, acabou por romper com ele. Ruge fora hegeliano de esquerda e estivera preso entre as coisas, o mundo existem objetivamente, fora de nós, independentemente de nós.
1825-1830, emigrando em 1848. Mais tarde, entretanto, tornar-se-ia partidário de Otto
Bismarck. Para Hegel, o pensamento é a base do real e o real é a realidade do pensamento, sendo o
mundo a manifestação do movimento do espírito pensante. Para Marx, a relação
Marx passou a escrever para a revista Vorwaerts, que era editada em Paris. Mas Frederico pensamento/realidade não se baseia no pensamento, é real-histórica e não poderia ser uma
Guilherme pressionou o governo de Paris, que tinha François-Pierre Guizot como ministro do sem ser outra. A sociedade é material, existe fora de nossa mente, não é produto dela, e pode
Interior, para que os principais colaboradores da revista Vorwaerts – Karl Marx, Mikail ser reproduzida intelectualmente, conceitualmente, através de modelos que construímos para
Alexandrovitch Bakunin e Heinrich Heine – fossem expulsos da França. explicar o processo histórico. E tais modelos, tais abstrações são verificáveis.
Marx combateu não só o idealismo, como também as doutrinas de Immanuel Kant e David
Na Bélgica Hume, o agnosticismo, o criticismo, o positivismo. Criticou o velho materialismo, inclusive o
de Feuerbach que, para ele, sendo predominantemente mecânico, não era nem histórico e
Marx mudou-se para Bruxelas, onde viveu de 1845 a 1848. De lá escreveu trabalhos
nem dialético. Nele, a “essência do homem” era concebida de modo abstrato e não como um
importantes, que mostram a sua evolução para o comunismo. Criticou o materialismo
conjunto de relações sociais historicamente concretas e determinadas.
mecanicista de Feuerbach – Teses sobre Feuerbach (1845) – e em seguida, de setembro de
1845 a maio de 1846, escreveu com Engels A ideologia alemã. O trabalho não foi publicado na É por serem materiais que as relações sociais têm de ser historicamente determinadas.
ocasião – só o seria em 1933 –, mas isso não perturbou os autores. Marx escreveu depois, Marx não trabalhou com generalidades sobre o homem e a natureza e justamente por isso não
sobre o fato do trabalho não ter encontrado editor, que ele e Engels abandonaram o criou uma nova filosofia da história, mas o materialismo histórico. Seus conceitos, baseados no
manuscrito à crítica demolidora dos ratos e o fizeram sem pesar, pois haviam atingido seus real-histórico, são um modelo para a análise de diferentes sociedades, para a busca das leis de
seu desenvolvimento interno e daquelas que marcam a transição de um modelo a outro. E essa revolucionária”234. A importância da práxis, noção fundamental no materialismo histórico, é
contribuição de Marx ainda não foi superada. que ela coloca-se no plano da própria compreensão do que é o homem, segundo Leandro
Importante insistir nesse ponto porque as formulações de Marx são de tal maneira lógicas Konder: “Para Marx, o homem é um ser que se inventa a si mesmo, e por existir se inventando,
que, às vezes, não tiramos delas todas as suas consequências – como é o caso de se falar da parece não haver um acesso direto a ele”235. As diversas ciências, ao mesmo tempo em que
realidade do mundo, que é a base epistemológica do materialismo histórico: a realidade é contribuíram para o conhecimento do homem, não esgotaram tal conhecimento. “Nossa
diferente da ideia, é algo materialmente determinado. Posso estudar cientificamente a compreensão poderia chegar, no máximo, ao que o homem tem sido, mas ao chegar nesse
realidade, posso construir uma teoria científica dessa realidade, deixar de lado as discussões ponto ele já seria outro, por ter se reinventado, por ter criado novas dimensões para sua
sobre a ideia da “sociedade em geral” e passar a analisar uma sociedade materialmente
determinada: uma relação social específica, caracterizada por uma determinada referência à realidade”236. E foi Marx quem superou o ceticismo quanto ao se poder chegar ao
natureza, uma determinada relação de produção. conhecimento do homem:
Ele não é totalmente inacessível, há uma via de acesso a ele, uma mediação que nos permite chegar à
sua realidade: é através da atividade pela qual o homem se afirma como homem na história: a PRÁXIS.
A história [...] É porque o homem é o sujeito da práxis que a história segue os caminhos que segue e a realidade
assume as características que tem para nós. Sempre há um sujeito intervindo no mundo. O homem
Marx define, no Prefácio à Contribuição à crítica da economia política, o “fio condutor” de existe como homem por esta intervenção, pela qual transforma o mundo transformando-se a si mesmo.
[...] Analisando essa ação transformadora do homem posso ter acesso à sua essência, que está
seus estudos, dando, ao mesmo tempo, sua definição de história, do processo histórico, do exatamente nessa atividade, na práxis. Claro que não se trata de qualquer atividade [...] Trata-se de
materialismo histórico. Não é demais repeti-la: uma atividade de autorrealização humana, uma atividade qualitativamente diferente das comuns, uma
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor a meus estudos, pode ser atividade que inclui a dimensão da escolha.
assim resumido: na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações
Segundo Marx, a transição das atividades mecânicas e repetitivas para a práxis dá-se através de uma
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma
atividade essencial, que é a primeira forma possível da práxis humana: o trabalho. Há nele uma
determinada fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações
de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se levanta a superestrutura atividade mecânica, mas há também a projeção teleológica do objetivo a ser alcançado237.
jurídica e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de
produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a O conceito de práxis é dos mais importantes no pensamento de Marx.
consciência do homem que determina o seu ser, mas, ao contrário, o ser social é que determina sua Existe uma mediação que nos permite chegar à realidade do homem, que é a atividade pela qual o
consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da homem se afirma como homem na história, que é a práxis. O conceito de práxis é, segundo alguns
sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais do que a expressão autores, um conceito fundamental da filosofia de Marx. É porque o homem é o sujeito da práxis que a
jurídica disso, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até então. De formas história segue os caminhos que segue e que a realidade assume as características que ela assume para
de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se convertem em travas delas. Abre-se assim nós. Existe sempre um sujeito intervindo no mundo. O modo de ser próprio do homem consiste em
uma época de revolução social228. intervir no mundo, transformando a si mesmo238.
Até então, dizem Marx e Engels, toda concepção de História fazia caso omisso de sua base
real, material, e por isso: Alienação
A produção real da vida aparece como algo proto-histórico, enquanto a historicidade se manifesta como
algo separado da vida usual, como algo extra e superterreno. Desse modo se exclui da História o O desenvolvimento do trabalho criador (não alienado) é, para Marx, condição necessária
comportamento dos homens face à natureza, o que engendra a antítese natureza-história. Por isso essa para que o homem seja cada vez mais livre. Marx chamou de alienação do trabalho o fato do
concepção só consegue ver na história os grandes atos políticos e as ações do Estado, as lutas religiosas trabalhador desenvolver sua atividade em condições que lhe são impostas pela sociedade de
e as lutas teóricas em geral e vê-se obrigada a compartir, em cada época histórica, as ilusões dessa
classe e assim seja sacrificado ao produto de seu próprio trabalho. Tal conceito foi elaborado
época229.
principalmente nos Manuscritos de 1844.
Marx partiu do estudo da sociedade mais complexa e desenvolvida, a capitalista, para Ao considerar que o operário converte-se em mercadoria à medida que cria mais
esclarecer a história das sociedades passadas. Para ele, abstrações separadas da história real mercadorias, diz Marx: “O valor crescente do mundo das coisas determina a direta proporção
não têm valor. Em agosto de 1890 Engels escreveu a Conrad Schmidt: “Nossa concepção de da desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadoria, produz-
História é, sobretudo, um guia para o estudo e não uma alavanca de construção à la
se a si mesmo e ao operário como mercadorias”239. E mais adiante:
hegeliana”230. Advertiu também contra o economicismo, escrevendo a W. Borgius, em janeiro A alienação do operário em seu produto significa não só que seu trabalho se converte em objeto,
de 1894: existência externa, mas que existe fora dele, independentemente, como algo alienado a ele e que se
Os homens levam a cabo sua história, ainda que o façam no meio que lhes é dado e que os condiciona. converte em poder em si mesmo ao enfrentá-lo, significa que a vida que conferiu ao objeto se opõe a ele
[...] circunstâncias preestabelecidas entre as quais são, em última instância, as econômicas (e tanto como algo hostil e alheio240. [...] O meio pelo qual se realiza a alienação é, em si, prático. Assim, por
mais quanto mais suscetíveis sejam de serem influenciadas pelas políticas ou ideológicas) as decisivas, meio do trabalho alienado, o homem não só engendra sua relação com o objeto e com o ato da produção
as que configuram o fio condutor que leva à compreensão do fato histórico231. enquanto forças que lhe são estranhas e hostis; também engendra a relação na qual outros homens
estão com sua produção e seu produto, e a relação que ele mantém com estes outros homens. Assim
Em O 18 brumário de Luiz Bonaparte diz Marx: como engendra sua própria produção como uma perda de sua realidade, como um castigo; assim como
engendra seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence; assim
Os homens fazem sua própria história, mas não o fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias engendra o domínio daquele que não produz sobre a produção e sobre o produto. Ao mesmo tempo em
de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo que aliena de si sua própria atividade, confere, desse modo, a um estranho, uma atividade que
passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos232. tampouco lhe pertence241.
Quer dizer, através da alienação, o operário não se reconhece como produtor, como “dono”
A práxis do produto, mas vê-se submetido a ele, considerando o capitalista o verdadeiro dono da
Marx consegue fazer uma fusão do pensamento e da ação. O materialismo histórico pode produção.
ser chamado também – e não por acaso Gramsci assim o fez – de “filosofia da práxis”. Marx diz
nas Teses sobre Feuerbach: Ideologia
VIII. A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que descarrilam a teoria para o
misticismo encontram uma solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática. [...] A ideia de uma construção lógica distorcida, porém ligada a uma situação histórica
XI. Os filósofos não fizeram mais que interpretar, de diversos modos, o mundo, mas do que se trata é de
ensejadora de distorção, é, no pensamento de Marx, desde o primeiro momento de sua
transformá-lo233.
articulação original, uma ideia que vincula a ideologia à alienação (ou ao estranhamento, se
preferirem)242.
Para Michel Löwy, a III tese sobre Feuerbach talvez seja a mais importante. Diz ela: “A
coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou mudança de si mesmo Os homens adotam formas de representar a realidade, criam suas escalas de valor: o que
(Selbstveränderung) só pode ser captada e racionalmente compreendida como práxis devem esperar da vida, como devem viver, quais seus objetivos. Essas formas de
representação da realidade e de normas de conduta que os indivíduos proclamam ou praticam participar de atividades conspiratórias de pequenas seitas. O essencial, para ele, seria
constituem as ideologias. organizar e mobilizar amplas massas populares para que elas próprias promovessem a
A consciência de tipo ideológico, por estar ligada à divisão da sociedade em classes, não transformação da sociedade.
consegue exprimir plenamente um ponto de vista autenticamente universal, próprio da Em Paris, os revolucionários estavam muito divididos. Mehring expõe as ideias que Marx
comunidade humana, e por isso Marx considera tal consciência uma falsa consciência. No tinha deles: Saint Simon morrera em 1825 e Marx considerava seus seguidores “meio
entanto Marx utiliza também outros termos para ideologia como superestrutura, entre eles apóstolos e meio escroques”. Fourier morrera em 1837 e seus seguidores queriam planejar os
“maneiras de pensar”: falanstérios: com comida, higiene e o reaprendizado de práticas de solidariedade humana.
[...] não é este ou aquele conteúdo filosófico, político ou teológico que conta, mas certa maneira de Louis Blanc liderava os socialistas que não queriam incompatibilizar-se com a burguesia.
pensar. Esse conjunto de representações “repousa” sobre as formas de propriedade e de existência Achavam que participando de uma política de cúpula conseguiriam concessões e uma ordem
social, mas são as classes sociais que o criam; em outras palavras, a ideologia ou a “superestrutura” social mais humana. Bakunin tinha concepções confusas e variáveis, que seu ideal anarquista
nunca é a expressão direta da “infraestrutura” econômica: ela é produzida e inventada pelas classes
sociais, em função de seus interesses e de sua situação social. Portanto, não existe ideologia em geral de não conseguia sintetizar em eficiente programa de ação. Proudhon era contra a “agitação
uma sociedade, mas representações, maneiras de pensar de diferentes classes sociais243. comunista” e a favor de reformas econômicas racionais e pacíficas. Achava absurdo que os
proletários se unissem para reivindicar e fossem levados à greve. Esta, prejudicando a
Para Marx, “as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época; ou, dito harmonia do sistema de produção e fazendo a produção cair, parecia-lhe uma posição
de outro modo, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo
necessariamente criminosa249.
tempo, seu poder espiritual dominante”244.
Em maio de 1846, Marx convidara Proudhon para fazer parte de um comitê encarregado de
Para Marx, a existência de autênticas ideias revolucionárias no interior de uma sociedade promover, por correspondência, um intercâmbio das ideias comunistas em vários países. Mas
só será possível quando existir uma classe revolucionária atuando dentro dela, portadora e Proudhon respondeu que não estava de acordo com a ação revolucionária para transformar a
propagadora de tais ideias. sociedade. Na ocasião, escreveu o Sistema das contradições econômicas – A filosofia da
miséria, a que Marx respondeu com A miséria da filosofia, que deixou Proudhon furioso a
O proletariado como classe potencialmente revolucionária ponto de dizer que “os judeus envenenam tudo, dever-se-ia enviar essa raça para a Ásia ou
então exterminá-la”250.
Na Crítica à filosofia do direito de Hegel diz Marx que:
Por essa época Marx rompeu também com os irmãos Bauer – Bruno, Edgar e Egbert –, e foi
Na formação de uma classe carregada de cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que
não é classe alguma da sociedade burguesa, de um estamento que implica a dissolução de todos os contra eles que escreveu A sagrada família.
estamentos, de uma esfera a quem seus sofrimentos universais dão um caráter universal e que não pode Em 30 de março de 1846 houve em Bruxelas uma importante reunião do comitê operário
reivindicar para si nenhum direito especial, porque o que se comete contra ela não é nada de especial,
mas a injustiça por antonomásia; que não pode invocar nenhum título histórico, mas somente o título
local, filiado à Liga dos Justos, entidade comunista fundada por Wilhelm Weitling, alfaiate,
humano; que não é parcialmente incompatível com as consequências, mas totalmente incompatível com líder operário de grande prestígio. Na reunião, Marx e Weitling travaram ferrenha discussão.
os fundamentos do Estado alemão; de uma esfera, enfim, que só pode emancipar-se de todas as demais Marx disse ser tolice querer implantar o comunismo em lugares onde sequer a revolução
esferas da sociedade emancipando-se ao mesmo tempo; que, representando, numa palavra, a total burguesa tinha se realizado, e mostrou-se contra o envolvimento de trabalhadores em
perda do homem, só pode tornar a se encontrar encontrando de novo e totalmente o homem perdido.
atividades revolucionárias, para ele mal-amadurecidas, ou em aventuras românticas. Para a
Essa dissolução da sociedade é o proletariado245.
ação revolucionária era preciso apresentar um programa com sólidas bases científicas. Já
Quer dizer: o proletariado só poderá emancipar-se da burguesia, classe que o explora, Weitling considerava que o proletariado revolucionário não precisava de teorias e, ao
quando puder emancipar toda a sociedade da exploração e da opressão; quando sua luta, uma contrário, devia desconfiar dos teóricos. Conta-se que nessa ocasião, dando um soco na mesa,
luta de classes, for vitoriosa e, ao mesmo tempo em que se liberta, acaba com as classes e com Marx exclamou: “A ignorância jamais foi útil a alguém!” E acabou a reunião.
qualquer tipo de opressão. Mas, diz Marx, Mais tarde, com seus pontos de vista prevalecendo nos meios revolucionários, Marx aceitou
Os diferentes indivíduos só formam uma classe quando se veem obrigados a travar uma luta comum ingressar na Liga dos Justos. A Liga realizou um congresso em junho de 1847, em Londres,
contra outra classe, pois, de outro modo, eles mesmos se enfrentam uns com os outros, hostilmente, no congresso a que Marx não compareceu por falta de dinheiro para locomover-se. Engels foi e
plano da concorrência. Por outro lado, a classe se substantiva frente aos indivíduos que a formam de tal
modo que estes se encontram já com suas condições de vida predestinadas, por assim dizer; encontram- falou em seu nome.
se com o fato de que a classe lhes assinala sua posição na vida e, com isso, a trajetória de seu Ao segundo congresso da Liga dos Comunistas, em novembro de 1847, Marx e Engels
desenvolvimento pessoal; veem-se absorvidos por ela. É o mesmo fenômeno da absorção dos diferentes
indivíduos pela divisão do trabalho e para eliminá-lo só há um caminho, o da abolição da propriedade
compareceram e foram encarregados da redação de um Manifesto Comunista. Para Konder, o
privada e do próprio trabalho246. Manifesto comunista representa a melhor introdução ao estudo do pensamento de Marx251.
Nele ficam claras suas ideias básicas: “Até hoje, a história de todas as sociedades, até nossos
Marx sempre insistiu que não foi ele o autor da teoria da luta de classes, que o que ele fez
foi demonstrar que a existência das classes segue, pari passu, dias, é a história da luta de classes”252. Marx faz um histórico da evolução das sociedades,
[...] determinadas lutas históricas que configuram o desenvolvimento da produção, deixando claro que a
em especial do feudalismo ao capitalismo, analisando as classes sociais nelas presentes e seu
luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado e que esta ditadura representa comportamento político, para concluir: “De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só
simplesmente a transição à total abolição das classes e à instauração de uma sociedade sem classes247. o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e
perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, ao contrário, é seu
Sobre as acusações que sofria, já naquela época, de tornar os operários portadores de uma
missão histórica, como se fossem deuses, dizia Marx: produto mais autêntico”253. E mais adiante:
O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos
Muito pelo contrário! O proletariado pode e deve, necessariamente, emancipar-se a si mesmo porque
operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária, mediante a associação. Assim, o
nele, no proletariado culto, consumou-se praticamente a abstração de toda a humanidade, inclusive de
desenvolvimento da grande indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de
toda a aparência de humanidade, porque nas condições de vida do proletariado ganham sua expressão
produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua
mais desumana todas as condições de vida da atual sociedade, porque o homem, em seu seio, perdeu-se
a si mesmo, mas conquistando, ao mesmo tempo, não só a consciência teórica desta perda, mas queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis254.
também, diretamente, pelo imperativo de uma necessidade absolutamente coercitiva, impossível de se
esquivar a ela, o dever e a decisão – expressão prática da necessidade – de levantar-se contra essa Com a atividade política dos operários nos anos de 1848-1849, Marx esperava que a
situação desumana248. revolução proletária se concretizasse em breve. No início de 1859 ainda considerava possível
uma nova onda revolucionária, “seja provocada por um levante do proletariado francês seja
pela invasão da Santa Aliança contra a Babel revolucionária”255. Achava que, assim como o
Revolução movimento revolucionário de março de 1848 levara a burguesia ao poder, uma nova onda
Durante sua estada em Paris, Marx foi convidado para fazer parte de várias sociedades revolucionária daria o poder, desta vez, à pequena burguesia, que acabaria por trair a classe
secretas e recusou todos os convites que recebeu, porque achava perda de tempo e de energia operária. No entanto, considerava necessária uma união entre proletários e pequeno-
burgueses: conjugada – teórica e prática – dos trabalhadores dos diversos países.
A classe operária se une a eles para derrotar a fração cuja derrubada aspira, levantando-se contra eles O período da AIT foi um período de lutas de ideias entre as diversas correntes que a
em tudo que pretendam afirmar-se por si próprios. Os pequeno-burgueses se aproveitariam da
revolução que lhes desse a vitória para reformar a sociedade capitalista, tornando-a mais cômoda e mais
compunham. Um dos pontos de discordância com outros revolucionários foi o fato de Marx
útil para sua própria classe e, até certo ponto, para os próprios trabalhadores. Mas o proletariado não considerar que, em certas ocasiões, sempre que fosse possível os operários deveriam
podia dar-se por satisfeito só com isso. Enquanto os democratas pequeno-burgueses, uma vez cumpridas apresentar candidatos às Assembleias Nacionais de seus países.
suas modestas aspirações, se esforçariam por pôr ponto final à revolução, os operários deveriam cuidar
de fazê-la permanentemente, enquanto não sejam tiradas do governo todas as classes mais ou menos Marx discordava de Louis Blanqui por este pretender chegar ao poder através de um golpe
possuidoras, conquistado o poder pelo proletariado, cuja associação esteja avançada não só em um país, de mão de uma minoria resoluta. Proudhon pregava a formação de bancos que dessem crédito
mas em todos os países importantes; que haja terminada toda a concorrência entre eles nos ditos gratuito aos trabalhadores e reformas ilusórias, centradas na idealização de trabalhadores e
países, e que concentrem em suas mãos pelo menos as forças produtivas decisivas256. artesãos independentes, e outras experiências semelhantes que, segundo Marx, só se
No verão europeu de 1850 as esperanças revolucionárias foram diminuindo e, segundo as propunham a melhorar a vida dos trabalhadores. O cartismo havia fracassado, a escola
ideias de Marx, enquanto as forças produtivas da sociedade burguesa estivessem em utópica de Robert Owen convertera-se numa seita religiosa de livres-pensadores e o
desenvolvimento a revolução não poderia ocorrer, pois o momento revolucionário é o do socialismo cristão não propunha lutas políticas, mas a formação de cooperativas e atividades
choque de forças produtivas modernas com o regime burguês de produção. filantrópicas e culturais. As organizações sindicais pareciam sofrer de indiferentismo político.
A cisão mais séria entre os revolucionários deu-se mais tarde. Em setembro de 1868 a
Aliança Internacional da Democracia Socialista, liderada pelo anarquista russo Miguel
A Associação Internacional dos Trabalhadores, AIT, a 1ª Internacional Bakunin, pediu sua incorporação à AIT, sendo aceita em julho do ano seguinte. Surgiram logo
Para Franz Mehring, Marx iniciou sua participação na política em 1842, quando escreveu duas tendências na associação: a marxista (termo cunhado pejorativamente por Bakunin) e a
em Trombetaços, revista de Ruge, um artigo criticando o decreto sobre a censura na Prússia. anarquista. Os anarquistas chamavam os marxistas de autoritários e a si próprios de
Na Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx escreveu: libertários. Em setembro de 1871, numa conferência em Londres, apesar da oposição
A arma da crítica não pode suplantar a crítica das armas. O poder material só pode ser derrotado por
bakunista, as teses de Marx sobre a necessidade da ação política da classe operária foram
outro poder material; mas, por outro lado, a teoria se converte em força efetiva quando se apodera das vitoriosas. Dizia a Resolução IX:
massas. Uma revolução radical precisa de um elemento passivo, de uma base material; nos povos, a Considerando:
teoria só se realiza na medida em que realiza suas necessidades, não basta que uma ideia clame por se
Que contra o poder coletivo das classes possuidoras o proletariado só pode agir como classe
realizar, é preciso que a realidade clame pela ideia257.
constituindo-se em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes
As décadas de 30 e 40 do século XIX foram décadas revolucionárias, com o surgimento na possuidoras;
cena política de segmentos operários que pareciam ter plena consciência de sua situação de Que esta constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da
classe e que estavam dispostos a lutar contra a burguesia, contra a exploração do homem pelo revolução social e de seu objetivo supremo: a abolição das classes;
homem e pareciam autorizados a ter grandes perspectivas de vitória. Logo depois das Que a coalizão das forças operárias, já conseguida através das lutas econômicas, deve servir também de
insurreições dos anos de 1830 foi criada a Associação Patriótica Alemã, que reivindicava a alavanca nas mãos desta classe, em sua luta contra o poder político de seus exploradores;
liberdade e unidade da Alemanha. A Conferência lembra aos membros da Internacional: que, no estado de militância da classe operária,
No verão de 1847 Marx começara a escrever na Gazeta Alemã, de Bruxelas e tinha grande seu movimento econômico e sua ação política estão indissoluvelmente reunidos259.
influência no periódico, que passou a ser praticamente o porta-voz de uma organização
Em setembro de 1872, depois da derrota da Comuna de Paris, que marcou o início de uma
proletária que se formava e que se concretizou na Liga dos Comunistas. Inicialmente a liga
fase descendente da ação operária, oficializou-se, em Haia, a cisão existente entre anarquistas
chamou-se Liga dos Justos, e organizou-se em Londres como um comitê de correspondência
e comunistas, sendo aqueles expulsos da AIT. A Associação perdeu força política transferindo
internacional entre comunistas. Em janeiro de 1847, quando foi organizada, o relojoeiro José
sua sede para Nova York, e acabou por se dissolver a 15 de julho de 1876.
Moll convidou Marx e Engels para participarem dela, pois conhecia suas ideias e estava de
acordo com elas. A liga propunha o fim da burguesia. Em setembro de 1847, o comitê central Marx escreveu brilhantes trabalhos de história política. Destacamos: os capítulos de O
da Liga publicou a Revista Comunista, com a consigna de “Proletários de todos os países, uni- capital sobre a acumulação originária, a jornada de trabalho, a origem e a natureza do
vos!” e a 30 de novembro a Liga dos Justos transformou-se em Liga dos Comunistas. dinheiro, sobre a Revolução Industrial e as formas de capital (comercial, industrial e
1) O objetivo da Liga é derrubar a burguesia, levar o proletariado à situação de classe dominante,
financeiro), sobre a renda da terra. A estes somam-se o Manifesto comunista e As lutas de
suprimir a velha sociedade baseada na dominação de classe e instaurar uma sociedade nova, sem classe em França, O 18 brumário de Luiz Bonaparte e A guerra civil na França.
classes e sem propriedade privada. Em O 18 brumário de Luiz Bonaparte Marx faz, em cima dos acontecimentos, uma refinada
2) Para fazer parte da Liga é necessário preencher as condições seguintes: análise política, em especial do comportamento das classes e camadas sociais em luta.
a) viver e agir de acordo com as finalidades da Liga; Destacamos aqui suas indicações sobre a pequena burguesia e o campesinato:
b) ser enérgico e abnegado na propaganda; A pequena burguesia percebeu que tinha sido mal recompensada depois das jornadas de julho de 1848,
c) aderir aos princípios do comunismo; que seus interesses materiais corriam perigo e que as garantias democráticas que deviam assegurar a
efetivação desses interesses estavam sendo questionadas pela contrarrevolução. Em vista disso aliam-se
d) não fazer parte de qualquer associação anticomunista, política ou nacional; ao operariado. [...] Não se deve formar uma concepção estreita de que a pequena burguesia, por
e) submeter-se às decisões da Liga; princípio, visa impor um interesse de classe egoísta. Ela acredita, pelo contrário, que as condições
f) manter absoluta discrição acerca de todas as questões da Liga; especiais para sua emancipação são as condições gerais sem as quais a sociedade moderna não pode
ser salva nem evitada a luta de classes. Não se deve imaginar, tampouco, que os representantes
g) ser aceito unanimemente por todas as seções da Liga. democráticos sejam na realidade todos shokeepers (lojistas) ou defensores entusiastas desses últimos.
3) Todos os membros da Liga devem considerar-se irmãos e devem ajudar-se mutuamente, em caso de Segundo sua formação e posição individual podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os
torna representantes da pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites
necessidade258. que esta não ultrapassa da vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os
mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática,
Foi para essa organização que, em 1848, Karl Marx e Friederich Engels escreveram o a pequena burguesia. Esta é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários
Manifesto Comunista.
de uma classe e a classe que representam260.
Bem mais tarde, a 28 de setembro de 1864, sob o impacto da rebelião polonesa de 1863 e
da sangrenta repressão tzarista contra ela, foi criada a Associação Internacional dos E sobre o campesinato:
Trabalhadores – considerada a Primeira Internacional – em um comício realizado em Saint Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam
umas das outras e opõe o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da
Martin’s Hall, em Londres. Eis algumas das teses: a emancipação dos trabalhadores deve ser sociedade, esses milhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos
obra deles mesmos; a libertação dos operários deve acabar com toda e qualquer forma de camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles
dominação de classe; a luta política é necessária e deve sempre ter como objetivo final a comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nessa medida não constituem
emancipação econômica dos trabalhadores; a libertação do proletariado exige a atividade uma classe. São, consequentemente, incapazes de fazer valer seus interesses261.
Em sua apreciação sobre a Comuna de Paris, também escrita no momento dos para a História.
acontecimentos, Marx dá inestimáveis indicações históricas sobre a luta revolucionária: A Introdução à Contribuição à crítica da economia política começa por uma crítica ao
A variedade de interpretações a que foi submetida a Comuna e a variedade de interesses que método empirista utilizado pelos economistas do século XVI, que descreviam a economia do
encontraram nela sua expressão demonstram que era uma forma política perfeitamente flexível,
diferentemente das formas anteriores de governo, que foram todas fundamentalmente repressivas. Eis
país a partir de fenômenos superficiais tais como população que, apesar de ser “base e sujeito
seu verdadeiro segredo: a Comuna foi, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da de todo ato social”, não deixa de ser uma generalização arbitrária, quando se omitem as
classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política finalmente descoberta, para levar a cabo classes que a compõem. Ao mesmo tempo, as classes podem ser também uma generalidade
dentro dela a emancipação econômica do trabalho. Sem essa última condição o regime da Comuna teria indeterminada, quando nelas não entram os elementos que as fundamentam: a divisão do
sido uma impossibilidade e uma impostura. A dominação política dos produtores é incompatível com a
perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna deveria servir de alavanca para extirpar os
trabalho, a troca, os preços, o trabalho assalariado e o capital. Esse último, salienta Marx,
cimentos econômicos sobre os quais descansa a existência das classes, e, por conseguinte, a dominação nada representa sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços etc.
de classe. Emancipando o trabalho, todo homem se converte em trabalhador e o trabalho produtivo Dito de outra maneira: as categorias a serem utilizadas para dar conta da formação econômica
deixa de ser atributo de uma classe262. capitalista têm, necessariamente, que se articular num sistema que reproduz a totalidade do
real.
Para Marx, a Comuna de Paris foi “a primeira revolução em que a classe operária foi
abertamente reconhecida como a única classe capaz de iniciativa social, inclusive pela grande Os economistas que começam pela população apenas reproduzem uma representação
massa da classe média parisiense – donos de lojas, artesãos, comerciantes – com a única incoerente do conjunto e quanto mais avançam na descrição das partes, maior é o número de
conceitos indeterminados que acumulam. Quando se percorre esse caminho – de mera
exceção dos capitalistas ricos”263.
descrição do concreto vivo – tem-se que fazer o caminho de volta para que se chegue
novamente à população, “não mais como uma representação indeterminada, mas como uma
Economia rica totalidade de relações e determinações diversas”264. Nesse caso, a população absorve as
No prólogo de O capital, Marx diz que “a finalidade dessa obra é descobrir a lei econômica determinações de classe, de divisão do trabalho, a propriedade, a troca, a renda etc.
que move a sociedade moderna”, isto é, a sociedade capitalista; o estudo das relações de Como em outras partes da Introdução à Contribuição à crítica da economia política, Marx
produção de uma dada sociedade, historicamente determinada, seu surgimento, polemiza continuamente com Hegel, que tinha a ilusão de que o real é produzido pelo
desenvolvimento e decadência – é esse o conteúdo de sua obra. pensamento, que parte, se concretiza e se aprofunda em si e para si. A essa ideia Marx
Marx formulou – ou reformulou criticamente – uma série de categorias que são contrapõe o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto, “forma de proceder do
fundamentais para a compreensão de sua obra: valor – o valor de uma mercadoria é pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como concreto
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção; mais-valia, lei pensado”265. Dá como exemplo a categoria econômica mais simples – valor de troca – que
econômica básica da sociedade capitalista: quando a produção de mercadorias atinge um absorve em si, ou pressupõe, uma população que produz em determinadas condições, as
determinado grau de desenvolvimento o dinheiro se transforma em capital; a fórmula de famílias, as comunidades, os Estados. Essa relação – valor de troca – só existe como relação
circulação da mercadoria, que era, nas sociedades pré-capitalistas, mercadoria-dinheiro- parcial, separada de um todo concreto e vivo já determinado como concreto.
mercadoria (M.D.M.) passa a ser dinheiro-mercadoria-dinheiro incrementado (D-M-D’). É a Marx insistiu várias vezes numa característica fundamental de seu método: o sujeito. A
esse incremento do dinheiro que Marx chama de mais-valia (mais valor). sociedade está sempre pressuposta, sempre presente no espírito, como totalidade.
Marx desenvolveu sua teoria econômica mostrando, através da descoberta da mais-valia, Sobre a relação entre Lógica e História – ou entre o concreto pensado e o concreto real –
quem são os verdadeiros criadores da riqueza social – o proletariado –, o processo de sua Marx coloca o problema da existência autônoma anterior das categorias simples em relação às
exploração e a necessidade de sua libertação, libertando, ao mesmo tempo, toda a sociedade mais concretas. Aponta que Hegel começava corretamente pela posse como relação jurídica
da exploração do homem pelo homem. mais simples. Mas não existem posses jurídicas anteriores à família ou às relações de
O conceito de relação de produção é outra das grandes contribuições de Marx para a dominação e servidão, que são relações muito concretas. Lembra Marx que havia tribos que
compreensão das sociedades: relações de produção são relações entre as pessoas, tendo em tinham posses sem que existisse a propriedade e conclui que, frente à propriedade, as
vista as coisas. categorias mais simples são as de comunidade, de família, de tribo, embora, num nível mais
Poderíamos resumir as grandes contribuições de Marx às ciências humanas em quatro evoluído de sociedade, a propriedade apareça como uma relação simples dentro de uma
grandes itens: organização desenvolvida. Desse e de outros exemplos Marx deduziu que as categorias mais
simples podem expressar, podem ser portadoras de relações dominantes num conjunto não
1) o materialismo histórico – base teórica para a interpretação crítico-científica das
desenvolvido ou num conjunto de relações subordinadas de uma totalidade desenvolvida. A
sociedades;
categoria dinheiro, por exemplo, encerrava, de forma embrionária, as contradições que iriam
2) a crítica da economia política e o modelo teórico do modo de produção capitalista; se desenvolver plenamente no capitalismo e muito antes do capitalismo existir. Por outro lado,
3) as aplicações e desdobramentos desses modelos ao estudo de situações e sistemas na sociedade moderna, o dinheiro continua a ser veículo tanto de relações pré-capitalistas
concretos, como por exemplo o estudo das crises europeias pós-1848, da situação como de relações de dominação totalitária – dinheiro financeiro gerador do capital
econômica da Índia, da Revolução Espanhola e, em particular, a clássica análise do monopolista-financeiro universalizado.
bonapartismo; Entre as indicações metodológicas que dizem respeito diretamente à ciência da História
4) a perspectiva política da transição revolucionária ao socialismo. destaca-se a seguinte: a sociedade burguesa é a mais complexa organização histórica da
produção e as categorias que a representam também servem para compreender a anatomia
das relações de produção das sociedades anteriores.
A metodologia de Marx Do mesmo modo que a anatomia do homem é a chave para a compreensão da anatomia do macaco [...] a
economia burguesa nos dá a chave para a economia antiga, mas não como fazem os economistas
Na Introdução à Contribuição à crítica da economia política Marx diz que havia preparado a
introdução, mas que desistira de publicá-la por considerar que, adiantar resultados daquilo vulgares, que apagam todas as diferenças históricas e “descobrem” capital em todas as sociedades266.
que deve ser demonstrado, mais do que ajudar atrapalharia a compreensão de seus pontos de Nessa parte Marx ressaltou a importância das diferenças, dando exemplo da propriedade
vista. Essa observação tem grande importância para a compreensão da parte três desse comunal, uma relação pré-burguesa, que no capitalismo aparece atrofiada e deturpada pela
trabalho – “O método da economia política” – cujo conteúdo, o método, é colocado em alto dominação das relações capitalistas.
nível de generalização: os princípios de sua metodologia científica. A dificuldade para
Na parte final da Introdução à Contribuição à crítica da economia política Marx referiu-se à
entender a prática teórica de Marx só pode ser vencida se acompanharmos a exposição
não correspondência entre a data de nascimento de uma relação e a data de nascimento da
sistemática da anatomia da formação capitalista, de um rigoroso estudo de O capital. Aqui,
categoria que a representa como concreto pensado. Cita como exemplo a renda da terra,
evidentemente, não podemos refazer esse caminho, mas apenas tentar nos aproximar da
relação real muito anterior ao lucro industrial e à mais-valia capitalista, mas que no
compreensão dos princípios da metodologia de Marx para as ciências humanas, em especial
capitalismo é uma relação e uma categoria subordinada ao capital e ao lucro.
E Marx então formula um critério metodológico para expor o resultado de suas pesquisas ______. Introduccion a la Critica de la economia política. La Habana: Política, 1966.
sobre diferentes formações sociais: “Em todas as formas de sociedade existe uma produção ______. El capital. T. I. México: FCE, 1966 [Trad. de W. Roces].
determinada que define o grau e a influência de todas as outras”267. E ilustrou essa ______. Contribucion a la Critica de la economia política. La Habana: Política, 1966.
afirmação com exemplos que vão desde os povos pastores até à sociedade burguesa, para
afirmar o fundamento de sua ordenação das categorias que definem um sistema: “Não se pode ______. “As lutas de classe na França de 1848 a 1850”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras
compreender a renda da terra sem o capital, embora se possa compreender o capital sem a escolhidas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa, que domina ______. “O 18 brumário de Luiz Bonaparte”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol.
tudo”268. Por isso, o capital deve constituir o ponto de partida e o ponto de chegada e tem 1. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
que ser examinado antes da propriedade da terra. Depois de examiná-los por separado, têm ______. “Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos trabalhadores”. In: MARX,
que ser examinados em sua relação recíproca. Na estrutura dos três livros de O capital Marx K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
seguiu rigorosamente tal metodologia.
______. “Teses sobre Feuerbach”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 3. Rio de
Janeiro: Vitória, 1961.
4 Considerações finais ______. Manuscritos económicos y filosoficos de 1844. Santiago do Chile: Austral, 1960.
Até então os filósofos tinham tratado de explicar o mundo; tratava-se, não só de explicá-lo, MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. Vol. 3. Moscou: Progreso, 1974.
mas de transformá-lo. Marx buscou dar uma explicação científica da sociedade a fim de forjar
______. Correspondencia. Buenos Aires: Cartago, 1972.
as armas teóricas de sua transformação, pois
Marx era, antes de mais nada, um revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira para a derrocada ______. “Manifesto do Partido Comunista”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol.
da sociedade capitalista e das instituições políticas por ele criadas, contribuir para a emancipação do 1. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
proletariado moderno, a quem havia infundido, pela primeira vez, a consciência de sua própria situação
e de suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: tal era a verdadeira missão de ______. La ideologia alemana. Montevidéu: Pueblos Unidos, 1958 [Trad. de W. Roces].
sua vida. A luta era seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade e um êxito como poucos [...]
Seu nome viverá através dos séculos e com ele sua obra269. 220. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora aposentada da UFSCar e professora do
Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira – Universo.
221. Ph.D. em Economia pela Universidade de Moscou, professor aposentado da UFSCar e professor do Programa
Referências de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde, da Fiocruz.
222. MARX, K. “Debates sobre a liberdade de imprensa”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras. T. I, p. 45. Cf.
BEAR, M. História do socialismo e das lutas sociais. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. La Habana: Política, 1964, p. 69.
223. MARX, K. & ENGELS, F. Obras. T. III, p. 221. Cf. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 138.
BENSAID, D. Marx, o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999 [Trad. de 224. KONDER. L. Marx: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1968, p. 60.
L.C.M. Guerra]. 225. Ibid., p. 61.
226. MARX, K. “Towards the Critique of Hegel’s Philosophy of Right (1844)”. In: FEUER, L.S. (org.). Marx and
BUEY, F.F. Marx (sem ismos). 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009 [Trad. de L.S. Henriques]. Engels, Basic Writings on Politics and Philosopy. Londres: Fontana, 1969, p. 304. Cf. LÖWY, M. A guerra dos deuses,
religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 13.
CÁTEDRA DE FORMACIÓN POLÍTICA “ERNESTO CHÊ GUEVARA. Introducción al 227. KONDER, L. Marx: vida e obra. Op. cit., p. 113.
pensamiento marxista. Buenos Aires: Ed. Madres de Plaza de Mayo, 2003. 228. MARX, K. Contribucion a la critica de la economia política. La Habana: Política, 1966, p. 12. Chamamos a
atenção para o fato de Marx jamais ter utilizado o termo “infraestrutura” (como hoje tornou-se habitual) para
GRAMSCI, A. Il materialismo storico. Roma: Riuniti, 1971. referir-se à base econômica, e sim “estrutura”, que corresponde à base.
229. MARX, K. & ENGELS, F. La ideologia alemana. Montevidéu: Pueblos Unidos, 1958, p. 40.
HOBSBAWM, E. et al. Storia del marxismo – Vol. 1: Il marxismo ai tempi di Marx. Turim: 230. MARX, K. & ENGELS, F. Correspondência. Buenos Aires: Cartago, 1972, p. 393.
Giulio Einaudi, 1978. 231. MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. Vol. III. Moscou: Progreso, 1974, p. 531.
232. MARX, K. “O 18 brumário de Luiz Bonaparte”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. I. Rio de
KONDER, L. Em torno de Marx. Rio de Janeiro: Boitempo, 2010. Janeiro: Vitória, 1961, p. 203.
233. MARX, K. “Teses sobre Feuerbach”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. III. Rio de Janeiro:
______. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Vitória, 1961, p. 210.
234. LÖWY, M.; RENAULT, E. & DEMÉNIL, G. Ler Marx. São Paulo: Unesp, 2011, p. 35.
______. “Esquerda, socialismo e marxismo”. Revista Teoria & Pesquisa, n. 2, set./1992. São 235. KONDER, L. “Esquerda, socialismo e marxismo”. Revista Teoria e Pesquisa, n. 2, 1992, p. 11. São Carlos:
Carlos: UFSCar/DCSo. UFSCar/DCSo, 1992.
236. Ibid.
______. Marx: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1968. 237. Ibid., p. 11-12.
KRIEGER, A. Les internationales ouvrières: 1864-1943. Paris: PUF, 1966. 238. Ibid., p. 11.
239. MARX, K. Manuscritos econômicos y filosóficos de 1844. Santiago de Chile: Austral, 1960, p. 67.
LÖWY, M. A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002. 240. Ibid., p. 68.
241. Ibid., p. 78.
______. A guerra dos deuses, religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000 242. KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 31.
[Trad. de V.L.M. Joscelyne]. 243. LÖWY, M.; RENAULT, E. & DEMÉNIL, G. Ler Marx. São Paulo: Unesp, 2011, p. 65.
244. MARX, K. & ENGELS, F. La ideologia alemana. Op. cit., p. 48-49.
LÖWY, M.; RENAULT, E. & DUMÉNIL, G. Ler Marx. São Paulo: Unesp, 2011 [Trad. de M. 245. MARX, K. “Sobre la Critica de la Filosofia Del Derecho, de Hegel”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras. T. I, p.
Echalar]. 390. Cf. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. La Habana: Política, 1964, p. 95.
246. MARX, K. & ENGELS, F. La ideologia alemana. Op. cit., p. 58.
MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. La Habana: Política, 1964. 247. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 102.
248. MARX, K. & ENGELS, F. “A sagrada família, ou Crítica da crítica crítica (Contra Bruno Bauer e consortes)”.
Obras. T. II, p. 20. Cf. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 129.
Do autor 249. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 325-327.
250. KONDER, L. Marx: vida e obra. Op. cit., p. 135.
MARX, K. “La burguesia y la contrarevolucion”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. 251. Ibid., p. 140.
252. MARX, K. & ENGELS, F. “Manifesto do Partido Comunista”. Obras escolhidas. Vol. I. Rio de Janeiro: Vitória,
Vol. 1. Moscou: Progreso, 1973. 1961, p. 21.
253. Ibid.
______. “A guerra civil na França”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. Vol. 2.
254. Ibid., p. 31.
Moscou: Progreso, 1973. 255. MARX, K. & ENGELS, F. “Alocución de las autoridades centrales a la Liga de marzo de 1850”. Obras. T. VII, p.
245. Cf. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 220.
______. Prólogo de Contribucion a la Critica de la economia política. La Habana: Política, 1966. 256. MARX, K. & ENGELS, F. “Alocución de las autoridades centrales a la Liga de marzo de 1850”. Op. cit., p. 220.
257. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 93-94.
258. BEAR, M. História do socialismo e das lutas sociais. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968, p. 467ss.
259. KRIEGER, A. Les internationales ouvrières, 1864-1943. Paris: PUF, 1966, p. 17.
7
260. MARX, K. “O 18 brumário de Luiz Bonaparte”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. I. Op. cit.,
1961, p. 226-227. Benedetto Croce (1866-1952)
261. Ibid., p. 277.
262. MARX, K. “A guerra civil na França”. In. MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. Vol. 2. Moscou: Progreso,
1973, p. 236. Raimundo Nonato Pereira Moreira270
263. Ibid., p. 238.
264. MARX, K. Introduccion a la critica de la economia política. La Habana: Política, 1966, p. 257.
265. Ibid., p. 257-258.
266. Ibid., p. 264.
267. Ibid., p. 267.
268. Ibid., p. 257
269. ENGELS, F. “Discurso en la tumba de Marx”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras escogidas. T. III. Op. cit., p. 17- Para Ely Souza Estrela, in memoriam.
19. Cf. MEHRING, F. Carlos Marx: historia de su vida. Op. cit., p. 514.
contemporanea)311. presente315.
Assim, concomitante à edificação do seu sistema filosófico, Croce elaborou uma complexa Na verdade, ao discutir essas questões, Croce buscava estabelecer uma distinção nítida
teoria da historiografia. O primeiro momento de elaboração do sistema resultou no ensaio La entre a história e a crônica. Assim, a diferença entre os dois gêneros não aparecia na
storia ridotta sotto il concetto generale dell’arte, no qual estabeleceu relações de afinidade qualidade dos fatos que cada um tomou como objeto de estudo – por exemplo, a história
entre os conhecimentos artístico e histórico. Em seguida, após subsumir a historiografia ao abordaria os fatos gerais e os acontecimentos públicos, enquanto à crônica caberiam os
conceito geral de arte, Croce identificou a filosofia à história, ou seja, o juízo universal ao eventos individuais e privados. Sob a perspectiva do autor, a história e a crônica não se
particular, no corpo da Logica. No trabalho em questão, concluiu que a filosofia era a distinguiam enquanto duas formas do gênero histórico, mutuamente complementares ou em
metodologia da história. Ao mesmo tempo, assegurou que a historiografia expressava a que uma estaria subordinada à outra, mas como duas atitudes espirituais diversas. Para
síntese entre os conceitos de universal e particular. O passo seguinte foi a afirmação da tese Croce, a História é história viva, a crônica é a história morta; a História é história
segundo a qual toda verdadeira história é história contemporânea, ou seja, o princípio que contemporânea, a crônica é história passada; a História é principalmente um ato de
advoga as relações entre o ofício do historiador e as preocupações dos amantes de Clio com a pensamento, a crônica, um ato de vontade. Enfim, toda história se torna crônica quando não
vida presente. mais é pensada, mas somente recordada nas palavras abstratas, as quais, em um tempo, eram
A propósito, Teoria e storia della storiografia resultou da compilação de uma série de concretas e a expressavam316.
ensaios publicados e de conferências proferidas por Croce entre 1912-1913. A primeira edição Ainda no que concerne à tese segundo a qual toda verdadeira história é história
foi publicada em alemão, sob o título Zur Theorie und Geschichte der Historiographie contemporânea, Croce sublinhou que as verdadeiras fontes da síntese histórica eram o
(Tübingen, Mohr, 1915). O editor solicitara do autor um livro sobre “filosofia da história”. Em documento e a crítica, a vida e o pensamento. Assim, destacava que as fontes históricas
contrapartida, recebeu uma obra que proclamava a “morte” do gênero histórico supracitado e estavam no âmago do historiador e não fora dele. Em consonância com o seu idealismo
a sua “dissolução” no âmago da historiografia. historiográfico e na contracorrente da abordagem “empiricista”, acreditava que o espírito
Croce partiu da afirmativa segundo a qual se denomina “história contemporânea” aquela humano era o verdadeiro responsável pela construção da história. Desta forma, cabia ao
referente a um passado muito recente: o dos últimos 50 ou 10 anos, de um mês, do dia espírito a preservação dos despojos mortais da história – as narrações vazias, os documentos
anterior, ou mesmo da última hora ou do último minuto. Mas, ponderava, se os leitores mortos e as crônicas. O espírito se encarregava de conservar o quanto possível os vestígios da
considerassem a questão com estrito rigor, aplicariam o adjetivo “contemporâneo” somente à vida passada, restaurando-os à medida que os mesmos se alteravam. Portanto, a atitude de
história nascida imediatamente, após o ato que se está realizando, como consciência dessa transcrever histórias vazias e recolher documentos mortos constituía um ato de vida, que
mesma ação. Exemplificando, seria a história que o autor compõe de si mesmo, escrevendo as servia à existência humana. Croce acreditava que chegaria o momento no qual aqueles
páginas que configuram o seu pensamento, necessariamente vinculado ao trabalho de despojos reproduziriam, enriquecida em nosso espírito, a história passada, reconstruindo-a
elaboração. Nesse caso, o conceito “contemporâneo” estaria bem aplicado, posto que tal como presente317.
história, como todos os atos espirituais, está fora do tempo (do antes e do depois) e se forma Segundo Croce, a história morta reviveria e a passada se tornaria presente à medida que
“no mesmo tempo” da ação à qual está ligada. Por outro lado, a “história não contemporânea” assim exigisse o desenvolvimento da vida. O autor citava o exemplo dos gregos e dos romanos,
ou “passada” era aquela já formada e que nascia como crítica dessa narrativa, tivesse ela que permaneceram em seus sepulcros até que o Renascimento possibilitou um novo despertar.
milhares de anos ou remontasse somente à última hora312. No mesmo sentido, as formas primitivas da civilização, grosseiras e bárbaras (nos sentidos
Não obstante, argumentava, até mesmo a história já formada, se tem algum sentido e não empregados por Vico), durante muito tempo permaneceram esquecidas, ou pouco estudadas,
soa como um discurso vazio, também é contemporânea, em nada diferindo da outra. Como no ou mal-interpretadas, até que uma nova fase do espírito europeu, conhecida como
primeiro caso, a condição para a existência da “história não contemporânea” é que o fato Romantismo ou Restauração, não “simpatizou” com ela, ou seja, não as reconheceu como de
acerca do qual se tece a história vibre na alma do historiador ou, ainda, que este tenha diante seu próprio interesse presente. Portanto, grande parte da história, que, nas diversas épocas,
de si, inteligíveis, os documentos. Assim, se a história contemporânea emerge diretamente da aparecia sob o aspecto de crônica, assim como os documentos supostamente mudos, mediante
vida, o mesmo ocorre com a história não contemporânea, porque apenas um interesse pelo as necessidades da vida presente, voltariam a falar318.
presente conduz à investigação de um fato passado – o qual, na medida em que se relaciona Ademais, Croce assegurou que era impossível entender qualquer coisa do efetivo processo
com uma questão da atualidade, não responde a um interesse pelo passado, mas acerca do do pensar histórico a não ser que se considere que o próprio espírito é história. Assim, o
tempo presente313. espírito é, em cada momento, construtor da história e, ao mesmo tempo, resultado de toda a
Para Croce, a contemporaneidade não é característica apenas de uma classe de histórias, história anterior. E mais: o espírito carrega em si toda a sua história, a qual coincide com ele
próprio. Portanto, o espírito reviveria a sua história, mesmo sem os elementos externos
chamados narrações ou documentos, que eram instrumentos forjados por ele e atos o estado de ânimo presentes no historiador, que conformavam somente o material necessário,
preparatórios em cujo processo se resolvem. Para esse fim, o espírito assevera e preserva a matéria-prima da historiografia. Portanto, o conhecimento histórico, como qualquer outro,
zelosamente as “memórias do passado”319. não podia consistir em uma reprodução ou cópia do estado de ânimo, pela razão óbvia de que
isso seria totalmente inútil e estranho à atividade espiritual – que não apresentava, dentre as
Na conclusão de Teoria e storia della storiografia Croce expressou um surpreendente
suas produções, a do inútil. Assim, Croce criticava os programas dos historiógrafos que se
paradoxo da sua tese: da nova filosofia e da nova historiografia, que era sujeito e não objeto,
propunham a representar a vida em seu caráter imediato. Por conseguinte, cabia à
não se podia fazer história, ou seja, não podiam emitir juízos históricos acerca de si mesmos e
historiografia superar a existência vivida para representá-la sob a forma de conhecimento. Em
do tempo presente. Segundo o autor, a historiografia em construção se ocupava com uma
síntese, prosseguindo a linha de raciocínio iniciada na Logica, o autor destacou que a
história de “épocas” ou de “grandes períodos”, enquanto o novo tempo no qual se constituía o
historiografia não era fantasia, mas pensamento. “Como pensamento, ela não dá somente
seu enfoque historiográfico não havia se encerrado. Em síntese, Croce revelou um aspecto
cunho universal à imagem, tal qual faz a poesia, mas liga intelectivamente a imagem ao
contraditório do princípio segundo o qual toda verdadeira história é história contemporânea.
Se, por um lado, o sugeria o caráter contemporâneo da “nova historiografia” (elaborada a universal, distinguindo e unificando ao mesmo tempo no juízo histórico”324.
partir das questões suscitadas pelo presente), por outro, esse empreendimento (que se Para Croce, a historiografia também constituía fator de libertação da história. Assim, o
ocupava de “épocas” ou “grandes períodos”) não podia dizer algo relevante sobre o tempo em historiador italiano retomou a controvérsia sobre o “fardo da história”, ajuizando que somos
que se desenvolvia. Mais ainda: no que dizia respeito aos fatos em processo, cabia à crônica (e produto do passado e vivemos imersos nele, que nos oprime por todos os lados. Frente a essa
não à história) lidar com tais acontecimentos320. constatação, emergiam dois questionamentos: Como podemos nos lançar à nova vida, criar
nova ação, sem sairmos do passado, sem nos colocarmos acima dele? E como realizar tais
As discussões referentes à contemporaneidade da história foram retomadas por Benedetto
intentos, se estamos no interior do passado e ele em nós? Para tais dúvidas, uma resposta
Croce em La storia come pensiero e come azione. Na perspectiva de discutir a natureza da
inequívoca: não havia senão uma via de escape, ou seja, aquela do pensamento, que não
verdade de um livro de história, o autor enfatizou que:
rompe a relação com o passado, mas se eleva idealmente sobre ele e o converte em
A necessidade prática, que está no fundo de todo juízo histórico, dá a toda história o caráter de “história conhecimento. Portanto, tornava-se imperioso olhar de frente o passado, ou, ainda, reduzi-lo à
contemporânea”, porquanto, por muito e muito distantes que pareçam cronologicamente os fatos por
ela referidos, a história se relaciona sempre com a necessidade e a situação presentes, nas quais condição de problema mental, resolvendo-o numa proposição de verdade, que será a premissa
aqueles fatos propagam as suas vibrações321. ideal para a nova ação e a nova vida. “Escrever histórias – observou Goethe certa vez – é uma
forma de tirar-se dos ombros o passado. O pensamento histórico o reduz a matéria sua,
Para Croce, a condição presente da alma do historiador carrega em si o documento vivo do
transfigura-o em objeto seu, e a historiografia nos liberta da história”325.
juízo histórico. Assim, o que se chama documentos escritos, esculpidos, figurados ou
aprisionados nos gramofones, ou talvez aqueles existentes nos objetos naturais, tais como Ao afirmar o princípio segundo o qual toda verdadeira história é história contemporânea,
esqueletos ou fósseis, não operam sob a condição de testemunhos se não forem capazes de com quais interlocutores Benedetto Croce estava dialogando? Uma leitura possível sugere que
estimular estados de ânimo que se encontram presentes no estudioso. Exemplificando, essa abordagem foi concebida para combater os seus adversários teóricos, representados em
destacou que, se não existe no historiador, mesmo adormecido, o sentimento da caridade diversos matizes historiográficos, denominados pelo autor “pseudo-histórias” (os gêneros
cristã, da salvação pela fé, da honra cavalheiresca, ou, ainda, do radicalismo jacobino e da “filológico”, “poético” e “retórico”), “história universal” (de feito iluminista ou hegeliano),
reverência pela tradição, passarão inutilmente sob os seus olhos as páginas dos Evangelhos e “filosofia da história” e “história determinista” (os modelos positivista e marxista). Por
das epístolas paulinas, da epopeia carolíngia, dos discursos que se faziam na Convenção exemplo, referindo-se à concepção do historiador Leopold von Ranke (1796-1886), declarou se
francesa, das líricas, dos dramas e dos romances que exprimiram a nostalgia do século XIX tratar de uma “historiografia sem problema histórico”. Por outro lado, mediante um ardiloso
pela Idade Média. Segundo o autor, o homem é um microcosmo, um compêndio de história estratagema, através do qual decidia “o que estava vivo e o que estava morto” nas obras de
universal. Ao lado da pequena quantidade de documentos especificamente denominados pelos outros pensadores, Croce se apropriou das partes vitais dos sistemas elaborados por seus
investigadores, aparecem outros testemunhos sobre os quais continuamente se apoiam os interlocutores, ao mesmo tempo em que desprezava, ignorava e suprimia os seus elementos
historiadores no seu ofício – a língua falada, os costumes familiares, as intuições e os inertes. Assim, a esfinge napolitana erigiu a sua história contemporânea como o único
raciocínios realizados quase instintivamente e as experiências presentes no organismo. empreendimento verdadeiramente historiográfico326.
Portanto, a verdade da história não é dada pelo exterior, através do que se denominou
classicamente documentos, mas vive no âmago do historiador322. 4 Considerações finais
Na mesma perspectiva, Croce também discutiu os problemas da certeza e da verdade nos
documentos e testemunhos históricos. Assim, destacou que as não raras e sempre possíveis As contribuições de Benedetto Croce para o conhecimento histórico elaborado ao longo do
falsificações dos registros históricos forneciam o argumento capital para o ceticismo século XX são relevantes e merecem especial destaque. Um primeiro aporte diz respeito à
historiográfico. Por exemplo, textos como Protocolos dos sábios de Sião, mesmo quando diferenciação estabelecida pelo autor entre história e historiografia, ou, ainda, entre os
desmascarados, “projetam sombra em toda a inteiriça massa de documentos e testemunhos, e, estudos históricos e os de questões históricas. À distinção capital acrescente-se o fato de
abalando a fé histórica, induzem à dúvida sobre a historiografia em si e por si, e levam a Croce ter insistido na importância da história da historiografia – com desdobramentos
concluir que ela é um conhecimento ilusório e convencional”. Para sair da perplexidade e significativos para o ofício do historiador. Como tão bem avaliou Jacques Le Goff, “a história
esclarecer as dúvidas, Croce sugeriu ao historiador ter certeza e firmeza quanto ao caráter da historiografia toma como divisa a palavra de Croce: toda a história é história
dos documentos e dos fatos bem fundamentados. Em suma, definia como documentos todas as contemporânea e o historiador, de sábio que julgava ser, tornou-se um forjador de mitos, um
obras do passado que ainda podiam ser evocadas nos sinais das escritas, nas notações político inconsciente”327.
musicais, nas pinturas, esculturas e arquiteturas, nas descobertas técnicas, nas
Por outro lado, um dos impasses do legado teórico crociano aparece no lugar ocupado pela
transformações sofridas pela superfície terrestre, nas mudanças ocorridas nas profundezas da
sua obra no contexto do conhecimento histórico do século XX, ou seja, em um ponto de
alma, ou seja, nas instituições políticas, morais, religiosas, nas virtudes e nos sentimentos
interseção entre a teoria da historiografia e a filosofia da história. Assim, o Croce historiador
formados ao longo dos séculos e ainda vivos e atuantes. Esses documentos, às vezes
objetivou arquitetar uma teoria da historiografia (domínio quase inexistente nos primórdios do
recolhidos pelo espírito do historiador, juntando-se às suas capacidades, aos seus
século passado), na perspectiva de absorver a filosofia como metodologia da história e
pensamentos e aos seus sentimentos, tornavam possível o conhecimento do que aconteceu,
eliminar os resíduos metafísicos e teleológicos das searas do conhecimento histórico. Mas, o
por meio de uma espécie de anamnesis platônica, ou, antes, através do princípio de Vico,
filósofo da liberdade, opondo-se às teses fascistas acerca da morte do liberalismo, lançou mão
segundo o qual o homem, criador da história, eternamente a conhece, recriando-a no
dos esquemas finalistas e providencialistas da filosofia hegeliana da história (anteriormente
pensamento. “A historiografia não se baseia em nada mais do que neles, toda a historiografia,
e não apenas, como tantas vezes ingenuamente acreditaram e disseram, e ainda acreditam e repudiados) para fundamentar a sua historiografia de caráter ético-político328.
dizem, a da poesia e a da arte, cujas obras teriam o privilégio de ser sempre vivas”323. Não obstante o paradoxo da fortuna crítica de Benedetto Croce, a sua obra se constitui em
um campo aberto para as diversas investigações que desejem realizar os jovens pesquisadores
Mas, Croce também destacou que era necessário não superestimar a necessidade prática e
do alvorecer do século XXI, aos quais agradecemos pela leitura atenta e paciente do texto que 278. GERRATANA, V. “Antonio Labriola e a introdução do marxismo na Itália”. In: HOBSBAWM, E.J. História do
marxismo IV: o marxismo na época da II Internacional. Terceira Parte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 11-49.
aqui se encerra.
279. CROCE, B. “Contributo alla critica di me stesso”. Op. cit., p. 376-379.
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283. CROCE, B. Materialismo histórico e economia marxista. São Paulo: Centauro, 2007, p. 7-10.
______. Materialismo histórico e economia marxista. São Paulo: Centauro, 2007. 284. GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 208-209. •
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292. CROCE, B. “Contributo alla critica di me stesso”. Op. cit., p. 389-390.
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293. BOBBIO, N. Perfil ideológico del siglo XX en Italia. Op. cit., p. 137.
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295. BOBBIO, N. Perfil ideológico del siglo XX en Italia. Op. cit., p. 84, 129.
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298. CROCE, B. “Contributo alla critica di me stesso”. Op. cit., p. 1.172-1.174.
______. Logica como ciencia del concepto puro. Madri: Poblet, 1933. 299. Ibid., p. 1.172.
300. MOMIGLIANO, A. “Il manifesto degli intellettuali italiani antifascisti”. Filosofia, poesia, storia. Op. cit., p.
1.156-1.160.
Demais referências 301. Ibid., p. 294-295.
302. BOBBIO, N. Perfil ideológico del siglo XX en Italia. Op. cit., p. 225-226, 230.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. 303. MOREIRA, R.N.P. “Benedetto Croce: entre a filosofia da história e a teoria da historiografia”. In: MENEZES, E.
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305. CROCE, B. “Contributo alla critica di me stesso”. Op. cit., p. 1.172-1.173. • MOMIGLIANO, A. “Il manifesto
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306. MOMIGLIANO, A. “Il manifesto degli intellettuali italiani antifascisti”. Op. cit., p. 296. • CROCE, B. Storia
GARDINER, P. Teorias da história. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. d’Europa nel secolo decimonono. Op. cit., p. 236-237.
307. MOMIGLIANO, A. “Il manifesto degli intellettuali italiani antifascisti”. Op. cit., p. 297-298.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 308. Apud PARIS, R. As origens do fascismo. Op. cit., p. 106.
309. Apud FELICE, R. Explicar o fascismo. Lisboa: Ed. 70, 1978, p. 253. • CROCE, B. L’obiezione contro la “Storia
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312. CROCE, B. Teoria e storia della storiografia. Bari: Laterza, 1941, p. 3.
MOMIGLIANO, A. Ensayos de historiografía antigua e moderna. México: Fondo de Cultura 313. Ibid., p. 4.
Económica, 1993. 314. Ibid., p. 5-6.
315. Ibid., p. 7-9.
MOREIRA, R.N.P. Toda verdadeira história é história contemporânea – A historiografia como 316. Ibid., p. 10-11.
passado presente na obra de Benedetto Croce. Campinas: Unicamp, 1999, 120 f. [Dissertação 317. Ibid., p. 14-15.
de mestrado em História Social]. 318. Ibid., p. 15.
319. Ibid., p. 16.
PARIS, R. As origens do fascismo. São Paulo: Perspectiva, 1993. 320. Ibid., p. 283-288.
321. CROCE, B. A história, pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962, p. 14.
TANNENBAUM, E.R. La experiencia fascista: sociedad y cultura en Italia (1922-1945). Madri: 322. Ibid., p. 15.
Alianza, 1975. 323. Ibid., p. 94-97.
324. Ibid., p. 16.
WIENER, P. Dictionary of the History of Ideas. Vol. 2. Nova York: Scribner’s Sons, 1973. 325. Ibid., p. 34-35.
326. Ibid., p. 69-83.
WHITE, H. Meta-história – A imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Edusp, 1995. 327. LE GOF, J. História e memória. Campinas: Unicamp, 1994, p. 98-99, 136.
328. MOREIRA, R.N.P. Benedetto Croce: entre a filosofia da história e a teoria da historiografia. Op. cit., p. 230-231.
270. Mestre e doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local (PPGHIS), da Universidade do Estado da Bahia (Uneb),
Campus V/Santo Antônio de Jesus.
271. HUGHES, H.S. “Croce, Benedetto”. In: SILLS, D.S. (org.). International Encyclopedia of the Social Sciences.
Vol. 3. Nova York: The Macmillan Company/The Free Press, 1972, p. 518. • HUGHES, H.S. Consciousness and
Society: The Reorientation of European Social Thought (1890-1930). Nova York: Knopf, 1958, p. 201.
272. HUGHES, H.S. Consciousness and Society. Op. cit., p. 206.
273. MOMIGLIANO, A. “Reconsideración de B. Croce (1866-1952)”. Ensayos de historiografía antigua e moderna.
México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 298-299.
274. RODRIGUES, J.H. Vida e história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 3-21. • RODRIGUES, J.H.
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275. MOMIGLIANO, A. “Reconsideración de B. Croce (1866-1952)”. Op. cit., p. 288-289.
276. CROCE, B. El carácter de la filosofía moderna. Buenos Aires: Imán, 1959, p. 139-141. • CROCE, B. “Contributo
alla critica di me stesso”. Etica e politica. Bari: Laterza, 1945.
277. CROCE, B. “Contributo alla critica di me stesso”. Op. cit., p. 369.
A OFICINA DA HIST6RIA
,
vivência colectiva da humanidade aquilo que é mais fascinante para as
estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não
testemunhas c mais disponível para a narração é a aventura dos grandes
tem de facto outro sentido que dizer que dispõe todos os objectos que
homens e dos Estados. Não nos devemos admirar de que a história
estuda no tempo: fazer história é contar uma história.
! se tenha desenvolvido, na Antiguidade grega e romana, e depois na
t Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém Europa Moderna, como anais do poder e da guerra. O recorte narrativo
t, ou a alguma coisa, a um indivíduo, a um país, a uma instituição, aos
compassou os infortúnios e as vitórias dos povos - os grandes mo-
i homens que viveram antes do instante em ql:e se narra e aos produtos
mentos da história.
~ da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que constituem
É que o acontecimento dessa história é um momento. É isso mesmo
o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito
que o caracteriza por excelência: é aquele ponto de tempo ímpar em
naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta
I
que se passa qualquer coisa que não é redutível nem àquilo que houve
ao homem como a própria imagem do tempo: a duração muito nítida
antes, nem ao que virá depois. Essa «qualquer coisa», ou seja, o facto
de uma vida, entre o nascimento e a morte, e as datas referenciáveis
histórico revestido da dignidade de acontecimento, não é nunca com-
!
dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A divisão do
parável, falando com todo o rigor, a um facto anterior ou posterior,
tempo é portanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto»
dado que é o seu carácter empiricamente singular que lhe dá a sua
da história.
importância: a batalha de Waterloo ou a morte de Estaline aconte-
Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no
ceram apenas uma vez, não se compararam com nenhuma outra bata-
fundo à mesma lógica: não pode, por definição, começar senão pelas
lha, com nenhuma outra morte, e transformaram a história do mundo.
origens da França, contar em seguida as fases do crescimento e da
No entanto, o acontecimento, tomado em si próprio, é ininte-
aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença
ligível. É como uma pedra que apanho na praia: privada de signi-
está em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração
ficação. Para que a adquira, tenho de integrá-Ia numa rede de acon-
tecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da
* Diogéne, n.? 89, «Problêmes des sciences contemporaines», Janeiro-Março narrativa. Waterloo tem um sentido em relação a uma história que
de 1975.
conte a vida de Napoleão, o Primeiro Império ou a rivalidade franco-
81 82
I
j
J
A HISTóRIA, HOJE A OFlCIN A DA HISTóRIA
-britânica do século XIX, por exemplo. A morte de Estaline ganha impor- nhece-se nas incertezas desta enumeração ao mesmo tempo toda a
tância na história da Rússia no século XX, na do comunismo interna- ambiguidade das realizações e dos valores que caracterizam o mundo
cional ou noutra qualquer constelação cronológica de factos que se contemporâneo e a impossibilidade, no entanto, de não os evocar como
possa imaginar. O que significa que, no interior da história-narrativa, outros tantos fundamentos implícitos de uma certa história: o narrador
o acontecimento, apesar de por natureza ser único e não comparável, tem de situar o mundo de que fala no fim do tempo que narra.
extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, Em suma, a história-narrativa é a reconstrução de uma experiência
do tempo. vivida no eixo do tempo: reconstrução inseparável de um mínimo de
Não sendo ele um objecto intelectualmente construído para ser conceptualização, mas em que essa conceptualização nunca é explicitada.
estudado, não pode portanto receber a sua significação da análise das Esconde-se no interior da finalidade temporal que estrutura qualquer
suas relações com outros objectos comparáveis, ou mesmo idênticos, narrativa como se fosse o seu sentido.
no interior de um sistema. Pertencendo à ordem do vivido, ao domínio Ora, o que me parece caracterizar a evolução recente da historio-
«daquilo que aconteceu», não pode ser organizado ou mesmo simples- grafia é o recuo talvez definitivo dessa forma de história, sempre flores-
mente baptizado a não ser em relação à significação externa e global cente ao nível das produções de grande consumo, mas cada vez mais
do tempo histórico que tem por função medir. Toda a história-narrativa abandonada pelos profissionais da disciplina. Parece-me que passamos,
é uma sucessão de acontecimentos-origens, que podemos chamar, se sem o sabermos ainda, de uma história-narrativa a uma história-pro-
quisermos, de história evenemencial; toda a história evenemencial é blema, à custa de mutações que se podem resumir do seguinte modo:
uma história teleológica: só o «fim» da história permite escolher e com- 1. O historiador renunciou à imensa indeterminação do objecto
preender os acontecimentos com que ela é tecida. do seu saber: o tempo. Já não tem a pretensão de contar o que se passou,
Esse «fim» pode ser diferente segundo os historiadores e os assun- ou até o que se passou de importante, na história da humanidade, ou
tos que escolheram para contar. Foi envolvido durante muito tempo numa parte da humanidade. Está consciente de que escolhe, nesse pas-
pela apologética religiosa ou pela edificação moral, que hoje em dia sado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado, ques-
passaram de moda. Não se pode dizer o mesmo da exaltação do poderio tões selectivas. Por outras palavras, constrói o seu.objecto de estudo
ou da consciência nacionais, que continua a ser uma das grandes delimitando não só o seu período, o conjunto dos acontecimentos,
justificações da história-narrativa, depois de ter sido, sem dúvida, o seu mas também os problemas colocados por esse período e por esses acon-
impulso fundamental: todos os povos precisam de uma narrativa das tecimentos, e que terá de resolver. Não pode portanto escapar a um
origens e de um memorial da grandeza que possam ser ao mesmo mínimo de conceptualização explícita: a boa questão, o problema
tempo garantias do seu futuro. Assim como a escrita é um poder, os bem colocado são mais importantes - e são mais raros! - do que a
nossos arquivos são recordações ou símbolos do poderio. Mas a his- habilidade ou a paciência em trazer à luz do dia um facto desconhe-
tória transnacional, geralmente designada como história das civilizações, cido, mas marginal.
também não foge a essa imposição inevitável de dar um sentido prévio 2. Rompendo com a narrativa, o historidador rompe igualmente
ao tempo. No mundo laicizado em que vivemos, ela traduz na maior com o seu material tradicional: o acontecimento singular. Se, em lugar
parte das vezes, para além da pertença nacional, a outra grande vivência de descrever um vivido, único, fugidio, incomparável, procurar explicar
colectiva da humanidade desde o século xvnr: o sentimento do pro- um problema, vai necessitar de factos históricos menos vagos do que
gresso. Esse progresso tem nomes e rostos diferentes, é por vezes o aqueles que encontra constituídos sob esse nome na memória dos
desenvolvimento dos bens materiais, mais frequentemente o difícil homens. Tem de conceptualizar os objectos da sua investigação, inte-
advento da razão, da democracia, da liberdade ou da igualdade. Reco- grá-los numa rede de significações e, por conseguinte, torná-los, se não
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I
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I
A HISTóRIA, HOJE !, A OFICINA DA HISTORIA
idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo. É pri- que se quer resolver e as hipóteses que se pretende testar. Sem me
vilégio da história quantitativa oferecer a via mais fácil - mas não querer alongar sobre este vasto problema, gostaria de me limitar ao
a única - para este tipo de trabalho intelectual. exame das consequências dessa mutação na nossa profissão e no nosso
3. Ao definir o seu objecto de estudo, o historiador tem igual- saber.
mente de «inventar» as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, O arquivo com base no qual se escreve a história passou de uma
tal corno estão, ao seu tipo de curiosidade. Pode acontecer, evidente- colecção de documentos a uma construção serial de dados. Com efeito,
mente, que se lhe depare um arquivo que não só será utilizável tal qual se o historiador passa a trabalhar com um objecto de investigação
está, mas ainda o vai conduzir a ideias, a uma conceptualização nova conceptualmente claro, e se quer por outro lado permanecer fiel à espe-
ou mais rica. É uma das bênçãos do ofício. Mas geralmente acontece cificidade da sua disciplina, que é estudar a evolução dos acontecimentos
o contrário. Ora o historiador que procura colocar e resolver um pro- no tempo, tem de dispor de dados pertinentes (raramente disponíveis
blema deve achar os materiais pertinentes, organizá-los e torná-los enquanto tais) e comparáveis entre si num período de tempo relati-
comparáveis, permutáveis, de modo a poder descrever e interpretar vamente longo. O facto histórico já não é a irrupção de um aconteci-
o fenómeno estudado a partir de um certo número de hipóteses concep- mento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim
tuais. um fenómeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que
4. Daí a quarta mutação da profissão de historiador. As conclu- seja referenciado e estudado através de uma série cronológica de dados
sões de um trabalho são cada vez menos separáveis dos procedimentos idênticos, comparáveis a intervalos preestabelecidos. Estes dados já não
de verificação que as sustentam, com os constrangimentos intelectuais existem em si, mas como elementos de um sistema formado pelos que
que implicam. A lógica muito particular da narrativa, do post hoc, os precedem e pelos que os seguem. São menos susceptíveis de uma
ergo propter hoc, não se adapta melhor a esse tipo de história do que crítica externa de verosimilhança (através da comparação com outros
a história, também ela tradicional, que consiste em generalizar o testemunhos da mesma época) do que de uma crítica interna de coe-
singular. E é aqui que aparece o espectro da matemática: a análise rência (através do estabelecimento da sua comparabilidade no interior
quantitativa e os processos estatísticos, desde que adaptados ao pro- do sistema que formam).
blema e judiciosamente conduzidos, estão entre os métodos mais rigo- A operação intelectual que constitui os dados é portanto dúbia.
rosos de «testagem» dos dados. É preciso primeiro estabelecer a sua significação, que condiciona a sua
Antes de ir mais longe, deveríamos interrogar-nos sobre as razões utilização exacta. Por exemplo: o historiador que se interessa peJa
desta mutação da história. Referem-se provavelmente a factores exter- alfabetização possui antes de mais, para períodos anteriores ao sé-
nos ao próprio conhecimento, como a crise geral do progresso com culo XIX, enumerações de assinaturas. Mas que significa saber assinar
a qual nos debatemos, que põe em causa o sentido de urna evolução o nome, em relação aos critérios actuais de alfabetização, que são a
dominada pelo modelo europeu dos séculos XIX e XX, e a própria noção capacidade de ler e 'escrever? Ou ainda: o historiador das crises e dos
de uma história global e linear: Mas também se referem a elementos diferentes tipos de crises económicas na época moderna utiliza em
internos ao saber, tais como a influência difusa da conceptualização profusão as séries de preços. Mas tem de responder primeiro à seguinte
marxista nas ciências sociais, o desenvolvimento muito brilhante de pergunta: que significa o preço? Quais os movimentos, quais os níveis
algumas dessas ciências de objecto limitado e definido (estou a pensar da vida económica de que é indicador? Uma vez estabelecida a
na economia, na demografia, na antropologia), ou ainda o impacte significação dos dados, é necessário constituir a sua série, torná-I os
da informática, que permite cálculos até aqui inimagináveis, mas com a comparáveis entre si, decidir da unidade-tempo que cobrem, dos
condição de serem prévia e rigorosamente formuladas as questões procedimentos estatísticos apropriados, etc. Operações que não são
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A HISTóRIA, HOJE l A OFICINA DA HISTORIA
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simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas meto- .1
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e o comportamento sexual das populações do passado. Ou do especia-
dológicas. 1
lista do crescimento económico que trabalha com séries de preços.
Poder-se-á objectar a esta visão do trabalho histórico uma espécie Nestes casos, o problema da pertinência e a eventual reorganização
de questão prévia: é que as fontes do historiador são geralmente lacu- dos dados em relação ao problema posto é o problema central da sua
nares, parciais ou simplesmente inexistentes, segundo os acasos da sua manipulação. Por fim, existe um terceiro tipo de fontes, mais delicado
conservação. Seja como for, não se trata, entre a história e as outras ainda de manejar: as que não são de natureza numérica, mas que o
ciências sociais, de estabelecer uma diferença de princípio mas de situa- historiador quer utilizar de modo serial. Para tal, como no caso ante-
ções; existem com certeza problemas, sobretudo nos períodos recuados • rior, deve não apenas estabelecer a sua pertinência e o seu valor como
do passado, em relação aos quais desapareceram os materiais de análise. 1 também reorganizá-Ias sistematicamente em unidades conceptuais e
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Porém, em contrapartida, é preciso ver que esses materiais não foram 1 cronologicamente comparáveis. Exemplos: a utilização de contratos
constituídos de uma vez por todas no século XIX com o depósito público notariais de casamento para estudar a endogamia, a mobilidade social,
de arquivos: têm uma elasticidade quase indefinida, e muitos vezes a fortuna ou a alfabetização. Ou a dos testamentos para a análise do
é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si próprio, sentimento da morte.
que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos Assim, se se procurasse classificar as mais recentes conquistas
registos de paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante da historiografia contemporânea pelo grau de rigor das suas realizações,
séculos, até que o nascimento recente da demografia histórica, nos seríamos levados a ter em conta ao mesmo tempo o tipo de conceptua-
anos cinquenta, viesse descobrir o seu imenso valor. Por outro lado, lização dos problemas e a qualidade das fontes em relação a esses pro-
o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca, blemas. Assim, é fácil de verificar que, por exemplo, a demografia his-
dados constituídos directamente pertinentes pode na maioria dos casos tórica ou a história económica são deste duplo ponto de vista, e pelo
contornar o obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe menos em relação ao chamado período «moderno», os sectores mais
permita a sua utilização em segundo grau. bem apetrechados: primeiro porque beneficiam de conceitos elaborados
Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização por disciplinas específicas como a demografia e a economia política,
substitutiva dos dados históricos. Distingui, num artigo recente, três pelo que basta importá-I os para a história, com adaptações menores.
tipos de dados seriais: o primeiro, o mais simples e mais fácil de manejar, Depois porque os objectos desses estudos são mais fáceis de abstrair,
é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis constituídos de definir e de medir do que a maioria dos produtos da actividade
de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe. humana e porque, de resto, a maior parte dos estados europeus esta-
É o caso, por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos belecem e conservam dados desse género desde há vários séculos.
registos de paróquia para o historiador demógrafo: deles se extraem, Contudo, até no interior desses sectores «avançados» da história
com uma manipulação mínima e estandardizada (a técnica da recons- as coisas não são tão simples como o poderiam deixar pensar os cri-
tituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda térios deste palmarés, retirados da classificação académica das nossas
resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas. disciplinas. É que a história, dada a sua natureza indeterminada, tende
O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas a extravasar incessamente às aquisições sectoriais desses saberes espe-
utilizados de modo substitutivo, para responder a questões comple- cializados. A questão que se põe é saber se, e em que medida, ao tomar
tamente diferentes das razões por que tinham sido agrupados esses de empréstimo, ao integrar algumas dessas aquisições, ela terá insti-
dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos tuído um conhecimento do passado que se possa classificar como cientí-
intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção fico.
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A HISTóRIA, HOJE
A OFICINA DA HISTóRIA
É preferível, a fim de ter uma melhor visão deste velho problema, demografia, mas para a qual a história fornece igualmente os mate-
raciocinar sobre exemplos, numa ordem crescente de complexidade riais primários -, o levantamento de nascimentos, casamentos e óbitos.
ou de incerteza. Vou escolhê-los no campo da demografia histórica, Por pouco que trabalhe com dados seguros ou verificados - e esse
que é um dos sectores mais trabalhados pela historiografia francesa «pouco» é, na realidade, muito porque o problema da verificação das
desde há uns vinte anos. É também um sector que apresenta facilidades fontes numéricas não é simples -, a demografia histórica contribui
excepcionais para a formalização matemática dos problemas. Esse com resultados comparáveis aos da simples demografia: o conjunto
privilégio resulta da natureza específica da disciplina e dos sacrifícios das relações que permitem medir os elementos de uma dada população
que esta consentiu na definição do seu objecto: a demografia funda- e o modo como evoluem.
menta-se inteiramente num postulado abstractamente igualitário, se- Esses elementos, medidos ano a ano, constituem resultados claros
gundo o qual o nascimento de Napoleão tem exactamente a mesma (não ambíguos) e certos. Mas a sua interpretação já não o é. Tomemos
importância que o de qualquer um dos seus futuros soldados. Sacri- uma taxa de mortalidade geral que baixa durante um século, por exemplo
ficando assim por hipótese tudo aquilo que haja de peculiar na vida na França do século XVIII. É necessário estabelecer, decompor essa
dos indivíduos, ou seja, o essencial da sua história, constitui a humani- taxa por grupos etários, obter nomeadamente a taxa de mortalidade
dade histórica em unidades permutáveis e mensuráveis, mediante alguns infantil ou juvenil, para saber onde se produz a baixa da mortalidade.
tipos constantes e comparáveis de acontecimentos: o nascimento, o Suponhamos que se trata de ganhos espectaculares na sobrevivência
casamento, a morte. Esses acontecimentos, desembaraçados de todas dos recém-nascidos (O- 1 ano): uma série de hipóteses muito diversas
as significações que as civilizações, cada uma à sua maneira, neles pode explicar um fenómeno desse tipo, desde a multiplicação das par-
colocam, ficam reduzidos àquilo que têm de mais elementar: o facto, teiras nos campos até à transformação do sistema de aleitamento,
simplesmente, de terem acontecido. passando por este ou aquele progresso pontual da medicina numa dada
Digo propositadamente que são acontecimentos porque não vejo, doença infantil. Como escolher, sem ter testado cada uma destas ideias
a priori, o que possa distinguir determinado facto histórico de outro e algumas outras?
facto histórico: por exemplo, um nascimento, mesmo anónimo, de uma É verdade que se pode proceder de outro modo e partir, não de uma
batalha célebre. Deste ponto de vista, a distinção usual entre estrutura só variável, mas do conjunto das variáveis de um sistema demográfico.
e acontecimento, entre história estrutural e história factual não pode A abordagem é então menos histórica do que propriamente demográfica:
ter qualquer significação no que diz respeito ao próprio dado histórico; utiliza ou constitui um modelo de reprodução de uma população supos-
não há factos não factuais e factos factuais. A história é um aconteci- tamente estável, pondo provisoriamente entre parênteses o factor tempo.
mento permanente. Mas certas categorias de acontecimentos prestam-se Suponhamos que todas as «casas» deste modelo foram preenchidas;
mais facilmente do que outros a uma conceptualização, ou seja, a uma a pergunta do historiador subsiste: como evolui o sistema? É possível,
integração num sistema de inteligibilidade: é o caso dos acontecimentos evidentemente, pela observação daquilo que se passou ou mesmo pela
demo gráficos. simulação daquilo que se teria podido passar se esta ou aquela variável
De facto, esses dados brutos, e particularmente simples, sobre do sistema tivesse estado ausente ou fosse muito diferente diagnosticar
os nascimentos, casamentos e óbitos constituíram o objecto de um por onde é que o sistema se modifica; como é que, por exemplo, se
saber específico: a demografia. Podem portanto dar lugar a um certo desenvolve ou, ao contrário, se retrai. Mas a análise dessas variáveis
número de cálculos e análises, que são em si outros tantos objectos estratégicas remete, como no caso anterior, para elementos exógenos
pré-fabricados da investigação histórica: ou seja, objectos, conceitos ao sistema e que agem sobre ele. Isto é, para hipóteses de interpretação
elaborados por uma disciplina que não é a história - neste caso a que saem do campo demográfico e remetem imediatamente para con-
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ceitos não constituídos em disciplina científica e para indicadores que veis: veja-se Chaunu, Le Roy Ladurie, redescobrindo M althus! A Europa
na maioria dos casos estão por inventar. rica, a Europa «desenvolvida» dos séculos XVII e XVIII, essa franja de
Vejamos o problema da idade de casamento, variável central da alta produtividade agrária que se estende desde a bacia de Londres até
regulação demo gráfica nas populações da Europa pré-industrial, entre à Itália do Norte, passando pelos Países Baixos, a França do openfield,
os séculos XII e XIX. Sem entrar aqui em pormenores, parece de facto o vale do Reno, encontraria a sua estabilidade em torno de uma relação
que o recuo da idade de casamento terá sido o instrumento endógeno do homem com a terra de quarenta habitantes por quilómetro quadrado.
essencial para uma estabilização da dimensão global dessas populações, Mas esta proposição, mesmo que seja grosso modo verdadeira - o que
submetidas por outro lado a punções externas (fomes, guerras, epide- não é muito evidente, porquanto os dados sobre a produtividade e a
mias) cujo impacte decresce ao longo do período. Como se opera essa produção agrárias desta época são difíceis de manejar -, não diz
regulação? De dois modos. A longo prazo, a elevação progressiva da nada sobre as mediações através das quais foi vivido esse ajuste da idade
idade de casamento, até aos seus «níveis» clássicos de vinte e cinco, de casamento. Será que se trata - na medida em que não é acompa-
vinte e seis anos (para as mulheres), anula dez anos de fecundidade nhado de um aumento dos nascimentos ilegítimos - de uma mais
possível e diminui assim, independentemente de qualquer acção contra- perfeita interiorização, durante urna adolescência mais longa, das regras
ceptiva, o número de crianças por família «completa». Por outro lado, de austeridade sexual? Ou deveremos ver aí sobretudo uma adaptação
a mais curto prazo, a extrema variabilidade das taxas de mortalidade de tipo socioeconómico, de tal modo que os filhos esperam, para se
segundo os acasos da conjuntura é equilibrada por variações compensa- casar, isto é, para SE estabelecerem, que a geração precedente lhes entre-
tórias da idade de casamento: quando uma população atravessa uma gue a exploração familiar?
crise demográfica (qualquer que seja a sua causa), adia os seus casa- Dir-me-ão que se deve começar pelo mais fácil e que as incer-
mentos, pelo que recua a idade de casamento. Mal sai dela, pelo contrá- tezas são menores no que respeita às variações da idade de casamento
rio, acrescenta aos casamentos adiados outros de camadas etárias mais a curto prazo. Porque é que, em períodos de crise, uma população
jovens. O abaixamento provisório da idade de casamento desempenha adia os seus casamentos? A resposta é relativamente clara: por causa
então um papel de recuperação do nível anterior à crise. Deste modo, das incertezas em relação ao futuro, que nascem do espectáculo do
podemos facilmente conceber e fazer funcionar um modelo demo gráfico presente. A consciência histórica é, de facto, uma consciência deter-
que permita examinar qual a evolução de uma população, permanecendo minada pelos acontecimentos a curto prazo; é a conjuntura que con-
todos os outros factores iguais, a partir das variações da idade de casa- diciona as suas reacções de optimismo ou de pessimismo em relação
mento: como é que cresce, como é que diminui. ao futuro. Quando o historiador tem de lidar com reacções deste tipo,
Este tipo de simulação permite seguir o papel desempenhado por que são estratégias conscientes de resposta a um dado acontecimento,
uma variável num sistema, e até na evolução desse sistema. Mas não está relativamente à vontade para reconstituir-Ihes o encaminhamento
as causas que sobre ela actuam. Por outras palavras, permite descrever através dos vestígios que elas deixaram; pois não faz mais do que ressus-
e não interpretar e muito menos explicar. De facto, basta colocar a citar as razões dos agentes históricos. O aborrecimento é que essa redun-
questão: quais são os factores susceptíveis de agir sobre um comporta- dância não leva longe! A crise adia os casamentos, a prosperidade
mento cultural como o da idade em que se casam as pessoas, para se multiplica-os antes que a crise seguinte os atinja novamente. Bom!
ser remetido para uma pluralidade de interpretações possíveis. A longo Mas fica por compreender o problema essencial: saber como se estabe-
prazo, a elevação da idade de casamento, na Europa clássica, até aos lece, através dessa sucessão de ajustamentos em sentido contrário, um
vinte e cinco, vinte e seis anos, pode ser interpretada como um ajusta- recuo global da idade de casamento que permita travar o crescimento
mento optimizado da densidade populacional aos recursos disponí- «natural» das populações da Europa pré-industrial.
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A HISTóRIA, HOJE A OFICINA DA HIST6RIA
É aqui que uma descoberta de tipo descritivo, como esta, leva lógico a propósito do qual nenhuma demonstração é possível. Serve
forçosamente o historiador a hipóteses explicativas que são duplamente para interpretar comportamentos que são indefinidamente interpretáveis
delicadas: primeiro porque estavam por natureza fora do alcance dos noutros termos: por exemplo, substituindo a ideia weberiana de auto-
homens cujo comportamento estuda e, portanto, não existem traços disciplina do indivíduo pela do reforço dos constrangimentos externos,
escritos directamente utilizáveis. Depois, porque é obrigado a sair da neste caso a Igreja e o padre; todavia, por outro lado, não existem
análise propriamente demográfica e da precisão conceptual e factual e não existirão nunca dados pertinentes para responder a hipóteses
que ela implica. Tem de compreender os mecanismos através dos quais que dizem respeito à psicologia dos agentes históricos: estes morreram
a probabilidade de comportamento colectivo que está inscrita na aná- já e poucos foram, mesmo entre os raros que falavam de si, os que
lise dos dados sobre a idade de casamento se encarna na multiplicidade se interessaram por essa parte de si próprios que não tinham, antes de
das condutas individuais. Freud, nem os meios nem mesmo a curiosidade de explorar. O his-
Retomemos a título de exemplo as duas hipóteses sugeridas acima. toriador daquilo que hoje em dia se designa de um modo muito vago
Apesar de serem de natureza diferente, não são incompatíveis. Têm por «mentalidades» é assim levado quer a raciocinar sobre textos espar-
em comum facilitar nos indivíduos que viveram nessa época a har- sos ou ambíguos quer a achar um indicador, não nas psicologias, mas
monização das expectativas e das oportunidades que é uma das condi- nos próprios comportamentos, para induzir a partir deles as caracte-
ções da vida social, esse mecanismo um pouco melancólico com o rísticas psicológicas.
qual os homens prevêem e fabricam o seu futuro mais provável. Mas No primeiro caso, vai encontrar dificuldades ligadas à significação
a primeira é de ordem psicológica, a segunda de ordem económica. de um testemunho ao mesmo tempo subjectivo e excepcional. É verdade
A primeira é uma moral, a segunda uma estratégia. A primeira não que, em certo sentido, todos os dados históricos (tirando aqueles que
é mensurável, a segunda já o é. De facto, o historiador poderá estabe- constituem os vestígios da vida material do homem) são subjectivos:
lecer uma relação entre a procura das novas gerações e o mercado das mesmo o registo de um nascimento ou a contabilidade de uma explo-
explorações, ou dos empregos livres, em resultado do desaparecimento ração agrícola foram, num certo momento do tempo, lançados no
dos velhos. Se não dispuser de dados suficientes para trabalhar numa papel por um indivíduo. Mas as imposições do registo são muito dife-
escala macroeconómica, poderá ao menos abordar o problema por rentes conforme o objecto observado, a natureza da observação e do
intermédio de uma série de monografias de explorações familiares, que observador: consoante se trate de um acontecimento normal, repeti-
lhe permitirão definir a rotação das gerações numa mesma exploração. tivo, isto é, comparável a um anterior, ou de um acontecimento extraor-
Trata-se de um processo objectivo, que pode, pelo menos em teoria, dinário, anotado exactamente porque foge aos hábitos; consoante se
ser objecto de uma conclusão clara. Ao contrário, a generalização na trate de uma observação sistemática, submetida a regras, ou de um
Europa clássica de um super-ego puritano (no plano sexual) é uma hipó- testemunho fortuito, de uma contagem ou de uma impressão; consoante,
tese que não pode implicar respostas não ambíguas. Vê-se facilmente enfim, a relação que une o observador e a coisa observada é da ordem
o que é que torna essa hipótese verosímil: a ética protestante, a Contra- do conhecimento ou não.
-Reforma, a «civilização» de Norbert Elias! ... Mas não se pode provar No que ao meu exemplo diz respeito, os testemunhos históricos
realmente nem que é verdadeira nem que é falsa. que nos podem informar sobre as características psicológicas dos com-
Porquê? Antes de mais porque o super-ego é um conceito psico- portamentos de há vinte séculos são, evidentemente, de ordem lite-
rária; digo «literária» no sentido lato do termo, nele incluindo alguns
textos que a posteridade não elevou a essa dignidade, alguns diários
1 Norbert Elias, La Civilisation des maurs, Calmann-Lévy. íntimos inéditos, uns quantos manuscritos antigos que possam lançar
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A HIST6RIA, HOJE A OFIOINA DA HISTõRIA
alguma luz sobre o tema. Porém, limitados a um meio social restrito, a evolução desse espaçamento na vida das famílias. Consiste, a partir
estes testemunhos são por natureza raros, impossíveis de explorar de um stock de mulheres casadas em idade de ter filhos, em relacionar
em séries temporais sistemáticas. Quem quiser ultrapassar o seu carácter o número de nascimentos e a idade das mães. Se a fecundidade dos casais
aleatório deve voltar-se para uma documentação diferente, de tipo nor- diminuir muito rapidamente depois das primeiras crianças e com a idade
mativo: por exemplo, os manuais de bem-viver ou os tratados espe- da mãe, há intervenção de práticas contraceptivas; senão, há apenas
cializados de moral religiosa, como os livros de' penitências. Mas os sucessão dos nascimentos, travada unicamente pela duração do aleita-
textos dessa natureza apresentam a mesma ambiguidade que a produção mento dos recém-nascidos e pelo enfraquecimento biológico da fecun-
legislativa dos Estados: prescrevem um dever-ser, do qual nunca se didade à medida que a mãe potencial envelhece.
sabe em que medida é aceite, obedecido, interiorizado pelos homens. As condições da experimentação parecem assim simples e claras.
A repetição, no decurso de um longo período histórico, das mesmas As curvas estabelecem sem ambiguidade, por exemplo, que as popu-
prescrições traduzirá uma penetração social do comportamento pres- lações canadianas no século XVIII ignoravam a contracepção e que os
crito ou, pelo contrário, traduzirá resistências a esse comportamento? duques e os pares de França da mesma época já a praticavam. Mas entre
A segunda hipótese é tanto, se não mais, verosímil do que a primeira: estes dois extremos, os resultados permanecem ambíguos: precisamente
neste caso, o texto normativo é mais interessante pela «exposição dos porque o espaçamento dos nascimentos, na vida de um casal, está
motivos» e o que implica de observação do que por aquilo que inter- sujeito a factores diferentes da simples contracepção, é impossível
dita ou ordena; no fundo, é essencialmente testemunho dos meios de isolar esse elemento. E o alongamento do intervalo intergenésico,
que provém, o Estado ou a Igreja. quando não é brutal, pode dever-se, por exemplo, a uma modificação
Por isso o historiador das mentalidades, que procura alcançar das práticas de aleitamento e a um desmame mais tardio do recém-
níveis médios de comportamento, não se pode satisfazer com a literatura -nascido. Por isso as conclusões categóricas são difíceis, como teste-
tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjectiva, munha a discussão em curso sobre este problema desde há uma dezena
não representativa, ambígua. Deve voltar-se para os próprios compor- de anos.
tamentos, ou seja, para os sinais objectivos desses comportamentos. Quando se tenta fazer o resumo do balanço metodológico, parece-
A hipótese discutida aqui de um super-ego «weberiano» que estenderia -me que encontramos incertezas inultrapassáveis a três níveis: o do
o seu domínio às almas da Europa clássica pode ser testada com vários conceito (o super-ego pensado como uma espécie de consciência colec-
tiva de austeridade que dá forma às condutas individuais), que na
desses sinais: o número de nascimentos ilegítimos e de concepções
realidade não é susceptível de demonstração; o dos dados históricos
pré-nupciais ou a prática da contracepção. A diminuição ou o baixo
número de nascimentos ilegítimos ou de concepções pré-nupciais num subjectivos, dos testemunhos, que são raros, não representativos,
ambíguos ; o dos indicadores objectivos, que são igualmente ambíguos.
mundo onde a idade de casamento é elevada traduz de facto uma prolon-
A hipótese adiantada é mais do domínio do verosímil do que do ver-
ganda castidade aceite. Mas é ainda necessário, para que estes indica-
dadeiro.
dores façam sentido, que não tenha havido, na época, práticas contra-
Seria portanto inexacto pensar que basta passar da história-narra-
ceptivas largamente desenvolvidas entre as populações da Europa.
tiva à história-problema (ou, se se preferir, à história conceptualizante)
Como saber isso? Não por meio de testemunhos literários, que são
para entrar, ipso facto, no domínio científico do dernonstrávelvA his-
por natureza, nesse domínio por excelência do não-dito, muito raros.
tória conceptualizante é provavelmente superior, do ponto de vista do
Essencialmente através da medida dos intervalos intergenésicos, ou
conhecimento, à história-narrativa porque substitui a inteligibilidade
seja, .do espaçamento dos nascimentos das crianças durante a vida con-
do passado em nome do futuro por elementos de explicação expli-
jugal dos casais. É conhecida a técnica estatística que permite medir
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A HIBTORIA, HOJE A OFIOINA DA HISTORIA
citamente formulados, porque descobre e constrói factos históricos dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade
destinados a dar apoio à explicação proposta e alarga assim conside- histórica. Exige geralmente dados adicionais, pertencentes a um campo
ravelmente o domínio da história propriamente dita, ao recortá-Ia e diferente, e que nem estão forçosamente disponíveis, nem são forçosa-
especificá-lo. Max Weber talvez tenha seguido por um caminho errado mente claros. Geralmente acarreta hipóteses não verificadas, ou não
com a sua Ética Protestante, mas que posteridade não teve! Uma des- verificáveis.
coberta conceptual mede-se pelo campo de investigações que abre, Por isso, o problema colocado pela evolução recente da história,
pelo rasto que deixa ... e em particular pela utilização de procedimentos rigorosos de demons-
Mas ainda assim não se passa tão simplesmente para uma história tração, não é saber se a história como tal pode tornar-se ciência: dada
científica. Primeiro porque existem questões, conceitos, que não têm a indeterminação do seu objecto, a resposta a esta pergunta é indubi-
respostas claras (não ambíguas). Depois porque há questões que, em tavelmente negativa. O problema está em conhecer os limites no inte-
princípio, têm respostas claras e que, no entanto, não podem ser resol- rior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma disciplina
vidas quer por causa da falta de dados, quer pela sua natureza - seja que fundamentalmente não é científica. Do facto de esses limites serem
pelo carácter ambíguo dos indicadores ou pelo facto de estes não serem evidentes não se deve deduzir que a história deve regressar à sua fun-
susceptíveis de procedimentos de análise rigorosos. ção antiga de contadora de excelentes aventuras. Devemos antes acei-
De facto, como já se viu - e a este respeito poder-se-iam multipli- tar a redução das ambições pouco razoáveis da história total, para uti-
car os exemplos -, esses procedimentos adaptam-se ao manejo de indi- lizar ao máximo, dentro do nosso conhecimento do passado, as desco-
cadores claros (ou assim tornados), disponíveis em séries cronológicas bertas sectoriais e os métodos de algumas disciplinas, assim como as
e respondendo a questões não ambíguas geralmente elaboradas pelas hipóteses conceptuais que nascem dessa grande embrulhada contem-
ciências sociais contemporâneas mais desenvolvidas, como a demogra- porânea chamada ciências do homem. O preço a pagar, para essa recon-
fia ou a economia. Nesta medida, a história também é susceptível versão, é o estilhaçar da história em histórias, a renúncia do historiador
de resultados certos. Por exemplo; podem calcular-se as grandes variá- a um magistério social. Mas o ganho em conhecimento merece talvez
veis dos comportamentos demográficos da Europa ocidental desde o essas abdicações: a história oscilará provavelmente sempre entre a
século XVII. É possível medir a alta dos preços na França do século XVUl arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas; mas
ou o aumento brusco da produtividade agrária no século XIX. Isto equi- se essas provas forem mais seguras, os conceitos mais explicitados, o
vale a dizer que este tipo de história, caracterizado pela possibilidade conhecimento ganhará com isso e a arte da narrativa nada perderá.
de extra polar no passado questões muito específicas geralmente elabo-
radas Doutras disciplinas, é ao mesmo tempo muito rendível e muito
limitado. Permite chegar a resultados seguros, a uma boa descrição
do fenómeno localizado que foi escolhido como objecto de estudo.
Mas a interpretação desses resultados não apresenta o mesmo grau
de certeza que os próprios resultados. A interpretação é no fundo a
análise dos mecanismos (objectivos e subjectivos) pelos quais uma
probabilidade de comportamento colectivo - essa mesma que foi
revelada pelo tratamento dos dados - se encarna nos comportamentos
individuais numa dada época e o estudo da transformação desses
mecanismos. A interpretação consiste portanto em ultrapassar o nível
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da comw1icação, a antropologia, a economia política e a linguis- boa servidora: a duração social, esses tempos múltiplos e contra-
tica. Mas quem é que está preparado para transpor fronteiras e ditórios da vida dos homens que são não só substância do passado,
prestar-se a reagrupamentos, no momento em que a geografia mas também a matéria da vida social actuaL Mais uma razão para.
e a história se encontram à beira do divórcio? sublinhar fortemente, no debate que se inicia entre todas as ciên-
Mas não sejamos injustos; estas querelas e estas repulsas cias do homem, a importância e a utilidade da história, ou melhor,
têm o seu interesse. O desejo de se afirmar frente aos outros, dá da dialéctica da duração, tal e qual se desprende do ofício e da
forçosamente lugar a novas curiosidades: negar o próximo, pres- reiterada observação do historiador; para nÓs, nada há majs im-
supõe conhecê-Ia previamente. Mais ainda: sem terem. explícita portante, no centro da realidade social, que esta viva e íntima
vontade disso, as ciências sociais impõem-se umas às outras: cada oposição, infinitamente repetida, entre o instante e o tempo lento
uma pretende captar o social na sua «totalidade»; cada uma delas no decorrer. Quer se trate do passado quer se trate da actualidade,
se intromete no terreno das suas vizinhas, na crença de perma- torna-se indispensável uma consciência nítida desta pluralidade
necer no próprio. A economia descobre a sociologia, que a rodeia; do tempo social para uma metodologia comum das ciências do
e a história - talvez a menos estrutura da das ciências do homem - homem.
aceita todas as lições que lhe oferece a sua múltipla Vizir:.hança Falarei, pois, longamente da história, do tempo da história.
e esforça-se por as repercutir. Desta forma, apesar das reticências, E menos p.:'Uaos historiadores que para os nossos vizinhos, espe-
das oposições e das tranquilas Ígnorâncias, vaÍ-se esboçando a cialistas nas outras ciências do homem: economistas, etnólogos
instalação de um «mercado comum»; é uma experiência que vale (ou antropólogos), sociólogos, linguistas, demógrafos, geégrafos
a pena ser tentada nos próximos anos, mesmo no caso de a cada e até matemáticos sociais e estatísticos; todos vizinhos, de
ciência ser posteriormente mais conveniente voltar a aventurar-se, cujas experiências e investigações nos fomos informando durante
durante um certo tempo, por um caminho mais estritamente muitos anos, porque estávamos convencidos - e ainda estamos-
pessoal. de que a história, rebocada por eles ou p-or simples contacto, se
de momento urge aproximarmo-nos uns dos outros. Nos havia de clarificar com a nova luz. Talvez chegado a nossa
Estados Unidos, esta reunião realizou-se sob a forma de investi- vez de ter algo a oferecer-lhes. Uma noção cada vez mais precisa
gações colectivas, a respeito das áreas culturais do mundo actual; da multipllcidade do tempo e do valor excepcional do -tempo
de facto, as area studies .tão, antes do mais, o estudo por uma longo, vai abrindo caminho - consciente ou não, aceite ou não-
de social scienrists dos monstros políticos da aetualidade: a pàrtir das experiências e das tentativas recentes história.
índia, Rússia, América Latina e Estados Unidos. Impõe-se É esta última noção, mais que a
conhecê-l os. Mas é imprescindível, devido a esta colocação em muitos semblantes -, que deveria mteressar as ClcnClUS SOCIaIS,
comum de técnicas e conhecii"Ilentos, que nenhum dos participan- nossas vizinhas.
tes permaneça, como na véspera, mergulhado no seu próprio
trabalho, cego e surdo ao que dizem, escrevem ou pensam os
outros. 1. História e duração
É igualrnente imprescindível que a reunião das ciências seja
completa, que não se menospreze a mais antiga em proveito das Todo o trabalho histórico decompõe o tempo passado e
mais jovens. capazes de promover muito, mas nem sempre de escolhe as suas realidades cronológicas. segundo preferências e
o cumprir. Dá-se o caso, por exemplo, de o lugar concedido ? exclusões mais ou menos conscientes. A história tradicional,
geografia nestas tentativas americanas ser praticamente nulo, atenta ao tempo breve, ao indivíduo e ao acontecimento, habi-
sendo o da história extremamente exíguo. E, além disso, de que tuou-se desde há muito à sua narração precipitada, dramática,
história se trata? de pouco fôlego.
As restantes ciências sociais estão bastante mal informad?s A nova histÓria económica e social coloca no primeiro plano
da crise que a nossa disciplina atravessou nos últimos vinte ou da sua investigação a oscilação cícJica e aposta na sua duração:
trinta anos e têm tendência para desconhecer, ao mesmo tempo deixou-se iludir pela miragem - e também pela realidade - dos
que o trabalho dos historiadores, um aspecto da realidade social aumentos e quedas cíclicas de preços. Desta forma, existe hoje,
de que a história é, se não hábil vencedora, pelo menos bastante a par da narração (ou do «recitativo») tradicional, um recitativo
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da conjuntura que para estudar o passado o divide em amplas históricos, os medíocres acidentes da vida ordinária: um incenálO,
secções: períodos de dez, vinte ou cinquenta anos. uma catástrofe ferroviária, o preço do trigo, um crime, uma
Muito acima deste segundo recitativo, situa-se uma história representação teatral, uma inundação. :É, pois, evidente que existe
de fôlego ainda mais contido e, neste caso, de amplitude secular: um tempo breve de todas as formas da vida: tanto económico,
trata-se da história de longa, e mesmo de muito longa, duração. sociaL literário, institucional, religioso e inclusivamente geográ-
A fórmula, boa ou má, é-me hoje familiar para designar o con- fico (um vendaval, uma tempestade), como político.
trário daquilo que François Simiand, um dos primeiros depois O passado é, pois, constituído, numa primeira apreensão, por
de Paul Lacombe, baptizou com o nome de história dos aconte- esta massa de pequenos factos,...uns resplandecentes, outros obscuros
cimentos (événementielle). Pouco importam as fórmulas, mas a e indefinidamente repetidos; precisamente aqueles factos, com os
nossa discussão dirigir-se-á de uma para outra, de um pólo para quals a microssociologia ou a sociometria constroem na actualidade
outro do tempo, do instantâneo para a longa duração. o seu bolo quotidiano (existe também uma miero-história). Mas
Isto não quer dizer que ambos os termos sejam de uma segu- esta massa não constitui toda a realidade, toda a espessura da
rança absoluta. Assim, por exemplo, o termo acontecimento. No história, sobre a qual a reflexão científica pode trabalhar à von-
que me respeita, agradar-me-ia encerrá-Io, aprisioná-Ia, na curta tade. A ciência social tem quase o horror do acontecimento. Não
duração: o acontecimento é explosivo, ruidoso. Faz tanto fumo sem razão: o tempo breve é a mais caprichosa, a mais enganadora
que enche a consciência dos contemporâneos; mas dura um mo- das duracões.
mento apenas, apenas se vê a sua chama. É ?Of este motivo que existe entre nós, os historiadores, urna
Os filósofos diriam, sem dúvida, que afirmar isto equivale forte desconfiança em relação a uma história tradicionaL cha-
a esvaziar o conceito de uma grande parte do seu sentido. Um mada história dos acontecimentos; etiqueta que se costuma con-
acontecimento pode, em rigor, carregar-se de uma série de sig- fundir com a de história política, não sem uma certa inexactídão:
nificações e de relações. Testemunha, por vezes, sobre movimentos a história política não é necessariamente episódica nem está con-
muito profundos; e pelo mecanismo, factício ou não, das «causas» denada a sê-Ia. É um facto, contudo, que - salvo alguns quadros
e dos «efeitos», a que tão afeiçoados eram os historiadores de artificiosos, quase sem espessura temporal, com os quais entre-
anexa-se um tempo muito superior à sua própria duração. cortava as suas «narrações» f) e salvo algumas explicacões de
até ao infinito, une-se, livremente ou não, a toda uma longa duração que resultavam, no iniludiveis -- a
acontecimentos, de realidades subjacentes, inseparáveis destes últimos cem anos. centrada no seu conjunto sobre o drama
a partir de então, uns dos outros. Graças a este dos «grandes acontecimentos», trabalhou no e sobre o tempo
de adições, Benedetto Croce podia pretender que a breve. Talvez se tratasse do resgate a pagar progressos rea-
inteira e o homem inteiro se incorporam, e mais tarde lizados durante este mesmo penado na conquista científica de
se redescobrem à vontade, em todo e qualquer acontecimento; instrumentos de trabalho e de métodos rigorosos. A descoberta
com a condição, indubitavelmente, de acrescentar a este frag- maciça do documento fez o historiador acreditar que na auten-
mento o que ele não contém numa primeira aproximação e, por ticidade documental estava contida toda li verdade. «Basta - es-
conseguinte, de conhecer o que é ou não é justo acrescentar-lhe. crevia ainda muito recentemente Louis Halphen (',) - deixarmo-
Ê este jogo inteligente e perigoso que as recentes reflexões de -nos levar de certa maneira pelos documentos, lidos um após
Jean-Paul Sartre propõem (2). outro, tal e qual se nos oferecem, para assistir à reconstituição
Então, expressemo-Ia mais claramente do que com a expres- automática da cadeia dos factos». Este ideal, «a história incÍ-
são «dos acontecimentos»: o tempo breve, à medida dos indiVÍ- piente», culmina, até finais do séc, XIX, numa crônica de novo
duos, da vida quotidiana, das nossas ilusões, das nossas rápidas estilo que, 110 seu prurido de exactidão, segue passo a passo a
tornadas de consciência; o tempo, por excelência, do cronista, do história da correspondência dos embaixadores ou dos debates
jornalista. Ora bem, tenhamos em conta que a crónica ou o jor-
nal oferecem, junto com os grandes acontecimentos chamados
(') «Europa em 1500», «O mundo em 18S0», «A Alemanha nas
vésperas da Reforma», etc.
C) Jean-Palll Sartre: «Questions de méthode», Les Temps Moder- (') Louí~ HalpÍlen: introduction à I'Histoire, Paris, P. U. F., 1946,
nes, 1957, n.t• 139 e i4ü. p.50.
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parlamentares. Os historiadores do séc. XVIII e princípios recer-nos-ía outros limites, talvez mais válidos, Mas pouco impor-
séc. XIX tinham sido muito mais sensíveis às perspectivas da tam estas discussões em curso! O historiador dispõe com toda a
longa duração, a qual só os grandes espíritos como Michelet, certeza de um tempo novo, elevado à altura de uma explicação,
Ranke, Jacob Burck.hardt ou FuMe! souberam fe'jescobrir mais em que a história se pode inscrever, recortando-se, segundo pontos
tarde. Se se aceitar que esta duração do tempo breve supôs o de referência inéditos, segundo curvas e a sua própria respiração.
maior enriquecimento - ao ser o menos comum - da historio- Foi assim que Ernest Labrousse e os seus discípulos puseram
grafia dos últimos cem anos, compreender-se-á a eminente fun- em marcha, desde o seu manifesto do Congresso Histórico de
ção que tanto a história das instituições, como a religiões e Roma (1955), uma ampla investigação social sob o signo da quan-
a das civilizações desempenham e, graças à arqueologia que neces- tificação. Penso não atraiçoar o seu objectivo afirmando que esta
de grandes. espaços cronológicos, a função de vanguarda dos investigação era forçosan1cnte destinada a terminar na determi-
estudos consagrados à antiguidade clássica. Foram eles que sal- nação de conjunturas (e até de estruturas) sociais; e nada nOS
varam o nosso ofício. garante, de antemão, que esta conjuntura tenha de ter a mesma
A recente ruptura com as formas tradicionais do séc. XIX velocidade ou a me"..ill1alentidão que a econômica. De resto, estes
implicou uma ruptura total com o tempo breve. Operou, dois grandes personagens - conjtmtura económica e conjuntura
como se sabe, em proveito da história econômica e social e em social- não nos devem fazer perder de vista outros adores, cuja
detrimento da história política. Em consequêllcia. produziram-se marcha será difícil de determinar e talvez indeterminável,
um abalo e uma renovação inegáveis; deram-se, ine\itavelmente, por falta de medidas precisas. As ciências, as técnicas, as insti-
transformações metodológicas, deslocamentos de centros de inte- tuições políticas, as ferramentas mentais e as civilizações (para
resse com a entrada em cena de uma história quantitativa que, empregar uma palavra tão cômoda) têm também o seu ritmo de
com toda a certeza, não disse ainda a sua última palawa. vida e de crescimento; e a nova história conjuntural só estará em
sobretudo, produziu-se uma alteração do tempo his- ordem quando tiver completado a sua orquestra.
tradicional. Um dia, um ano podiam parecer medidas Este recitatÍvo deveria ter conduzido, logicamente, pela sua
cornetas a um historiador político de ontem. O tempo não pas- superação, à longa duração. Mas, pcr uma de rame,
sava uma soma de dias. Mas uma cun'a de preços, uma pro- esta sUp"~ração nem sempre se levou a cabo e as!,Íst.ÍIrlOS hoie a
demográfica, o movimento de salários, as variações de um retorno ao tempo breve, talvez pcrque parece
o estudo (mais sonhado do que realizado) da pro- conciliar a história «dc1ica» e a história breve
ou uma análise rigorosa da circulação exigem medidas continuar a avançar para o desconhecido.
amplas. trata-se de consolidar posições adquiridas. O
uma nova espécie de narração histórica - pode dizer-se Ernest Labrousse, em 1933, estudava o movunen
da conjuntura, do ciclo e até do «intercic1o» - que preços em França no séc. X'VHI (3), movimento secular.
à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século no mais importante livro de história surgido em França nestes
c, em última instância, o meio século. do ciclo clássico de Kon- últimos vinte e cinco anos, o mesmo Ernest Labrousse cedia a
exemplo, se não se têm em conta breves e super- essa exigência de retorno a um tempo menos embaraçoso, reco-
acidentes, há um movimento geral de subida de preços na nhecendo na própria depressão de 1774 a 1791 uma das mais
de 1771 a 1817; em contrapartiàa, os preços baixam de vigorosas fontes da Revolução francesa, uma das suas rampas de
17 a 1852: este duplo e lento TIlOrimento de subida e de retro- lançamento. Mesmo assim, estudava um semi-intercic1o, medida
cesso, representa um intercic10 completo para a Europa e quase relativamente ampla. Na exposição que apresentou ao congresso
para o mundo inteiro. internacional de Paris, em 1948, Comment naissent les révolu-
Estes períodos cronológicos não têm. claro, um valor abso- lions?, esforçava-se, desta vez, por ligar um patetismoecon6mico
Com outros barômetros -- os do crescimento econômico curt.a duração (novo estilo) a um patetismo político (estilo
renda ou do produto nacional- François Perroux (5) ofe- velho), o das jornadas revolucionárias. Eis-nos de novo, e
Cf. a sua Théoric générale du progres économique, Cadernos do (") Ernest· Labrousse: Esquisse du mouvement des prix et des reve-
1. S. E. A., 1957. nus en France au XVlll"'"' siêcle, 2 tomos, Dalloz, 1933.
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mergulhados até ao pescoço, no tempo breve. Claro está, a ope- doura implantação das cidades, na persistência das rotas e dos
ração é licita, é útil, mas tão sintomática! O historiador presta-se tráficos, na surpreendente fixidez do marco geográfico das civi-
de bom grado a ser director de cena. Como haveria de renunciar lizações.
ao drama do tempo breve, aos melhores fios de um ofício muito As mesmas permanências ou sobrevivências dão··se no imenso
campo do cultural. O magnífico livro de Ernst Robert CurtÍus (8)
além dos ciclos e dos interciclos, está o que os econo- constitui o estudo de um sistema cultural que prolonga, defor-
chamam, ainda que nem sempre ° estudem, a tendência mando-a, a civilização latina do Baixo Império, afectada por sua
secutar. Mas o tema apenas interessa a uns quantos economistas; vez por uma herança de muito peso; a civilização das elites inte-
e as suas considerações sobre as crises estruturais, que não foram lectuais alimentou-se até aos sécs. XIII e XIV, até ao nascimento
submetidas à prova das verificações históricas, apresen- das literaturas nacionais, dos mesmos temas, das mesmas compa-
tam-se como esboços ou hipóteses, aJX~as mergulhados no passado rações e dos mesmos lugares comuns. Numa linha de pensamento
recente: até 1929 e quando muito até à década de 1870 ('). Repre- análoga, o estudo de Lucien Febvre, Rabelais et le probleme de
sentam, no entanto, uma útil introdução à história de longa l'incroyance ou XVleme Siecle» (9), pretende precisar a utensi-
duração. Constituem uma primeira chave. lagemmental do pensamento francês, na época de Rabelais, esse
A segunda, muito mais útil, é a palavra estrutura. Boa ou conjunto de concepções que, muito antes de Rabelais, e muito
má, é ela que domina os problemas da longa duração. Os obser- depois dele, presidiu às artes de viver, de pensar e de crer e lími-
vadores do social entendem por estrutura uma organização, uma tou de antemão, com dureza, a aventura intelectual dos espíritos
coerência, r.elações suficientemente fixas entre realidades e mas- mais livres. O terna tratado por Alphonse Dupront eO) surge
sas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é, indubita- também como uma das mais novas investigações da Escola his-
velmente, um agrupamento, uma arquitectura; mais ainda, uma tórica francesa: a ideia de Cruzada é considerada. no Ocidente.
realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar. depois do século XIV - isto é, muito depois dá «verdadeira»
Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se con- cruzada -. como a continuidade de uma actividade de longa
vertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: duração que, incessantemente repetida, atravessa as sociedades,
obstruem a história, entorpecem-na e. portanto, detem1Ínam o os mundos e os psiquismos mais diversos e alcança com um
seu decorrer. Outras, pelo contrário. desintegram-se mais rapi- reflexo os homens do séc. XIX. O Íivro de Fierre Francastel,
damente. Mas todas elas constituem. ao mesmo tempo, apoios Peinture et Société (11) sublinha, num terreno ainda próximo, a
e obstáculos, apresentam-se como limites (crlvolventes, no sentido partir dos princípios do Renascimento florentino, a permanência
matemático) dos quais o homem e as suas experiências não se de um espaço pictórico «geométrico» que havia já de
podem emancipar. Pense-se na dificuldade em romper certos mar- até ao cubÍsmo e à Dintura intelectual de nrincíDios nosso
cos geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da A história das' ciências conhece taml~m u~niversos cons-
produtividade e até reacções espirituais: também os enquadra- truídos que constituem outras tantas explicações imperfeitas,
mentos mentais representam prisões, de longa duração. mas a quem são geralmente concedidos séculos de duração. Só
Parece que o exemplo mais acessível c:emtinua a ser ainda o são rejeitados depois de um longo uso. O universo aristotélico
da reacy3:o geográfica. O homem é prisioneiro, desde há séculos, não foi praticamente contestado até GaIileu, Descartes e Newton;
climas, das vegetações, das populações animais, das culturas, desvanece-se então perante um universo profundamente georne-
de um equilíbrio lentaJnente construido de que não se pode separar
nem correr o risco de voltar a pôr tudo em causa. Considere-se
o ocupado pela transumância na vida de montanha, a per- (') Ernst Robert Curtius: Europdische Literatur und lateinisches Mit-
em certos sectores da vida marítima, arreigados em telalter, Berna, A. Francke AG Verlag, 1948.
pontos privilegiados das articulações litorais; repare-se na dura- (") Lucicn Febvre: Rabelais et le probleme de l'incroycmce ou
XVI •••••siêcle. Paris, Albin Miche!, 1943; 2,' edição, 1946.
rO) Alphonse Dupront: Le Mythe des Croisades. Essai de sacioloRie
C) Veja-se Renê Clémens: Prolégomênes d'une théorie de ia struc- religieuse. Paris, 1959. .
fUre économique, Paris, Domat Montchrestien, 1952; Johann Akerman: ('1) Pierre Prancastel: Peinture et Société. Naissance et distribution
"Cyde et structurc». Revue économique, 1952, n.· 1. d'uro espace plastique, de Ia Renaissance au cubisme, Lyon, Audin, 1951.
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trizado que, por sua VeZ, seria derrubado, muito mais tarde, com de muitos outros - os traços fundamentais, para a Europa Oci-
a revolução einsteiniana (l2). dental, do capitalismo comercial, etapa de longa duração. Estes
Por um paradoxo apenas aparente, a dificuldade reside em quatro ou cinco séculos de vida económica, apesar de todas as
descobrir a longa duração num terreno onde a investigação evidentes transformações, possuíram uma certa coerência até ao
histórica acaba de obter êxitos inegáveis: o económico. Ciclos, abalo do século XVIII e à revolução industrial, da qual ainda não
intercic10s e crises estruturais encobrem aqui as regularidades e saímos. Caracterizaram-se por uma série de traços comuns que
as permanências de sistemas ou, como também foi dito, de civi- permaneceram imutáveis, enquanto em redor, entre outras conti-
lu..ações económicas e:l), isto é, de velhos hábitos de pensar ou nuidades, milhares de rupturas e de abalos renovavam a face do
agir, de marcos resistentes e tenazes por vezes contra toda a mundo.
lógica. Entre os diferentes tempos da história, a longa duração apre-
Mas é melhor raciocinar sobre um exemplo, rapidamente sentou-se, pois, como um personagem embaraçoso, complexo, fre-
analisado. Consideremos, muito perto de nós, no marco da Eu-
ropa, um sistema económico que se inscreve em algumas linhas quentemente
representar uminéd.ito. Admiti-Ia
SImples Jogo. a n08seif2../19~_nosso
.ofí5io do
c ~llirnaéflf amphaçao nãoestudo
pode
e regras gerais bastante claras: mantêm-se em vigor aproximada- e da curiosidade. Tão-pouco se trata de uma escolha, de que a
mente desde o século XIV até ao século XVIII - digamos, para história seja a única beneficiada. Para o historiador, aceitá-Ia
maior segurança, que até à década de 1750. Durante séculos, a equivale a prestar-se a uma mudança de estilo, de atitude, a uma
actividade económica de populações demograficamente débeis inversão de pensamento, a uma nova concepção do social. Equi-
como o mostram os grandes refluxos de 1350-1450 e, sem dúvida, vale a familiarizar-se com um tempo que se tornou mais lento,
de 1630~1730 (H). Durante séculos, a circulação assiste ao triunfo por vezes, até quase ao limite da mobilidade. É lícito libertarmo-
da água e da navegação, dado que qualquer trajecto continental ··nos nesta fase, mas não noutra - voltarei a isto -, do tempo
constitui um obstáculo, uma inferioridade. Os grandes centros exigente da história, sair-se dele para voltar a ele mais tarde, mas
europeus, salvo excepções que confirmam a regra (feiras de Cham- com outros olhos, carregados com outras inquietações, com ou-
pagne, já em decadência no início do período, ou feiras de Leipzig tras perguntas. A totalidade da história pode, em todo o caso,
no século XVIII), situam-se ao longo de franjas litorais. Outras ser reposta como a partir de uma infra-estrutura em relação a
características deste sistema: a primazia dos mercadores e comer- estas camadas de história lenta. Todos os níveis, todos os milhares
ciantes; o papel eminente desempenhado pelos metais preciosos, de níveis, todos os milhares de fragmentações do tempo da his-
ouro, prata e mesmo cobre, cujos choques incessantes só serão tória, se compreendem a partir desta profundidade, desta semi-
amortecidos ao desenvolver-se decisivamente o crédito, nos fins -imobilidade; tudo gravita em torno dela.
do século XVI; os repetidos refiuxos das crises agrícolas estacio- Não pretendo ter definido, nas linhas precedentes, o oficio
nárias; a fragilidade, pode dizer-se, da própria base da vida econó- de historiador mas sim uma concepção do mesmo. Feliz - e muito
mica; por último, a função desproporcionada, à primeira vista, ingénuo também - de quem acredite, depois das tempestades
de um ou dois' grandes gráficos exteriores: o comércio do Levante dos últimos anos, que encontrámos os verdadeiros princípios, os
do século XII ao século XVI, o comércio colonial no século XVIII. limites claros, a boa Escola. De facto, todos os ofícios das ciên-
Defini assim - ou melhor, evoquei por minha vez depois cias sociais se transformam incessantemente, devido aos seus pró-
prios movimentos e ao dinâmico movimento de conjunto. A his-
tória não constitui uma excepção. Não se vislumbra, pois, ne-
(U) Outros argumentos: cf. os poderosos artigos que argumentam no nhuma quietude; e a hora dos discípulos ainda não soou. Vai
mesmo sentido, de Otto Brunner sobre a história social da Europa, Ris-
torische Zeitschrift, t. 177, n.· 3; de R. Bultmann: Idem, t. 176 n" 1, sobre grande distância de Charles Victor Langlois e de Charles Seigno-
o humanisrno; de Georges Lcfebvre: A,maies historiques de ia Révoiution bos a Marc Bloch; mas, a partir de Marc Bloch, a roda não dei-
françaisc, 1949, n.9 114 e de F. Hartung: Historische Zeitschrift, t. 180, xou de girar. Para mim, a históri~uLª_~ºmª 4.~_JQgª?_ª~JlÍstórias
n.· 1, sobre o despotismo iluminado.
C') Renê Courtin: La civilisation économique du Brésii, Paris, Li-
brairie de Médicis, 1941. úehoj~e<i~alTIanhã.
ª~...
lJmª.,çºI.~ç~ªQ:.ªt;tQTIçiQ§..~ .. PQQ!Q.s..ª~...yi;'itª).,.g~..~QPlem;
~.§âiYf,:i§;....
--
(H) Em França. Em Espanha, o refluxo demográfico é sensível .-' "'OúilÍcOcrro,à fneu ver, residiria em escolher uma destas his-
desde finais do século XVI. tórias desprezando as restantes. Nisso consistiu - e nisso consis-
16 17
tiria -- o erro historicizante. Não será fácil, já se sabe, convencer da explicação histórica: iludem-na, mediante dois procedimentos
disso todos os historiadores, e menos ainda as ciências sociais, quase opostos: um ({actualiza» em excesso os estudos sociais, me~
empenhadas em nos acantonar na história, tal como acontecia diante uma sociologia empírica que desdenha todo o tipo de his-
no passado. Será necessário muito tempo e muito esforço, para tória e que se limita aos dados do tempo breve e do trabalho de
que todas estas transformações e novidades sejam admitidas sob campo: o outro ultrapassa simplesmente o tempo, imaginando no
o velho nome de história. E, no entanto, nasceu e continua a termo de uma «ciência da comunicação» uma formulação mate-
interrogar-se e a transformar-se uma nova «ciência histórica». mática de estruturas quase intemporais. Este último procedimento,
Em França, anuncia-se desde 1900 com a Revue deSynthese His- o mais novo de tooos, é com toda a evidência o único que nos
tonque e com os Annales a partir de 1929. O historiador preten- pode interessar profundamente. Mas o episÓdico (événementiel)
deu preocupar-se com todas as ciências do homem. Este facto tem ainda um número suficiente de partidários, para que valha a
confere ao nosso ofício estranhas fronteiras e estranhas curiosi- pena examinar sucessivamente ambos os aspectos da questão.
dades. Pela mesma razão, não imaginemos que existem entre o Expressei já a minha desconfiança a respeito de uma história
historiador e o observador das ciências sociais as barreiras e as que se limita simplesmente ao relato dos acontecimentos ou suces-
diferenças que antigamente existiam ..Todas as ciências do homem, sos. Mas sejamos justos: se existe pecado de preocup'ação abusiva
incluindo a histÓnª, esJãQconJ@1inaaas umas peTas outras:Falam e exclusiva pelos acontecimentos, a história, principal acusada,
ou p()àem falar o mesmo iàioma:-·-----·-- -." não é de modo nenhum a única culpável. Todas as ciências sociais
Quer nos coloquemos em 1558 ou no ano de graça de 1958, incorrem neste erro. Tanto os economistas como os demógrafos
para quem pretende captar o mundo, o problema é definir uma e os geógrafos estão divididos - e mal divididos·- entre o pas-
hierarquia de forças, de correntes e de movimentos particulares, sado e o presente; a prudência exigiria que mantivessem os dois
e, mais tarde, reconstituÍr uma constelação de conjunto. ,Em cada pratas da balança, coisa que resulta e',idente para os geógrafos
momento desta investigação, é necessário distinguir entre movi- (em particular para os franceses, na tradição de Vidal
mentos longos e impulsos breves, considerados estes últimos nas de Ia Blache); mas, em contrapartida. é coisa muito rara de en-
suas fontes imediatas e aqueles na sua projecção de um tempo contrar entre os economistas, prisioneiros da mais curta actuali-
longínquo. O mundo de 1558, tão desagradável do ponto de vista dade e encarcerados entre um limite no passado que não vai mais
francês, não nasceu no limiar desse ano sem encanto. E o mesmo além de 1945 e um presente que os planos e previsões prolongam
acontece, sempre visto do DOnto de vista francês. com o difícil no imediato futuro alguns meses e - no máximo -- alguns anos.
ano de 1958. Cada «actualidade» reúne movimentos de origem e Sustento que todo o pensamento econômico se encontra bloqueado
de ritmo diferente: o tempo de hoje data simultaneamente de por esta restrição temporal. Cabe aos dizem os eco-
ontem, de anteontem, de outrora. nomistas. remontar além de 1945, em busca de velhas economias;
mas, ao aceitar esta restrição, os economistas a si mes-
mos de um extraordinário campo de que prescin-
2. A controvérsia do tempo dem por sua prÓpria vontade sem, por isso, o seu valor.
e economista acostumou-se a pôr-se ao serviço actual, ao ser.,
Estas verdades são, claro está, triviais. Às ciências SOCIaIS viço dos governos.
não as tenta, em absoluto, a busca do tempo perdido Isto não IXlsição dos etnógrafos e dos etnólogos não é nem tão clara
quer dizer que se lhes possa reprovar com firmem este desin- nem tão alarmante. É bem verdade que alguns deles sublinharam
teresse e se possa declará.,las sempre culpáveis por não aceitarem a impossibilidade (mas ao impossível estão submetidos todos os
a história ou a duração como dimensões necessárias dos seus intelectuais) e a inutilidade da história, no interior do seu ofício.
estudos. Aparentemente, reservam"TIOS um bom acolhimento; o Esta rejeição autoritária da história apenas serviu para diminuir
exame «diacrÓnico)} que reintroduz a histÓria nem sempre está a contribuição de Malinowski e dos seus discípulôs. De facto,
ausente das suas preocupações teÓricas. é impossível que a antropologia, sendo - comoClaude LévÍ-
Uma vez afastadas estas aquiescências, impõe-se indubitavel- . -Strauss (15) costuma dizer - a própria aventura do espírito, se
mente admitir que as ciências sociais, por gosto. por instinto pro-
fundo e, talvez, por formação, têm sempre tendência a prescindir C') Claude Lévi-Strauss: op. cit., p. 31.
18 19
,':,\0.
desinteresse da história. Em qualquer sociedade, por muito rude dadeira» que o quadro histórico do passado, e sê-la-,:i tanto menos
que podemos observar as «garras do acontecimento»; da quanto mais afastada pretenda estar do reconstruido.
mesma maneira, não existe uma única sociedade cuja história Phjlippe Aries cn) insistiu sobre a importância do facior deso-
tenha naufragado completamente. A este respeito, seria um erro rientador, do factor surpresa na explicação histórica: alguém de~
da nossa parte a queixa ou a insistência nesse facto. para, no século XVI, com um facto estranho; mas estranho para
A IlOssa controvérsia será, pelo contrário, bastante enérgica alguém que é um homem do século Xx. Porquê esta diferença?
nas fronteiras do tempo breve, frente à sociologia dos inquéritos O problema está posto. Mas, para mim, a surpresa, a desorienta-
sobre o actual e dos inquéritos em múltiplas direcções, entre socio- ção, o afastamento e a perspectiva - métodos do cünheciiTlento
logia, psicologia e economia. Tais inquéritos proliferam em França insubstituíveis todos eles - são igualmente necessários vara com-
e no estrangeiro. Constituem, à sua maneira, uma aposta reiterada preender aquilo que nos rodeia tão de perto, que é difíêil YÍslum-
a favor do valor llsubstituível do tempo presente, do seu calor brá-Io com clareza. Se alguém passar um ano em Londres, o mais
«vulcânico», da sua copiosidade. Para quê voltar até ao tempo provável é chegar a conhecer muito mal a Inglaterr:l.1\hs. por
histórico, empobrecido, amplificado, destruído pelo silêncio, re- comparação, à luz de surpresas experimentadas, compreenderá
construido, digo bem, reconslTuído! Mas, na realidade, o problema bruscamente alguns dos traços mais profundos e origmais do seu
está em saber se este tempo da história está tão morto e é tão próprio país, aqueles que se não conhecem à força de conhecê-Ias:
reconstruído corno dizem. Indubitavelmente, o historiador de- Frente ao actual, o passado confere, da mesma maneira. pers-
monstra urna facilidade excessiva em desentranhar o essencial de pectiva.
uma época passada; nos tennos de Henri Pirenne, distingue sem Os historiadores e os social scientists poderiam, pois. conti-
dificuldade os «acontecimentos importantes» (entenda-se: «aque- nuar a devolver a bola até ao infinito, a propósito do documento
les que tiveram consequências»). Trata-se, sem qualquer dúvida, morto e do testemunho demasiado vivo. do passadc e
de um perigoso processo de simplificação. Mas, o que não daria da actualidade próxima em excesso. Não acredito que seja esse o
o viajante do actual para possuir esta perspectiva no tempo, sus- problema fundamental. O presente e o passado esclarecem-se
ceptivel de desmascarar e de simplificar a vida presente, a qual mutuamente, com uma luz recíproca. se a obseryação se Et'llita
confusa e pouco legível por estar submersa em gestos e à ~trita actualidade, a atenção dirige-se para o que se move
de importância secundária? Lévi-Strauss pretende que uma rapidamente, para o que sobressai com ou sem para o que
de conversação com um contemporâneo de PIa tão o infor- acaba de mudar, faz ruído ou se manifesta de um modo imediato.
num grau muito maior que os nossos clássicos discursos, Uma monótona sucessão de factos e de acontecimentos, Tão en-
sobre a coerência ou a incoerência da civilização da Grécia clás- fadonha como a das demais ciências históricas. .(' obser-
sica C6). Estou absolutamente de acordo. Más isto decorre do vador apressado; o mesmo acontece, se se tratar do que
facto de, ao longo dos anos, lhe ter sido dado ouvir centenas de durante três meses se preocupa com uma tribo como
vozes gregas salvas do silêncio. O historiador preparou-lhe a via- com o sociólogo industrial que «descobre» os tópicos do seu
gem. Uma hora na Grécia de hoje não llie ensinaria nada, ou inquérito ou que crê, graças a hábeis questionários e com a com-
quase nada, sobre as coerências ou incot;JGncias actuais. binação de ficha;;; perfuradas, delimitar perfeitamente um meca-
Mais ainda, o ínquiridor do tempo presente só alcança as nismo social. O social é uma lebre muito mais esquÍ\-a.
«finas» tramas das estruturas, sob a condição de reconstruir, ele Que ínteresse podem merecer, na realidade, às ciências do
também, de antecipar hipóteses e explicações, de rejeitar o real homem as deslocações - de que trata um amplo e
tal. como é percebido, de truncá-Ia, de superá-Io; operações que sobre a região parisicnse (18) - que tem de efectuar uma
permitem todas elas escapar aos dados para os dominar meL'1or, entre a sua casa no XVI em e arrondissement, o dorr.Jcilio no seu
mas que - todas elas sem excepção - constituem reconstruções. professor de música e a Faculdade de Ciências Políticas? Podemos
Duvido que a fotografia sociológica do presente seja mais ({ver-
C'1)Philippe Afies: Le temps de l'histoire, Paris, Plan. 1954. em
particular pp. 298 e segs.
C") Claude Léví-Strauss: (iDiogenc couchéJ), Les Temps Modemes, (U) P. Chombart de Lauwe: Paris et l'agg!omération parisienne, Pa-
11." 195, p. 17. ris, P. U. F., 1952, tomo I, p. 106.
20 21
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/
.. 3. Comunicação e matemáticas sociais
fa:r.er com elas um bonito mapa. Mas, bastaria que esta jovem
tivesse estudado agronomia ou praticado esqui aquático para que
tudo mudasse nestas viagens triangulares. Alegra-me ver repre- Talvez tenhamos cometido um erro ao determo-nos dema-
sentada num mapa a distribuição das casas dos empregados de siado na agitada fronteira do tempo breve, onde, na realidade,
urna grande empresa, mas se careço de um mapa anterior a esta o debate se desenvolve sem grande interesse e sem surpresas úteis.
distribuição, se a distância cronológica entre os pontos assinalados O debate fundamental decorre noutro lado, entre os nossos vizi-
não basta para permitir inscrever tudo num verdadeiro movimento, nhos arrastados pela mais nova das ciências sociais, sob o duplo
onde esta o problema sem o qual um inquérito constitui apenas signo da «comunicação» e da matemática.
um esforço inútil. O interesse destes inquéritos consiste, quando Mas não será fácil provar que nenhum estudo social se exime
muito, em acumular dados; e nem todos serão válidos ipso ao tempo da história, com base em tentativas que, pelo menos na
facto para trabalhos futuros. Desconfiemos, pois, da arte pela arte. aparência, lhe escapam totalmente.
Da mesma forma, duvido que o estudo de uma cidade, qual- Nesta dlScussão, em todo o caso, convém que o leitor, se nos
quer que ela seja, possa converter-se em objecto de um inquérito quiser seguir (tanto para aprovar-nos como para contradizer o
sociológico, como ocorreu com Auxerre (9), ou Viena no Del- nosso ponto de vista), pese um a um os termos do seu vocabulário,
finado ('0), por não ter sido inscrito na duração histórica. Toda não totalmente novo, está claro, mas sim recolhido e rejuvenes-
a cidade, sociedade em tensão com crises, cortes, deteriorações e cido nas novas discussões que se desenrolaw. ante os nossos olhos.
cálculos necessários próprios, deve ser novamente situada tanto Evidentemente que nada há a dizer de novo sobre o aconteci-
no complexo dos campos que a rodeiam, corno nesses arquipéla- mento ou sobre a longa duração. Pouco há a dizer sobre as estru-
gos de cidades vizinhas de que o historiador Richard Hapke foi turas, ainda que a palavra - e a coisa - não se encontrem ao
o primeiro a falar; por conseguinte, no movimento mais ou menos abrigo das discussões e das incertezas ('ll). É inútil também discutir
afastado no tempo - por vezes muito afastado no tempo- que muito sobre os conceitos de sincronia e diacronia; definem-se por
alenta este complexo. E, não é indiferente, mas pelo contrário si mesmos, ainda que a sua função, num estudo concreto do essen-
essencial, o constatar um determinado intercâmbio entre o campo cial, seja menos fácil de observar do que aparenta. Com efeito,
e a cidade ou uma determinada rivalidade industrial ou comercial. na linguagem da história (tal como eu a L'11agino) não pode em
o saber se se trata de um movimento jovem em pleno impulso ou abseh1to haver sincronia perfeita: uma suspensão instantânea que
de um esforço final. de um longínquo ressurgir ou de um monó- dçtenha todas as durações é, praticamente, um absurdo em si
tono recomeço. ou - o que e o mesmo - muito artificioso; da mesma maneira
Mais umas palavras à guisa de conclusão. Lucien Febvre, uma descida. segundo a vertente do tempo, só é imaginável sob
durante os últimos dez anos da sua vida, repetiu: «a istória, a forma de uma multiplicidade de descidas, segundo os diversos e
ciência do passado, ciência do presente». Ahistória, dlaléctica a inumeráveis rios do tempo.
dÚ1'ãÇãD, não seTa, à sua mãneira, a éxplicação do social em toda Estas breves precisões e precauções bastarão momento.
a sua realidade e, portanto, també,m do actual? A sua lição vale Mas há que ser mais explícito no que respeita à história incons-
neste aspecto como precaução contra o acontecimento: não pen- ciente, aos modelos, às matemáticas sociais. Além disso, estes
sar apenas no tempo breve, não acreditar que só os sectores que comentários. cuja necessidade se impõe, reúnem-se - ou espero
fazem ruído são os mais autênticos; também os. há silenciosos. que não tardarão a reunir-se - numa problemática comum às
Mas valerá a pena recordá-Io? . ciências sociais.
A história inconsciente é, claro está, a história das formas
inconscientes do sociaL «Os homens fazem a história, mas igno-
ram que a fazem.» ('2) A fórmula de Marx esclarece de certo
C·) Suzanne Frere e Charles Bettelheim: Une vil/e française mOJ·erme.
Auxerre en 1950, Paris, Armand Colin, Cadernos de Ciências Políticas,
n! 17, 1951. (") Ver «Colloque sur lés Structures», VI Secção da Ecole Pratique
co) Pierre Ciément e Nelly Xydias: Vienne-sur-ie-Rhône. Soci%gie des Hautes Etudes, resumo dactilografado, 1958.
à'une cité française. Paris, Armand Colin, Cadernos de Ciências Politicas, f') Citado por Ciaude Lévi-Strauss: Anthropologie structurale, op.
n.~ 7L 1955. cit., pp. 30-31.
22 23
modo, mas não resolve o problema. De facto, é, uma vez mais, lecido com sumo cuidado permitirá determinar, além disso, o meio
todo o problema do tempo breve, do «miero-tempo», dos aconte- social observado - a partir do qual foi, em suma, criado -, ou-
cimentos, o que se nos volta a pôr com um nome novo. Os homens tros meios sociais da mesma natureza, através do tempo e do es-
tiveram sempre a impressão, vivendo no seu tempo, de captar dia paço. Nisso reside o seu valor recorrente. Estes sistemas de expli-
a dia o seu desenvolvimento. Será abusiva esta história consciente, cações variam até ao infinito, segundo o temperamento, o cálculo
clara, como pensam muitos historiadores, desde há algum tempo? ou a finalidade dos utilizadores: simples ou complexos, qualitati-
Ainda não há muito, a linguística acreditava poder deduzir tudo vos ou quantitativos, estatísticos ou dinâmicos, mecânicos ou esta-
das palavras. Quanto à história, forjou a ilusão de que tudo podia tísticos. Esta última distinção recolhi-a de Claude Lévi-Strauss.
ser deduzido dos acontecimentos. Mais de um dos nossos contem- Se fosse mecânico, o modelo encontrar-se-ia na mesma medida
porâneos se inclinaria a pensar que tudo provém dos acordos de da realidade directamente observada, realidade de pequenas di-
Yalta ou de Potsdam, dos acidentes. de Dien-Bien-Fu ou de Sa- mensões que apenas afecta grupos minúsculos de homens (assim
khiet-Sidi-Yussef, ou deste outro acontecimento -de importância procedem os etn610gos, no que toca às sociedades primitivas).
muito diferente, é verdade - que constituiu o lançamento dos Quanto às grandes sociedades, em que intervêm vastos números,
Sputniks. A história inconsciente transcorre para lá destas luzes, impõe-se o cálculo de médias, que conduzem a modelos estatís-
dos seus flashes. Admita-se, pois, que existe a uma certa distância ticos. Mas, pouco importam estas definições, por vezes discutíveis!
um inconsciente social. Admitamos, além disso, à falta de melhor, Segundo o meu ponto de vista, o essencial consiste em pre-
que este inconsciente seja considerado como mais rico cientifica- cisar, antes de estabelecer um programa comum das cit;ncias so-
mente que a superfície relampejante a que estão acostumados os ciais, a função e os limites do modelo, em que certas iniciativas
nossos· olhos; mais rico cientificamente, isto é, mais simples, mais correm o risco de exagerar em demasia. Donde se deduz a neces-
fácil de explorar, se não de descobrir. Mas a divisão entre super- sidade de confrontar também os modelos com a ideia de duração;
fícies daras e profundidades obscuras - entre ruído e silêncio- porque da duração que ÍJ.'11plicam,dependem bastante intima-
é difícil, aleatória. Acrescentemos ainda que a história «incons- mente, quanto a mim, tanto a sua significação como o seu valor
ciente» - domínio parcial do tempo conjuntural e, por exce- de explicação.
lência, do tempo estrutural- é muitas vezes mais nitidamente Para uma clareza maior. tomemos uma série de exemnlos de
percebida que aquilo que se quer admitir. Todos nós temos a sen- entre 0S modelos históricos - entenda-se: fabricados pelos his-
sação, p'dra além da nossa própria vida, de uma história de massa, toriadores -, modelos bastante grosseiros, rudimentares, que ra-
cujo poder e cujo impulso são, na verdade, mais fáceis de perce- ramente alcançam o rigor de uma verdadeira regra científica e
ber que as suas leis ou a sua duração. E esta consciência não data que nunca se preocuparam em chegar a lli'118. linguagem matemá-
unicamente de ontem (assim, por exemplo, no que concerne à tica revolucionária, mas que, não obstante, são modelos à sua
história económica), ainda que seja hoje cada vez mais viva. Are·· maneira.
volução - porque se trata, na verdade, -de lima revolução no Falámos mais atrás do capitalismo comercial entre os sé-
espírito - consistiu em abordar, de frente, esta semiobscuridade, culos XIV e XVIII: trata-se de um dos modelos elaborados por
em dar-lhe um lugar cada vez mais amplo ao lado - para não Marx. Só se aplica inteiramente a uma dada família de socieda-
dizer à custa _. dos acontecimentos. des e ao longo de um tempo dado, ainda que deixe a porta aberta
Nesta prospecção, em que a história não está só (pelo contrá- a todas as extrapolações.
rio, não faz mais que seguir neste campo e adaptar para seu uso Algo de diferente ocorre já com os modelos que esbocei, num
os pontos de vista das novas ciências sociais), foram construÍ- livro já antigo (24), de um ciclo de desenvolvimento económico, a
dos novos instrumentos de conhecimento e de investigação, tais propósito das cidades italianas entre os séculos XVI e XVIII,
como - mais ou menos aperfeiçoados, às vezes ainda artesa- sucessivameI1te mercantis, «industriais», e, mais tarde, especiali-
nais - os modelos. Os modelos são apenas hipótese, sistemas de
explicações solidamente interligadas. segundo a forma da equação,
ou função; isto é igual àquilo ou determina aquilo. Uma determi- (") Seria tentador referir os «modelos» dos economistas que, na
realidade, detcnninaram a nossa imitação.
nada realidade só aparece acompanhada de outra e entre ambas C") Fernand Brande!: La Aféditerranée et le monde méditerranéen
manifestam-se relações estreitas e constantes. O modelo estabe- â l'époque de Philippe lI, Paris, Armand Colin, 1949, pp. 264 e segs.
24 25
zadas no comércio bancário; esta última actividade, a mais lenta pródiga: é válido, por conseguinte, para uma duração muito mais
a florescer, foi também a mais lenta a desaoorecer. Esta investigae longa que os modelos precedentes, mas, ao mesmo tempo, põe
ção, de facto mais restrita que a estrutur'a do capitalismo mer- em causa realidades mais precisas, mais exíguas.
cantil, seria, mais facilmente que aquele, susceptível de estender~se Este tipo de modelo aproximar-se-ia, em último extremo, dos
t~~to na duração como no espaço. Regista um fenómeno (a1t:?uns modelos favoritos, quase intemporais, dos sociólogos matemáticos o
dmam uma estrutura dinâmica; mas todas as estruturas da hlst6-- Quase intemporais; isto é, na realidade circulando pelas rotas
ria são, pelo menos elementarmente, dinâmicas) capaz de repro- obscuras e inéditas da muito longa duração.
duzir~se num número de circunstâncias fáceis de reencontrar. As explicações precedentes não são mais que uma insuficiente
Talvez possamos dizer ° mesmo do modelo esboçado por Frank introdução à ciência e à teoria dos modelos. E falta muito ainda
Spooner e por mim mesmo (25), a respeito da história dos metais para que os historiadores ocupem neste terreno posições de van-
preciosos, antes, durante e depois do século XVI: ouro, prata e guarda. Os seus modelos não são outra coisa senão formas de
cobre - e crédito, ágil substituto do metal- são, eles também, explicações. Os nossos colegas são muito mais ambiciosos e estão
jogadores; a «estratégia» de um pesa sobre a «estratégia» do muito mais avançados na investigação, quando tratam de reunir
outro. Não será difícil transportar este modelo para fora do sé- as teorias e as linguagens da informação, a comunicação ou as
culo privilegiado e particularmente movimentado, o XVI, que es- matemáticas qualitativas. O seu mérito - que é grande ._.. can··
colhemos para a nossa observação. Acaso não houve economistas siste em acolher no seu campo esta linguagem subtil que as mate-
que trataram de verificar, no caso concreto dos países subdesen- máticas constituem, mas que corre o risco, à mínima inadvertên-
volvidos de hoje, a velha teoria quantitativa da moeda, modelo, cia, de escapar ao nosso controlo e de correr por sua conta.
também ela, à ~ua maneira? re). Informação, comunicação, matemáticas qualitativas: tudo se reúne
Mas as possibilidades de duração de todos estes modelos ainda bastante .bem, sob o vocabulário muito mais amplo de matemáti-
são breves em comparação com as do modelo imaginado por um cas SOCIaiS.
jovem historiador sociólogo americano, Sigmund Diamond (27). As matemáticas sociais e8) são, pelo menos, três linguagens;
Tendo-1"ie chamado a aten-ção a dupla linguagem da classe domi- susceptíveis. além disso, de se misturarem e de não excluir con-
nante dos grandes financeiros americanos contemporâneos de tinuações. Os matemáticos não se encontram no final da imagina-
Pierpont Morgan -·Iinguagem, por um lado,- interior à classe, e ção. Em todo o caso, não existe uma matemática. {] matemática
outro lado, exterior (esta última. aliás, argumentação dirigida (ou se existir. trata-se de uma reivindicação). «Não se deve dizer
opinião pública a quem :;e descreve o êxito financeiro como o a álgebra. a geometria, mas uma álgebra, uma geometria (Til.
triunfo típico do sei! made man, condição de fortuna da própria baud)>>: o que não simplifica os nossos problemas nem os seus.
nação) --- vê nela a reacção acostumada de toda a classe domi- Três linguagens, pois: a dos factos de necessidade é dado, o
nante que sente ameaçados o seu prestígio e os seus privilégios; outro consequêncía) é o campo das matemáticas tradicionais; a
necessita, para camuflar-se, confundir a sua sorte com a da cidade ling-iJagem dos factos aleat6rios é, desde Pascal, campo do cálculo
O~l da n~çã? e o seu in~ere~se particular com o interesse públ~co. de probabilidades; finalmente. a linguagem dos factos condiciona··
Slgmuna Dlamond exphcana de boa vontade, da mesma maneIra, dos - nem deterrrLÍnados nem aleatórios, mas submetidos a certas
a evolução da ideia da dinastia ou do Império, dinastia inglesa, coacções. a regras de jogos - no eixo da «estratégia}> dos jogos
Império romano ... O modelo assim concebido é, evidentemente, de Von Neumann e Morgenstern (9), essa estratégia triunfante
capaz de percorrer séculos. Supõe certas condições sociais preci- que não se quedou unicamente nos princípios e ousadias dos seus
sas, mas só aquelas em que a história se mostrou particularmente fundadores. A estratégia dos jogos, devido ao uso dos conjuntos,
eO)Todas as observações seguintes foram extraídas da sua última (") lbid., p. 39.
L'AnthropoIogie structurale, op. cito (") Claude Lévi-Strauss: Les structures élémemaires de Ia parenté,
lbid., p. 326. Paris, P. U. F.. 1949. Ver Anthropo!ogie structurale, pp. 47-62.
28 29
todos OS sistemas de casamentos conhecidos nestes mundos prÍl'ni- menta mais significativo. Assim, por exemplo, li explicação Que
tivos - são multo numerosos -, 05 matemáticos encarregar-se- F. Spooner e eu próprio imaginámos para a interacção dos metais
-iam de procurar as combinações e soluções possíveis. Com a preciosos não me parece de modo algum aplicável antes do sé-
do matemático André Weill, Lévi-Strauss conseguiu traduzir em culo XV, Para lá desse século, os choques entre os metais são
termos matemáticos a observação do antropólogo. O modelo ex- de uma violência que a observação ulterior não havia assinalado.
traído deve provar a validade, a estabilidade do sistema e assinalar Competia-nos, pois, procurar a causa, do mesmo modo que, cor-
as soluções implica das por este último. rente abaixo desta vez, era necessário encontrar a razão pela qu.al
Vê-se, pois, o rumo que segue este tipo de investigação: ultra- se torna difícil, e depois impossível, a navegação para o nosso
passar a superfície de observação para alcançar a zona dos ele- demasiado simples barco, em presença do século XVIII e do
mentos bconscientes ou pouco conscientes e reduzir deJX)ís esta anormal desenvolvimento do crédito. Quanto a mim, a pesquisa
a elementos pequenos, finos, idênticos, cujas relações deve ser incessantemente conduzida da realidade social para o
podem ser analisadas com precisão. Neste grau «micro-sociol6- modelo, depois deste para aquela, e assim por diante, através de
I
j
,1
'Z
giCOl) (de um certo tipo; sou eu quem acrescenta esta reserva)
podemos esperar perceber as leis das estruturas mais gerais, tal
como o linguista descobre as suas no grau infra-fonémico e o
uma série de aproximações, de viagens pacientemente retomadas.
Deste modo, o modelo é sucessivamente ensaio de explicação da
estrutura, instrumento de controlo, de comparação, verificação da
no grau infra-molecular, isto é, ao nível do átomO}}('4). solidez e da própria vida de uma estrutura dada. Se eu fabricasse
É tX:;s!>Í'vel continuar o jogo, evidentemente, em muitas outras di- um modelo a partir do actual, gostaria de o recolocar imediata-
por exemplo. nada mais didáctico que ver Lévi- mente na realidade, para depois o fazer remontar no tempo, caso
enfrentando os mitos e até a cozinha (essa outra lingua- fosse possível, até ao seu nascimento. Uma vez feito isto, calcula-
reduzindo os mitos a uma série de células elementares. os ria a sua probabilidade de vida até à próxima ruptura, segundo
reduzindo (sem acreditar muito nisso) a linguagem des o movimento concomitante de outras realidades sociais. A menos
de cozinha aos gostem as. Em cada caso, procura níveis em que, utilizando-o como elemento de comparação, opte por pas-
profundidade, subconscientes: enquanto falo, não me preocupo seá-Io, no tempo e no espaço, à procura de outras realidades sus-
com os fonemas do meu discurso: enquanto como, tão-pouco me ceptíveis de, graças a ele. se tornarem mais claras.
cu!inariamente com os «gostemas» (se os houver). E. caD- Não terei razão para pensar que os modelos das matemáticas
em caso. está sempre presente este jogo de relações qualitativas, tal como nos foram apresentados até agora ('5),
e precisas. Pretende, acaso. o último grito da investigação cilmente se prestariam a semelhantes viagens, antes de tudo, por-
apreender sob todas as linguagens estas relações sim- que se limicam a circular por uma só das inúmeras rotas do tempo,
e misteriosas. para as traduzir num alfabeto Morse. isto é. a da longa, muito longa duração, ao abrigo dos acidentes, con-
matemática universal? Tal é a ambição das novas junturas, das rupturas?
sociais. Afas, permitir-me-ão dizer, sem pretender ira- ToC1O a referir-me, uma vez mais, a Claude Lévi-Strauss,
se trata de outra história? porque a sua tentativa, neste campo. parece-me ser a mais inteli-
uzamos, na verdade, a duração. Disse que os modelos gente, a mais clara e também a melhor enraizada na experiência
urna duração variável: são válidos" enquanto é válida a social, da qual tudo deve partir e a que tudo deve voltar. Em cada
que registam, E para o observador do.social, este tempo um dos casos, assinalemo-Ia, determina um fenómeno de extrema
é primordial, posto que ainda mais significativo que as estruturas lentidão, como se fosse intemporal. Todos os sistemas de paren-
profundas da vida são os seus pontos de ruptura, a sua brusca tesco se perpetuam, porque se impõe que um pequeno grupo de
ou lenta deterioração, sob o efeito de pressões contraditórias. homens para viver se abra ao mundo exterior: a proibição do
Comparei, por vezes, os modelos a barcos. A mim o que incesto é uma realidade de longa duração. Os mitos, de lento de-
me interessa, uma vez construído o barco, é pô-Io na água e senvolvimento, também correspondem a estruturas de uma ex-
comprovar se flutua, e, mais tarde, fazê-Io descer ou subir, à mi-
vontade, a corrente do tempo. O naufrágio é sempre o mo- (") Digo bem matemáticas qualitativas, segundo a estratégia dos
jogos. Sobre os modelos clássicos e tal corno os elaboram os economistas
L'Anthropologie structuraie. pp. 42-43. seria necessário iniciar uma discussão diferente.
30 31
Os modelos chamados estatísticos dirigem-se, pelo contrário,
trema longevidade. Podemos sem nos preocuparmos com a escolha
da mais antiga, coleccionar versões do mito de Édipo; o problema às sociedades amplas e complexas em que a observação s6 pode
estaria em ordenar as diferentes variações e em chamar a atenção ser dirigida através de médias, isto é, das matemáticas tradicio-
para a eXistência de uma profunda articulação, a· elas subjacente nais. Mas, uma vez estabeleddas estas médias, se o observador for
e que as determina. Mas supOnhamos que O nosso colega se inte- capaz de estabelecer, à escala dos grupos e não já dos indivíduos,
ressa não por um mito, mas pelas imagens, pelas interpretações essas relações de base de que faiávamos e que são necessárias para
sucessivas do «maquiavelismo»; isto é, que investiga os elemen- as elaborações das matemáticas qualitativas, nada o impede de
recorrer então a elas. Ainda não houve, que eu saiba. tentativas
de uma doutrina bastante simples e muito extensa, a
l-"'Iartir do seu lançamento real cerca de meados do século XVI.
deste tipo. De momento, quer se trate de psicologia, de economia
ou de antropologia, todas as experiências foram realizadas no sen-
Aparecem continuamente, neste caso, rupturas e inversões até na
tido que defini, a propósito de Lévi-Strauss; mas as matemáticas
própria estrutura do maquiavelismo, já que este sistema não tem sociais qualitativas só demonstrarão o que podem dar no dia em
a solidez teatral e quase eterna do mito; é sensível às incidências que enfrentarem uma sociedade moderna, nos seus complicados
e às contrariedades, às múltiplas intempéries da história. Numa problemas, nas suas diferentes velocidades de vida. Apostemos
não se encontram apenas as rotas tranquilas e monótonas que esta aventura algum dia tentará um dos nossos sociólogos
longa duração. Deste modo, o procedimento recomendado por matemáticos; apostemos, também, que dará lugar a urna revisão
Lévi-Strauss na investigação das estruturas matemáticas não se obrigatória dos métodos até agora observados pelas novas mate-
situa apenas ao nivel micro-sociológico, mas também no encontro máticas, já que estas não podem confinar-se aO que chamarei,
infinitamente pequeno e da muito longa duração. neste caso, a excessivamente longa duração: devem reencontrar
Entretanto, estarão as revolucionárias matemáticas qualita- o jogo múltiplo da vida, todos os seus movimentos, todas as suas
condenadas a seguir unicamente os caminhos da muito longa durações, todas as suas rupturas, todas as suas variações.
Neste caso, só reencontraríamos, no fim de contas, ver-
as do homem eterno. Verdades primeiras, aforismos
das nações, dirão os cépticos. Venfades essenciais, 4. Tempo do historiador, tempo do sociólogo
nós, e que podem esclarecer com uma luz nova as
de toda a vida social. Mas o conjunto do debate Depc'Ís de uma incursão pelo país das intemporais matemáti-
não reside aqui. cas sociais, eis-me de volta ao tempo, à duração. E, como histOl;a-
creÍo, na verdade, que estas tentativas - ou tentativas dor incorrigível que sou, assombra-me, uma vez mais, como os
-- possam prosseguir fora da muito longa duração. sociólogos puderam escapar-lhe. Mas o que acontece é que o seu
O que se põe à disposição das matemáticas sociais qualitativas não tempo não é o nosso: é muito menos imperativo, menos concreto
são os números, mas relações que devem ser definidas com sufi- também e nunca se encontra no ceme dos seus problemas e das
rigor para poder ser-lhes atribuído um sinal matemático suas reflexões.
a partIr do qual serão estudadas todas as possibilidades matemáti- De facto. o historiador nunca se evade do tempo da história:
cas desses sinais, já sem preocupações com a realidade social que o tempo adere ao seu pensamento como a terra à pá do jardineiro.
representam. Todo o valor das conclusões depende, pois, do valor Sonha, claro está, escapar-lhe. Ajudado pela angústia de 1940,
da observação inicial. da selecção que isola os elementos essenciais Gaston Roupl1el (1;;) escreveu a este respeito frases que fazem
sofrer todo o historiador sincero. Neste sentido, temos de com-
realidade observada e determina as suas relações, no seio desta
realidade. Compreendemos então a preferência que as matemáti- preender igualmente uma velha reflexão de Paul Lacombe. tam-
cas sociais demonstram pelos modelos a que Claude Lévi-Strauss bém ele historiador de grande mérito: «objectivamente, o tempo
chama mecânicos, isto é, estabelecidos a partir de grupos estreitos nada é, em si, rnasapenas urna ideia nossa» ... (17). Mas, em amoos
em que indivíduo, por assim dizer, é directamente observável
e em que urna vida social muito homogênea permite definir com Cfi) Histoire et Destin, Paris. Bernard Grasset, 1943, passim, e em
a segurança relações humanas, simples, concretas e pouco concreto jJ. 169.
variáveis. C·') Revuc de Synthim: Hi,Horique, 1900. p. 32.
32 33
" :~
(:asos, podemos falar realmente de verdadeiras evasões? Pes- o tempo social é, simplesmente, urna dimensão particular de
ao longo de um cativeiro bastante taciturno, lutei bas- uma determinada realidade social que eu contemplo. Este tempo,
para escapar à crónica destes anos difíceis (1940-1945). Re- interior a esta realidade como poderia sê-Io a um determinado
os acontecimentos e o tempo dos acontecimentos, equivalia indivíduo, constitui um dos aspectos - entre outros -- que aquela
à margem, ao abrigo, para os observar com uma certa reveste, uma das propriedades que a caracterizam como ser par-
para melhor os julgar e não acreditar demasiado ticular. O sociólogo não tem qualquer dificuldade com es,,<;c
tempo
operação que consiste em passar do tempo breve para o complacente, que pode dividir como quiser e cujas comportas
menos breve e para o tempo muito longo (este último, se ]X>defechar ou abrir à vontade. O tempo da históriaprestar-se-ia
pode ser o tempo dos sábios) para depois, uma vez menos, insisto, ao duplo e ágil jogo da sincronia e da diacronia:
este ponto, se deter, reconsiderar e reconstruir tudo de impede totalmente que se imagine a vida como um mecanismo,
~\\\"I/O, ver girar tudo à sua volta, não deixa de ser tentadora para cujo movimento pode ser detido para apresentar, quando se
historiador. quiser, uma imagem imóvel.
Mas, decididamente, estas fugas sucessivas não o lançam Este desacordo é mais profundo do que parece: o tempo
do tem]X> do mundo, do tempo da história, imperioso, dos sociólogos não pode ser o nosso; a estrutura profunda do
irreversível e porque decorre ao mesmo ritmo a que gira nosso ofício rejeita-o. O nosso tempo, como o dos economistas,
terra. De facto, as durações que distinguimos são solidárias é medi1a. Quando um sociólogo nos diz que uma estrutura se
\\ífia5 com as outras: não é apenas a duração que é criação do destrói e se reconstrói incessantemente, aceitamos de boa vontade
mas o parce1amento desta duração. Ora, estes a explicação, confirmada além disso peja oDsef\'ação histórica.
no fim do nosso trabalho. Longa duração, Mas, na trajectória das nossas habituais exigências. desejaríamos
acontecimento ajustam-se sem dificuldade, posto que conhecer a duração precisa destes movimentos positivos ou nega-
, têm a mesma escala de medida. Por isso mesmo, participar tivos. Os ciclos económicos, fluxo e refluxo da vida material,
;,o\'\piritualmente num destes tem]X>s,equivale a participar em todos são mensurávelS. Do mesmo modo, uma crise estrutural social
O filósofo atento ao aspecto subjectivo, interior, da noção deve ter pontos de referência no tempo, através do tempo, e
tempo, nunca sente esse peso do tempo da história, do tempo localizar-se com exactidão em si mesma e ainda mais, em relação
universal, como esse tempo da conjuntura que Ernest aos movimentos das estruturas concomitantes, O que interessa
descreve no início do seu livro (38), SOD os traços de apaixonadamente um historiador é o modo como estes movi-
sempre idêntico a si próprio que percorre o mundo mentos se entrelaçam, a sua interacção e os seus pontos de rup-
por toda a parte coacções idênticas, qualquer que seja tura: mas todas estas coisas só se podem registar em do
em que desembarca, e o regime político ou a ordem social tempo uniforme dos historiadores, medida geral destes fenômenos,
imoeram. e não do tempo social multiforme, medida particular de um
o 'historiador, tudo começa e tudo acaba pelo tempo; deles.
, matemático e demiurgo sobre o qual seria demasiado Um historiador formula estas reflexões desencontradas, um
ronizar; um tempo que parece exterior aos homens, «exó- historiador fonnula-as com ou sem razão, inclusive. quando penc-
diriam os economistas, que os impele, os domina e arranca trq. na sociologia acolhedora, quase fraterna de Georges Gurvitch.
seus tempos particulares de diversas cores: o tempo imperioso Acaso não foi definido há algum tempo George~ Gurvitch por um
mundo. filósofo (40) como o que «acaniona a sociologia na história»?
sociólogos, é evidente, não aceitam esta noção excessi .. E, não obstante, inclusive o historiador não reconhece em Georges
simples. Encontram-se muito mais prÓXL'110Sda Dialec- Gurvitch nem as suas durações nem as suas temporalidades.
de Ia Durée tal como a apresenta Gaston Baehelard (39). O amplo edifício social (podemos dizer o modelo?) de Gurvitch.
organiza-se de acordo com cinco arquitecturas fundamentais demasiado claro apoiando-se em excesso,
os níveis em profundidade, as sociabilidades, os grupos sociais, as historiadores, em exemplos concretos,
sociedades globais e os tempos; sendo esta última estrutura, a merecerá o acordo e dos nossos outros ,Jzinhos.
das temrlOralidades, a mais nova e também a de mais recente Em todo o caso, qualquer utilidade em repetir à guisa
construção e como sobreposta ao conjunto. de conclusão o seu leitmotiv, insistentemente exposto. Se a his-
temporalidades de Georges Gurvitch são múltiplas. Dis- tória está obrigada, por natureza, a prestar uma atenção privi-
toda uma série delas: o tempo de longa duração e ou legiada à duração, a todos os movimentos em que esta se pode
o tempo enganador ou tempo surpresa, o tempo da palpi- decompor, a longa duração parece-nos. neste leque, a linha mais
irregular, o tempo cídico, o tempo atrasado, o tempo alter- útil para uma observação e uma reflexão comuns às ciências
na,jai:nerlte atrasado e adiantado, o tempo adiantado em relação sociais. Será exigir demasiado pedir aos nossos vizinhos .para
a si rnesmo, o tempo explosivo (42) ... Como poderia um historiador referirem a este eixo, num dado momento dos seus raciocínios,
. convencer? Com esta gama de cores, ser-lhe-ia impos- as suas constatações ou investigações?
sível reconstituir a luz branca, unitária, que lhe é indispensáveL Para os historiadores, e nem todos concordam comigo, isto
observa que este tempo camaleão em relação a si suporia uma mudança de rumo: instintivamente, as suas prefe:-
se limita a assinalar, com um sinal suplementar ou um rências dirigem-se para a história curta. Esta goza da cumpli-
cor, categorias já anteriormente distinguidas. Na cidade cidade dos sacrossantos programas da universidade. Jean-Paul
nosso autor: o tempo, o último a chegar, instala-se com toda Sartre vem reforçar este ponto de vista, quando em alguns artigos
a naturalidade no alojamento de todos os outros: verga-se às recentes (43), pretendendo ir contra aquilo que no marxismo é
destes domicílios e das suas exigências. segundo os simultaneamente demasiado simples e demasiado importante, o
as sociabilidades, os grupos e as sociedades globais. É uma faz em nome de biográfico, da prolífica realidade da história dos
diferente de reescrever, sem as modificar, as mesmas acontecimentos. Estou inteiramente de acordo em que não se
Cada realidade social segrega o seu tempo ou as suas disse tudo, auando se «situam> Flaubert como burguês e Tinto-
de tempo, como simples conchas. Mas que ganhamos nós. reito como 'um r.equeno-burguês; mas o estudo de cada caso
com isso? A imensa arquitectura desta cidade concreto - Flaubert, Valéry ou a política externa dos girondi-
permanece imóvel. Não há história nela. _ O tempo do nos -- devolVfrá sempre decididamente Sartre ao contexto
o tempo histórico. encontra-se nela, mas encen'ado, tal estrutural e profundo. 'Esta investigação vai da superfície para
COIno o vento nos domínios de Éolo. num odre. A inimizade que a profunJidade da história e aproxima-se das minhas próprias
os sociólogos sentem não é dirigida definitiva e inconscientemente preocupações. Aproximar-se-ia muito mais ainda, se a ampulheta
contra a história, mas contra o tempo da história, essa realidade fosse invertida nos dois sentidos: primeiro do acontecimento para
que continua a ser violenta, inch.1sivc quando se pretende orde- a estrutura e depois das estruturas e dos modelos para o aconte-
e diversificá-Ia; imposição a que nenhum historiador con- cimento.
segue escapar, enquanto os sociólogos, pelo contrário. se escapam O marxismo é um mundo de modelos. Sartre protesta contra
quase sempre atendendo quer seja ao instante, sempre actuaÍ. a rigidez. o esquematismo e a insuficiência do modelo em nome
como que suspenso acima do tempo, quer seja aos fenómenos do particular e do individual. Eu protesto. tal como ele (certa··
repetição que não têm idade; portanto, evadem-se graças a um mente com alguns matizes). não contra o modelo, mas
processo mental oposto que os encerra ou no mais estritamente contra o uso que dele se faz. que se acreditaram autorizados a
episódico (événementie1) ou na mais longa duração. É lícita esta fazer. O gênio de o segredo do seu prolongado poder,
evasão? É aí que reside o verdadeiro debate entre os historiadores provém de ter sido ele o primeiro a fabricar verdadeiros modelos
e sociólogos, e até entre historiadores de diferentes correntes. sociais e a partir da longa duração histórica. Mas estes modelos
foram imobilizados na sua singeleza, c deu-se-Ihes valor de lei.
de explicação prévia, automática, aplicável a todos os lugares,
(41) Ver o meu artigo, sem dúvida bastante polêmico: «Georges Gur-
vitch et Ia discontinuité du Saciali>, Annales E. S. C., 1953, 3. pp. 347-361.
C') Cf. Georges Gurvitch: Déterminismes sodaux ef Liberté hu- (") Jean-Paul
Sartre: {lFragmcnt d'un livre à paraitre sur le Tin·
maine, Paris, P. U. F., pp. 38-40 e passim. toret», Les Temps Modernes, no\'. 1957 e artigo acima citado.
36 37
a todas as sociedades; ao passo que, se fossem devolvidos às águas geografia e de se esquivar, deste modo, aos problemas que o
IDutáveis do tempo, a sua trama tornar-se-ia evidente, porque é espaço põe c- mais .ainda - revelam à observação atenta. Os
sólida e está bem tecida: reapareceria constantemente, mas mati- modelos espaciais são esses mapas, em que a realidade~ocial
7.ada, umas vezes esbatida e outras avivada pela presença de outras se projecta e se explica parcialmente, modelos de verdade para
estruturas susceptíveis, elas também, de serem definidas por outras todos os movimentos da duração (e, sobretudo, da longa duração),
regras e, portanto, por outros modelos. E foi assim que se limitou o para todas as categorias do social Mas a ciência social ignora-o~,
poder criador da mais poderosa análise social do século passado, de uma maneira assombrosa. Pensei, amiúde, que uma das supe-
poderia encontrar força e juventude na longa duração. rioridades francesas nas ciências sociais é essa escola geogrâfica
posso acrescentar que o marxismo actual me parece ser de Vidal de Ia Blache, cujo espírito e cujas lições não nos conso-
a própria imagem do perigo que ronda toda a ciéncia social. laríamos de ver atraiçoados. Impõe-se que todas as ciêndas sociais
enamorada do modelo puro, do modelo pelo modelo. dêem lugar a uma «concepção (cada vez) mais geográfica da
Também queria sublinhar, para concluir, que a longa dura- humanidade» (45), como já em 1903 pedia Vidal de Ia Blache.
é, apenas, uma das possibilidades da linguagem comum com Na prática - porque este artigo tem uma finalidade prá-
a uma confrontação das ciências sociais. Existem outras. tica - desejaria que as ciências sociais deixassem, provisoriamente,
mais ou menos as tentativas das novas matemáticas de discutir tanto as suas recíprocas fronteiras, o que é ou não é
As novas seduzem-me; mas as antigas, cujo triunfo é ciência social, o que é ou não é estrutura ... Que tentem antes
em economia - talvez a mais avançada das ciências do traçar melhor, através das nossas investigações, as linhas - se
-, não merecem um comentário desiludido! Esperam-nos linhas houver - que possam orientar uma investigação colectiva
cálculos sobre este terreno clássico, mas contamos com e também os temas que permitiriam alcançar uma primeira con- @
calculadores e máquinas de calcular, cada vez mais vergência. Eu. pessoalmente, chamo a estas linhas matematização,
Acredito na utilidade das longas estatísticas, na reduç.ão ao espaço, longa duração. Mas, interessar-me-ia conhe-
de remontar até um passado cada vez mais longínquo cer quais as que seriam propostas por outros especialistas. Este
estes cálculos e investigações. Já não é só o século XVIII europeu, artigo, não é necessário dizê-Ia, não foi casualmente colocado
na sua totalidade, o que está semeado com as nossas obras, também sob a rubrica Debates e Combates (46). Pretendo pôr - não resol-
o século XVII o comeca a estar e o século XVI ainda mais" Esta- ver - problemas em que, infelizmente, cada um de nós, no que
de incrível extensão abrem-nos, pela sua linguagem não concerne à sua especialidade, se expõe a riscos
as profundezas do passado chinês e·I). Sem dúvida, a Estas páginas constituem uma chamada à discussão.
esta istlca simplifica para melhor conhecer. 1..• 1as toda a ciência
modo, do complexo para o simples.
Não esqueçamos, contudo. uma última linguagem, a bem
uma última família de modelos: a redução necessária de
a realidade social ao espaço que ocupa. Digamos a geografia.
sem nos determos demasiadó nestas diferencas de
É uma pena que a geografia sej~ frequentémente
como um mundo em si. Necessita de um Vidal de
Ia Blachc que, desta vez, ao invés de pensar tempo e espaço, pen-
sasse espaço e realidade socia!' A partir de então, seria concedida
a primazia na investigação geográfica aos problemas do conjunto
da.,>ciências do homem. Ecologia: para o sociólogo, embora ele
nem sempre o confesse, esta palavra é uma maneira de não dizer
(") OUo Berkelbach. van der Sprenkel: Population Statistics oi (") P. Vidal de Ia Blaehe: Revue de synfhese historique, 1903,
China, D.S.D.A.S., 1953; Marianne Rieger: «(Zm Finanz-und Agrar. pág. 239.
der Ming-Dynastie, 136R-I643l), Sinica, 1932. C") Rubrica muito conhecida dos Annales E. S. C.
38
do os profissionais da história que Se haviam formado convencidos de es-
tar seguindo os mesmos caminhos que os demais cientistas, em busca de
Capítulo 9
uma verdade objetiva e a serviço de uma sociedade de fundamentos qua-
se universalmente aceitos. Tudo estava mudando. A ciência, que seguia os
caminhos de Einstein, Bohr e Heisenberg, deixava de ser uma fonte de cer-
tezas imutáveis. Mudava também a sociedade, e isso era ainda muito pior,
O ESGOTAMENTO DO MODELO com os novos problemas que surgiam e para os quais os historiadores aca-
dêmicos pareciam ter menos respostas do que os especialistas de outras
ACADÊMICO (1918-1939) áreas das ciências sociais, que evidenciaram agora à história sua utilidade
como ferramenta para analisar eficazmente a sociedade.
O problema não era mais o que os filósofos haviam discutido até en-
tão, ou seja, a natureza da história como ciência. Um dos fatores que havia
minado a relevância do velho saber acadêmico e obrigado sua reforma era
Desde começos do século XX, começava aficarvisível, no terreno da
Kistória, o esgotamento dos velhos métodos da erudição acadêmica profis- o surgimento das massas na vida coletiva. Não era somente o grande medo
sionalizada do século XIX, com pretensões de objetividade científica que distante da revolução russa, mas a mudança de atitude dos homens que, ao
mascaravam o fato de que sua verdadeira função era servir, por um lado, à voltarem de uma guerra insensata e sangrenta, exigiam o direito a uma so-
educação das classes dominantes e, por outro, à produção de uma visão da ciedade melhor e mais justa, prometida nos anos de fraternidade e de luta
história nacional que pudesse ser difundida áo conjunto da população pela nas trincheiras. Salvatore Quasimodo disse que, depois de uma guerra,
escola. Nas universidades britânicas, por exemplo, ,o ensino da história ob- nada parece igual a antes. Os homens que se enfrentaram com a morte vol-
jetivava reforçar o consenso acerca dos valores morais e sociais dominan- tam das trincheiras com uma mente mudada, que iíão aceita os velhos va-
tes. Á grande maioria dos professores compartilhava "um esquema inter-
lores. É necessário falar-lhes uma linguagem nova. Um observador tão
pretativo único, transmitido aos estudantes como verdadeiro, adequado e
perspicaz como Keynes dizia, pouco antes de terminar a guerra, que o cres-
razoável", destinado a exaltar os valores da "cidadania responsável". Na
França, segundo Paul Nizan, o professor da escola exercia, na sociedade cimento capitalista baseara-se até então no engano* mas que, uma vez des-
burguesa, a mesma função que o padre exercera no período feudal: "O coberto isto, "as classes trabalhadoras podem não querer seguir por mais
prestígio local do professdr laico servia para propagar, nós povoados me- tempo nesta ampla renúncia". Sem este pano de fundo, não se entenderia a
nores, uma espécie de ensino de estado da moral oficial".1 repercussão, no terreno das ciências sociais, da inquietude que se estendeu
A crise agravar-se-ia depois da Primeira Guerra Mundial, no perío- pela Europa nestes anos: greves na França, greve geral inglesa, ocupações de
do de 1918 a 1939, quando o mundo mudou consideravelmente, deslocan- fábricas na Itália, crescimento do Partido Comunista na Alemanha...2
Ortega y Gasset - que em 1922 havia dado mostras de até que pon-
1 SOFFER, Reba N. Discipline and power. The university, history and the making of an to o pânico pode produzir a suspensão do senso comum ao afirmar que o
English elite, 1870-1930. Stanford: Stanford University Press, 1994 (citação da p.
210); NIZAN, Paul. Por una nueva cultura. México: Era, 1975 (citação da p. 98). So-
bre o ensino da história na França, BOER, Pim den. History as a profession. The 2 KEYNES, J. M. Las consecuencias económicas de la paz. Barcelona: Crítica, 1987. p.
study of history in France, 1818-1914. Princeton: Princeton University Press, 199.8. 20; QUASÍMODO, Salvatore. Discorso sulla poesia. In: Per conoscere Qua-
simodo. Verona: Arnoldo Mõndadori, 1973. p. 225-234.
que cada um dos objetos estudados exercia. Com isso, queria-se chegar a
comunismo russo somente poderia ser entendido se fosse relacionado uma imagem da sociedade como um sistema em equilíbrio estático, cujas
com a religiosidade oriental e que, para compreendê-lo, não se devia ler regras podiam ser estudadas com a finalidade de saber como se deveria
Marx, mas os velhos livros sagrados da China, os Upanishads e os ensina- atuar para o seu restabelecimento, nos casos em que fosse abalado, \
mentos de Buda - expressaria, em 1929, a inquietude do conservadorismo No campo da sociologia, as grandes mudanças seriam provenientes,
europeu em A rebelião das massas. O grande problema nesse momento, na principalmente, de Dyrkheim (1858-1917), Tõnnies (1855-1936) e Max
Europa, era a emergência das massas ao pleno domínio social: como "as Weber (1864-1920). Durkheim destacava que a primeira regra do método
massas, por definição, não devem, nem podem dirigir a própria existência sociológico era a de "considerar os fatos sociais como coisas" que deviam
e menos ainda reger a sociedade", a Europa estava passando pela mais gra- ser estudados à margem "de suas manifestações individuais", examinando
ve dás crises imagináveis.3 a função que cada um deles cumpre no próprio meio. Tõnnies, por sua
A historiografia tradicional, que se dedicava aos reis e aos dirigentes vez, baseou-se na dicotomia entre "comunidade" e "associação" ou "socie-
e que somente considerava as massas como um fator de perturbação que dade", - Gemeinschaft e Gesellschaft - que serviria de modelo a todo um
irrompia súbita e fugazmente na evolução "normal" das sociedades, não ti- jogo de outras dicotomias, utilizadas para a interpretação dos fenômenos
nha nada a dizer sobre estas questões. Boa parte dos representantes da or- sociais - "tradicional" e "moderno", etc.5
dem acadêmica estabelecida fechou-se na torre de marfim, defendendo a
Maior seria, a longo prazo, a influência de Max Weber, professor de
velha moral, incapaz de encontrar respostas adequadas às mudanças que
economia, liberal preocupado por encontrar na política alemã uma tercei-
se produziam ao redor. Um historiador que estudava em Cambridge nos
dias da greve geral inglesa registrou suas lembranças sobre alguns jovens ra via entre o conservadorismo prussiano e o marxismo - assustado, como
universitários desconcertados que se ofereciam para trabalhar nos serviços tantos outros, pelos movimentos revolucionários produzidos na Alemanha
em greve ou defendiam que se deveria matar todos os mineiros.4 em 1918. Para enfrentar a crítica neokantiana que queria reduzir as ciências
Nessa situação, entende-se melhor as críticas que a história acadêmi- sociais ao estudo do individual e do concreto, definiu o método dos "tipos
ca começava a receber a partir de outras disciplinas, como a sociologia e a ideais", conceitos construídos a partir da síntese de características extraídas
antropologiá, que haviam iniciado sua renovação em fins do século XIX: da realidade com a finalidade de poder estudá-las, apresentando-o não.
uma reação contra os "excessos" do evolucionismo - contra a idéia de que como um novo sistema de trabalho, mas como a prática habitual e incons-
os fetos sociais pudessem ser estudados através de sua gênese e sua evolu- ciente dos cientistas sociais que ele apenas se limitara a expor explicitamen-
ção - , com uma proposta para analisar globalmente a sociedade, conside- te. Weber quis resolver também o problema da objetividade com o postu^
rada como um sistema dentro do qual era necessário examinar a função lado da "neutralidade ética" (Wertfreiheit) que devia levar o cientista social
a separar o trabalho de pesquisa, limitado aos fatos estabelecidos cientifica-
3 GASSET, José Ortega y. La rebelión de las masas. Madrid: Revista de Occidente, mente, dos juízos de valor, que pertencem a outro domínio. Mas, se a sepa-
1943. p. 7; a opinião sobre o comunismo russo aparece citada em AVILÉS, Juan. La
fe que vino de Rusia. La revolución bolchevique y los espanoles, 1917-1931. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1999. p. 200. Sobre o medo às massas, destaca-se também CA- 5 LUKES, Steven. Durkheim, su vida y su obra. Madrid: CIS-Siglo XXI, 1984; as cita-
REY, John. The intellectuals and the masses. Pride and prejudice among the literary ções procedem de DURKHEIM, E. Las regias dei método sociológico. Buenos Aires
intelligentsia, 1880-1939. London: Faber and Faber, 1992. - La Pléyade, 1976 (p. 40, 66, 111 e 130). De Ferdinand Tõnnies, usa-se Comunidac
4 COURT, W. H. B. Growing up in an age of anxiety. In: . Scarcity and choice y asociación. Barcelona: Ediciones 62, 1984. Uma análise interessante da historio-
in history. Londbn: Edward Arnold, 1970. p. 1-60 (citação da p. 16). grafia da época está em KON, l.S.El idealismofilosóficoy la crisis en el pensamien-
to histórico. Buenos Aires: Platina, 1962.
No terreno da antropologia, a ruptura com o evolucionismo data dé
1896, quando Franz Boas (1858-1942) atacou os métodos comparativos e
ração é relativamente viável no nível que corresponde à formulação de afir-
iniciou os caminhos de um neopositivismo sem generalizações, fortemen-
mações concretas - ao estudo de fatos específicos não o é quando se tra-
te influenciado por Dilthey e pelos neokantianos, que receberia o nome de
ta das perspectivas globais adotadas pelo historiador, onde a escolha do
ponto de vista é claramente afetada pelo interesse e pela visão de mundo. "particularismo histórico" e que estava próximo do funcionalismo. Mas as
Com isso, a pretendida "neutralidade" torna-se uma armadilha. No que diz influências renovadoras partem, também neste caso, de Durkheim e de
respeito à contribuição pessoal para a história, na obra de Weber, encontra- Mareei Mauss (1872-1950), inspiradores dos antropólogos britânicos que
mos, por um lado, trabalhos sobre a antiguidade romana fortemente in- defendiam a necessidade de considerar globalmente os sistemas sociais,
fluenciados por Mommsen, que não receberam demasiada atenção e um concebidos como um conjunto de elementos funcionalmente interdepen-
estudo sobre o papel da religião no desenvolvimento econômico em A éti- dentes. Assim, E. R. RadçlifFe-Brown (1881-1955), que dizia que o presente
ca protestante e o espírito do capitalismo, livro de 1904-1905, ao qual acres-
não deveria ser interpretado era termos de sua gênese, mas por sua estru-
centaria, em 1920, uma introdução em que definia o problema que tratava
tura e funções, e Bronislaw Malinowski (1884-1942), que combatia explici-
como sendo o de esclarecer "as circunstâncias" que explicam "o surgimen-
tamente as influências do evolucionismo, dó difusionismo e "da chamada
to no Ocidente, e somente no Ocidente, de fenômenos culturais situados
numa linha de desenvolvimento (...) de significação e validade universal". concepção materialista da história", pretendendo centrar-se na visão de
Nenhuma destas obras, no entanto - por mais que A ética protestante tenha mundo dos indígenas, "o alento de vida e realidadé que respiram e pelo
dado lugar a uma abundante bibliografia de Comentários, majoritariamen- qual vivem". No terreno da arqueologia, esses pensamentos favoreceram a
te críticos teve uma influência real na historiografia. O papel de Weber passagem do difusionismo, centrado no estudo de elementos culturais iso-
fói muito menos o de guia para a pesquisa do que o de provedor de refe- lados de qualquer contexto, a um funcionalismo claramente inspirado pela
rências metodológicas, legitimadoras, utilizadas de forma muito diversa. antropologia, ao menos até o salto adiante realizado por Gordon Childe.7 A
Porque, se bem que tenha servido inicialmente de fundamento para formu-
influência da antropologia manifestou-se também na economia, na obra de
lações que se apresentavam como opostos ao marxismo, nos anos sessenta,
Karl Polanyi e de seus discípulos, da qual falaremos mais adiante.
em contraste com a sociologia funcionalista de Talcott Parsons, apareceu
uma "esquerda weberiana" que colocava o pensador alemão como funda-
Mas o ataque mais sistemático à ortodoxia acadêmica dos historia-
mento de uma sociologia histórica de esquerda, enquanto Ernst Noite, uti- dores procedeu dos filósofos, que continuavam assim a tarefa iniciada em
lizou o conceito de neutralidade ética como pretexto na tentativa de descul- fins do século XIX pelos neokantianos e pela "filosofia da vida". A atitude
pabilizar a Alemanha do seu passado nazista.6 mais extrema neste terreno seria a do austro-britânico Karl Popper que,
confundindo abusivamente a condição de ciência com á capacidade de
prever, negaria todo valor científico à história, num esforço que tinha me-
6 WEBER, Marianne. Max Weber. Una biografia. Valência: Edicions Alfons el Magnà-
nim, 1995; LOVE, John R. Antiquity and capitalism. Max Weber and the sociological
nos a ver com a epistemologia dó que com preocupações políticas antico-
foundations of koman civilization. London: Routledge, 1991; WILEY, Norbert (Ed.).
The Marx-Weber debate. Newbury Park: Sage, 1987; LORENZ, Chris. Historical
Knowledge and historical reality: a plea for "internal realism". History and theory, 7 HARRIS, Marvin. El desarrollo de la teoria antropológica. Una historia de Ias teorias
33, n. 3, p. 297-327, Í994. Das obras de Weber: ÜÈtica Protestant i l'esperit del capi- de la cultura. Madrid: Siglo XXI, 1978; TRIGGER, Bruce. Historia del pensamiento
talisme. Barcelona: Edicions 62,1984 (citação da p. 35); Historia económica general. arqueológico. Barcelona: Critica, 1992. p. 230-270; WOLF, Eric R. Pathways towards
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de Cultura Económica, 1979. lopment of development Thousand Oaks. California: Sage, 1996. p. 87-100.
^nunistas (que ajudam a explicar a realização de uma brilhante carreira na que, como disse Momigliano, "não tinha nenhuma intenção de subverter
Inglaterra da guerra fria). Em posições semelhantes, porém com mais a ordem social à qual devia sua riqueza e, conseqüentemente, a liberdade
iiuances, estavam Carl Hempel e Patrick Gardiner que, apesar de sustenta- para estudar o que lhe agradava". No momento crucial da ascensão de
ssem que a história não cumpria a exigência científica que diz que "a expli- Mussolini, vòtou, no senado, a favor dé lhe dar plenos poderes, mantendo
cação de um fenômeno consiste em subsumi-lo a leis ou a uma teoria", ad- o apoio inclusive depois do assassinato de Mateotti. Somente se afastou
mitiam que as explicações dos historiadores utilizavam esquemas "com dessa postura em 1925, para permanecer como cabeça visível de uma es-
uma indicação mais ou menos vaga das leis e das condições iniciais consi- pécie de oposição liberal, não muito militante e tolerada pelos fascistas.
deradas pertinentes". Em oposição a esta visão de "covering laws" ou "leis Partindo de postulados neokantianos e com alguma influência do idealis-
inclusivas", situava-se William Dray, que dizia que não se deve fazer nem mo hegeliano, Croce elaborou a doutrina de historicismo absofuto que
sequer este tipo de concessão a uma disciplina que não explica, mas so- identificava filosofia e história. De todas as modalidades possíveis da his-
mente descreve. Arthur C. Danto, por sua vez, afirmava que este debate era tória, considerava que a mais elevada era a que designou como "história
puramente verbal e que a tarefa da história, em última instância, seria sem- ético-política": a história da razão humana e de seus ideais, "resolvendo e
pre a de explicar o que aconteceu numa maravilhosa variedade de deta-
unificando, nela, tanto a história da civilização como a do estado". A base
lhes, sem a necessidade de recorrer a nenhuma lei geral, o que tornava inú-
do juízo histórico era a exigência prática: por mais distante que estejam os
teis, evidentemente, as "filosofias substantivas" da história.8
fatos estudados, a história sempre será contemporânea, já que a construí-
A influência dessas formulaçõesfilosóficasfaria sentir-se em alguns
mos e;m função dç necessidades e de problemas atuais. "Os requisitos prá-
historiadores do período. Embora os mais importantes deles, Croce e Col-
ticos que pulsam sob cada juízo histórico dão a toda a história o caráter de
lingwood, fossem na realidade metade historiadores e metadefilósofos,des-
tacando-se mais no terreno híbrido de sua teorização, isto é como "filósofos "história contemporânea", por remotos no tempo que possam parecer os
da história", do que nos campos dafilosofiaou da história concretamente. fatos a que se refere: a história, na realidade, está em relação com as neces-
Benedetto Croce (1866-1952), que havia começado sob influência sidades atuais e com a situação presente em que vibram estes fatos". Com
do marxismo como discípulo de Labriola, o abandonou muito cedo, já Croce, encontramo-nos num terreno de experiências vivenciais, sem cau-
salidade e sem leis. Não existe nem sequer tempo, senão fluir. Nem tam-
pouco existe história, senão tantas histórias como pontos de vista.9
8 SCHILP, Paul Arthur (Ed.). The philosophy of Karl Popper, La Salle: Open Court,
1974.2 v. onde é especialmente interessante a autobiografia - 1 , p. 3-181 que nos Com Robin G. Collingwood (1889-1943),filósofoe arqueólogo "eirç
permite entender a evolução deste judeu que viveu as comoções sociais de Viena
tempo parcial", especializado no estudo da Britânia romana, encontramo-
em fins da Primeira Guerra Mundial. Para se conhecer suas idéias basta, no entan-
to, o catecismo da seita: POPPER, Karl. La miséria dei historicismo. Madrid: Alian-
za, 1973. HEMPEL, C. G.; OPPENHEÍM, P. Problems of the concept of general law.
In: DANTO, A.; MORGENBESSER, S. (Ed.). Philosophy of science. Cleveland: Me- 9 As citações de CRO.CE, B. Teoria e historia de la historiografia. Buenos Aires: Escue-
ridian Books, 1970; GARDINER, Patrick. The nature of historical explanation. Ox- la, 1955. p. 278 e La historia como hazana de la libertad. México: Fondo de Cultura
ford: Oxford University Press, 1952; DRAY, William. Laws and explanations in his- Económica, 1960. p. 11. GALASSO, Giuseppe. Croce storico. In: Croce,
tory. Oxford: Oxford University Press, 1957; DANTO, Arthur C. Analytical philo- Gramsci e altri storici. Milano: II Saggiatore, 1978. p. 185; DUJOVNE, León. Elpen-
sophy of history. Cambridge: Cambridge University Press, 1965. Danto publicou de- samiento histórico de Benedetto Croce. Buenos Aires: Santiago Rueda, 1968; MOMI-
pois After the end of art: contemporary art and the pale of history. Princeton: Prin- GLIANO, A. Reconsidering B. Croce (1866-1952). In: _. Essays in ancient and;
ceton University Press, 1997, que suscitou grandes discussões, como se pode ver modern historiography. Oxford: Basil Blackwell, 1977. p. 345-363 (citação da p.
"Theme Issue 37" de History and theory (1998) sobre "Danto and his critics". 347). As resporisabilidades políticas de Croce são- destacadas por ZANGRANDI,
Ruggero. II lungo viaggio attraverso il fascismo. Milano: Feltrinelli, 1962. p. 340-345.
É necessário considerar, ainda, as muitas páginas que Gramsci dedicou-lhe.
Filhas também do neokantismo e da filosofia da vida são as morfo-
logias, que se baseiam na idéia de que o que não se pode alcançar na his-
tória mediante a formulação de leis, pode-se obter mediante a contempla-
nos próximos a Croce, de quem era discípulo e amigo pessoal, mas com
matizes originais. Em A idéia da história, que, na parte que chegou a escre- ção e a comparação, deduzindo, a partir delas, certas regularidades que
ver, se apresenta como uma história da historiografia acompanhada de re-; servem para fabricar pautas cíclicas que permitem entender o passado e
flexões sobre temas como "A imaginação histórica" ou "História como inclusive prever o futuro.
"reatualização" ("re-enactment") de experiência passada", ataca o conceito Oswald Spengler (1180-1936) publicou, ao término da Primeira
de uma história positivista segundo ò modelo das ciências naturais, já que Guerra Mundial, um livro espetacular que se tornou rapidamente famoso:
a tarefa do historiador é a de "penetrar no pensamento dos agentes cujos  decadência do Ocidente (Der Untergang dês Abendlandes). Era uma obra
atos está estudando". A história assemelha-se à ciência pelo fato de que que se nutria das influências ideológicas de correntes irracionais autócto-
busca um conhecimento racional, mas não se ocupa "do abstrato, senão do
nes, como a dó "eterno retorno" de Nietzsche ou a do vitalismo de Dilthey,
concreto; não do universal, mas do individual", e usa na prática a "imagi-
mas também das de Wagner, de Haeckel ou do Ibsen crítico dos valores
nação histórica", com a qual constrói explicações a partir dos dados isola-
dos. O passado não é diretamente observável, mas "o historiador o revive burgueses. Spengler, que fracassara na tentativa de apresentar uma tese de
na própria mente". Quando lê palavras escritas - um documento ou uma doutorado e fazer carreira universitária, tendo que se contentar com a de-
crônica - , "deve descobrir o que queria dizer com aquelas palavras quem dicação ao ensino secundário, acabou largando o trabalho e mudou-se
as escreveu". Somente pode haver conhecimento histórico do que "pode para Munique em 1911 para dedicar-se a escrever. O primeiro resultado
ser revivido na mente do historiador". Não é suficiente, no entanto, a em- foi o livro em que oferecia uma visão global das oito grandes civilizações
patia que nos faz comparar experiências do passado com as nossas, mas mundiais da história para, aofinal,estabelecer as regras que anunciavam a
necessitamos reviver o pensamento em nós: "Não pode haver história de decadência da única cultura existente na época. Spengler distingue ciência
.qualquer outra coisa que não seja pensamento (...). O conhecimento his-
tórico tem, como seu objeto próprio, o pensamento: não as poisas pensa-
das, mas o próprio ato de pensar". É precisamente nesta questão do "re- de 1998, com citações das p. 228,234,282,302,304 e 305), acrescentando, ainda, os
enactment" que Collingwood vai mais além de Dilthey ou dé Croce, o que textos de "Lectures on the philosophy of history" de 1926 e "Outline of a philosophy
teria podido suscitar reflexões interessantes por parte dos historiadores. O of history" de 1928. Davis Boucher reuiniu sçus Essays in political philosophy (Ox-
ford: Clarendon Press, 1990). Sobre Collingwood, existe abundante bibliografia, da
livro, entretanto, constantemente reeditaào e freqüentemente citado na
qual utilizei SHALOM, Albert. R. G. Collingwood, philosophic et historien. Paris: PUF,
Inglaterra, foi constantemente menosprezado pelosfilósofos- sua primei- 1967; DUSSEN, J.,van der. History as a science. The philosophy ofR. G. Collingwood.
ra edição, surgida postumamente, foi mutilada pelo filósofo a quem Col- Den Haag: M. Nijhoff, 1981 e DRAY, William H. History as re-enactement. R. G. Col-
lingwood confiou a publicação - e apesar de amplamente lido pelos histo- lingwood's Idea of history. Oxford: Clarendon Press, 1995 (uso a reedição de 1999).
riadores influiu muito pouco em sua prática.10 Também COLLINI, Stefan. When the goose cackled. The discovery of history and
the world beyond the walls: how Collingwood wrote his last works. Times Literary
Supplement, p. 3-6,27 Ago. 1999, e RÉE, Jonathan. Life after life. London Review of
Books, p. 9-11, 20 Jan. 2000. Sobre a influência do pensamento de Collingwood na
10 COLLINGWOOD, R. G. The idea of history. Oxford: Oxford University Press, 1946
arquealògia, HODDER, Ian. Interpretación en arqueologia. Comentes actuales. Bar-
e 1993 (edição revisada). O livro de Collingwood foi publicado depois de sua mor-
celona: Crítica, 1988. p. 113-126. BATES, David. Rediscovering Collingwood's spiri-
te, a partir de manuscritos manipulados por Malcom Knox, como explicou Jan van
der Düssen, na introdução à edição revisada e em "Collingwoods "lost" manuscript tual history (In and out of context). History and theory, 35, n. 1, p. 29-55,1996, re-
of "The principles of history"", History and theory, 36, n. l,p. 32-62,1997.Em 1993, laciona a idéia de "re-enactement" com uma vertente teológica do pensamento do
Van der Dusen fez uma nova edição revisada (que é a que uso, em uma impressão historiador. Não parece uma idéia demasiado útil.
e história a partir da forma de cada uma aproximar-se de seu objeto. A
dos historiadores" - e a entregava ao homem comum para que pudesse fa-
ciência usa leis; a história, a intuição. À morfologia das ciências da nature-
zer as próprias especulações e descobertas:"
za, que estabelece relações causais e descobre leis, opõe-se a morfologia da
Se Spengler foi o morfólogo de moda no período entre as duas guer-
história, que usa como métodos de trabalho "a contemplação, a compara-
ras mundiais, Arnold J. Toynbee (1889-1975), mesmo que tenha começa-
ção, a certeza interior imediata, a justa imaginação dos sentidos". A fim de
do a publicar anteriormente, o foi depois da segunda. Chegou a ser consi-
sobrepor-se aos erros que o espírito partidário engendra, a observação do derado o maior historiador do mundo e assistiu seu imenso Estudo da his-
historiador dirige-se a um horizonte de milênios, assumindo um ponto de tória, lido principalmente em manuais, ser celebrado como "a maior obra
vista distanciado. Dali, contempla a coexistência e a continuidade das cul- de história jamais escrita". Hoje, entretanto, está esquecido, tendo-se tor-
turas, cada uma das quais é um fenômeno fechado sobre si mesmo, pecu- nado ele próprio num objeto de estudo que nos instiga a averiguar como
liar e único, mas que mostra uma evolução possível de ser comparada se pode produzir um engano intelectual de tal magnitude.
morfologicamente com a de outras, dando-nos, com isso, a chave para Toynbee pertencia a uma família que enfrentou uma situação econô-
compreender o presente. Este jogo de comparações permitia-lhe prever o mica difícil, quando o pai do historiador ficou louco e permaneceu trinta
futuro e anunciar a imediata crise do "Ocidente", que os nazistas entende- anos trancado num manicômio. Casou-se em 1913 com uma mulher de fa-
ram como um presságio do triunfo da "nova ordem" - de fato o livro aca- mília rica e influente, de quem teve que receber constante ajuda econômi-
bava anunciando "as últimas vitórias do dinheiro" e a próxima chegada do ca, e conseguindo livrar-se dè lutar na Primeira Guerra Mundial. Sua car-
cesarismo - se bèm que mais tarde se cansassem deste profeta de desastres, reira universitária como especialista no estudo de história antiga não durou
muito,12 passando a ganhar a vida como diretor de estudos do Institute of
demasiadamente conservador para sintonizar plenamente com o nazismo
que, em 1933? dizia que a civilização branca estava ameaçada por' duas
grandes revoluções hostis, a luta de classes e a luta de raças, e anunciava 11 La decadencia de Occidente (Bosquejo de uma morfologia de la historia universal) foi
traduzida muito cedo ao espanhol (Madrid: Calpe, 1923-1927. 4 v. utlizo a reedição
desastres iminentes para a raça branca, se não fosse reavivado "o espírito de Espasa Calpe 1998), com um prefácio de José Ortega y Gasset, que não demons-
guerreiro, "prussiano", que será a potência geradora das novas forças". Não trava muita sagacidade ao comparar Spengler com Einstein. As citações de 1933 são
de Années decisives. L'Allemagne et le développement historique du monde, que uso na
importa que; como diria Troeltsch, A decadência do Ocidente estivesse ba-
versão francesa de Paris: Mercure de France, 1934 (citações das p. 277 e 307-308).
seado em bibliografia secundária e cheia "de dados falsos, de afirmações Spengler, para colocar um só exemplo de suas obnubilações, interpreta a luta dos me-
fantásticas e de analogias equivocadas". Uih dos espetáculos mais repetidos xicanos contra o imperador Maximiliano como uma mostra de ódio de um povo in-
ferior contra a raça branca (p. 293). WAISMANN, A. Hl historicismo contemporâneo.
durante o século XX no terreno das ciências sociais e da cultura foi, justa- Buenos Aires: Nova, 1960. p. 9-78; HERZFELD, Hans. Oswald Spengler y la decaden-
mente, o do êxito obtido por receitas simplistas, fáceis de utilizar, que res- cia de Occidente. In: DIETRICH, Richard (Ed.). Teoria e ittvêstigación históricas en la
actualidad. Madrid: Gredos, 1966; HERMAN, Arthur. The idea of decline in Western
pondem às angústias do momento, mas que não resistiriam a uma análise history. New York: Free Press, 1997. p. 221-255. Sobre as idéias políticas de Spengler,
crítica racional. Spengler, que escreveu o livro em Munique nos tempos da HAMILTON, Alastair. La ilusión dei fascismo. Barcelona: Caralt, 1973. p. 133-141 e
180-181; Spengler achava os nazistas muito de esquerda para seu gosto.
crise final do poder imperial alemão - tempos de derrota, de revolução e
do nascimento da resposta nazista - , oferecia uma visão cultural da histó- 12 Conseguiu uma cátedra de estudos bizantinos e gregos modernos financiada em Lon-
dres por ricos anglo-gregps e pelo governo de Atenas, mas o menosprezo pelos gregos
ria que qualquer um poderia manusear a fim de buscar respostas às pró- da época e a condenação pública da atuação dos mesmos na Ásia menor o obrigaram
prias angústias. Arrebatava a história dos profissionais - como diria Orte- a uma involuntária demissão. (CLÓGG, Richard. Beware the Greeks. How Arnold
Tóynbee became a mishellene. Times literary Supplement, p. 14,17 Mar. 2000.
ga y Gasset no prefácio da edição espanhola: "Não basta, pois, a história
International Affairs, onde publicava anualmente um volume do Sumário
A construção levaria Toynbee a buscar a solução dos problemas do
dos assuntos internacionais. Era um trabalho que lhe deixava os meses de ve-
mundo atual no estabelecimento de um novo império universal e a pen-
rão livres para escrever o mastodôntico Estudo da história inspirando-se em
sar, durante anos, que Hitler podia ser um novo Augusto. Depois da Se-
alguma medida em Spengler, que apareceu em doze volumes entre 1934 e
gunda Guerra Mundial, com os norte-americanos assumindo a liderança
1961 (enquanto a mulher, cansada dele e de sua "insensata obra", fugia com
do "mundo livre", Toynbee alcançaria grande êxito nos Estados Unidos
um frade dominicano vinte anos mais jovem que ela).
(um fato extremamente paradoxal, já que pessoalmente menosprezava os
Na magnum opus - descrita como "um imenso poema teológico em
"bárbaros" norte-americanos). Ali, sua obra, difundida num compêndio
prosa" - Tonybee mostrava todo o curso da história humana numa suceS-
de um só volume - uma síntese feita por David Somervell que vendeu
são de vinte e nove "sociedades" ou "civilizações", que nascem como con-
130.000 exemplares no primeiro ano - , converter-se-ia no evangelho que
seqüência de certos estímulos, da necessidade de superar fatores adversos
anunciava a nova era, proporcionando-lhe uma fama que serviu para ali-
que suscitam uma resposta por parte dos homens que os experimentam, a
mentar uma progressiva megalomania. Até que os próprios norte-àmeri-
menos que sejam tão difíceis que freiem a resposta ou a abortem. Há vin-
canos se cansaram de escutar a mesma canção, a qual não souberam trans-
te e uma civilizações plenamente realizadas, três abortadas e cinco freadas.
formar para adaptá-la aos tempos da guerra fria.13
Os protagonistas reais dos processos, no entanto, não são as coletividades Por mais que Spengler e Toynbee sejam autores que nenhum histo-
incluídas nas civilizações, mas alguns indivíduos excepcionais e pequenas riador os considere nos dias atuais, suá influência não desapareceu em al-
minorias criativas que encontram caminhos que outros seguirão por mi- guns círculos da sociologia histórica, como no grupo de sociólogos e poli-
mese ou imitação. O individuo criador retira-se do mundo para receber a tólogOs "civilizacionistas" que se limitam a recuperar o modelo das velhas
iluminação pessoal e volta para ensinar aos outros (São Paulo, Buda, Mao- morfologias e não parecem ter outra preocupação a não ser a de construir
mé, Dante, Maquiavel, etc.). Quando as sociedades estagnam, as minorias grandes esquemas para interpretar o passado e fazer previsões do futuro,
deixam de ser criadoras para se tornarem em dominantes, perdendo a ade- sem se dar ao trabalho de investigar a realidade do presente.14
são coletiva. Necessitam, então, substituir a persuasão pela coerção e os an- !
tigos discípulos convertem-se num proletariado refratário. Contra o impé-
13 Çostumava-se dizer què o Estúdio de la historia consta de dez volumes. De fato, o
rio universal consolidado pela minoria dominante, o proletariado interno
autor foi acrescentando recapitulações e reconsiderações. O último volume da tra-
cria uma igreja universal. Os povos vizinhos, que enquanto subsistia o im- dução castelhana que tenho disponível é.a segunda parte do volume XIV (Buenos
pulso criador sentiam sua influência, tornam-se hostis. Assim prepara-se, Aires: Emecé, 1966). O compêndio foi publicado em três volumes como Estúdio de
la historia (Madrid: Alianza, 1970), e leva, ao final, um "sumário geral" (III, p. 325-
interna e externamente, o desmoronamento do império e criam-se as con-
392), com tabelas e um quadro sinóptico de civilizações. William McNeil publicou
dições que farão nascer uma nova sociedade. uma biografia -Arnold Toynbee: A life. Oxford: Oxford University Press, 1989 - que
O esquema simplista não apenas pôde reduzir-se a um manual, mas deu lugar a uma sangrenta resenha de H. R. Trevor-Roper (The Prophet. New York
Review ofBooks, p. 28-34,12 Oct. 1989), que utilizei, assim como a de CLARKE, Pe-
também a tabelas esquemáticas em que se representam as vinte e nove ci- ter. When the pistol goes off. London Review of Books, p. 11 -12,17 Aug. 1989. Des-
vilizações e identificam-se os^momentos que correspondem a cada fase e a taca-se também Herman, The idea of decline, p. 256-292. Omitiremos figuras me-
cada elemento do seu ciclo - império universal, igreja universal, proleta- nores das morfologias como Crane Brinton, personagem de simpatias fascistas e
autor de uma "anatomia da revolução", etc.
riado interno, etc. Com o mecanismo, a pesquisa histórica tornou-se pra-
ticamente desnecessária, restringindo-se apenas ao esforço de identifica- 14 SANDERSON, Stephen K. (Ed.). Civilizations and world systems: Walnut Creek: Al-
tamira, 1995. O grupo está associado à International Society for the Comparàtive
ção necessário para situar cada momento do passado, ou do presente, no Study of Civilizqtions, que publica Comparative Civilizations Review como órgão de
compartimento correspondente. expressão. No volume que utilizo, abundam as citações de Spengler e Toynbee, sen-
No entanto, a visão da ciência histórica do período entre guerras
que podemos obter a partir da perspectiva da filosofia da história, mos-
O mundo acadêmico alemão foi incapaz de associasse às transfor-
trando-nos uma disciplina desconcertada e em decadência, não corres-
mações culturais da época de Weimar que fizeram de Berlim a capital das
ponde à realidade. Os filósofos podiam negar a validade científica da his-
vanguardas mundiais. Optou por expressar o pessimismo da derrota da ve-
tória, mas não influenciavam, com isso, mais do que uma pequena mino- lha ordem prussiana, da qual sairia uma obra como a de Spengler, mas que
ria de historiadores. Os políticos necessitavam, por um lado, que fosse es- inspirou, também, a brilhante evocação da cultura do final da idade média,
crita um tipo de "história nacional" que justificasse suas formulações e rei- escrita por um holandês educado na Alemanha, Johan Huizinga (1872-
vindicações: algo que ganhava especial importância numa Europa que, de- 1945). Ò outono da idade média relacionava arte, literatura, religiosidade e
pois da Primeira Guerra Mundial, assistira a grandes mudanças de frontei- formas de vida, à maneira de Burckhardt, num quadro bem estruturado, que
ras, que deveriam ser acompanhadas pelo reforço das consciências das no- correspondia à visão da complexidade dos fatos históricos que dependiam
vas nações. Também necessitavam, por outro lado, que fossem redigidos li- "de uma grande quantidade, quase sempre desconhecida, de condições bio-
vros de texto que ajudassem a ensinar na escola os valores sociais preconi- lógicas e psicológicas", influenciadas, ainda, por outras circunstâncias inde-
zados pelos governantes. Este segundo problema era geral, mas tornava-se pendentes delas, que levam o historiador a resumir todo este complexo em
especialmente urgente nos países dominados pelo fascismo. "uma interpretação que trabalha continuamente com cem mil incógnitas,
Na Alemanha, a derrota na Primeira Guerra Mundial suscitou, por grandes complexos sem solução, não devido ao experimento e ao cálculo,
parte das autoridades de Weimar, o desejo de renovar o ensino da história, mas pela experiência de vida e pelo conhecimento pessoal dos homens".16
eliminando do mesmo o ultranacionalismo conservador da etapa impe- Em contraste còm as reticências que esses homens manifestaram ante
rial. Poucos historiadores acadêmicos e docentes deram apoio a esta pos- a cultura e a política de Weimar, situa-se a boà acolhida que deram ao regime
tura, de maneira que o ensino da história se manteve, essencialmente, sem nazista. Dos historiadores, pode-se dizer que "se mostraram especialmente
modificações, apenas introduzindo, nos manuais escolares, a versão dos dispostos a oferecer ãpoio" ao Führer, ao Terceiro reich, à revolução nacional-
militares vencidos que sustentavam que o exército alemão não fora derro- socialista e aos planos de conquista da Europa^ não tanto por oportunismo,
tado no campo de batalha, mas sofrera uma "punhalada pelas costas" da
subversão interna. "Da guerra, os estudantes alemães devem reter que ela MORE, Kevin (Ed.). Writing national histories. Western Europe since 1800. London:
foi perdida não pelos generais, transformados,, contraditoriâmente, em he- Routledge, 1999. p. 15-29; JARDIN, Pierre. La legende du coup de poignard dans
róis, mas pelos políticos, democratas e socialistas". Ao mesmo tempo, co- les manuels scolaires allemands des années 1920. In: BECKER, Jean Jacques et al.
Guerre et cultures, 1914-1918. Paris: Armand Colin, 1994. p. 266-277 (citação da p.
meçava a aparecer um grupo novo de historiadores, sociólogos e folcloris- 277). Sobre a relação entre estudos folclóricos e racismo nos anos anteriores ao na-
tas que propunham uma "Volksgechichte" que reconstruía a vida cotidia- zismo, BAUSINGER, Hermann. Nazi folk ideology and folk research. In: DOW, Ja-
na do povo comum, de um "povo" entendido em termos de ''raça", desti- mes R.; LIXFELD, Hannjost. The nazification of an academic discipline. Folklore in
the Third Reich. Bloomington:, Indiana University Press, 1994. p. 11-33: em 1926,
nado a substituir o conceito de "nação".15 por exemplo, fundava-se uma rçvista com o título "Volk und Rasse".
16 HUIZINGA, J. El otono de la edad media. Madrid: Revista de Occidente, Í930.2 v. A
citação metodológica procede de HUIZINGA, J. Sobre el estado actual de la ciência
do que David Wilkinson, professor de Ciência política na UCLA, refaz o esquema
histórica. Madrid: Revista de Ocidente, 1934 (citação das p. 55-56), que reproduz
de Toynbee com uma relação de quatorze civilizações da história que termina hoje, quatro aulas dadas nos cursos de verão de Santander. Para uma'avaliação atual de
com "uma única civilização global" (p. 46-74). Huizinga, que na Segunda Guerra Mundial lutou na resistência holandesa e foi ep-
15 IGGERS, George G. Nationalism and historiography, 1789-1996. The German carcerado pelos alemães, destaca-se a resenha da nova versão inglesa completa de El
example in historical perspective. In: BERGER, Stefan; DONOVAN, Marx; PASS- otono que fez Alexander Murray na London Review Books, p. 24-25,19 Mar. 1998.
mas por convicção. Foram muitos os que apoiaram a visão racista e "völkisch" teressava pela pura e simples quantificação. Mas o imobilismo das univer-
da história e não duvidaram em participar do estudo da "questão judaica". sidades tradicionais seria compensado pelo dinamismo inovador dos cria-
Um medievalista de prestígio internacional como Percy Ernst Schramm dores das novas tendências de história econômica e social, das quais fala-
(1894-1970) manteve-se até ofimao lado de Hitler e, em 1963, publicou uma remos mais adiante.19
visão elogiosa e humana do Führer, esquecendo por completo a vertente cri- Uma coexistência semelhante de imobilismo acadêmico e início de
minosa do nazismo. Salvaram-se da ignomínia geral boa parte dos judeus, novas tendências reformadoras dar-se-ia na França nos anos entre as duas
obrigados a deixar o país em conseqüência das leis raciais, como Hajo Holl- guerras mundiais: a época em que Henri Berr levou adiante o grande pro-
born, Felix Gilbert ou Hans Baron que prosseguiram brilhantes carreiras nos jeto inovador de "L'évolution de l'humanité", da fundação de Annales, de
Estados Unidos. Há ainda casos mais complexos, como o de Ernst Hartwig que falaremos também depois e da influência exercida pelo grande histo-
Kantorowicz, que acabou deixando a Alemanhà por ser de origem judia, em- riador belga Henri Pirenne. Apesar da importância política, os grupos de
extrema direita não encontraram aqui; diferentemente do que havia acon-
bora se sentisse muito próximo ideologicamente do regime nazista.17
tecido na Itália e na Alemanha, intérpretes de seus programas no mundo
Na Itália, o fascismo contou inicialmente com a tolerância de dois his-
acadêmico, tendo de recorrer a aliados; de duvidosa Competência como
toriadores de prestígio como Benedetto Croce e Gioacchino Volpe. E, como
Jacques Bainville ou Pierre Gaxotte.20
dissemos, embora Croce tenha se afastado dele prematuramente, Volpe, que
Em contraposição ao esgotamento acadêmico, encontravam-se os
durante anos limitou-se à atividade acadêmica e orientou discípulos de alta
historiadores que, pensando que seu trabalho deveria servir para entender
categoria como Cantimori òu Chabod, ao contrário, escreveu em 1932, para
o mundo novo em que viviam, percebiám que não lhes servia o tipo de
a Enciclopédia Italiana, um longo artigo sobre a história do fascismo que, em
história dedicada somente a reis, a ministros e a generais: somente às clas-
1934, foi reeditado como livro, tornando-se a história oficial do partido.18
ses dirigentes. Daí, a preocupação em escrever uma nova "história econô-
Na Grã-Bretanha, predominaria, nos anos entre as guerras mun- mica e social" que se dedicasse àquilo que afetava a vida de todos (origi-
diais, um academicismo ensimesmado cuja figura mais representativa se- nando-se daí também que se começasse a descobrir as mulheres como su-
ria sir Lewis Namier (1888-1960), um judeu polaco naturalizado (na rea- jeito ativo da história). Vale a pena estudá-los separadamente, pois, se fo-
lidade chamava-se Ludwik Bernstajn vel Niemirowski), historiador da po- ram contemporâneos dos historiadores de que falamos, seus objetivos e
lítica que somente chegou a concluir obras menores. Era de um ceticismo perspectivas de futuro eram muito diferentes.
conservador, desconfiado ante as idéias e inclinado a investigar os motivos
pessoais dos indivíduos, o que se intensificou devido ao interesse pela psi-
canálise. A seu lado, outras figuras menores como John H. Clapham
(1873-1946), historiador da economia que menosprezava a teoria e se in- 19 COLLEY, Linda. Namier. London: Weidenfeld and Nicolson, 1989; PARKER,
Christopher. The English historical tradition since 1850. Edinburgh: John Donald,
1990. p. 140-146; veja-se também as visões que de Namier e outros historiadores
17 Sobre Schramm e Kantorowicz, CANTOR, Norman F. Inventing the middle ages. britânicos deste tempo oferece A. L. Rowse em Historians I have known. London:
New York: William Morrow, 1991. p. 79-117. O caso de Kantorowicz - que havia Duckworth, 1995. 1 '-
sido membro dos "corpos livres," que perseguiam e assassinavam revolucionários - 20 De Berr e dos Annales fala-se em um capítulo posterior. Sobre a história da extre-
foi estudado por BOUREAU, Alain. Histories d'un historien. Kantorowicz. Paris: ma direita, GORDON, Bertram M. Right-wing historiographical models in Fran-
Gallimard, 1990. ce, 1918-45. In: BERGER, Stefani; DONOVAN, Marx; PASSMORE, Kevin (Ed.).
18 CLARK, Martin. Gioacchino Volpe and fascist historiography in Italy. In: BERGERj Writing national histories. London: Routledge, 1999. p. 163-175.
Stefan et al. (Ed.). Writing national histories. London: Routledge, 1999. p. 189-201.